Existe em Miguéis uma contradicao entre um romantismo radical e a aversao ao conflito, uma descrenca no próprio radicalismo, se nao em termos teóricos, pelo menos na situacao concreta do pais. A ambicao de Paz e Liberdade que Miguéis tem para todos os homens e para os Portugueses situa-se muito mais perfeitamente nos termos de uma dialéctica opressor-oprimido, sejam eles quais forem, que no campo teórico da dicotomia burguesia-proletariado. O proletariado portugués é muito restrito e os «oprimidos» sao, para Miguéis, uma camada muito mais vasta e para ele muito mais significativa do povo. O seu combate politico é contra a grande bur-guesia da indústria e dí~fmEňqa-l^íiě~nóp&ňoáo da República con-trola, por cima dos partidos, a economia portuguesa e que, incomodada pelos «políticos», apoiará a ditadura. Por outro lado, na sua análise política e psicológica do burgués odiado - o argentário, o novo-rico, o «de cima» - e do burgués ex-plorado - o pobre, o arruinado, o «de baixo» que, na sua generosidade, nunca «passará da cepa torta» - Miguéis acaba por encontrar o burgués simplesmente; e é aí, nas misérias e grandezas de uma classe dividida, indecisa, volúvel, enganada pěla propaganda e sem ninguém que a represente, que Miguéis encontra a sua gente e se encontrará a si próprio. Será este caminho - o do descoberta de si próprio e o assumir duma condicao e de uma situacao de momento sem saída - a causa do sen sofrimento e a razao de ser da sua ironia? Da forma como, ora com orgulho, ora com desprazer e mesmo a contragosto se assume como burgués, portugués, «lusitanus vulgaris*? Esperemos que os inéditos no-lo revelem pois, para bem nosso e mal dele, Miguéis é o escritor que mais expressivarncnle nos dá o tcsleiuunlio da Irustracao política da sua geraeao. XII. MIGUÉIS - TESTEMUNHA E VIAJANTE Gerald M. Moser I José Claudino Rodrigues Miguéis, que preferia ser conhecido por José R. Miguéis, quandoadquiriu a cidadania arnerieaiia, passou cerca tic metade da sua longa vida (1901-1980) em Manhattan. Sabia bem inglés, tal como trances e cspanhol; mas escreveu em portugués, ä sua lingua mac. Por essa razäo, poucos neste pais conhecem as suas obras, apesar de poderem ser consideradas das melhores e mais claras obras de prosa escritas no nosso tempo e que retratam as vidas de pessoas comuns passadas nos primeiros 30 anos do século xx. Nessas vidas procurou respostas para os enigmas complexos e contraditórios da natureza humana. Finalmente, uma coleccäo de histórias de Miguéis ficou acessível a um publico mais vasto, através da traducäo em ingles. Quem foi este autor que procurou refúgio no anonimato que uma grande cidade como Nova lorque pode oferecer? Miguéis nasceu no princíplo do século xx em Lisboa, a linda cidade portuária e capital de Portugal, oriundo de uma família da classe média e de origens humildes. No decorrer da sua infäncia, o pais atravessou períodos conturbados após o assassínio do rei e do principe herdeiro, a proclamacäo da República e uma série de golpes militares que, finalmente, a substituiu por um regime de ditadura fascista. Tendo desempenhado um papel activo em movimentos moderadamente so-cialistas, como na Seara Nova, enquanto estudante de Direito, desen-volveu simultaneamente mais duas carreiras, tornando-se ilustrador durante algum tempo e escritor toda a vida. Como escritor, contribuiu com inúmeras narrativas e episódios em prosa para periódicos a 216 217 partir de 1923. Em 1932, apareceu o sen primeiro livro, ľáscoa ľeliz, uma novela com um protagonista paranóico e esquizofrénico que conta a propria história. A obra chamou a atencäo de críticos influentes cm Portugal e Miguéis tornou-se conhecido, embora, nessa altura, estives-se a estudar Ciéncias Pedagógicas na Bélgica. Essa estada de dois anos teria um efeito duradouro, fornecendo-lhe muitas ideias para futuras histórias, como Léah. Levou-o também ä contactar com muilos expatriados, particularmente os russos da colónia branca em Bruxelas. A actividade política só originou disputas no interior das organiza-cöes e permanente desilusäo. Para alem disso, a sua eserita aborreceu os censores sob as ordens do regime de Oliveira Salazar, de tal forma que o proibiram de publicar o que quer que fosse usando o seu nome verdadeiro. Nessa altura, Miguéis decidiu exilar-se. Em_ 19_35,_yeio para os Estados Unidos como visitante. Rapidamente fixou residéncia e em sete anos tornou-se cidadao americano, logo apös a entrada do nosso pais na Segunda Guerra Mundial. De 1942 a 1951, trabalhou como editor e tradutor para a edicäo portuguesa do Reader's Digest, periodo que incluiu uma estada no Brasil, por razöes de trabalho, durante quase um ano. Outro dos seus livros, o segundo, tinha sido já publicado no Rio de Janeiro: Onde a Noite Se Acaba (1946), uma coleccäo de contos que inclui a primeira história referida na preseiile antológia. Nesse mesmo ano de 1946, voltou a Portugal para estar com a família enquanto recuperava de uma série de doencas preocupaiites. A partir dessa altura, viajaria incansavelmente entre Nova Iorque e Lisboa, sentindo imediatamente saudades do sítio de onde vinha quan-do chegava ao outro. Assim, viajou para Lisboa seis vezes, em 1946( 1952, 1957-1959, 1963-1964, 1966 e 1967. Sentia um desejo angus-tiante de se integrar no único pais em que podia contar com leitores fiéis. Sonho que quase viu realizar-se quando alcancou o cume da celebridade local como vencedor de um prémio literário novo, näo atribuído pelo governo, como era a maioria, mas pelos editorese eseritores. Ganhou-o pela coleccäo Léah e Outras Histórias (1959). No entanto, parecia despertar mais invejas e ciúmes do que aárniracäo entre os intelectuais Portugueses, que se ressentiam com o sucesso de um «intruso». Ele achou a vida em Portugal demasiado macadora e regressou ä America. A terceira visita que fez ao pais natal comegou também por ser auspiciosa, mas quando os censores proibiram inespe-radamente a publicagäo do seu novo romance em folhetins, intitulado Idealista no Mundo Real, tornou consciencia da necessidade de liber-dade. A saúde _debilitante impediu-o de fazer mais viagens txansatlän-ticas a partir de 1967. Nos Ultimos anos de vida, conceal rou-se inteiramente na eserita, desistindo de viajar e de fazer intervencöes públicas mesmo nos Estados Unidos. A correspondéncia com amigos foi praticamente inter-rompida. No dia 27 de Outubro de 1980, um repentino e devastador ataque cardíaco pös fim ä sua vida na cidade de Nova lorque. A viúva do eseritor, Camila, levou as suas cinzas para Lisboa, para sérem depositadas no Alto de Säo Joäo, o maior cemitério da cidade, proximo do velho apartamento do casaí. Até ä data, todos os livros de Miguéis (excepto um) e todos os seus artigos foram publicados em Portugal, seu verdadeiro lar espiritual até ao fim, apesar da afeicäo que sentia pelo pais de adopgäo. Escrever em portugués näo favorecia a sua posicäo face aos autores americanos, que podiam ser lidos pelos leitores de muitos outros paises de lingua inglesa. Nesta era de milhöes de refugiados, o eseritor expatriado paitilha o mesmo destino. Apesar de Miguéis se ter exilado por vontade propria, podia regressar a Portugal se quisesse; a vida em Portugal sig-nificava ter de enfrentar uma outra emigraeäo «interior». Centenas de intelectuais liberais e de esquerda näo poderiam falar ou escrever em liberdade durante cerca de cinquenta anos, até ao colapso da ditadura em 1974. Entre eles encontravam-se os seus melhores amigos, como a companheira de eserita e pedagoga Irene Lisboa, que tentou dissu-adi-lo em 1938 de regressar ä prisäo espiritual que era Portugal: «Tem saudades de Portugal? Esqueca-o. E näo volte.» No entanto, quase ňerihuns eseritores Portugueses tinliam acompanhado os milhares de pobres, marinheiros analfabetos, camponeses e trabalhadores que pro-curaram uma vida melhor na America. Miguéis foi a única grande excepcäo. Sentindo-se isolado durante a maior parte do tempo que passou neste pais, identificou-se com eles e gostava de escrever sobre as suas vidas. 218 219 Em 1961, por pouco tempo, Miguéis gozou da companhia de um notável escritor angolano, o romaticista Fernando Castro Soromenho. Soromenho näo permaneceu muito tempo na cidade de Nova Iorque e voltou para o exílio em Franca, depois de alguns meses a leccionar, Miguéis encontrou-se com outro extraordinário intelectual portugués, o professor e escritor Jorge de Sena, quando Sena vpitou coslas ao Brasil, primeira escolha de exílio, e se mudou para Wisconsin, em 1965, e depois para a California. A amizade que travaram teve de ser cpi sto I ar e, ao contrario de Sena, Miguéis näo escrevia cartas facil-mente. Dessa forma, sentia falta do constante estimulo que se recebe na propria lingua tanto de amigos como de desconhecidos. A splidao do expatriado tinha, apesar de tudo, duas vantagens. Permitia a oom-pleta imersäo nas experiéncias anteriores de uma vida inteira e forne-cia perspectivas que Ihe possibilitavam ver as gentes e o pais ä dis-tahcia. Essa distaňcia só aumentava p amor que Ihes tinha - amor crítico, näo preocupado com a felicidade - ou peío rrienos, näo os pondo täo ao corrente da realidade como ele tentava estar. II A reputacäo de Miguéis como autor ficará, arrisco-me a prever, sempře ligada äs mais de cem histórias que escreveu - narrativas, histórias e noveletas. Uma noveleta com o toque de Dostoieyski, Páscoa Feliz, trouxe-lfie reconhecimento, sem dúvida por corresppnder _ao interesse despertado ppr uma ciéncia nova, a psicologia. Outras histórias agradaram aos lei tores Portugueses por outras razoes - senti-mentalismo salpicado de humor na longa história «Saudades para a Dona Genciana» (1956) ou entusiasmo vigário de uma luta entre dois machos ciumentos em «Regresse ä Cupula da Pena» (1948). As duas histórias evocam a vida em Lisboa, como era na juventude do autor e - atraegäo maior - na juventude de muitos leitores, antes da eclosäo da Primeira Guerra Mundial. Miguéis descreveu pormenores täo ca-racteristicos que só um escritor observador e subtil podia apreender. Para o fazer, tinha de conhecer Lisboa täo intimamente como Balzac conhecia Paris do seu tempo ou Dickens a sua Londres. Miguéis completou este retrato dajvida lisboeta na transicäo entre amonarquia e a república, num romance marcadamente autobiográfico, A Escola 220 do'Pamíso f. I960), em que as histórias estäo organizadas por sequén-cia cronológica. Noutras histórias que se tornaram favoritas, ofereceu, com profu-säo, aventura e viagens noutras terras; os nan-adores ficcionados re-lataram ehcöntros corn pessöas sfiipTes, mas de grande coraeäo, em locais no estrangeiro, como é o caso de Cosme, entre os trabalhadores da construeäo civil da cidade de Nova Iorque, ou Léah, a criada de quartos flamenga, em Bruxelas. Apesar de ter tentado a poesia e o drama, Miguéis dedicou as suas energias a outros generös de prosa, herónica (episódios em prosa) e ao romance. Foi um mestre nestes "generös. Pelos comentários que fez sobře pěsšoas e lugares nas crónicas merece particular referenda. Näo foram eseritas ä pressa, mas elaboradas com uma atencäo eserupulosa, procurando encontrar a expressäo adequada. Revelam também as suas experiéncias pessoais, sentimentos e opiniöes sem qualquer típo de disfarce ficcional. Embora näo fosse sua intencäo revolucionář a téc-nica de escrita dó romance, variou de abordagern de romance para romance. I .'ma delas, a história policial Uma Aventura Inquietante (publicada como série em 1934-1935), foi escrita meramente para entreter. Outra ainda, trata de um terna regional que sugestionou muitos ensaístas e romancistas Portugueses; em O Päo Näo Cai do Céu (pri-meiro escrita em 1927, na forma de drama, depois publicada postuma-ruente em 1981), narrou a luta dos camponeses sem terra na provfneia do Alentejo, o celeiro de Portugal. Nenhum outro escritor portugués iguala o seu estilo épico. Mais do que qualquer outra coisa, ele pre-tendia suprir a falta de um particular tipo de crónica ficcionada sobre a vida portuguesa no primeiro quartel do século xx. Para poder des-crever com rigor o Portugal do tempo da República, näo podia ser tolerado pelos propagandistas do regime ditatorial que a tinha destruido em 1926. A Escola do Paralso consistira apenas nuraa ligeira aproxi-niacäo ao preltídio děste periodo crucial. Quando Miguéis se tornou mais falado na sequéncia de Idealista no Mundo Real, os censores intervieram imediatamente, para desespero do autor. «Embora a accäo deles simplifique o meu trabalho», escreveu ele de um modo sarcás-tico «piora os meus medos: que devo ou o que posso escrever?». Surgiu depois um segundo romance. O episódio central dava uma 221 interpretacjo racional e plausível äs aparicöes miraculosas da Virgem Maria em Fátima. A protagonista Salome, uma boa rapariga obrigada a proslitiiicäo, ironieaniente pareee ser tornáda pěla Virgem quando aparece, luminosa, a trés crian^as, deslumbradas, no meio dum des-campado, na regiäo mais pobre de Portugal. O romance näo podia ser publicado. «O meu romance O Mílagre (impublicavel)», escreveu-me ele, «é a minha obra principal, a única que significa algo para mim. Imagine a dramática situacäo de um autor que sabe que näo pode publicar o que está a escrever! E escrevi outros romances como este...». Após o demibc da diladura. o romance apareceu, em 1975, mas näo interessou nem os críticos nem os íeitores, talvez porque o fermento revölücionafiö dos anos 70 näo fösse a atmosféra ideal para ler ííceäo referente a um passado doloroso, mas descrita náo politicamente e sem atitudes de propaganda anticlerical. O Mílagre encaixava-se na definicäo feita anteriormente por urn crítico. Consistia num krealismo ético»,| se «etico» significar empatia pelos protagonistas humildes, fidelidade aos acontecimentos, sincerida-de que desmascara a hipocrisia e destrói ilusoes, e um sentido cons-trutivo da imaginagao. O autor deu a sua propria definicäo numa nota acrescentada ao trabalho: O Milagre era o romance de Salome e o dos desastres políticos; era o romance de si proprio, da sua gente e do sen tempo. Näo se tratava de mero divertimento, acrescentou, mas de um trabalho sério, representacäo simbólica da época, da atmosféra, da forma de pensar colectiva que tinha levado ao golpe de 26 de Maio de 1926 e äs consequénciäš posteriores. A ficcäo de Miguéis normalmente elabora experiéncias, muitas das quais säo as suas, com a curiosidade de um investigador jornalistico, a preocupagäo de um advogado pelo testemunho verdadeiro, ou a intencäo de um pedagogo em transmitir conhecimentos. Tendo escrito para jornais ao longo da vida, queria sobretudo noticiar. No melhor estilo, observou as falhas dos seres humanos, incluindo ele proprio, com gräca e Humor, entre as quais salientou a incrível capacidade que temös de nos iludirmos a nos próprios, tal como aos outros. Pari exemplificar, escolheu dois fenómenos históricos que tinha seguido atentamente, as expectativas fäňťasticas dos pretendentes falsos entre os exilados russos e o entusiasmo messiänico causado, desde 1917, pelas aparicöes de Fátima entre milhöes de católicos. Nas histórias, Miguéis comeca tipicamente pela realidade objectiva, situada num passado recente e a čerta dištancia, usäridó-a como impulsionadora do desenvolvimento de sonhos desejados ou de pesa-delos opressivos, finalizando com um retorno ä realidade. Assim, I.éah comeca com uma breve evocacäo dos inquilinos de uma casa alugada em Bruxelas, da proprietária e da sua criada Léah, com as seguintes palavras: «Lembro perfeitamente a tarde quieta em que...» Depois o tempo é colocado em perspectiva: «Só hoje, a tantos anos de dištancia... » Léah atrai irresistivelmente o estrangeiro sohtário que narra a experiéncia. Léah toma-se a amante ideal: «Quanto naturalismo, quanta exuberäncia, e que saudável!» Está sempre disponível para ele. Quando ela propôe que fujam para Paris, ele reeusa - lamentando a cobardia. Quando volta ao mesmo local muitos anos mais tarde, a casa de aluguer tinha desaparecido e Léah vivia com o marido e o filho. A figura da jovem mulher que oferece o seu amor ou a sua externa dedicacäo a um homcni infeLz aparece constantemente has histórias. Surge, a primeira vez, na jovem enfermeira do relate autobiografiou da paralisia que o ia matando no Hospital BeĽevue em Nova lorque, Um Homem Sorri ä Morte - com Meia Cara (1959) e, numa segunda vez, numa novela profundamente comovedora, Ä Múmia (1971). «0 que é que faz as mulheres täo boas, täo sensíveis ä nossa dor?», pergunta no primeiro trabalho «Talvez uma espécie de matemidade difusa? Ou, porque sofrem mais, sentem talvez melhor a dor alheia? Quanto temos que agradecer-lhes e esperar delas! De quanto temos que penitenciar--nos, e quanto nos falta reparar e compreender!» Por fortes razôes pessoais, o eseritor exilado preocupava-se tam-bém com os problemas relacionados com o passado e o presente. Muitas vezes sentiu a impossihilidade de recotistruir o que tinha sido desttuído, proeurando _<