moes Literatura Portiigiiesa do Sécnlo XX Coleccao Cadernos Camoes Titulo: Literatim Portuguesa do Seculo XX Coordenador: Fernando J.B. Martinho Autores: Fernando J.B. Martinho, Fernando Pinto do Amaral, Maria Helena Serodio, Serafina Martins © Instituto Camoes Reservados todos os direitos de acordo com a legislacao em vigor Revisao: Anick Bilreiro Design grafico e paginacao: TVM designers Pre-impressao e impressao: A. Coelho Dias S.A. l.a edigao: Maio de 2004 ISBN: 972-566-249-0 Deposito Legal: 21269/4 INSTITUTO CAMOES indict Apresentagäo 9 Fernando J.B. Martinho 1 Poesia 11 Fernando J.B. Martinho 2 Narrativa 55 Fernando Pinto do Amaral 3 Dramaturgia 95 Maria Helena Serôdio 4 Ensaio Literário 143 Serafina Martins índice de Autores Citados 177 O objectivo do presente volume é oferecer urna visäo de conjunto do que foi a producäo literária portuguesa do Século XX nos domírúos da poesia, da ficcäo narrativa e da literatúra dramática, bem como da reflexäo que sobre o literário se fez nos pianos crítico, ensaístico e historiografico. Os estudos panorämicos nele contidos reflectem, necessariamente, os pontos de vista dos seus autores, e o reflectirem, concomitantemente, formacôes, percursos e, até, situacôes geracionais diferentes näo faz senäo reforcar o desejável pluralismo das perspectivas. Urna das mais antigas da Europa, a literatúra portuguesa tem no século há pouco findo um dos seus períodos de maior riqueza. Epoca de grandes tensöes e transformacöes, nem a propria ditadura, com o con-texto particularmente adverso que, durante quase meio século, repre-sentou, conseguiu vergär ou anular-lhe o ímpeto criador. Do confronto com as circunstáncias difíceis que foram as suas, soube ela, pelo contrario, retirar muita da sua forca, dando testemunho, tematizando esse embate ou construindo, a partir dele, os seus mundos ficcionais, ou, no caso da reflexäo crítica, agucando-lhe a exigéncia e a consciéncia vigilante. Do que significou o regresso ä democracia, com a libertacäo de todo o tipo de peias censórias e tabus, dá bem conta o notável florescimento literário do ultimo quartel do século, em que, ao mesmo tempo, se assis-tiu ao alargamento e intensificacäo dos contactos com os mais diversos espacos culturais, em fidelidade ä vocacäo dialogante e universalista que, nos seus melhores momentos, sempre distinguiu a nossa literatúra. Fernando J.B. Martinho Poesia Fernando J.B. Martinho A primeira metade do século xx, no que diz respeito ä poesia portu-guesa, é, em termos gerais, dornirtada pelo surgimento e imposicäo, nem sempře fácil, do Modernismo. Quando se dá a viragem para a segunda metade do século, é já muito nitida a consciéncia de uma tradicäo moderna por parte dos poetas portuguěses. Ö Modernismo tem já entäo uma idade respeitável: cerca de 35 anos desde a publicacäo do Orpheu, revista que, por assim dizer, funciona como sua certidäo de nascimento. Num artigo publicado em 1952 («Persistencia do Modernismo», Legó-mena - Textos de Teória e Crítica Literária, 1987), Manuel Antunes, um influente crítico da época, falará mesmo, a propósito de algumas revis-tas de poesia entäo vindas a lume, de uma «persistencia do Modernismo», o qual teria, em seu entender, entrado num claro processo de sedimentacäo. A batalha travada pelos defensores de uma literatura moderna fora, no essencial, ganha. Havia agora apenas que alargar e aprofundar a experiéncia modernista. Mas, como Manuel Antunes näo deixava de avisar no fim do seu artigo, o Modernismo, ä semelhanca de todos os movimentos, passaria. Quatro anos depois, um outro crítico, Adolfo Casais Monteiro, radicado já entäo no Brasil, ele proprio, enquanto poeta e ensaísta, um dos mais acérrimos praticantes e defensores, respectivamente, da modernidade literária, anunciava a morte da modernidade, quefazia coincidir com o comeco da era atóm i ca («A Ideia de Modernidade», A Palavra Essencial, 2.- ed., 1972). Em sua opiniäo, outra coisa nascera, só que näo tinha ainda nome. Por essa altura, e na realidade desde a segunda metade dos anos 40, já havia quem falasse de pós-modernismo no contexto literário norte-americano ou de era pós--moderna como uma nova era da História Ocidental, o que era o caso do historiador inglés Arnold Toynbee, mas, aparentemente, Casais Monteiro näo estava a par desses desenvolvimentos, pelo menos na sua ver-tente terminológica. Isso näo deve, contudo, surpreender-nos, uma vez que a grande difusäo do termo pós-modernismo só se verificou nos anos 70 e 80. O crítico portugués teve, pelo menos, no seu ensaio de 1956, o grande mérito de, muito cedo, afinal, se ter dado conta de uma impor-tante mutacäo civilizacional e cultural, que o levava, pessimisticamente, a situar o retrato do hörnern moderno entre a «fragilidade» é o «nada». Seja como for, a moderrüdade poetka em Portugal prolongar-se-ia ainda por alguns anos e só na década de 70 se perceberiam os primeirpasinais de crise de uma das ideias mais caras ä moderrüdade estética^a da tra-dicäo da ruptúra no processo evolutivo das artes, praticamente desde o Romanüsmo. Um outro critico, Eduardo Lourenco, num ensaiq escrito no início dos anos 70 («Dialectka Mitica da Nossa Modernidade», Tempo e Poesia, 2.- ed., 1987), preferia falar de uma Modernidade que «de si mesma se despede», a propósito de vários poetas entäo com marcante presence na cena literária portuguesa, nomeadamente Herberto Heider e Ruy Belo. A intuicäo de Lourenco revelar-se-ia correcta: assistia-se entäo, com efeito, a uma despedida da Modernidade e näo tardaria muito que outras perspectivas comecassem a afirmar-se no sentido de uma cada vez mais desinibida oposicäo ao que fora sobrerudo a vertente vanguardista da tradicäo modernista. Um dos que assumem os novos valores, Joaquim Manuel Magalhäes, num texto vindo a publico em 1978 («A Inescapável Tara da Procriacäo», Colóquio I Letras, n.e 43, Margo de 1978), näo hesitará mesmo, ao arrepio de toda urna tradicäo moderna que tinha como urna das suas mais agitadas bandeiras a originalidade, em proclamar provocatoriamente que «näo se é [...] original (quem o séria depois de 1916), apenas consequente», ao mesmo tempo que a par da «invencäo irrepetivel» colocava a «repeticäo inventiva». Uma das mais vincadas diferencas da poesia portuguesa da segunda metade do Século XX relativamente ä da primeira metade tem a ver com a presenca menos nitida, nela, de movimentos e correntes. Movimentos e correntes säo, dentro da tradicäo modernista, de um modo geral, tipicos da l.ä metade do século, como num texto de revisi-tacäo a um seu célebre ensaio sobre o Orpheu e a presenga (JL, 20 de Setem-bro de 2001) lembrou Eduardo Lourenco, vendo no Orpheu, na presenga, no neo-realismo e no surrealismo «as quatro grandes manifestacöes, pelo menos até metade do século, que hoje f azem parte da nossa memoria cultural do século passado». Nos anos 50, o que temos säo pequenos gru-pos que, em regra, apresentam as suas diferentes propostas através de revistas que concedem lugar destacado ä poesia. Dentro de uma coň-cepcäo alargada de Modernismo que o näo restringe ao chamado Primeiro Modernismo, vigente na segunda e terceira décadas do século, esses grupos tendem a privilegiar a continuidade ä ruptúra. Com efeito, apenas os surrealistas^cujo periodo de afirmacäo se prolonga ainda pela década de 50, e um ou outro poeta ligado ao projecto da revista Árvore, se inclinam para a vertente vanguardista da tradigäo moderna. Nosanos 60, porém, a ideia de vanguarda é determinante para dois grupos que ^assurhěm, entáo, uma posicáo de destaque, o grupo de Poesia 61 e o grupo da Poesia Experimental, o qual se inscreve mesmo num movi-mento com carácter transnacional. A crise das vanguardas e do que se chamou as grandes narrativas, algumas dasjdeias-chave definidoras do "espírito da modernidade, torna-se sensível a partir dos anos 70, e o dis-curso crítico, para dar conta de uma mutacáo observável no modo de eňcarar, entre outros aspectos, o novo, as tradicóes, a relacao com as outras artes e as manifestacóes da cultura de massas, recorre, com fre-quéncia, sobretudo durante a década de 80 e nos comecos do decénio ~~seguinte, aos termos e conceitos de pós-moderno, pós-modernidade e pós-modernismo, Outra diferenca marcante entre a primeira e a segunda metade do século diz respeito ao papel que as revistas literárias desempenham numa e noutra. A fronteira, aqui, esclareca-se, náo é totalmente coinci-dente com a que apontámos — é evidente que com a necessária fluidez — relativamente a movimentos e correntes. Enquanto, de alguma forma, é possível fazer uma história da poesia portuguesa até aos fins dos anos 60 em ťuncáo de revistas que nela definem, com maior ou menor nitidez, dentro da logica modernista de uma tradicáo de ruptura, momentos de viragem, tal náo é viável com base nas revistas publicadas a partir dos anos 70, que claramente se afastam do modelo de afirmacáo geracional e das proclamacoes de tipo programático e manif estário. A vida literária perde claramente, neste segundo periodo, o carácter grupal, e as revistas, algumas das quais atingem níveis de qualidade semelhantes ás do primeiro periodo, ou nao inserem no numero inaugural qualquer texto programático ou, se o inserem, habitualmente, breve, é para lembrarem que náo tem programa e que os poetas ali incluídos devem ser conside-rados individualmente. Quando o Século XX chega ao seu termo, o panorama poetko por-tugués, já distanciado da logica modernista geradora de oposicóes inter-geracionais, apresenta-se sem tensóes inibidoras de uma prática saudá-vel do r>luralismo e do consequente respeito pela radical singularidade das esčřitas. As vozes vivas que coexistem nesse espaco dinámico e nele entram em diferentes processos de interaccáo, definem um amplo areo temporal que vai de autores revelados nos princípios dos anos 40, como Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, a poetas que se revelam na década de 90, e de que pode encontrar-se uma boa amos-tra no volume antológico Anos 90 e Agora — Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, 2001. Nesse areo cabem alguns dos mais representativos / poetas da segunda metade do século, e alguns deles faräo mesmo parte das arrumacôes canónicas mais apertadas que possam ensaiar-se em relacäo ä poesia do Século XX em Portugal, na sua globalidade. Por outro lado, convirá näo esquecer que, em qualquer estudo que se faca da poesia de um determinado período, há que ter igualmente em atencäo os mortos, recentes ou recuados, que se mantém como uma presenca activa e fecunda na realidade viva que é a poesia de um Pais em cada momento. E o que, restringindo os exemplos ao minimo, se passa eom um Cesário Verde, persistente matriz de tudo o que na nossa lirica novecentista se reclame de um regresso ao real, ou com urn Pessoa, referenda incontor-" navel numa tradicäo de dramatizacäo do lirismo, ou ainda com Jorge de Sena, inegável ponto de partida de toda uma linha da poesia portuguesa das ultimas décadas que aposta nos mais diversos tipos dé diálogo com o discurso da cultura. O que importa, em trabalhos desta natureza, é estar atento, como lembra Claudio Guillen (cf. «Sobre los Períodos Lite-rarios: Cambios y Contradicciones», Teorías de la História Literaria, 1989), äs «opgöes vivas» que se pöem aos poetas dum determinado período, e ver neste um complexo mosaico onde se confrontam as mais diversas sensibilidades, numa mterminável multiplicidade de cruzamentos e de processos interactivos que, obviamente, se näo restringem ao sistema literário nacional. Embora aqui seja nossa preocupacäo fundamental acompanhar a dinämica do processo evolutivo da poesia portuuguesa do Século XX, há que ter igualmente em conta as recomendacôes de um Bakhtine quando alertava para a necessidade de atender, por detrás do que chamava o «ruido superficial do processo literario», äs tendéncias mais estáveis da evolucäo literaria (cf. «El Problema de los Generös Dis-cursivos», Estética de la Creadon Verbal, 1982). Por esse motivo prestare-jrios atencäo a algumas das tradicöes que aí se defihem e^e^OTtslituem elementos de amlimiidade, face a outros que säo da ordern da desconti-nuidade e que com oles frequentemente interagem. Dois poetas se destacam no período que antecede imediatamente os primeiros sinäis da emergéncia do Modernismo na segunda década do século: Camilo Pessanha e Teixeira de Pascoaes. O primeiro, que só em 1920 dará a publico o livro de poemas Clepsydra (cf. ed. de 1995, com texto estabelecido por Paulo Franchetti), que irá consagrá-lo como uma das figuras centrais de todo o cänone poético portugués, representa o que de melhor produziu o Simbolismo em Portugal, no sortilégio encan-tatório dos seus ritmos, que chegam o mais perto possível daquela que foi a maior aspiracäo dos poetas dessa correnfe — aproximar a poesia da música. A sua influéncia nos modernistas, e nomeadamente em Pessoa ele-mesmo, foi determinante. O segundo (cf. reedicäo das Obras de Tei- v xeira de Pascoaes, em curso de publicacäo na Assírio & Alvim), autor de uma obra poética extensíssima que se inicia ainda no Século XIX e que se prolongará até aos anos 50 do século passado, é, na amplidäo do seu verso inspirado e percorrido por uma forca genesíaca desmesurada, o grande romäntico que Portugal, de certo modo, näo teve na altura pro- / 1 ■" ^pria~ Föi, äTémfdisso, o iniciador de um movimento literário e cultural, o saudosismo, que eléva a uma dimensäo mítica um sentimento que, den-tro de orientacôes nacionalistas muito típicas dos comecos do século, via como exclusive) do povo portugués. Ä margem do Modernismo, citem-"še ainďáTš poesías de raro fulgor de Antonio Patricio (Poesia Completa, 1980) e FlorbelaJEspanca (Poesia Completa, 1996). Coexistem no Modernismo portugués, como, de resto, de um modo geral, no Modernismo enquanto movimento presente noutros espacos da cultura ocidental, J.uas vertentes, uma radical, extremista, que defende a ruptúra com a tradí^aoTěqué associamos aos movimentos das chamadas vanguardas mstóricas (futurismo, dadaísmo, surrealismo), e uma outra, mais moderada, que aspira ä criaeäo de uma nova tradicäo, situando-se mesmo na continuidade do movimento imediatamente anterior, o simbolismo, e que alguns, como ó o caso de Jorge de Sena (cf. pre-fácio a Poesia do Século XX, 2.- ed., 1994), por esse motivo, designam.de. post-simbolista. Bašta ler os dois números publicados da revista que, em Portugal, dá início ao Modernismo em 1915, Orpheu, para nos darmos conta do seu duplo carácter. Fernando Pessoa (cf. «Edicäo Critica» e «Obras de Fernando Pessoa», em curso de publicacäo na Imprensa Nacio-nal-Casa da Moeda e Assírio & Alvim, respectivamente), chefe de fila da geraeäo que lanca o Modernismo portugués, é ele proprio uma excelente ilustracäo dessa ambivaléncia, com os seus heterónimos, as várias perso-nae a qué^mprestou visôes do mundo diferenciadas, cada uma delas ~com uma linguagem e um estilo próprios. A sua aproximaeäo ao espí-^rito ^anguardista pode observar-se nas grandes odes de Álvaro de Campos, nomeadamente na «Ode Triunfal», onde se celebra, em verso livre^ielnspiracäo whitmaniana, a civilizagäo moderna, a técnica, as máquinas, a velocidade, muito ao jeito dos futuristas. Em Fernando Pessoa ele-mesmo, pelo contrario, em que säo dominantes os poemas rimados e de metro regular, sem desvios muito pronunciados relativa-mente ä tradicäo lirica portuguesa, a énfase posta na musicalidade do verso e a subtil complexidade dos conteúdos e de todo o travejamento imagético e metafórico fazem dele um post-simbolista. Por outro lado, com o heterónimo Ricardo Reis, e antecipando o que um pouco mais / tarde faräo pintores e músicos modernistas como Picasso e Stravinsky, procede ä recuperacäo da heranca clássica, para o caso, atravésjiacom-posicäo de odes horacianas, que se julgariam insusceptíveis de um pro-cesso de renascimento em pleno periodo modernista e que vém mesmo a revelar-se capazes de exprimir, na aparente rigidez da sua forma, algu-mas das mais fundas inquietacöes do hörnern moderno. Alberto Caeiro, o outro grande heterónimo, na inocéncia e na simplicidade em que faz assentar a sua persona, quer-se, em nome da oposicäo natura-cultura, ao abrigo de tais dependéncias periodológicas, mas a realidade é que o efeito da sua escrita prosaica, despojada, de uma construída pobreza esti-lística, na lírica portuguesa subsequente foi no sentido de estimular a libertacäo modernista, pelo contributo que trouxe para a superacácTde uma poesia convencional e passadista e, juntamente com os ritmos espraiados e o estilo frequentemente enumerativo de Álvaro de Campos, para a imposicäo do verso livre. O espírito combativo, iconoclasta das vanguardas manifesta-se, com rara violéncia verbal, em textos manifes-tários de Almada Negreiros, nomeadamente no famoso Manifesto Anti--Dantas, visando um representante da literatura académica e passadista dos comecos da República, Julio Dantas, e nas sucessivas invectivas lan-cadas contra o burgués no longo poema «A Cena do Ódio» (cf. Poemas, 2001). Só muito incidentalmente, e num único poema, «Manucure», Mario de Sá-Cameiro, o outro grande poeta do Orpheu, se aproxima do Vanguardismo, e mesmo nesse caso, segundo Pessoa, estaríamos peränte um «poema semifuturista (feito com intencäo de blague)». Aí se refere ele ä poética que estaria, entäo, subjacente ä sua escrita: «Meus olhos ungidos de Novo, / Sim! — meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas», mas a verdade é que a fidelidade mais i, constante de Mario de Sá-Carneiro, em termos dos ismos actuantes no I Modernismo portugués, se orientava, antes, para o paulismo, e esse, I como o seu proprio criador, Fernando Pessoa, reconheceu, situava-se na continuidade do^Simbolismo. Independentemente do que, no caso concreto de «Manucure» possa haver de adopcäo de procedimentos típicos do futurismo, ou, noutros textos, de tracos associáveis ao cubismo ou ä corrente que é uma espécie de sua versäo portuguesa, o interseccio-nismo, igualmente criacáo de Pessoa, Sá-Carneiro (cf. Poemas Completos,-1996) é, no essencial, um poeta que leva a um ponto paroxístico, de quase ruptura, a heranca simbolista, facilmente reconhecível em diversos aspectos da sua fulgurante imagética, ao mesmo tempo que submete a sintaxe a surpreendentes procedimentos de estranhamento por via, em regra, de insólitos regimes verbais. A temática da crise e da cisäo do sujeito^de täoforte incidéncia também no Modernismo portugués, tem 19 nelejilguns do^^eus^mais1 expressivqsexemplos, como a célebre quadra de Os lndícios de Oiro («Eu näo sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro.»), e difícil é que o té-la levado a limites insustentáveis näo nos venha ao espírito quando lembramos o destino trágico do poeta, suici-dando-se em Paris antes de perfazer os 26 anos^A herancajsimbolista é jguahnente sensível em outros trés poetas órphicos: Alfredo Furtado, Armando Cörtes-Rodrigues e Luis de Montalvor. Entre o Primeiro e o Segundo Modernismo, duas figuras se desta-cam que beneficiaram de um excelente acolhimento por parte de alguns dos autores mais representatives de um e de outro desses momentos do j nosso Modernismo. Referimo-nos a Mario Saa e Antonio Botto. O primeiro, de que, infelizmente, ainda näo se encontra disponivel no mer-cado uma edicäo dos poemas que deixou/dispersos em muitas das revis-tas modernistas, evidencia-se pela forca/próxima do desvairo, da sua imaginacäo verbal, e pela verve com que recupera, criativa e parodica-mente, códigos estilisticos de outras épocas. O segundo (cf. As Cangöes de Antonio Botto, 18.a ed., 1999) é um poeta de inegável presenca canó-nica na lírica portuguesa de Novecentos, pelos carninhos que abriu a muita da poesia posterior no sentido de uma harmoniosa conciliacäo da limpidez com a modernidade da expressäo. Quando em Portugal se fala de Segundo Modernismo, ele é habi-tualmente associado a uma revista que se publicou entre 1927 e 1940, a presenga. Gracas, em parte, a um ensäio de Eduardo Lourenco do comeco dos anos 60 («presenga ou a Contrá-Revolucao no Modernismo Portu- 1 gués?», Tempo e Poesia, 2.- ed.,1987), em que se defendia a tese de que a i referida publicacäo constituiria uma espécie de «contra-revolucäo» rela-tivamente ao que teria sido a «revolucäo» trazida pela geracäo do Orpheu, ganhou raízes na moderna tradicäo crítica portuguesa, contra, porventura, o que seriam as intencöes do proprio Eduardo Lourenco, a ideia de que os autores que se afirmaram na presenga representariam como que uma traicäo ao «verdadeiro» espírito modernista. Esquece-se, no entanto, frequentemente, nas discussöes ä volta das relacöes entre o Orpheu e a «folha de arte e critica» presenga, o carácter duplo do Modernismo, que näo se restringe, como vimos, a uma das suas faces, a da Van-guarda, e, por outro lado, que o grupo do Orpheu, a par de autores que representam essa vertente mais radicalizada do Modernismo, incluiu outros, como também assinalámos, que continuam o simbolismo. Assim como tende igualmente a esquecer-se que, embora o Modernismo prati- cado pelos poetas da presenga corresponda, de um modo geral, ä sua verteilte mais moderada, menos iconoclasta, näo faltam no grupo poetas decididamente apostados numa escrita que procura o novo através de procedimentos extremos de ruptúra com a tradicäo, como é o caso de um Antonio de Navarro e, mais consistentemente, ao longo de todo o seu iti-nerário poético, ode um Adolfe Casais Monteiro. Se virmos o Moder-nismo como um megaperiodo, que vai, digamos, de meados da segunda década do século até ao princípio dos anos 70, quando se tornam per-ceptiveis os primeiros sinais de uma crise da modernidade e, portanto, da «estetica da mudanca» em que, segundo Paz (cf. «Poesia y Moderni-dad», La Otra Voz-Poesia y Fin de Sigh, 1990), ela assentava, menos sujei-tos estaremos a visöes redutoras do papel dos grupos do Orpheu e da presenga no processo evolutivo da poesia portuguesa de Novecentos. O insistir na existencia de uma tradicäo moderna tem também a vanta-gem de chamar a atencäo para a presenca de continuidades a par das descontinuidades que temos tendencia a privilegiar na abordagem das manifestacöes artísticas da modernidade, orientadas por uma estética assente, como vimos, no culto da mudanca e da ruptúra. O texto em que se apresentavam as grandes linhas do programa da presenga, vindo a publico no numero inaugural da «folha de arte e crí-tica» em Marco de 1927 e assinado por Jose Regio («Literatura Viva», edi-cäo facsimilada compacta da presenga em 3 vols., 1993), um dos seus directores, punha o acento tónico em algumas ideias caras ä estética da modernidade, como a originalidade e a prática de uma «literatura viva», näo contaminada pelo «exagerado gosto da retorica», e, por provir «da parte mais virgem, mais verdadeira e mais rntima duma personalidade artistica», o oposto daquilo que num outro texto manifestário o mesmo autor designava de «literatura livresca». Os responsáveis pela doutrina crítica da revista, Régio, Gašpar Simôes e Casais Monteiro, muito fize-ram pelo reconhecimento da importäncia dos poetas do Primeiro Moder-nismo e pela imposicäo de urna ideia de arte moderna, de urna literatura antipassadista e anti-académica — de urna literatura que se libertasse de conotacôes negativas que diversos autores da modernidade já haviam denunciado, fazendo-a equivaler a retórica väzia e cedica. De diferentes formas procuraram realizar, ao longo dos seus percursos, urna «literatura viva» os poetas que, mais prolongadamente ou mais episodicamente, deixaram o seu nome nas páginas de moderníssimo grafismo da «folha». Pela via de umapoesia de fundájmquieta^^ näo importa se heterodoxa ou afirmando dramaticamente a revolta da criatura, titani-camente empenhada na defesa da sua condicäo humana, diante do Criador, em Regio (cf. Obra Completa. Poesia í e Poesia II, 2001) e Miguel Torga (cf. Poesia Completa, 2000), o qual, näo obstante se ter afastado do grupo «presencista», se manteve, no essencial, fiel a aspectos fundamen-tais do sociocódigo ai prevalecente. Pela via dejuma escrita transgressiva,' que persegue efeitos tipicos das práticas artísticas de vanguarda, como a delonnacäo, a dissonííncia, as «melodias atonais», em Casais Monteiro (cf. Poesias Čompletas, 2.- ed. 1993), e, num pólo oposto a este, pela delicada musicalidade dos versos, Carlos Queiroz (cf. Desaparecido. Breve Tratado de ~Näo-versificagäo, 1983, e Epištola aos Vindouros e Outros Poemas, 1989),_exern-plo maior em Portugal da persisténcia da tradicäo simbolista. O ideal de ^uma literatura livre e viva é também uma referencia determinante em Afonso Duarte (cf. Obr as Čompletas 1 - Obra Poética, 1974) e Francisco Bugalho (cf. Poesia, 1998), dois autores muito diferentes mas que tém a aproximá-los a circunstäncia de serem ambos poetasjľom urna forte liga-cäo ä terra, e que, pela atencäo ao mundo exterior, contrariam o estereó-tipo duma poesia «presencista» exclusivamente centrada nos conflitos e tensôes do eu, a que também näo é possível cingir a poesia de Alberto de Serpa(cf TÄPoesia de Alberto de Šerpa, 2.- ed., 1998), na sua proximidade ao quotidiano. A lírica de Saul Dias (cf. Obra Poética, 3.- ed., revista e aumen-tada, 2001), em claro contraste com a de seu irmäo, Jose Regio, procura as vias da contencäo expressiva, dentro de um vincado gosto por uma arte da sugestäo e da intensidade. A Edmundo de Bettencourt (cf. Poemas de Edmundo de Bettencourt, 2ř ed., 1999), já depois de se tcr afastado, em 1930, da revista a que deu o nome, pertenceräo os primeiros ensaios de uma escrita próxima do onirismo surrealista, com os Poemas Surdos (1934-1940), que, por näo térem sido, entäo, publicados, de alguma forma atrasaram _de alguns anos a eclosäo do surrealismo em Portugal. Irene Lisboa (cf. Obras de Irene Lisboa, Poesia 1,1991) continua a linha mais transgressiva do Primeiro Modernismo, podendo mesmo definir-se, segundo Jose Gomes Ferreira (cf. A Memoria das Palavras, 1965), como «uma espécie de Dada que tudo destruiu na poesia: palavras escolhidas para serem belas, ritmos consagrados, metáforas, imagens [...]». Dois colaboradores ocasionais da presenga há ainda que referir, Pedro Hörnern de Mello e Vitprino Nemésio. O primeiro (cf. Poesias Escolhidas, 1983) distingue-se pelos ritmos sortfle-gos dos seus versos, num diálogo fecundo com as formas populäres a que näo terá sido alheio o exemplo do Lorca de Cancionero Gitano, de täo pode-rosa irvfluéncia na poesia portuguesa dos anos 40. Na mesma linha se situa Natércia Freire (cf. Antológia Poética, 2001), que se estreia nos fins dos anos 30, tambčm ela seduzida, num dos veios mais significativos da sua poesia, pelos ritmos tradicionais. Nemésio (cf. Obras Čompletas. Vol. I e II - Poesia, 1989) é hoje considerado uma das figuras centrais do canone lite-rário portugués de Novecentos, gragas, em larga medida, ä diversidade de registps e de propostas, que tanto o levam a criativamente mimetizar a poesia popular do seu lugar de origem, os Acores, como a praticarTde forma livre e ironicamente solta, uma poesia de grande sofisticacäo que faz suas quer as grandes inquietacöes metafísicas do hörnern moderno quer algumas das decisivas questöes que se puseram ä Ciéncia do século passado. Proximo de Nemésio, pela irónia e pela mquietacäo^religiosa, está Antonio de Sousa, que bem merecia a reedicäo de alguns dos seus títulos mais representativos (cf. Ilha Desertu, 1937; O Náufrago Perfeito, 1944; Jangada, 1946; Livro de Bordo, 1950; Linha de Terra, 1951). A presenga, um caso de invulgar longevidade no quadro das revistas modernistas, em regra de muito curta duracäo, vai manter a sua publi-cacäo até 1940. Nos Ultimos anos da década de 30, sobretudo a partir do comeco da Guerra Civil de Espanha, o programa «presencista» de defesa da independéncia da arte face a factores de natureza ideoíógica, política ou religiosa vai ser alvo dos ataques de uma nova geracäo que, marcada por uma situacäo historka particularmente crítica, propugna uma arte comprometida, de fundas preocupacöes sociais. Esta poesia social, que, na história literária portuguesa, ficou conhecida, em termos periodo-lógicos, sob a designacäo de neo-realismo, pöe a énfase na funcäo ape-lativa, procurando agir sobre a consciéncia dos destinatários no sentido de ganhar a sua adesäo para as causas de transformacäo histórica em que está empenhada, dentro de uma concepcäo finalista da História de ins-piracäo marxista. Para lá, no entanto, das acesas discussôes ä volta da Trüncäo da arte entre «presencistas» e neo-realistas, há que reconhecer que os defensoresde uma arte social acabam por receber das mäos dosjpoe-tas da presenga o legado modernista. Mais uma vez é necessário perceber o que se passa para lá do ruído superficial das polémicas e das oposicöes .....e estar atento äs continuidades. Com efeito, é, näo raro,jitravés de poe- tas «presencistas», nomeadamente daqueles que mais sensíveis se mos-tram ao verso livre e ao prosaísmo da expressäo que muitas vezes lhe anda associado, um Adolfo Casais Monteiro e um Alberto de Šerpa, que os neo-realistas se fazem herdeiros de algumas das mais importantes conquistas expressivas do Primeiro Modernismo. Ficará como exemplar desta contradicäo do neo-realismo portugués a relacäo com Pessoa, por um lado rejeitado, como séria de prever, no piano doutrinário, e, por outro, indesmentível estímulo de toda urna escrita mais liberta de cons-trangimentos formais, especialmente em poemas de temática maritima ou portuária, marcados pela sombra avassaladora de Álvaro de Campos. A acusacäo frequentemente feita aos neo-realistas de apenas se preo-cuparem com o conteúdo e prestarem pouca atencäo ä forma näo tem muita razäo de ser se atentarmos no percurso de alguns dos seus poetas mais representativos, um Manuel da Fonseca, uin Mário Dionísio, um Carlos de Oliveira. O primeiro (cf. Obra Poética, 7r ed., revista, 1984) dis-tinguir-se-á, fundamentalmente, por urna poesia de forte propensäo nar-rativa, muito ligada ao espaco de origem do poeta, o Alentejo, e em que se contam ora histórias de gente enredada na rotina dos pequenos meios ora, em rítmos de romance tradicional, histórias de heróis da erráncia rural ciosos de uma liberdade ä medida dos horizontes ilimitados da pla-nície por onde vagabundeiam. Mário Dionísio (cf. Poesia Incompleta, 2.-ed., 1982, e Terceira ldade, 1982) deixará o seu nome ligado a urna poesia muito na linha de urna modernidade que marca as suas distáncias em relacäo ä linguagem corrente, através de procedimentos transgressivos que acentuam a atonalidade, a dissonáncia da linguagem poética (um dos seus livros mais importantes tem como título O Riso Dissonante). Quando na segunda metade dos anos 70 Carlos de Oliveira colige a poesia que, desde os comecos dos anos 40, foi publicando, dá aos dois volumes em que a reuniu o título de Trabalho Poético (3.ä ed, 1998). Tal título resume, emblematicmente, o que foi, ao longo dos anos, a preocupacäo de rigor e da mais alta exigéncia que o poeta pôs no seu trabalho, de forma cada vez mais nitida no sentido de fazer dos poemas objectos per-feitos com a reverberagäo do cristal. Näo deixa de ser irónico que seja com um poeta inserido num movimento acusado de insensibilidade rela-tivamente ä dimensäo estětica do trabalho poético que a poesia, enquanto realizacäo textual, atinge um dos seus pontos mais altos na lírica portuguesa de Novecentos. Caberia ainda referir, no ämbito do neo-realismo poético, as vozes singulares de Políbio Gomes dos Santos (cf. Poemas, 2ř ed., 1998) e de Álvaro Feijó (cf. Os Poemas de Álvaro Feijó, 3.- ed., 1978), ambos cedo desaparecidos, e Joäo José Cochofel (cf. Obra Poética, 1989), que representa, dentro de urna corrente mais preocupada em alertar consciéncias, um veio intimista., Dos neo-realistas poderia ser aproximado um poeta nascido no comeco do século, José Gomes Ferreira, que colocará as ultimas edköes da sua obra poética, em que sobressai o conflito entre o eu individual e o eu social, sob o título de Poeta Militante (cf. 4.a ed., nas Obras de José 'Gomes Ferreira, 3 vols., 1990-1998). O que poderia aparecer com uma carga excessivamente política neste título, que colige muitos poemas de resposta, subjectiva, a alguns dos acontecimentos que marcaram a história do século, é atenuado, por um lado, pelo esclarecimento que o poeta / dá nas suas Memórias relativamente ao sentido em que usa o adjectivo («militante da poesia total»), e, pór outro, pela nota com que faz antece-der ol.s volume de Poeta Militante: «Poeta Militante é a viagem do século vinte em mim. Ou melhor: o testemurtho poetko [...] da aventura da sombra de um anti-herói que perdido nos meandros dos caminhos exí-guos do tempo, que atravessou embicos dos pes os segundos, os rninu-tos, as horas, as semanas, os anos de quase todo um século, mais preo-cupado com as coisas vulgares do quotidiano nos cafés, nas mas, nas praias, no campo, do que com os acontecimentos merecedores no futuro de longos tratados de estudo volumosos que me inspiraram muitas vezeš apenas poema e meio.» Situacäo semelhante ä de Gomes Ferreira é a de Armindo Rodrigues (Obra Poetka, 16 vols., 1970-1980; O Poeta Per-guntalor, antológia org. por Jose Saramago, 1979), igualmente nascido nos princípios de Novecentos e proximo dos neo-realistas, mas em que sobressai um permanente trabalho de reelaboracäo de alguns dos mais persistentes veios da tradicäo lírica nacionál. JDa mesma geracäo que os neo-realistas säo os poetas que habitu-almente se associam a uma revista, os Cadernos de Poesia, cuja primeira série se inicia no ano em que a presenga termina a sua publicacäo, e um ano antes de sair o primeiro volume de uma coleccäo, o «Novo Cancio-neiro», que, em larga medida, funciona como plataforma de afirmacäo do neo-realismo poético. Os Cadernos de Poesia, que surgem numa altura em que mais acesa pareceestar a luta entre os defensores de uma arte independente e os que propugnam uma arte social, colocam-se sob urn lema («A Poesia é só uma!») que vem lembrar a possibilidade de coe-xisténcia de poetas de orientacôes estéticas diferentes, vincando, ao mesmo tempo, como único critério para a inclusäo nas suas páginas a qualidade poética dos textos. Num periodo em que as disputas doutri-ňärias ameacavam deixar de lado questöes essenciais do trabalho poético, o programu da revista revelou-se de grande utilidade no sentido de promover, sob a bandeira da Poesia e de uma exigéncia de qualidade no seu exercicio, um diálogo näo apenas intrageracional mas também, quando já é perceptível a consolidacäo de uma tradicäo moderna, inter-geracional. Entre os poetas que, em cargos directivos ou como simples colaboradores, associamos aos Cadernos, encontram-se alguns dos nomes que mais profundamente marcaram a poesia portuguesa na segunda metade do século, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugéniq de Andrade. A marca do primeiro (cf. Poesia I, 3.- ed., 1988, II, 2r ed, 1988, e III, 2ř ed., 1989) torna-se especialmente sensível a partir dos comecos dos anos 70 e dele partem, em grande medida, duas linhas que ganharam destaque nas ultimas décadas, uma que investe no diálogo da poesia com outras artes, nomeadamente a pintura e a música, e outra que privilegia uma poesia de lugarés, que faz do poeta um ser da erräncia respondendo a estímulos de espacos, culturas e tempos dife-"rehtesTS^BěhTsempre quis que na sua poesia víssemos uma poesia de jf ^temunho, Sophia (cf. Obra Poética I, 5.a ed., 1999, II, 4.ä ed., 1999 e III, 3.ä ed.," 1999; Musa, 3.ä ed., 1997; O Búzio de Cos e Outros Poemas, 2.a ed., 1998) e Eugénio de Andrade {Poesia 1942-2000,2000) säo dos poetas que mais se aproximam em Portugal no século XX de urna ideia de poesia pura, peía qualidade objectual, de «icone verbal», que sempře, dentro da melhor tradicäo simbolista, atribuíram ao poema. Isso näo os impediu, todavia, de igualmente darem testemunho da situacäo de iniquidade vivida no Pais no periodo da Ditadura, näo dissociando, assim, do trabalho estético a preocupacäo ética. Junto destes poetas poderíamos colo-car Ruy Cinatty (Obra Poética, 1992), que fez parte do elencp directivo dos Cadernos nas suas trés series, poeta «nomada» como a si proprio se viu, numa erräncia que privilegiou os espacos da aventura ultramarina portuguesa, com destaque para Timor de que o seu nome é indissociável, quer na lírica celebratória quer na que é, depois da ocupacäo Indonesia, ensombrada pela pungéncia da tragédia. Ligados aos Cadernos, de cuja direccäo fizeram parte, na primeira e nas suas trés series, respectiva-mente, estäo Tomaz Kim e Jose Blanc de Portugal, o primeiro (cf. Obra Poética, 2001) ecoando nos livros da sua primeira fase o forte impacte que a Segunda Guerra Mundial näo deixou de ter na poesia portuguesa, e o segundo (cf. Parva Naturalia, 1960; Espago Prometido, 1960; Odes Pedestres, 1965; Descdmpasso, 1986; Enéadas. 9 Novenas, 1989) salientando-se por uma poesia que näo terne o diálogo com o universo da cultura. Os primeiros grupos surrealistas organizados surgem em Portugal na segundalrtetade dös anos quarenta, o Grupo Surrealista de Lisboa em 1947, e, por urna dissidéncia verificada no seu interior, o Grupo Surrealista Ďissidente em 1949.0 atraso com que o surrealismo faz a sua irrup-cäo na cena literária portuguesa deve-se, em larga medida, äs condicôes adversas a um seu pleno florescimento existentes no pais, como arguta-mente viu Antonio Tabucchi ao dar a urna antológia de poesia surrealista portuguesa que organizou em Itália, no comeco dos anos 70, o título de La Parola lnterdetta. Por outro lado, convirá ter presente que no ime-diato pós-guerra, depois do exílio de Breton nos Estados Unidos da America, se assiste a um renovacäo do grupo francés, cujos efeitos se iräo, inevitavelmente, fazer sentir em várias zonas periféricas, como Portugal. Embora de inspiracäo predominantemente francesa, o surrealismo portugués, como seria de esperar, reflecte igualmente a sua aclimatacäo a um contexto cultural e literário proprio. E, a este respeito, o exemplo das manifestacôes de vanguarda do Primeiro Modernismo será determinante, bem como, pelo pendor satírico e paródico que frequentemente o nosso surrealismo tomará, a existencia de uma bem enraizada tradicäo crítiaij; satírica j2m Portugal que vinha já dos cancioneiros medievais. As trés grandes figuras do surrealismo portugués säo Mario Cesariny, Alexandre O'Neill e Antonio Maria Lisboa. O primeiro (cf. Primavera Autonoma das Estradas, 1980; Manual de Prestidigüagäo, 1981; Pena Capital, 2.- ed., 1999; Nobilissima Visäo, 2.- ed., 1991) distingue-se por uma pode-rosa forca verbal que a imaginacäo comanda, num exercício permanente do que o proprio poeta chamou areabilitacäo do real quotidiano, e que abränge igualmente a reabilitacäo das palavras, restituindo-as ao fulgor da sua verdade. O'Neill (cf. Poesias Completas, 2000), esse, sempře se con-siderou mais perto do «falar» do que do «imaginär», e daí que, para ele, como deixou dito logo em 1951 num dos poemas de Tempo de Fantasmas, «só entre os homens e por eles / [valha] a pena sonhar». Antonio Maria Lisboa (cf. Poesia, 1995), cedo desaparecido do numero dos vivos, repre-senta dentro do Surrealismo portugués o desejo de aproximacäo do movimento ä «actividade Magica», ä «accäo Magica». Próxima do Surrealismo está Natália Correia (cf. Poesia Completa, 1999), que entre as suas realizacôes conta mesmo urna antológia intitulada O Surrealismo na Poesia Portuguesa, 1973, organizada de acordo com uma perspectiva trans-histórica, e em que os textos em prosa que introduzem as seccôes temá-ticas por que distribuiu os textos seleccionados säo percorridos por um fulgurante élan poético ä margem do discurso crítico convencional e que levou Herberte Helder a incluir alguns deles numa «antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa» (Edoi Letia Doura) que deu a público doze anos depois. Se a poesia surrealista portuguesa, no periodo que vai do pós--guerra aos fins da década de 50, com a emergéncia de urna segunda geracäo em que se destacam nomes como os de Érnesto Šampaio (cf. Luz Central, 1990), Manuel de Castro (cf. Paralelo W, 1958; A Estrela Rutilante, 1960) António José Forte (cf. Urna Faca nos Dentes, 2.- ed., aumentada, 2003), se situa no ämbito das manifestacôes_ de vanguarda dentro da nossa tradicäo lírica moderna, as outras orientacôes que entäo se defi-nem raramente väo nesse sentido, preferindo, antes, em época de sedimentacäo do Modernismo, a continuidade ä ruptúra. Urna das poucas excepcôes, na poesia desse periodo, no sentido de urna aproximacäo ao veio vanguardista da tradicäo moderna, para além dos surrealistas, encontramo-la no primeiro^AntónioJRamos Rosa, no^carácter fragmen-tárkTda sua lírica de entäo, na hostilidade que ela revela ä frase, para usarmos os termos em que Hugo Friedrich colocou a questäo num estudo publicado pela primeira vez em 1956 (cf. Structure de la Poesie Moderne, 1999). Ramos Rosa (cf. Antologia Poetka, 2001), autor de uma obra invulgarmente extensa, depois de uma řase iniciál em que domina, nas suas próprias palavras, a «experiencia da alienacäo social e politica», irá evoluir no sentido da «experiencia da realidade poetica» e de «uma poesia dos elementos», da «natureza sacralizada» (cf. depoimento do poeta ao Ďiário de Lisboa, 11-1-1990). Na diversidade das suas tendéncias, a poesia dos anos 50 pode osci-lar entre o versilibrismo torrencial de Raul de Carvalho (cf. Obras de Raul de Carvalho I - Obra Publicada em Livro, 1993), em Poesia, 1955, nomeada-mente em «Serenidade és Minha», em que paira a sombra de Álvaro de Campos, e o modernismo classicizante de David Mouräo-Ferreira (cf. Obra Poética 1948-1988,1988) cujos poemas de perfeita e elegante factura, em que dominám os temas do amor e do tempo, nos levam a reconhe-cer nele aquele que será, porventura, U miglior fabbro no panorama da poesia portuguesa da segunda metade do século. Diversas säo também as vozes dentro da mesma orientacäo estética, como acontece, relativa-mente ä continuidade na década de uma tradicäo de realismo social, com um Egito Goncalves (cf. os vols, antológicos: O Amor Desagua em Delta, 197ÍTO~sPdssaros Mudam no Outono, 1981; O Péndulo Afedivo, 1991, e E no Entanto Move-se, 1995, e O Mapa do Tesouro, 1998), que pôe o melhor do seu ímpeto protestário num poema que se tornou o símbolo da poesia de resisténcia ao Estado Novo, «Noticias do Bloqueio» («Aproveito a tua neutralidade, / o teu rosto oval, a tuabeleza clara, / para enviar noticias do bloqueio / aos que no continente esperam ansiosos./ / [...]»), e com um António Reis (cf. Poemas Quotidianos, 1967),najnjajíricaelíptica, ao servico de um realismo intimista, atento ao que há de menos i med infamen te perceptível na banalidade do quotidiano, nomes a que se pode-riaJuntaFode Luis Veiga Leitäo (cf. Obra Completa, 1997)^ quem deve-mos, com Noite de Pedra, 1955, o melhor testemunho poético sobre a expe-riénciaľda prisáo política no periodo da Di tad u ra. De igual modo näo pode ser maior o contraste entre uma poética da intensidade, toda assente na sugestäo, como a de Alberto de Lacerda (cf. 77 Poems, 1955; Oferenda I, 1984; Oferenda II, 1994) [ «Diotima»: «Es linda como haver Morte / depois da morte dos dias. / Solené timbre do fundo / de outra idade se liberta / nos teus lábios, nos teus gestos./ / Quem te criou des-truiu/ qualquer coisa para sempře, / ó aguda até ä luz / sombra do céu sobre a terra, / / libertadora mulher, / amor pressago e terrfvel, / / Primavera, Primavera!»] e a poesia reflexiva, de ritmos repousados nos versiculos que se alongam de urn Fernando Guimaräes (cf. Poesias Com-pletas, Vol. 1:1952-1988, 1994; O Auel Debil, 1992; Limites para uma Ärvore, 2000; Ligöes de Trevas, 2002) [«Ficaram divididos os sulcos em que repou-sava o nosso peito / para que a areia e os bracos encontrem o calor tran-quilo das sementes. / [...]»], ou o ceptico desencanto de um Antonio Manuel Couto Viana no recorte apurado dos seus versos (cf. 60 Anos de Poesia: 1943-2003, 2 vols., 2004). Nos anos 50 tambem, e particularmente na segunda metade do decenio, ganha relevo uma tendencia enquadrävel no ämbito de uma tradicäo de fundo e persistente enraizamento na literatura portuguesa, mormente nas suas articulacöes peninsulares, e a propösito da qual se tern falado, näo sem razäo, de neobarroquismo. Üm dos poetas ai situä-vel, Fernando Echevarria (cf. Poesia, 1956-1979, 1989; Poesia, 1980-1984, 1993; Poesia, 1987-1991,2000; Uso de Penumbra, 1995; Georgicas, 1998; Intro-dugäo a Poesia, 2001), realizou mesmo parte da sua formacäo em Espanha, e os seus livros iniciais reflectem urn contacto com a poesia de uma gera-cäo, a de 27, de que fazem parte, como e sabido, varios autores empe: nhados numa revalorizacäo do barroco. A orientacäo barroquizante de Echevarria torna-se notada na atencäo dada ä expressäo, ä palavra, em rutido contraste com o que e, näo raro, na decada de 50 uma tendencia para urn discursivismo insuficientemente vigiado. A poesia de Echevarria distingue-se entäo precisamente pela introducäo de cortes abruptos na cadeia discursiva. Ao longo dos anos tem-se ela aproximado cada vez mais de uma forma de sabedoria, especialmente sensivel num livro como Georgicas, e que se traduz numa total disponibilidade perante o «mundo», manifesta no ver ou no escutar, e movida, assim, por urn desejo insofismävel de o «hospedar» e fazer seu. No ämbito de uma tradicäo barroca se situajigualmente a poesia de Pedro^TamenTcfTKe^iiZodasMatenas[1956-2001]2001), que,numaprT-meira fase, se destaca por uma clara prevalencia da temätica religiosa. A inquietacäo ai presente ir-se-a progressivamente transferindo para uma cada vez mais aguda percepgäo do desamparo da condicäo humana, temperada por uma ironia distanciadora, que atenua qualquer efeito de pathos, e pela entrega a uma inventividade e a urn ludismo ver-bais que lembram a funcäo que, de modo especial, cabe ä poesia de, per-manentemente, renovar a linguagem, sujeita ao desgaste da tribo. A mesma familia de consciencias inquietas e que, na linguagem, reflectem essa inquietude, pertencem M.S. Lourenco, que se revela em 1960 com um título sintomático do seu gosto pela experimentacäo, O Desequilibrista (outros títulos: Árte Combinatória, 1971; WythamAbbey, 1974; Pássaro Para-dípsico, 1979; Nada Brahma, 1991), e Liberto Cruz (cf. Momento, 1956; A Tua Palavra, 1958; Néooa ou Sintaxe, 1959; Itinerdrio, 1962; Dištancia, 1976; Ciclo, 1982; Caderno de Encargos, 1994), também ele aproximável do experi-mentalismo, através de um seu heterónimo, Álvaro Portugal (cf. Gramá-tica Historka, 1971). Dois outros poetas — José Bento e António Osório —, colaborado-res também de revistas dos anos 50, mas só revelados em livro na década de 70, se podem aproximar de Echevarría e Tamen, näo propriamente pelo lado do neobarroquismo, mas por, como diŕiäTessoa, coníer a sua poesia «uma fundamental ideia metafísica» e se mosťrarem, ambos, aten- to^«ä importäncia misteriosa de existir». A lírica do primeiro (cf. Silabá-rio, 1992; Um Sossegado Silencio, 2002), que a sua importante e intensa acti-vidade de tradutor de poesia de lingua espanhola tem deixado imereci-damente na sombra, distingue-se pelo recurso a uma discursividade inovadora face ao que säo os hábitos mais enraizados na tradicäo pro-sódica do verso portugués, e pela forca, saturada de negatividade, que transmite ao tratamento de um dos temas mais caros ä modernidade lite-räria, o dá cidade que näo é feita ä medida do homem. Na poesia de António Osório (cf. Obra Poetka em curso de publicacäo: A Barca dos Homens, 1999; O Lugar do Amor e Décima Aurora [Obra Poetka II], 2001; Adäo, Eva e o Mais e Planetário e Zoo dos Homens [Obra Poetka III], 2003; Ofício dos Touros, 1991; Libertagäo da Peste, 2002), sóbria,jpouco propensa ^_ajjualquerJipo de pathos, o que sobressai é uma visäo que aproxima os mais d i versos pianos da Criacäo, sem o respeito por hierarquias que um olhar sage e cepticamente compadecido näo consente. Vindo de uma das revistas dos anos 50 em que J. Bento colaborou, a Cassiopeia (n .e uruco, 1955), Joäo Rui de Sousa (cf. Obra Poetka, 2002) näo deixa de reflectir na sua poesia o influxo das filosofias da existencia que, entäo, gozaram de ampla aceitacäo nos meios intelectuais portugueses e com as quais mostrou estar bem familiarizado em ensaio publicado naquela revista («A angústia e o nosso tempo»). A sua poesia, dividida entre um apelo de libertacäo de referencia fundamentalmente surrealista e uma orientacäo construtivista que irá dominar os anos 60, permite, ao mesmo tempo, observar todo um caminho realizado pela poesia portuguesa desde os anos 30 no sentido da acentuacäo de uma das linhas mais visíveis da lírica moderna, a propósito da qual, e tendo em conta o seu carácter fragmentário, em estudo já aqui referido a propósito de Ramos Rosa, Hugo Friedrich falou na sua hostilidade ä frase. A marca do existencialismo é também sensível nos sonetos de recorte clássico do ultimo dos quatro liyros que Jose Terra publkou (cf. Canto da Ave Prisioneira, 1949; Para o Poema da Criagäo, 1953; Canto Sub-merso, 1956, e Espelho do Invisível, 1958), bem como na poesia de Helder Macedo (cf. Poesia 1957-1977, 1979, e Viagem de hivcrno, 1994), enqua-drando-se um e outro poeta no que Jorge de Sena considerou ser uma tradicäo lírico-especulativärdentro da poesia portuguesa. No ambito da mesma tradicäo se poderia incluir a obra poetka de Vítor Matos e Sá (cf. Poesia de Vítor Matos e Sá, 2000), a que, no seu caso, haveria, contudo, que acrescentar um outro vector, o de poeta da esséncia da poesia, sob a sugestäo de Hölderlin e Rilke para cuja fortuna entre nós tanto contri-buíram as traducöes de Paulo Quintela, a partir dos anos 40. Já a tradicäo em que melhor se enquadram as poesias de outros dois poetas do grupo dcLÁrvore, Luis Amaro (cf. Diário íntimo, 1975) e Cristovam Pávia (cf. Poesia, 1982) ě a do lirismo elegíaco. A poesia de Albano Martins (Assim säo as Algas - Poesia 1950-2000,2000) orienta-se por um principio grato ä tradicäo simbolista, o de que a poesia näo é apenas o efémero, mas também o duradouro do efémero. Neste periodo de sedimentacäo do Modernismo que é a década de 50 e de síntese das conquistas expressivas que, ao longo de quase quaranta anos, foram contribuindo para a conformacäo de uma tradicäo modernista, vários poetas se destacam pela clara confluěncia de algumas das linhas mafe marcantes desse legado recente no itinerário poetko que entäo iniciam ou concluem. Cabem aqui, pelo trabalho de reelaboracäo e depuracäo a que submetem tal heranca, poetas como António Gedeäo, Reinaldo Ferreira e Rui Knofpli, aos quais se poderia juntar o nömecle Jose Saramago, revelado já nos anos 60. O primeiro (cf. Poesia Completa, 1996), coetäneo de grande parte dos autores ligados ä presenga, só em 1956 se estreia como poeta, distinguindo-se nos livros que foi publicando por lancar mäo de temas e de um léxico pouco frequentes na poesia, e oriundos do mundo da ciéncia a que o autor (de seu nome civil, Rómulo de Carvalho) se ericonfrava profissionalmente ligado. Por outro lado, os jieus poernas, animados por um vincado propósito de comunkagäo em que o NÍodernismo, a bem dizer, nunca investiu a fundo senäo episodi-camente, chegam, através de um sábio doseamento dos metros, dos ritmos e das correspondéncias fónicas, a mais amplas camadas de publico, que a adopcäo de alguns deles pela canclo de intervencäo nos anos 60 ainda mais contribuiu para alargar. Do segundo, Reinaldo Ferreira (cf. Poemas, 2.a ed., 1966), disse Jose Regio, no texto com que pre-faciou a segunda edicäo dos Poemas, que era «um poeta contemporäneo dos poetas da presenga», embora pela cronologia näo o pudesse, obvia-mente, ser. Era-o, contudo, enquanto continuador da heranca presencista e da daqueles que os poetas da presenga, por sua vez, fizeram sua, nome-adamente um Mario de Sá-Carneiro e um Fernando Pessoa. Relativa-mente a este ultimo, é ele urn dos mais conspicuos exemplos do que Caspar Simöes chamou «pós-fernandismo», como pode ver-se no fecho do urn 'soneto que ao ortónimo dedicou («E a sombra ali marcasse,. na ccrrente / Do nada para o nada, inda passado / E já řuturo, a ficgäo do piesente.»). O terceiro, Rui Knopfli (cf. Obra Poetka, 2003), a um íntimo trato com linhas diversificadas da tradicäo lírica moderna portuguesa logo patente no seu livro de estreia, O Pais dos Outros, junta a abertura a (mtras tradicöes, nomeadamente as de referenda cultural anglo-saxó-nica, em um de cujos centres de irradiacäo, Londres, curiosamente, viria a situar-se um periodo significativo da sua vida, entre 1975 e o ano da sua mořte, para alem das raizes que o prenderam ao seu espaco de ori-gem, Mocambique, e onde näo deixou de marcar o rumo da poesia local, dos comecos dos anos 50 ä primeira metade dos anos 70. O seu livro de despedida, e urn dos mais importantes no seu percurso poetko, O Monhé das Cobras, 1997, haveria de fixar sob clave elegíaca, no lugar de desterro, a nostalgia da terra natal irremediavelmente distante. A poesia de Jose Saramagq (cf. Os Poemas Possiveis, 2.- ed., revista e emendada, 1982; Pro-vavelmente Alegria, 2.- ed., revista e emendada, 1985) relegada hoje para um piano secundário pelo proprio autor, depois da descoberta da sua poderosa vocacäo de ficcionista que, em crescente irradiacäo internacio-nal, veio a ter a consagracäo do mais prestigioso dos prémios literários, o Nobel, representa muito mais do que uma preparacäo para o que viria depois, definindo-se mesmo como uma das mais seguras realizacöes no ämbito da sedimentacäo de toda a heranca moderna que se observa no periodo tardo-modernista. Se a vertente vanguardista do Modmusmojiao^Lggrnci vimos, dominanfe na década de 50, já o mesmq se näo pode dizer relativamente aosTanos"60, em que duas das orientacöes de mais forte presenca, a que se define, em larga medida, ä volta dos autores reunidos no conjunto de «plaquettes» Poesia 61, e o movimento da Poesia Experimental, se situam no ämbito de uma linha de neovanguarda que ganha, entäo, igualmente visibilidade em outros espacos culturais. O texto parece estar no centro das preocupagöes de ambos qs grupos, embora sob prismas diferentes. No caso do primeiro, a materialidade da linguagem é explorada funda-mentalmente a nível dos códigos fónico-rítmicos, enquanto aos experi-mentalistas, marcados inicialmente pelo concretismo brasileiro, interes- sará essencialmente relevar a dimensäo visual dos significantes. Seja como for, o acento posto na textualidade, em qualquer dos casos, aponta para urna estética que se funda na autonómia do texto, no seu cäráčter objectual. A quarenta anos do aparecimento da publicacäo, com clara inten-cäo manifestária, de Poesia 61, há hoje, segundo nos parece, em face dos rumos täo diversificados seguidos pelos autores aí reunidos, que aten-^ier ao que há de mais individualizado em cada urna das vozes que asso-ciamos ao conjunto de «plaquettes» saído, sob urna capa comum, cm Faro ho início da década de 60. Ainda näo há muito, no prefácio que escreveu para os seus Poemas Reunidos, 1999 (a que se seguiu Rua de Portugal, 2002),.Gastäo Cruz chamava a atencäo para a necessidade de evi-tar «o comodismo dos rotulos» e ter, antes, em conta «obras e percursos individuais», ao mesmo tempo que deixava pistas importantes para um melhor entendimento da sua propria poesia no que chamava a «fase final ] de aprendizagem», nos finais dos anos 50. Os nomes referidos, de j Mouräo-Ferreira a Joäo Cabral de Melo Neto, do primeiro Ramos Rosa a Sophia e a Sena, de Eugénio de Andrade a Gomes Ferreira, compu-nham, todos eles, na evidente diversidade das suas propostas, uma cons-telacäo em que avultavam valores caros ä poetka do proprio Gastäo, como a centralidade daimagem e a releváncia da palavra, «elemento nuclear do discurso poetico». Se a estes juntarmos o vincar do princípio de raiz eliotiana de que «as emocöes poéticas ocorrem no domínio da lin-guagem», temos ešbôgado o quadro de referencia dentro do qual há que acompanhar p percurso de Gastäo Cruz enquanto «poeta do real», na percepcäo das contradicpes desse mesmo real, feito também da substancia da História, pessoal e colectiva, e oscilando permanentmente entre ^uma consciéncia agónica que afferentes temas de inegável ressonäncia pessimista balizam e uma teimosa crenca na vida e em valores correla-Jos, mesmo que aparentemente nada tenham a sustentá-los. Se a poesia de Fiama Hasse Pais Brandäo (cf. Obra Breve, 1991; Cantos do Canto, 1995; Evístolas e Memorandos, 1996; Cenas Vivas, 2000; As Fdbulas, 2002) se coloca de início, designadamente na «plaquette» (Mor-fismos) com que colabora no conjunto vindo a publico em Faro em 1961, ^sob o signo de preocupagöes de vanguarda, ao longo dos anos ir-se-á ela afastando de forma cada vez mais notória de uma simples lógica de rup-tura, de modo a privilegiar um processo de interlocucäo criativa com a tradicäo, que o título de um seu livro de 1976, Homenagemäliteratiträ, porá exemplarmente em evidencia. Num depoimento vindo a publico nos fins dos anos 80, Fiama fará mesmo questäo de sublinhar o seu distancia- mento relativamente äs «vanguardas loucamente velozes e devorado- 33 ras», manifestando-se, antes, entäo, entregue ao que chamava uma «metafísica humilde, sempře a dizer o mesmo, o mesmo, talvez por outras palavras e modos». A sua extensa obra, que atinge, porventura, um dos pontos mais altos em Cenas Vivas, acaba por se definir como um exigente exercício de meditacäo poética täo atento aos movimentos mais íntimoš da alma como ä detida contemplacäo do mundo exterior, e sem cessar guiado pela necessidade de ligar «o conhecimento circunstancial» ao «Conhecimento». Dentre os poetas reunidos em Poesia 61, aquele em que é mais visí- j vel a heranca do surrealismo é, sem dtívida, Luiza Neto Jorge (cf. Poesia, t 1993). Tal heranca, porém, torna-se notada näo apenas a nível da liber-tacäo metafórica e do gosto pelos procedimentos dismptivos da ordem do discurso, mas também, e sobretudo, e a um ponto senäo muito rara-mente antes atingido na tradicäo poética moderna em Portugal, a nível de uma muito sensível implicacäo do corpo no trabalho de escrita, que se faz campo de tensôes e pulsôes violentas e contraditórias que dificil-mente consentem äľnéutralidade do leitor. Diferentes säo as vias esco-Ihidas pela poesia de Casimiro de Brito (cf. O Amor, a Morte e Outros Vícios - Antológia Pessôa/7l999; Arte Pobre, 2000; Na Via do Mestre, 2000), mais orientadas para a obtencäq de pontos de equilíbrio, que, frequen-temente, säo as sabedorias orientais e as formas elípticas em que, em regra, elas se^plasmam, a configurar. Maria Teresa Horta (cf. Poesia Com-pleta I e II, 1983; Os Anjos, 1983; MltúuÍMäe Meu Amor, 1986; Rosa San-grenta, 1987; Destino, 1997; So de Amor, 1999), por sua vez, intenta, desde Espelho Iniciál, de 1960, adequar, sob o signo de Eros, o «corpo» e «o corpo da poesia» nos ritmos tensos em que se sucedem os versos curtos dos seus poemas. Dos cinco autores reunidos em Poesia 67 poderia ser aproximado 1 Armando Silva Carvalho (cf. Obra Poética 1965-1995, 1998; Lisboas -~Roteiro Sentimental, 2000), pela atencäo dada, na sua poesia, ä linguagem. Deles, no entanto, com a excepcäo de Luiza Ňeto Jorge, que trilha cami-nhos semelhantes, se afasta pelo relevo que a irónia, a satira e a paródia tém na sua obra. A tradicäo em que se insere, de uma poesia da irrisäo, tem, aliás, näo por acaso certamente, um dos seus pontos de referencia mais próximos num autor indissociável do surrealismo, Alexandre CyNeill. Um outro poeta revelado na década de 60, Femando Assis Pacheco (cf. Musa Irregular, 3.a ed., 1997), também eleaberto ä seducäo da irónia e ä componente lúdica do trabalho poético, se poderia citar neste contexto, mas o que, na obra de um e de outro, há de cireunstan- cial e mais perto de uma poesia conversada e, concomitantemente, mais solta sob o ponto de vista prosódico, de algum modo ajudará a explicar a receptividade que viräo a encontrar junto dos poetas da geracäo seguinte. Os anos 60, com as lutas estudantis e a guerra colonial, säo igual-mente um período propício a um retomar da tradicäo de uma poesia de militäncia social e política, e näo seräo poucos os autores que, de modo mais continuado ou mais fortuito, se mostram sensíveis a esse tipo de envolvimento. O nome mais em evidencia, neste contexto, será o de Manuel Alegre (cf. Obra Poetka, 1999), que, especialmente nas primeiras colectäneas, empresta ä sua poesia uma ressonäncia bárdica, que a música de intervencäo, muito típica da época, irá, sigmficativamente, ampliar. Mas a poesia de Manuel Alegre näo se limita, naturalmente, a esse propósito resistente, e o desenvolvimento da sua obra depois de 1974 permitirá verificar a releväncia que nela vai ganhando cada vez mais uma celebracäo da propria poesia, assente no diálogo, em graus diversos de incidéncia mais abertamente arquitextual ou intertextual, com vozes de referencia da tradicäo literária portuguesa e ocidental, em quě, sem dificuldade, se recortam nomes como os de Camôes, Pessoa, Torga ou Sophia, e os de Dante, Pound, Lorca ou Melo Neto. Nesse mesmo ämbito de umapoesia de intervencäo há que situar a poesia de Jose Carlos Ary dos Santos (cf. Obra Poetka, 2.- ed., 1995), na qual, toda-via, se faz também sentir a marca da persistente tradicäo satírica portuguesa. Ä intencäo crítica é igualmente sensível na poesia de Eduardo Guerra Carneiro (cf. O Perfil das Estátuas, 1961; Corpo Terra, 1966; Algu-mas Palavras, 1969; Isto Anda Tudo Ligado, 1970; É Assim Que Se Faz a História, 1973; Como Quem näo Quer a Coisa, 1978; Dama de Copas, 1981; Contra a Corrente, 1988; Profissäo de Fé, 1990; Lixo, 1993; A Noiva das Astúrias, 2001), que passou por um dos lugares que geralmente se associam ä lírica de intervencäo da década de 60, Poemas Livres, mas aquilo a que o poeta acaba por reservar a «prosa danada dos [seus] versos» é uma inconfor-mista visäo do real, acidamente, «contra a corrente», como o proclama um dos seus títulos mais emblemáticos. A par de Poesia 61, a outra linha neovanguardista da década é, como näo deixámos de, oportunamente, assinalar, nelarepresentada pela Poesia Experimental, em que assume papel de relevo, no piano da inquie-tacäo criativa e da agitacäo estética, E.M. de Melo e Castro (cf. Trans(a)parencias - Poesia I, 1950-1990, 1990; Antológia para Inici-Antes 1950-2002,2003). Este movimento será, no entanto, objecto de uma revi-säo crítica a que o submete uma nova situacäo periodológica, em pro- cesso de definicäo ao longo dos anos 70 e na passagem para a década seguinte, por um cada vez mais nítido distanciamento do lógica de ruptúra e de inovacäo radical que associamos äs manifestacöes de van-guarda dq modernismo tardio. Do experimentalismo, o que, no essen-cial, permanece passa, em Alberto J^menta (cf. Obra quase Incompleta, 1991), pelo gosto dajrrisäo parqdica ou por uma ars combinatoria que submete äs aproximacöes do ready made os textos das duas figuras centrais do cänone literário portugués, Camôes e Pessoa (Read & Mad, 1984), e em Ana Hatherly (cf. Um Calculador de Improbabilidades [vol. antológico], 2001; A Idade da Escrita, 1998; Itinerärios, 2003; O Paväo Negro, 2003), pelo aprofundamento de uma Obra Visual (cf. Mapas da Imaginaqäo e da Memoria, 1973; A Reinvengäo da Leitura, 1975; O Escritor, 1975; Escrita Natural, 1988), que, crescentemente, se serve de mais adequados lugares de expo-sigäo como säo as galerias e os museus, ou pela desinibida entrega ao jogo de variacöes, tendo por pretexto inventivo Camôes (Volúpsia, 1994) ou Rilke (Rilkeana, 1999), ou ainda e sobretudo pelo humor das tisanas (351 Tisanas, 1997), sob a fecunda sugestäo dos koans, os problemas e enigmas a que recorrem os mestres do Budismo Zen para a iniciacäo dos discí-pulos. A atraccäo pjdo_experimentalismo, a par do poderoso legado surrealista, pesdu por algum tempo na poesia de Antonio Barahona da Fon-seca (cf. Noite do Meu Inverno [antológia e 1° vol da Obra Poetka], 2001; Pdssaro-Lyra [antológia e 2° vol. da Obra Poetka], 2002), que, mais tarde, se irá abrir ainda a outros caminhos e «ritos», marcados em alguns casos pela adopcäo do nome de Muhammad Rashid. Cite-se ainda neste contexto o caso de Emanuel Félix, ocasionalmente seduzido pelo concre-tismo, mas mais frequentemente propenso a alimentär a «preciosa vida / da linguagem dos homens» (cf. A Viagem Possivel - Poesia 1965-1992, 1993). Mas os anos 60 säo também o período em que se afirmam Herberto Helder(cf. Poesia Toda, 1996) e Ruy Belo (cf. Os Poemas Todos, 2000), indu-bitavelmente as duas figuras centrais da lirica do decénio, e näo só, visto que a sua centralidade canónica diz igualmente respeito ä poesia portuguesa novecentista considerada na sua globalidade. De alguma forma, e por diferentes caminhos, ambos contrariam o que será a orientacäo dominante da década no sentido de uma concentracäo expressiva, enquadrando-se, antes, um e outro no ämbito de uma «tradicäo discur-siva». Näo surpreende, assim, que sejam os dois poetas referéncias fundamentals para a poesia dos anos 70, que, em termos gerais, vai privile-giar, entre os seus valores, a discursividade. Ruy Belo, praticando uma poesia da erräncia discursiva, de valorizacäo do circunstancial e do quo- / tidiano, o de proximidade em relaeäo ä linguagem coloquiäl, abrirá múl-tiplos caminhos ä poesia posterior. A exrepdonaHdade da figura e do percurso de Herberto Helder, dificilmente enquadrável em categoriza-cöes histórico-literárias, tendeu,pelo contrario, a näo deixar aos que intentassem segui-lo outro caminho que näo fosse o do epigonismo, aca-bando, assim, por suscitar reactivamente, com ou sem referenda ä ansie-dade da influéncia diagnosticada por Harold Bloom, solucöes muito divergentes da magia verbal da tradicäo do orfismo que ele, entre nos, magnificentemente representa. Herberto Heldere Ruy Belo encontram-se entre os poetas que Eduardo Lourenco, num ensaio já aqui citado (cf. «Dialectica Mítica da Nossa Modernidade», Tempo e Poesia, 2.ä ed., 1987), associa a urn momento em que a Modernidade de si mesma se despede. A ideiajde lima progressiva despedida da Modernidade ir-se-á arentuando ao longo dos anos 70, e o título escolhido para uma exposicäo que se rea-lizou em Lisboa, em 1983, «Depois do Modernismo», facilmente trans-ponível para o que se passava no campo da Poesia, näo fazia mais do que constataLoafastamento, entäo, no essencial, já consumado relati-vamente ä vigeneia do paradigma modernista. A nova sitüagäo cultural estaria mais sob o signo das «campanhas» do que dos «movimen-Jos», para usarmos os termos de uma opösicäo definida por Richard Rorty (cf. «Movimientos y Campanas», Revista de Occidente, n° 200, Janeiro de 1998). Nestes, haveria, segundo o filósofo norte-americano, uma «militäncia», uma «paixäo de infinito», que aconselharia a sua substituicäo por aquelas, enquanto accöes assumidamente mais limita-das e contingentes. As «campanhas» estariam, assim, mais próximas do que seria o espírito do pós-modernismo, na rejeicäo das «verdades Transzendentes que o modernismo perseguia», em favor de «verdades provisórias, socialmenle constituidas» (cf. Hans Bertens, «The Debate on Postmodernism», in Hans Bertens e Douwe Fokkema (edit.), International Postmodernism — Theory and Literary Practice, 1997). A clara preferénda do periodo pelas «verdades provisorias» reflecte--se, por exemplo, na auséncia de textos manifestários ou na recusa de enfátícasyproclamagöes programáticas nas revistas de poesia que, enläo, vém a publico, em vincaďo contraste com o que era regra durante a vigéncia do paradigma modernista. Como também se pode ver na rejei-cäo da propria ideia de geraeäo, que se tem mantido até aos nossos dias, nuina Persistente afirmacäo da singularidade das escritas. A única excepcäo a assinalar no quadro definido pelas ultimas trés décadas seria a dos que deram início ao processo de transicäo e que a si mesmos se ■iram como uma «geracäo», porventura por uma necessidade de ine-qiiivoca demarcacäo relativamente aos valores defendidos pelos que jmediatamente os antecederam. A dispersäo estilistica que caracterizaria a poesia portuguesa dos Ultimos decénios näo torna fácil a tarefa de quem queira fazer a sua história. Näo deve, no entanto, ver-se em tal dispersäo um obstáculo a que nossamós, seguindo as suas principais linhas de forca, aproximar-nos tlos «conjimtos^aitic^^s^teli^ypis» a que, segundo Raymond Aron, aspira todo o conhecimento historko (apud Claudio Guillén, Teorías de la l listoria Literaria, 1989). Uma das linhas mais em evidencia passa, como m foi sugerido, e em contraposicäo ao antidiscursivismo preponderante nos anos 60, pela recuperacäo da discursividade. O reatamento da tradicäo discursiva terá consequéncias a vários níveis.JWorecerá, por um lado, a emergéncia de prosódias mais soltas^enos^jejtasi_a rigidez métrica, ao dístanciamento irreversível, mormente por efeitos de estra-jiliamento produzidos através de torcöes sintácticas, da linguagem poé-tica em relaeäo ä linguagem de intercambio quotidiano, ou ä ideia de verso como lugar obrigatório de recorrentes correspondéncias fónicas. Um dos poetas que, a este respeito, mais decisivamente contribuiu para uma ductilizagäo da linguagem poética, e frequentemente em articula-cäo com a reabiíitacäo do quotidiano mais banal foi Joäo Mguel Fernan-des Jorge: Propičiářá, por outro lado, essa abertura ä discursividade a consequente abertura ä narratividade e ao deseritivo. As resisténcias de lima poesia tentada por uma pureza que, na hesitaeäo entre o som e o sentido, tenderá sempře a privilegia r o som, ir-se-äo esbatendo, e é com visível prazér que alguns poetas do periodo fazem do espaco mais aper-tado ou mais amplo do poema espaco acolhedor de mundos ficcionais a que näo bašta já a prosa narrativa (realce, neste domínio, para Vasco Graca Moura). O gosto pelo deseritivo manifesta-se em regra nos poetas para quem o poema, falando «de si», näo deixa de apanhar o real, e se o «apanha» é, necessariamente, «porque nele está / quem o escreve» (cf. Joaquim Manuel Magalhäes, Alta Noite em Alta Fraga, 2001). Mas, como este mesmo poeta nos lembra num outro texto, publieado numa revista em 1997 («Lobelias e Erva-branca», Belem, n.E 2, 1997), «em arte todo o realismo é suposto», o que näo significa que a «relaeäo de f alha» do poeta com a realidade näo seja «um dos mais poderosos instituidores de poesia». Tal «relaeäo» tem, precisamente, servido de suporte a um itinerário poetko que, nos Ultimos títulos, A Poeira Levada pelo Vento, 1993, e Alta Noite em Alta Fraga, se adensa de asfixiante negatividade, de uma truci-dagäo a que nada escapa. / A abertura ao descritivo está igualmente presente nos muitos tex-tos que entram em diálogo com as artes visuais, paiticukrmente naque-les que mais se aproximam do que seria a preocupacäo da ekphrasis em pór diante dos olhos, emfazer ver o objecto da comunkacäo. Mas em toda esta linha de poesia mais ou menos fiel aos cänones da ekphrasis, her-deira, em larga medida, do Jorge de Sena das Metamorfoses, e em que se ^e^ačám nomes como os de Vasco Graca Moura, Joäo Miguel Fernan-des Jorge, Nuno J udice, AI Berto, raramente o poeta se limita ao papel de descritor, realizando, antes, um trabalho de recriagäo, ä semeľhanca do que já acontecia com o proprio Sena que äs suas metamorfoses chamava «meditacöes poeticas». De resto, o que ao poeta sobremaneira importa, neste exercício de interlocucäo com as artes visuais, como o título do livro de um dos poetas acima referidos, AI Berto (cf. A Secreta Vida das Imagens, 1991), deixa perceber, é revelar a vida secreta das imagens, uma vez que, segundo um dos pintores a quem é concedida a fala num dos poemas do livro, näo é seu intento «reproduzir exactamente / aquilo/ que [vé] e [observa]». Em alguns casos, como se verifica em Uma Expo-sigäo de Joaquim Manuel Magalhäes (cf. Consequencia do Lugar, 2002), as «referencias e contagios» de uma obra, para o caso a do pintor americano Edward Hopper, näo implicam mesmo, de acordo com o que se dizia em nota incluída na primeira edicäo, «qualquer tentativa de paráfrase quer visual quer verbal». JJm outro traco da poesia das últimas décadas diria respeito ä forte mcidencia que nela se observa da intertextualidade. Esta seria mesmo uma das suas imagens de marca, e o proprio diálogo com as outras artes e com o discurso da cultura de um modo geral poderia ser considerado neste ämbito. Seja como for, se podemos dizer que näo ha época de que esteja ausente a intertextualidade, também é certo que há épocas mais intertextualistas que outras, e é o caso do presente periodo, em que a sua presenca avassaladora, sob as mais diversas formas, é uma evidencia indesmentível. E o caso portugués, em que seria fácil multiplkar os exemplos de uma estética fortemente citacionista, näo foge ao quadro que já tem sido tracado para outros espacos culturais, relativamente ä intertextualidade moderna e ä pós-moderna, mesmo que possa haver divergéncias quanto ä linha de separagäo, necessariamente instável, entre uma e outra época. Essa linha, situável no caso da poesia portuguesa no periodo que vai dos princípios_dos~anos^70 aos inícios do decénio seguinte, permite compreender o entendimento diferente que a época moderna e a pós-moderna těm da obra literária: para a primeira, ela é concebida como um texto, enquanto que, para a segunda, ela é encarada - ■ i ■- ■ ! como um intertexto, o que significa, neste ultimo caso, que se näo con-cebe já o texto fechado em si mesmo, mas sim em relacäo com outros textos e com o leitor (cf. Jose Enrique Martinez Fernandez, La Intertextuali-'daä Literaria, 2001). A escrita poetka da pós-modernidade dá livre curso ä sua obses-säo pela prática intertextual das mais diversas formas, que väo da glosa ä paródia, da cilacäo ao pastiche e ä propria pseudo-intertextuaEďade. Se a intertextualidade é vista como um elemento constitutive da textuali-dade, näo surpreende que o poema possa ser definido como «manta de retalhos, citacöes» (cf. Joäo Camilo, Nunca Mais se Apagam as Imagens, 1996) ou que a escrita, mais do Livro que de livros, possa ser encarada como o retomar de uma cadeia que ficou suspensa ou interrompida (cf., de um poema do mesmo livro, a seguinte passagem: «Fernando Pessoa teria percebido / imediatamente. Alias rudo o que faco é ir lancando no papel / uma parte do que ele näo teve tempo de escrever»). Intimamente associada ä intensiva prática intertextual por parte dos poetas Portugueses no ultimo quartel de Novecentos está o modo como encaram o seu relacionamento com a tradicäo literária. Inequivo-camente distanciados da logica de ruptúra que marcou as orientacöes de vanguarda especialmente ao longo da primeira metade do sécuío, ten-dem eles ä ver no seu trabalho a insercáo numa cadeia cultural em que a diferenga que pretendem instaurar näo significa de modo nenhum a quebra dos elos que os mantém, inventivamente, Ügados a essa cadeia. A tradicäo näo constitui, assim, para eles um peso, e a presenca da memoria literária no trabalho de escrita é algo de inevitável que assu-mem com tranquilidade. Näo raro convocam eles ao espaco do poema as vozes de emblemátkas figuras oriundas dos mais diversos contextos temporais, e que, por esse gesto de convocaeäo, tornám suas contempo-räneas. Um dos autores que melhor deu concretizaeäo a essa propensäo da poesia das últimas geracôes para, na sua relacäo com o mundo, näo prescindir da mediaeäo do universo da cultura, é Paulo Teixeira (cf. As Imaginagöes da Verdade, 1985; Epos, 1987; Conhecimento doApocalipse, 1988; A Regiäo Brilhante, 1988; Inventário e Despedida, 1991; Arte da Memoria, 1992; O Raptode Europa, 1994; Patmos, 1994; As Esperas e Outros Poemas, 1997; Túmulo de Heróis Antigos, 1999; Autobiografia Cautelar, 2001), sobre-tudo nos monólogos dramáticos, mais frequentes nas suas primeiras reccTfhäs poeticas, em que empresta a voz a autores que, para alem das diferencas dos tempos, afirmam a permanéncia da literatura (particu-larmente Äs Imaginagöes da Verdade e A Regiäo Brilhante). Ao seu trabalho assente fundamentalmente num processo de inventiva interlocucäo com o discurso da cultura, traz, ao mesmo tempo, Paulo Tebteira uma ideia de dignificacäo ou elevacäo da diccäo poéticacjue claramente contraria uma tendencia de alguma poesia da década anterior para privilegiar o contingente e o banal tanto nas formas como nos conteúdos. No caso de Luis Filipe Castro Mendes (cf. Poesia Reunida [1985-1999] com o livro inédito Os Amantes Obscuros, 1999; Os Dias Inventados, 2001), também ele iniciando o seu percurso poetko na década de 80, o diálogo com a tradicäo literária realiza-se por uma outra via. Em evidente con-Jtraposicäo^a toda uma tradicäo modernista do verso livre, o poeta vai favorecer a aceitacäo de constrangimentos formais, a regularidade métrica e estrófica, o uso da rima, procedendo igualmente ä reabilitacäo de formas poéticas tradicionais como o epigrama, o madrigal, a sextina, o romance, para alem do sonete^ esse, a bem dizer, nunca totaknente posto de parte pela moderna tradicäo lírica portuguesa. Este retorno a uma disciplina clássica é acompanhado por um olhar irónico sobre alguns dos mitos mais caros ä poesia da modernidade, uma ou outra vez fascinada pela «convulsa vanguarda» ou pelas grandes proclamacôes programáticas, como o «Make it new» de Pound. Por outro lado, säo abundantes as citacóes, os envios, nesta poesia que faz uso dos meca^ nismos intertextuais dentro de um areo temporal muito amplo e que, no seu ponťo mais proximo, dialoga mesmo com textos de autores coeta-riěos do poeta, sondo ainda de salientar que Castro Mendes, em abono da desinibkäo com que pratica o diálogo intertextual, indica em nota de pé de página os textos e autores com que entra em interlocucäo. Em Modos de Música, de 1996, inclui Luis Filipe Castro Mendes um «Envoi» que, no ámbito de uma poética muito propensa a todo o tipo de diálo-gos, nomeadamente aos «diálogos de poetas», de alguma forma, é, ainda que mais breve, o equivalente da epištola em verso cultivada pelos nos-sos quinhentistas. O poema é dirigido a Fernando Pinto do Amaral, que com o remetente tem muito de comum, para alem da «melancolia» e da «ironia» expressamente referidas no texto. Poeta de sensibilidade ele-gíaca, Fernando Pinto do Amaral (cf. Poesia Reunida 1990-2000, 2000) representa, na.ultima década do século, melhor que qualquer outro «a época da melancolia» que seria a desses anos de aproximacäo do fim do milénio o sob cujo signo se colocaria a lírica recolhida numa «antologia da nova poesia portuguesa» — Anos 90 e Agora, 2001 — organizada por Jorge Reis-Sá. Mas tanto ou mais do que por dar o tom a um periodo a sua poesia, sintomaticamente iniciada com um livro intitulado Acédia, que os outros passos do seu itinerário iriam confirmar, distinguir-se-á; antes, pela qualidade de síntese que é a sua do processo evolutivo da —- - lírica portuguesa no ultimo quartel do século, no sentido de uma cada mais vez mais nitida limpidez do discurso poétko, distante de toda uma tradicäo moderna que, frequentemente, o enredou nas malhas da obs-curidade. Nela se depuram e clarificam algumas das linhas de forca que estäo entre as imagens de marca da poesia que se afirma a partir da década de 70, por um progressivo afastamento do paradigma modernista — um mais tranquilo relacionamento com a tradicäo, o «regresso ao sentido» sob cujo lema o proprio poeta, um dia, colocou a poesia do periodo, a desinibida adopcäo da «cartografia das emocöes» a que se refere o título recente de um outro poeta da época, e por sobre tudo isto um resignado olhar irónico inibidor de qualquer possível cedéncia aos excessosdojjflŕtos. Em fins de Abril de 2001, num «Encontro de Poetas dos Anos 90», um dos poetas incluídos na antológia Anos 90 e Agora, e dos de mais recente revelacäo, Pedro Mexia, defendia a tese, de origem haberma-siana, de que a modernidade ainda näo se teria esgotado. É urna posi-cäo interessante se nos lembrarmos que os primeiros sinais de urna crise da modernidade dátam, entre nós, da década de 70. Para além do que haverá de inevitavelmente pessoal em tal posicäo, ela näo deixa de reflectir as dúvidas que, desde cedo, acompanharam em Portugal as pro-postas de urna separacäo demasiado rígida entre urna época moderna e urna época pós-moderna. Nunca é por demais lembrar, alias, o que, a este respeito, deixou eserito um dos mais conhecidos estudiosos da ques-täo a nível internacionál, Matei Calinescu, no seu estudo clássico Five Faces of Modernity — Modernism, Avant Garde, Kitsch, Postmodernism, 1987: o pós-modernismo, como o título do ensaio, alias, sugere, é näo só «uma face^Impderrüdade», como também manifesta «impressionantes seme-lhancas com o modernismo», sendo, assim, parte integrante de «uma mais ampla modernidade». Tal näo obsta a que, no caso da poesia portuguesa, se näo possa falar de mudancas de sensibilidade na passagem da década de 60, ainda enquadrável em orientacöes neovanguardistas do modernismo tardio, para o decénio seguinte, em afastamento progressivo de uma logica de inovaeäo radical geralmente associada ä verteilte vanguardista do modernismo. Também, de resto, na poesia do ultimo quartel do século, mais em consonäncia com o que seria o espirito de um processo de crise ou fim da modernidade, se registam, näo obstante a manifesta diluicäo de uma lógica de confrontos intergeracionais, mudancas mais ou menos pontuais, como, por exemplo, a que a diccäo poética elevada de um Paulo Teixeira, nos anos 80, representa relativamente äs poéticas de aproximacäo ao quotidiano e ä sua banalidade afirmadas ao longo do decénio anterior, ou o retorno ao clássico, ä regularidade prota-gonizado nos anos 90 por Luis Filipe Castro Mendes e Fernando Pinto do Amaral, face ä persisténcia da tradicäo versilibrista numa poesia que, no essencial, pôe em questäo a mitologia da modernidade. Seja qual o prisma por que o encaremos, o ultimo quartel do século é, dentro dele, sem dúvida, um dos períodos mais ricos no que ä poesia diz respeito. E em relaclo aos mais velhos dos poetas do periodo, na sua maioria, presentemente na faixa etária dos 50 anos, näo é espěcíalmente problemático ensaiar o tracado de um cänone, tendo em conta a consis-těncia de alguns dos seus percursos individuals e as deslocacöes e aíte-racôes, mais ou menos profundas, que ŕoram introduzindo no mapa sujeito a permanente reorganizacäo que é urna literatura nacionál, ade-mais em contínuo processo interactivo com as literaturas de outros espa-cos culturais. Näo por acaso, aliás, alguns dos poetas mais significativos das ultimas décadas tém investido muito do seu esforco na traducäo, na conviccäo de que näo säo apenas os leitores a tirar proveito desse labor mas a propria poesia nacionál, que, assim, se abre a novos campos expressivos e se alarga a novos modos de dizer e se fazer. Entre os autores revelados nos anos 70 destacam-se, segundo linhas de orientacäo e aproximacöes a tradicöes muito diversas, Joäo Miguel Fernandes Jorge, N u no Júdice, Antonio Franco Alexandre (que fez, no entanto, a sua estreia no fim da década anterior com urn livro depois arredado da sua bibliografia) e Joaquim Manuel Magafhaes. A estes haveria que acres-centar os nomes de Vasco Graca Moura, que se estreia na primeira metade dos anos 60, mas que só a partir dos fins do decénio seguinte comeca a definir a posicäo cimeira que é hoje, cada vez mais nitidamente, a sua, eManuel. Gusmäo, revelado nos anos 90, mas muito proximo dos poetas da geracäo de 70 e cujo livro de estreia colige textos que se esten-dem por duas décadas desde os inícios dos anos 70, assumindo assim, de čerta forma, um carácter antológico. A marca deixada por Fernandes Jorge (cf. Obra Poética, Vols, la 6, 1987-2000; Antológia Poética 1971-1994,1995; Näo É Certo Este Dizer, 1997; O Lugar do Pogo, 1997; Bellis Azorica, 1999; Museu das Janelas Verdes, 2002) na poesia portuguesa terá sobretudo a ver com a dessacralizacäo que opera tanto da linguagem poética como do proprio acto de escrita, ins-critos urna e outro no mais radical circunstancialismo da vida, no que ela tem de mais contingente. Na abrangéncia dos temas e motivos desenca-deadores da escrita, na assuncäo do que se poderia considerar uma estetica da banalidade, raramente se terá ido täo longe na recusa da ideia de autonómia do texto, fora do uso, necessariamente precário, que os homens dele fazem. Pelo contrario, na deriva da escrita, säo os leitores convidados a reconhecer urna homologia da deriva da propria vida, que tudo inclui, desde a mais chä experiéncia do quotidiano äs mais diversas realizacöes da arte e ä sobreposicäo dos tempos a que conduz a cons-ciéncia historka. O traco de mais fácil identificaclo na poesia de Nuno Júdice (Poesia Reunida 1967-2000; Pedro, Lembrando Inés, 2001; Cartografia das Emogöes, 2001; O Estado dos Campos, 2003) teria a ver com a sua insergäo na grande tradicäo romäntica, na releväncia que nela ganham os «compendios da imaginacäo» a que o poeta se refere num texto de A Ponte da Vida, 1997. O proprio estatuto ficcional que assume a voz que se encena nos textos apontaria no mesmo sentido, sobretudo numa primeira fase, em que fre-quentemenfe eía se apresenta, com maior ou menor distanciamento iró-nico, sob máscara de visionarismo. Muito embora continue a privilegiar a «cartografia das emocöes», o universo poético de Nuno Júdice, em permanente expansäo textual sob o impulso de uma criatividade que parece näo conhecer pausas, tem-se ampliado e renovado, por um lado, np diá-logo com outros universos, submetidos e conformados äs suas próprias exigéncias, e, por outro, na necessidade, mais imperiosamente expressa em recolhas de mais recente publicacäo, de incluir entre as suas preocu-pacöes «o modo como / se olha para o mundo». Se a gramática de Nuno Júdice sě~Hefine, como vimos, acima de tudo, em termos de «compendios da imaginacäo», a de Joaquim Manuel Magalhäes (cf. Os Dias, Pequenos Charcos, 1981; Segredos, Sebes e Aluviöes, 1985; UmaLuz com um Toldo Vermelho, 1991; A Poeira Levada pelo Vento, 1993; Alta Noite em Alta Fraga, 2001; Consequěncia do Lugar, 2002) tern, no essencial, permanecido fiel ao que, urn dia, se definiu como o propósito de «voltar ao real» (cf. «Principio», Os Dias, Pequenos Charcos). Como se lembra num^xtenso poema de Alta Noite em Alta Fraga («Arqueiro»), foi em oposicäo aos que «se refugiavam / na linguagem da linguagem», em oposicäo ao «esteticismo», que se afirmou esse propósito. Ao mesmo tempo, nele se sublinha, para esclarecimento do que implica «voltar ao real», que «tudo nos poemas é suposto / excepto quem os escreve», ecoando, por aí, urna formulacäo que já encontráramos num texto em prosa publicado alguns anos antes («Lobelias e erva-branca», Bělém, n.s 2, 1997): «em arte todo o realismo é suposto». Por outro lado, como também se recorda em «Arqueiro», ao real chamou o poeta «desen-canto», e outras palavras de forte carga negativa no texto de 1981 com aquela alinhadas poderiam ter sido igualmente evocadas («[...] voltar ä ordern / das mágoas por uma linguagem / limpa, um equilfbrio do que se diz / ao que se sente, um ímpeto / ao ritmo da lingua e dizer / a catástrofe pela articulada / afirmacäo das palavras comuns, / o abismo pela sujeicäo äs formas / directas do murmúrio, o terror / pela cons-truída sintaxe sem compendios.»). Como conciliar o «desencanto», a «catastrofe», o «abismo», o «terror» com «uma linguagem / limpa», as «palavras comuns»? Tal é o desafio que se impôe a poesia de Joaquim Manuel Magalhäes, em nome do refazer da «inovacäo», e através da violéncia dasimagens emetáforas e da desapiedadainterseccäo deplä-nos de uma realidade, a todos os niveis, ferida de morte, num dos livros mais poderosos do periodo em que o século se aproxima do seu termo, A Poeira Levada velo Vento. No ämbito de uma tradicäo de poesia referencia! se poderia enquadrar a poesia de A.M. Pires Cabral (cf. Ar t es Marginais - Antológia Poética, 1998), desde cedo destacada por J.M. Magalhäes. Sea dispersäo estüistica é, como oportunamente assixialámos, um dos tracos mais evidentes da poesia do ultimo quartel do século passado, ela pode igualmente marcar alguns percursos individuals, como se veri-fica, por exemplo, com um Antonio Franco Alexandre (cf. Poemas, 1996; Quatro Caprichos, 1999; Uma Fabula, 2001; Duende/2QQ2). A variedade de registos, as surpreendentes mudancas de rumo mostram bem que nenhum outro valor, entre os que o seu trabalho poético envolve, se soprepöe ao da liberdade da invencäo. Nesse irrestrito exercicio de liber-dade cabem tanto a desarrumacäo da linguagem praticada em Sem Palavras nem Corsas, 1974, como a gravidade rerniniscente da tradicäo bfblica sapiencial de alguns poemas de As Moradas 1&2,1987, ou a intensidade imagista de Visitagäo, 1983, como ainda a erräncia discursiva no retomar da tradicäo do poema longo em Oásis, 1992, ou, já perto do termo do século, a entrega ä fantasia proteiforme, ao mais exuberante ludismo em Quatro Caprichos. Vasco Graca Moura (cf. Poemas Escolhidos, 1996; Poesia 1997-2000, 2000; Antológia dos Sessenta Anos, 2002), que nos Ultimos anos tem insis-tido na orientacäo «ironica, descritiva, factual, narrativa» da sua poesia, incluiu mesmo em Poemas com Pessoas, 1997, urn texto em que dá conta de como chegou ä poesia narrativa, ou seja, como esclarece nesse mesmo lugar, uma poesia em que se movem figuras, a quern acontecem coisas. Este e outros aspectos da sua poética mais recente, como o que acentua a base autobiográfica do seu trabalho poético (cf. o texto «Poesia e auto-biografia», que acompanha Poemas com Pessoas), näo fazem senäo chamar a atencäo para o carácter fortemente circunstancial da sua obra, em declarado contraste com o que possa induzir a poesia a fechar-se em si mesma. Ao mesmo tempo, conforme se lembra nesse texto,ji dimensäo autobiográfica näo anula o que a escrita poética necessariamente com-porta de «insinceridade, encenacäo, simulacäo, ficcionalizagäo», contri-butos incfejpensáveis, afinal, poderia acrescentar-se a partir de um poema do mesmo livro, ä invencäo da poesia como «radical abalo do mundo» ou sua irrecusável refiguracäo. Num periodo marcado pela crise da modernidade, dir-se-ia que a poesia de Manuel Gusmäo (cf. Do/s Sóis, a Rosa - a Arquitectura do Mundo, 1990; Mapas o Assombro a Sombra, 1996; Teatros do Tempo, 2001) procura responder a urn desafio logo enunciado no seu livro de estreia — o de que, «para achar a poesia», é necessário perdé-la. A pergunta que se lhe coloca traz ainďa, de aíguma forma, a memoria da que se pôs Hölderlin: como afirmar a poesia, e a «alegria» que lhe é homóloga, num tempo em que tudo apontaria no sentido da verificacäo da sua impossibilidade? De diversos modos intenta f aze-lo; a todos eles, porém, é comum o reco-nhecimento de uma complexidade que se manifesta tanto na inadequa-cäo de uma separacäo do flsico e do mental, por aproximacäo oximórica da «mäo mental» ao trabalho de escrita, como na necessidade de alargar o lirismo ä sua dramatizacäo e ao narrativo, ou de pluralizar a voz e o mundo (os «mundos do mundo»). Em ultima análise, trate-se de «mudancas de voz», de «troca dos ritmos», de formas móveis ou de sobreposicäo de tempos e lugares, o que, no essencial, move esta poesia é a conviccäo de que é impossível dizer a complexidade da experiéncia do hörnern na fundura do dizer / fazer poético sem uma permanente atencäo ä pluralidade de vozes de que se faz a vida, numa troca em que a ela se acrescenta sempre «mais vida». O pluralismo que caracterizaria o periodo de que temos vindo a tra-tar é logo muito sensível na década por que ele se inicia. Bašta atentar-mos nos percursos de alguns dos poetas entäo revelados para nos dar-mos conta do que neles há, segundo o voto de Meschonnic, de «aven-tura subjectiva» e «solitaria», embora num ou noutro caso se näo torne difícil inseri-los emfamtlias, como säo as que, por exemplo, as grandes matrizes romänticas ou realistas ajudam a definir. Mas mesmo as tradi-côes que possam, na circunstäncia, ser invocadas estäo longe de pôr em causa quer a singularidade das escritas quer a diversidade das origens dentro do que é a amplidäo do seu campo de abrangéncia. Comum, por exemplo, a Jose Agostinho Baptista (cf. Biografia, 2000) e a Fernando Guerreiro (cf. os titulos mais recentes: Teória da Literatura, 1997; Outono, 1998; Gótico, 1999; Grotesco, 2000; A Visäo do Abrigo, in O Caminho da Mon-tanha, 2000; Teoria da Revolugäo, 2001) é a referencia ao Romantismo, mas se no caso do primeiro ela se processa por via do pathos, corjio em Paixäo ~~e Cinžas, 1992, ou da mais pungente emotividade, como em Agora e na Hora da nossa Mořte, 1998, no casp do segundo faz-se por via de um dis-tanciamento reflexivo que tematiza, dentro de um registo que frequen-temente se aproxima do registo ensaístico, algumas das interrogacöes maiores que se těm posto no ämbito de uma visäo tipológica desse mesmo Romantismo, especialmente do que se reclama da sua matriz alemä. Por outro lado, a despedida da modernidade a que se estaria a assistir ao longo dos anos 70 näo obsta a que, em alguns poetas, sejam facilmente reconhecíveisos lacos que os vinculam ä heranca modernista., e é o que se passa, por caminhos diferentes, com dois autores revelados quase no fim do decénio, AI Berto e Luis Miguel Nava. Naquele (cf. O Medo, 2r ed., 2000) o que emerge, numa vincada preferéncia por uma erráncia discursiva que se quer homóloga da erräncia da vida, dispersa e dissipada, é toda uma mitologia do artista moderno, que faz de Rimbaud o seu ícone mais embíemático, transposto para o «tempo pestifero», sob «o céu lugubre» de um outro fim de século (cf. Horto de Incéndio). Nava (cf. Poesia Completa 1979-1994), que, enquanto crítico, repetida-mente recusou a ideia de uma ruptura entre a geracäo de 60 e a de 70, sob cujo signo se teria iniciado uma nova situacäo periodológica, deixa perceber, enquanto poeta, a sua ligacäo ä tradicäo modernista, no recurso recorrente a um dos processos definidores dessa tradicäo, identificável em diversos campos artísticos em termos de decomposicäo ou distorcäo (cf. Antonio Guerreiro, «A Imagem Torcida», Expresso-Cartaz, 18 de Maio de 2002), ainda que a superfície dos enunciados, com a sua sintaxe meti-culosa e sem desvios, pareca apontar noutro sentido. Näo por acaso cer-tamente a crítica que se tem ocupado da sua poesia insistentemente recorre, na preocupacäo de melhor sublinhar a dimensäo inquietante do seu universo, a um paralelo com a pintura de Francis Bacon, conhecida pelo uso obsessivo que faz de tais distorcöes. Poeta em evidéncia dentro da linha de reelaboracöes e reajusta-mentos da tradicäo de uma poesia referencial, é l leider Moura Pereira (cf. De Novo as Sombras e as Calmas-Poesia 1976-1990,1990; A Ultima Lua da Lua de Outono, 1991; Em Cima do Acontecimento, 1995; Nem por Sombras, 1995; Amor Carnalis, 1998; Lágrima, 2002), que, com outros autores da sua geracäo, muito contribuiu para um reencontro da poesia portuguesa com os gestos, as vivéncias, os incidentes do quotidiano mais imediato, num diálogo fecundo com a poesia de língua inglesa, frequentemente convo-cada para epígrafes, títulos de livros, ou mesmo para o corpo dos textos, num saudável exercício de_mterseccäo de línguas, proprio de poetas fiéis ao espírito cosmopolita da modernidade. Nos Ultimos anos, a par de uma prática cada vez mais solta da escrita, sobressai na poesia de Moura Pereira uma nota de displicente irrisäo, a que näo escapa, por exemplo, o retomar de um modo como a pastoral (cf., por exemplo, «Eclogas» e «Enquanto Pasta, Alegre, O Manso Gado», em Amor Carnalis). Herdeiro da «revolta» de uma geracäo que a si mesma se viu, urn dia, como «geracäo dessatisfeita» parece ser Manuel de Freitas, que se estreia com urn livra singular, Todos Contentes e Eu Também, (cf. títulos publicados poste-riormente: Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras, 2001; Os Infernos Artificials, 2001; Game Over, 2002; [Sic], 2002; Büchlein für Johann Sebastian Bach, 2003) no ano de fecho do século, também ele celebrante do «vazio» e da J «desolacäo». í A poesia revelada neste periodo de urna modernidade em crise é também urna poesia muito consciente de si, dos seus processos, se näo mesmo da exaustäo que a ameacaria, ciente, enfim, de ter chegado irre-mediavelmente tarde, de já ter «lido tudo», de näo haver mais nada a i dizer. Um dos poetas em que mais nitidamente se observam sinais I dessa angústia é, sem dúvida, Manuel António Pina (cf. Poesia Reunida f 1974-2001,2001), temperada, todavia, por urna céptica irónia e por urna desprendida arte do understatement que faz dos seus versos perma-nentemente tentados pela proximidade conversada da prosa um dos lugares de mais compensadora revisitacäo da nossa lírica das ultimas décadas. O exemplo de Ruy Belo, convocado em tempos recentes sem-pre que a poesia portuguesa teve presente a coloquialidade como meio de dessolenizar a diccäo e de, assim, a aproximar do leitor, teve aqui alguma importäncia. Como igualmente a teve na desinibida adopcäo do verso livre em Joäo Camilo (cf. Nwtca Mais se Apagam as Imagens, 1996), em conjuncäo com o nunca arredado ideal utópico de urna trans-paréncia caeiriana, que, no entanto, näo apaga todo um diversificado lastro da memoria literária, a fazer continuamente lembrar os seus direitos no reconhecimento de que o poema é «manta de retalhos, cita-cöes». A pulsäo intertextual, täo típica deste periodo, frequentemente conduziu a um processo de identificacäo com vozes míticas da tradicäo literária, e é o que faz Jose Jorge Letria (cf. O Fantasma da Obra -j Antológia Poetka 1973-1993,1993; O Fantasma da Obra II-Antológia Poe- tka 1994-2002, 2003), naqueles que seräo, porventura, os momentos mais conseguidos da sua extensa producäo, ao dar_a__<> a Camôes ; (Oriente da Mágoa - Pranto de Luis Vaz, 1992),j^esário Verde (Cesário: Instantes da Fala, 1989) ou a Mário de Sá-Carneiro (A Sombra do Rei-Lua, 1991). Em contraposicäo ao confiado abandono discursivo a que se vota / um Joäo Camilo, Eduardo Pitta (cf. Marcus de Água - Poésia Escolhida 1971-1990, 1999) diz, em versos de cortante e ácida concisäo, o desen-canto e o desamparo de um tempo crepuscular, «entre ruinas». De um tempo também crepuscular, mais concretamente de um «tempo já depois / de uma catástrofe em que / a memoria se perde no espaco», fala o livro de densa e inquietante atmosféra e de rara forca e coesäo de Jaime Rocha, Os Que Väo Morrer, 2000 (cf. outros treulos: A Danga dos Lilases, 1982; Beber a Cor, 1985; A Perfeigäo das Coisas, 1988; Do Extermi-nio, 1995; Zona de Caga, 2002). No que é a manifesta heterogeneidade da poesia revelada nos anos 80 (cf. Luis Miguel Nava, introd. a Antológia de Poesia Portuguesa 1960--1990), caberia destacar, para além dos já referidos Paulo Teixeira e Luis Filipe Castro Mendes, Fátima Maldonado (cf. Cadeias de Transmissäo, 1999), fazendo da metafora do verbo, dentro de uma gramática da metafora, instrumento privilegiado da vitriólica prospeccäo da «magoa urbana» a que recorrentemente se entrega na sua poesia, em sintonia com todajraajradicao de inconformismo que, ä aeeitaeäo do insrituídq, freiere claramente os caminhos de urna danagäo que exelui qualquer possi-bilidade de compromisso ou «absolvicäo»; Fernando Luis Sampaio (cf. Conspirador Celeste, 1983; Sólon, 1987; HotelPlrnldon^'^TTEscadas de Incendio, 2000), partindo da experiéncia da erräncia no espaco urbano, que, geograficamente, se vai diversificando, e abrindo os seus poemas, de contido desenvolvimento, e num. registo de distanciado desencanto, longe da violéncia que marca o impeto verbal de Fátima Maldonado, a narrativas de encontros que, no meio de «enganos, embaracos», se vol-vem, melancolicamente, desencontros; Gil de Carvalho (cf. Alba, 1983; Aboiz, 1985; De Fevereiro a Fevereiro, 1987), respondendo, em tempo poé-tico prevalentemente atraído pelos cenários citadinos, ao apelo do mundo natural na brevidade criptica dos seus poemas de que näo está ausente a memoria de uma poesia com que mantém trato fntimo, a poesia oriental; Jorge de Sousa Braga (cf. O Poeta Nu, 1991), também ele aberto ao sentimente da naturezá e ao fascinio das tradicöes poéticas do Oriente, embora, no seu caso, sejam predorninantemente os haikai o ponte de referencia e näo possa deixar de se reconhecer uma fuga ao hermetismo ha sua procura da simplicidade; Vergflio Alberto Vieira, em que encontra-mos igualmente sugestöes da poesia oriental (cf. especialmente A Ilha de ]ade, 2000; no ano anterior publicou o autor uma selecgäo da sua poesia: A Imposigäo das Maos - Escolha Poetka 1977-1997); Carlos Pocas Falcäo, perscrutando, em A Nuvem, de 2000, o ponte mais alte de um percurso iniciado em 1987, com O Numero Perfeito (outros titulos: O Invisível Sim- ples, 1988; Tres Ritos, 1993; Movimento e Repouso, 1994), em interlocucäo 49 com múltiplas tradigöes sapienciais, os sinais de uma Divindade a que, sem reservas, dá o seu «assentimento»; Adília Lopes (cf. Obra, 2001), fazendo da paródia, täo ao gosto de uma época vineadamente intertextua-lista, o seu mais assíduo campo de intervencäo poetka, em consonäncia, de reste, com teda uma tradicäo portuguesa recente em que avultam nomes como os dos surrealistas Mário Cesariny e Alexandre O'Neill ou do «experimehtälista» Alberto Pimenta, a que, todavia, aerescenta um toque de construída inocéncia perversa. Nos anos 80 tém iguälmente início os pereursos de Bernardo Pinto de Almeida, Francisco Jose Viegas e Rosa Alice Branco, o primeiro (cf. Escalas, 1981; .As Sublimes Suplkas, 1988; Sem Título, 2002; Depots que Tudo Recebeu o Nome de Luz ou de Noite, 2002; E Outros Poemas, 200|; Hotel Spleen, 2003) afirmando-se, nos seus Ultimos titulos, como uma'das vozes mais inovadoras da poesia portuguesa no dealbar do novo século, o segundo (cf. Metade da Vida, 2002) con-tinuando, num registo de sóbrio recorte imagista, a tradicäo novecentista de uma poesia de lugares que tern em Sena uma das reŕeréncias maiores, e a terceira (cf. Soletrar o Dia - Obra Poetka, 2002) fazendo coincidir nos seus textos o trabalho de estilizacäo do poeta calígrafo e o incontido júbilo da eserita. Revelada nos anos 90, tal como os já citados Manuel Gusmäo e Fernando Pinto do Amaral, Ana Luisa Amaral (cf. Minna Senhora de Qué, 1990; Coisas de Partir, 1993; Epopeias, 1994; E Muitos os Caminhos, 1995; As Vezes o Paraíso, 1998; Imagens, 2000; Imagias, 2002) continua — com modu-lacôes eventualmente paródicas, ou, mais frequentemente, sob o signo de uma mais ou menos velada irorda favorecidajpor outias tradicöes literá-rias que lhe säo familiäres, como a anglo-americana, em que, nos Ultimos tempos, também sobressaem as questôes de género, como veiculadoras de um ponto de vista específico — aquela que é uma das linhas mais em evidencia na poesia portuguesa ä beira do termo do século, a que faz do diálogo com a memoria literária e cultural uma das suas mais fortes razôes de ser, derivando, no entanto, nas mais recentes recolhas, para uma esfera de recorte cada vez mais afirmadamente intimista, a exigir «uma nova lingua», outras «linguagens». É para esse espaco de mtimidade que se orienta, desde o livro de estreia, também de 1990, a poesia de Jose Tolentino Mendonca (cf. Longe Näo Sabia, 1997; A Que Dištancia Deixaste o Coragäo, 1998; Baldios, 1999; De Igual para lgual, 2001). Poesia extrema-mente alusiva, que tem no «segredo» uma das suas metáforas centrais, vive, por outro lado, muito da afectividade, da abertura ao «outro», de uma reabilitacäo da «figura do amor». Idéntica capacidade de «escuta» se revela no percurso de Daniel Faria (cf. Explicagäo das Árvôres e de Outros Animais, 1998; Homerts Que Säo como Lugares Mal Situados, 1998; Dos Liqui-dos, 2000), na experiéncia de conjugacäo da «elevacäo» e da «profundi-dade» que fez da sua curta vida, movida por uma «palavra» que habitou e o transformou, dentro de uma tradicäo que se ocupa da «viagem do nada para o silencio», e que insistimos em designar de mística. Uma antológia a que, no início, se fez referencia, e em que se incluem alguns dos poetas já apontados de mais recente revelacäo, Anos 90 e Agora, pode dar-nos, no fecho deste balanco, inevitavelmente lacunar, algumas pistas para a compreensäo da fase final do ultimo quartel do século. E se esta é, como na nota de apresentacäo da citada antológia se diz, «a época da melancolia», näo menos se apresenta ela como tempo de confirmacäo deJiriguagens privadas, irredutivelmente ciosas da sua singularidade^ Lms^mntais (cf. A Imprecisa Melancolia, 1995; Umbria, 1999; Lamento, 1999; Angst, 2002), um dos autores mais em^evidencia na segunda metade da década de 90, ilustrará mesmo emblematicamente a convergéncia destes dois aspectos no título de uma sua recolha, A Imprecisa Melancolia, e de um poema aí incluído, «Arte privada». Ana Marques Gastäo (cf. Tempo de Morrer Tempo para Viver, 1998; Terra Sem Mae, 2001; Nocturnos, 2002), por sua vez, já no dealbar do novo milénio, reatará, perante dolorosas circunstäncias a que o título da sua segunda colectä-nea alude, com meios expressivos de grande austeridade, a tradicäo da elegia fúnebre. Se uma outra voz feminina, Maria do Rosário Pedreira (cf. A Casa e o Cheiro dos Livros, 1996; O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001), associa, magoadamente, «as mais pequenas histórias do mundo» ao lugar de refúgio e evocacäo de todos os afectos que é a casa, a de Ana Paula Inácio (cf. As Vinhas de Meu Pai, 2000; Vago Pressentimento Azul por Cima, 2000) parece, antes, abrir-se ao mundo natural, nos seus mais indo-máveis desígnios. Tanto como uma «epoca da melancolia» é esta uma época do desen-gano. Ora os submerge, aos poetas do periodo, o sentimento de vanidade das palavras, condenadas a acumularem-se umas sobre as outras, como em Jorge Gomes Miranda (cf. O Que Nos Protege, 1995; Portadas Abertas, 1999; A Hora Perdida, 2003), ora fazem sua uma «vocacäo para o desas-sossego», como em Rui Pires Cabral (cf. Geografia das Estagöes, 1994; A Super-Realidade, 1995; Música Antológica & Onze Cidades, 1997; Pragas e Quintais, 2003), ora o mundo se Ihes representa, pessimisticamente, na sua «inalteravel imperfeicäo» e em rudo, para eles, espreita o malogro ou o «equivoco», e é o que se observa em Pedro Mexia (cf. Duplo Império, 1999; Em Memoria, 2000; Avalanche, 2001; Eliot e Outras Observagöes, 2003), ora na escrita näo véem qualquer hipótese de redencäo, antes um instrumenta de céptica constatacäo da sua efemeridade num tempo que, de múltiplos modos, dedina a sua condicäo terminal, como o lembram os versos agrestes de valter hugo mäe (cf. Silencioso Corpo de Fuga, 1996; O Sol Pôs-se Calmo Sem me Acordar, 1997; Entorno a Casa sobre a Cabega, 1999; Egon Schiele - Auto-retrato de Dupla Encarnagäo, 1999; Trés Minutos antes de" a Maré Encher, 2000; Estou Escondido na Cor Amarga do Firn da Tarde, 2000; A Cobrigäo das Filhas, 2002; Útero, 2003), e um dos seus títu-los, de 2000, pôe em evidencia. Em Na Linha Divisória, livro vindo a lume em 2000 (a que se seguiu, dois anos depois, Novas Razöes), de Jose Ricardo Nunes, que näo está representado na antológia Anos 90 e Agora e é também autor de um ensaio sobre Luiza Neto Jorge publicado no mesmo ano (Um Corpo Escrevente - A Poesia de Luiza Neto Jorge, 2000), do que se trata, por entre alusôes e envios em sintonia com a orientacäo fre-quentemente intertextualista da poesia do ultimo quartel do século, é de näo desistir de encontrar «o mundo que há / no sanguinolento avesso [das palavras]». Uma linha underground, contra a corrente, num ou noutro caso vei-culada por conhecidos projectos editoriais a margem, como a & etc e Black Sun Editores, nunca deixou, a bem dizer, de marcar a sua presenca na poesia portuguesa das ultimas décadas. É ela que, prioritariamente, emerge, sob o signo do famoso título de Musil, virado, aqui, contra a poesia tentada pela correcgäo institucional, numa breve antológia de nove poetas de recente revelacäo (entre 1994 e 2002) organizada por Manuel de Freitas - Poetas sem Qualidades, dois dos quais, alias, incluidos igual-mente na antológia antes citada, Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral. A irónia, o humor, a irrisäo, o escárnio, praticamente ausentes de Anos 90 e Agora, säo, aqui, dominantes, e muito o resultado da verificacäo, já quase sem pathos, do «desvalor da poesia» no mundo contemporäneo (cf. posfácio do organizador). É bem urn tempo, o destes poetas, em que já näo há lugar para Utopias (cf. o olhar derrisório num dos poemas de Carlos Luis Bessa [cf. Legenda, 1995; Termómetro-Diário, 1998; Olhos de Morder Lembrar e Partir, 2000; Langam-se os Músculos em Brutal Oficina, 2000] sobre a «poesia militante») ou arquétipos (Ulisses näo cabe já senäo no piano da mais comezinha das moradas, como no-lo lembra um título de Jose Miguel Silva, Ulisses Ja Näo Mora Aqui, 2000 [outros títulos: O Sino de Areia, 1999]). Mais uma vez, por outro lado, a tentacäo da reabilitacäo do real quotidiano assoma na poesia portuguesa, e o eco de algumas das figuras tutelares dessa linha näo deixa de, aqui, se fazer ouvir, seja o da corrosiva ironia de Cesariny, ou o da intimidade sem história dos melho- r res poemas de Antonio Reis, como num texto em prosa dé Joäo Miguel Queirós (cf. Veludo 038, 1998). Varios dos textos aqui recolhidos däo conta, pela sua viruléncia, das correntes subterräneas que, em muitas épocas, näo deixam de pôr em causa o unanimismo cultural. E pela paródia que, em muitos casos, o fazem - urna paródia que pode incidir sobre um dos tiques mais visiveis na poesia dos Ultimos anos, o citacionismo culturalista, como se verifica nos textos do autor anónimo que encerra o volume. Diz-se num deles que näo há diferenca «entre um erro de ortografia e uma catástrofe nuclear» e o que, pela provocacäo extrema, fica, assim, ä mostra säo todas as formas de banalizacäo do mal a que o século há pouco findo nos habituou. Caberia ainda pôr em relevo, dentre os autores publicados nas ultimas trés décadas do século, na heterogeneidade dos seu percursos e propostas, os poetas Manuel Simôes, Amadeu Baptista, Isabel de Sá, Antonio Cabrita, Helga Moreira, José-Emílio Nelson, Joäo Luis Barreto Guimaräes, Miguel Serras Pereira, Manuel Fernando Goncalves e José do Carmo Francisco. 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MAGALHÄES, Joaquim Manuel, Os Dois Crepiísculos: Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981. i I Nairativa Fernando Pinto do Amaral 1 Sempře que abordamos as tendéncias contemporäneas, qualquer perspectiva corre o risco de surgir distorcida, já que a recepcäo crítica de muitas obras se encontra ainda numa fase evolutiva cujas coordenadas permanecem fluidas e susceptíveis de alteracöes. E se é certo que o facto de todos termos acompanhado, ao longo das ultimas duas ou trés gera-cöes, o mesmo ambiente histórico e cultural, pode ajudar a perceber melhor algumas dessas coordenadas, nem por isso deixamos de nos sen-tir prisioneiros de uma historicidade que tende a limitar o fôlego de eventuais conclusôes e a acentuar o carácter subjectivo de quaisquer comentários. Ainda assim, procuremos entäo rastrear algumas origens da ficcäo narrativa contemporänea em Portugal, sublinhando desde logo que - ao contrario do que sucedeu no domínio da poesia, com o aparecimento da revista Orpheu em 1915 -, näo é fácil detectar para a prosa um movi-mento cujo efeito de ruptúra ou impacto histórico lhe seja comparável. Seja como for, é dentro do proprio Orpheu que encontramos pelo menos dois escritores cuja importäncia se tornou marcante para lá da poesia -Máriojie Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros: no primeiro caso, a vertigem do excesso e o delírio sensorial patentes na sua poesia expri-miram-se também nos contos de Céu em Fogo (1915) ou na novela um pouco mais longa A Confissäo de Lucio (1914), obras carregadas de urna alucinante imaginacäo e cujas figuras por vezes andróginas exibem o drama de urna sexualidade flutuante, narcisista e quase especular, ques-tionada a cada momento e capaz de subverter a mentalidade burguesa dominante na época. Quanta a Almada Negreiros - também prolífico artista plástico, principal arauto portugués do futurismo e das vanguardas - repartiu--se pela poesia, teatro, danca, redigiu inúmeros manifestos, etc., e (para lá de um singularíssimo conto de 1917, A Engomadeira) escreveu em 1925 o romance Nome de Guerra, só editado 13 anos mais tarde, mas que logo se transformou num dos textos mais emblemáticos de um certo espírito modernista e febril vivido em Lisboa nos loucos anos 20. Rompendo com alguma tradicäo rural portuguesa, esta narrativa urbana ácompanha as muitas aventuras e desventuras do protagonista, o Antunes, ä medida que aprende a viver e a «fazer fotografias com a imaginacäo», desco-brindo no frenesi da grande cidade urn erotismo saboreado até ä ultima gota, sempře com a curiosidade e o espanto de quem bebe a vida em largos golos e aproveita cada nova experiéncia para entender melhor os paradoxos e as contradicôes do mundo que o rodeia, observando-o com um olhar mordaz e no entanto fiel a uma radical ingenuidade que o leva a acreditar nos seres humanos. Paralelamente ao grupo do Orpheu, podem identificar-se, no entanto, alguns vultos fundamentais para quern queira tracar o panorama literário de um período de certo modo coincidente com a eclosäo e o rápido ciclo politico da Primeira República (1910-1926), ultrapas-sando já claramente os ecos do naturalismo de um Abel Botelho ou um Carlos Malheiro Dias, ainda sensíveis na primeira década do Século XX, mas héřdados de um período anterior. Durante esses anos avulta, por exemplo, a obra multifacetada de um autor geralmente conotado com um requintado decadentismo de influéncias nietzschianas, Antonio Patricio, que - alem da poesia e sobretudo do teatro - nos deixou uma belíssima recolha de contos - Seräo Inquieto (1910) -, na qual deve real-car-se o ritmo e a musicalidade de uma prosa d uctil e apta a modelár per-sonagens täo inesquecíveis como a de «Suze», jovem cocotte francesa do Porto, para quem todas as desilusöes da vida parecem pormenores sem importäncia («Ca c'est un detail») e que protagoniza um dos meľhores textos presentes nesse livro. Também dotado de uma acentuada preocupacäo estética, Manuel Teixeira Gomes - que foi Presidente da República de 1923 a 1925 - cons-truiu uma obra de prosador repartida entre a crónica, o conto, o teatro, a literatura de viagens ou mesmo o pequeno romance Maria Adelaide (1938). Os seus volumes de narrativas, geralmente situadas no seu Algarve natal, mas também na Bélgica e Holanda, que o autor conhecia bem por motivos profissionais, mostram-nos a sua arte para descrever personagens e ambientes por vezes bizarros ou grotescos, sempre obser-vados através do olhar tolerante e cosmopolita de quem procura com-preender as motivacöes que levam os seres humanos a cometer actos aparentemente inexplicáveis. Num estilo desenvolto e äs vezes de uma limpidez quase clássica, Teixeira Gomes transmite-nos uma visäo do mundo tranquilamente epicurista, valorizando o prazer e a beleza que podemos colher da vida, incluindo o erotismo que percorre subtilmente toda a sua escrita. Ainda ao longo deste período, impöem-se dois outros nomes abso-lutamente essenciais para a renovacäo da novelistica portuguesa - Raul Brandäo e Aquilino Ribeiro. Em Raul Brandäo deparamos com o emö- 'cTonaďo'ŕelŕátó'ďe seres humanos ä beira dos seus mais inconfessáveis abismos, num estilo que näo envelheceu e que, além de uma compo-nente descritiva sobretudo notória em As Uhas Desconhecidas (1926) ou da atencäó a certas camadas populäres (Os Pobres, 1906; Os Pescadores, 1923), atinge o seu grau mais lancinante no Humus (1917), ainda hoje muito justamente considerado como um dos mais belos textos de toda a literatura portuguesa, e que consiste mima sequéncia de fragmentos datados ä maneira de um diário, exprimindo rudo isso a que poderia chamar-se a dor humana, o sofrimento humano. Carregada de um pathos de tipo expressionista, esta escrita ácompanha monólogos inferiores pró-ximos do inconsciente e atormentados por grandes questôes sem řěs- ^posta - o bem e o mal, a auséncia de Deus, a culpa e o remorso, etc. -, reflectindo a inquietacäo e o drama de personagens como o Gabiru, para quem «a vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade», e descobrindo nesse mundo onírico os supremos instantes de terror, assombro ou sobressalto em que a existencia parece revelar-se no seu mistério mais insondável. Ao mergulhar num terreno vizinho da loucura (ou de uma lucidez alucinada), descendo ao «humus» da alma humana, Raul Brandäo mistura o sublime, o patético e o grotesco numa vertigem que ainda hojenos perturba e nos faz ler os seus textos como dilaceran-tes gritos de angústia e desespero. Bem diferente foi o caso de AquilmqRibeiro, menos sombrio e mais voltado para uma atitude de celebracäo da vida em todos os seus mati-zes: partindo de uma ligacäo sempre muito forte ä sua regiäo, na Serra ďa Naveta nordeste de Viseu), Aquilino pretendeu, acima de tudo, e " segundcTas suas próprias palavras, «renovar o veio da Lingua [...] cor-rompido pela giria da urbe», ou seja, criar uma literatura que voltasse äs origens e fosse capaz de descrever com o mais palpitante realismo urn universo rural de que estaria afastada. O resultado surge em obras täo emblemáticas como Terras do Demo (1919) ou O Malhadinhas (primeiro inserto em A Estrada de Santiago, 1922), escritas numa linguagem muito criativa, quase impressionista, constituindo o vibrantě retrato de um mundo que ultrapassa a dimensä^Td^rpitoresco regionalista, ao mergu-Ihar-nos vigorosamente na Beira Alta dos principios do Século XX - mais "precisamente nas «Terras do Demo», nas serranias da Lapa ou da Nave - e na sua rústica paisagem natural e humana, onde as personagens gan-ham forca pela exuberäncia dos seus instintos e impulsos mais pri- mários, que se integram, afinal, na gesta de uma natureza sempře bor-bulhante e indomável. Ao longo da sua carreira, todavia, Aquilino näo ficará preso a esse impulso iniciál: sem nunca abandonar o seu amplo projecto de um rea-jismo por vezeš picaresco, vivendo da forca vital das suas figuras populäres e glorificando a sua liberdade - por exemplo ao níveída dimensäo erotica que atravessa quase toda a sua obra, longe do tradicionaí peso do pecado cristäo -, o autor enveredará por caminhos de maior densi-dade e deixar-nos-á, já na fase final do seu percurso, romances täo cen-trais como A Cam Grande de Romarigäes (1957) - que percorre nove gera-cöes de urna família minhota - e Quando os Lobos Uivam (1958), que aborda as relacöes sociais e comunitárias num ambiente rural em trans-formacäo. Mais enquadrável num desejo de realismo social que viria depois a desembocar no movimento neo-realista e a obra de Ferreira de Castro: com uma infäncia dificil, órfäo de pai muito cedo, o autor emigroupara o Brasil aos 12 anos e aí trabalhou num seringal da Amazónia, reco-lhendo uma dolorosa experiéncia de miséria que mais tarde pôde apro-veitar e transpor para a escrita. Regressado a Portugal em 1919, publi-cou Emigrantes (1928) e A Selva (1930), romance que viria rapidamente a popularizá-lo e a ser divulgado através de numerosas reedicôes e tra-ducôes por todo o mundo. Trata-se de um livro essencialmente autobiografia), contando-nos as múltiplas peripécias de um jovem emigrante no Brasil, trabalhador na selva amazonka e em navios mercantes, sempre submetido ä exploracäo de engajadores sem escrúpulos. Sem alcancarem o nível literário da prosa de Aquilino nem a penetracäo psicológica de alguns presencistas, os romances de Ferreira de Castro valem sobretudo pelo ritmo dinämico que imprimem ä accäo e pela palpitacäo vital de urna realidade muito dura que o autor conheceu por dentro. 2 Ora encarada como veículo de um «segundo modernismo», ora como relativo recuo ou «contra-revolucäo» do vanguardismo do Orpheu, a revista presenga (Coimbra, 1927-1940) influenciou decisivamente a atmosféra literária portuguesa do seu tempo, correspondente ä fase de implantacäo e consolidacäo do regime do Estado Novo. A sua defesa de uma «literatura viva», próxima das pulsöes mconscientes, que expri-misse a personalidade original de cada artista, veio desde logo dar fřu- tos na poesia, mas igualmente em algurhas experiéncias assinaláveis no campo novelístico, ai avultando, por exemplo, Elói ou Romance numa Cabega (1932), de Joäo Gaspar Simöes, sem dúvid¥maisl:onRecido como crítico literário, mas que com este livro procurou elaborar urn romance introspectivo, na linha psicologista geralmente associada aos presencistas, acompanhando 24 horas na vida de um hörnern ciumento. No seio do mesmo grupo, salientem-se ainda as narrativas dejosé Regione Branquinho da Fonseca: para o primeiro, deve destacar-se, acima de tudo - e sem menosprezar títulos como O Principe com Orelhas de Burro (1942) ou o extenso ciclo romanesco A Velha Casa (1945-1966) -, O Jogo da Cabra-Cega (1934), romance confessional ao longo do qual se projectam muitas das obsessöes que perseguiram Regio (também visí-veis na poesia ou no teatro), ligadas a um agudo conflito interior entre o humano e o divino, o bem e o mal, a carne e o espírito, nesse caso cen-tradas nos irresolúveis dilemas éticos do protagonista, Pedro Serra, numa cidade de provincia, palco do seu itinerário de descoberta interior pós-adolescente, desdobrando a sua personalidade num alter ego, Jaime Franco, espelho como que demoníaco de si mesmo. No que diz respeito a Branquinho da Fonseca, distinguiu-se sobretudo como um ficcionista näo muito prolífico, mas capaz de criar atmos-feras únicas e muito sugestivas, sobre as quais fica a pairar uma aura de mistério que o leitor deseja desvendar e que as coloca por vezeš ä beira do fantástico. É o que sucede na belíssima novela O Baräo (1942; inicial-mente publkada sob o pseudónimo de Antonio Madeira), narrando-nos a viagem de um inspector escolar a uma zona remota da provincia, onde irá encontrař, na noite da chegada, a figura de um aristocrata excéntrico e decadente, o velho «Baräo», que pouco a pouco se vai tornando enig-mático, exercendo um fascínio cada vez maior sobre o narrador e adqui-rindo um estatuto mítico, quer pelo modo como domina o seu estranho microcosmos, quer pela magia dessa noite quase irreal em que ambos iräo depor uma rosa no «castelo da Bela-Adormecida». No ämbito da geraeäo dita da presenga e com ela partilhando algu-mas afinidades temáticas, pode referir-se Jose Marmelo e Silva, cujas narrativas giram sobretudo em torno da problemática da adolescéncia, sendo obrigatório apontar o seu romance de estreia (Sedugäo, 1937) como um dos mais perturbadores alguma vez escritos sobre esse tema, contando-nos na primeira pessoa a história do jovem Eduardo Forjaz, defensor de uma libertaeäo moral vivida ao nível do corpo e do desejo sexual, princípio alias posto em prática com as suas namoradas. Apesar de uma aparente irregularidade estilistica (ou por causa disso mesmo), este — . / ' / romance - cuja accäo decorre entre Coimbra e urna pequena aldeia Serratia - distinguiu-se pela profundidade da sua penetracäo psicológica e pelo modo como soube abordar os abismos e as contradicöes da sexua-lidade humana. Também revelador do aprofundamento dos mesmos tópicos será o romance Adolescente Agrilhoado (1948). Personalidade literariamente mais relevante e completa foi a de Miguel Torga, que no campo novelístico - o que exclusivamente agora nos interessa'- desce äs suas origens transmontanas para construir numerosos contos (Bichos, 1940; Montanha, 1941; Novos Contos da Monta-nha, 1944; etc.) preocupados em retratar todo um universo rural carre-gado de simbolismo e de mágia ao nível das ocupacöes da vida agrícola e da relacäo com as forcas da natureza, num olhar sobre o mundo para o qual se vulgarizou a utilizacäo do adjectivo «telurico». Quer nessas his-tórias breves e impregnadas de um profundo significado moral, quer em narrativas mais longas - por exemplo a sua notáveí autobiografia em cinco volumes, A Criagäo do Mundo (1937-1981) -, deparamos sempre com uma prosa viva, que manifesta urna firme Jigacäo a Portugal e äs características da terra portuguesa, além de uma irredutível fideli-dade aos elementos naturais (as pedras, os animais, as plantas, etc.), em paralelo com urna tendencia para estabelecer analogias com os eternos simbolos biblicos ou, mais do que tudo isso, um desejo de integridade moral e de justica universal que nunca abandonou este autor, embora recortado sobre um fundo por vezes algo pessimista quanto ä natureza humana. Praticamente contemporänea dos presencistas, Irene Lisboa é uma personalidade difícil de classificar como claramente ficcionista, já que os seus textos de prosa se situam, regra geral, em zonas de interseccäo geno-lógica entre a crónica, o diário e a autobiografia, ostentando porém uma dimensäo narrativa por vezes mais evidente (Uma Mäo Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma, 1955; Queres Ouvir? Eu Conto, 1958), mas em qualquer caso apoiados num estilo inlimista e disperso, ao sabqr das flu-ruacöes quotidianas. Trata-se de uma obra única na nossa literatura, cap-tando a «paisagem intima», a «paisagem dos sentimentos», com uma grande liberdade, sem restricöes temáticas e oferecehdo-nos o intros-jjectivo retrato de uma mulher cuja vida interior se amplifica e diTataT quer por accäo de urna memoria povoada de reminiscencias por vezes alusivaš ä pessoas concretas (äs vezes designadas por iniciais), quer^err^ virtude de um pendor reflexivo pronto a divagar a propósito disto ou daquilo, numa permanente inquietacäo só comparável, entre nós, ao desassossego pessoano, e que vai analisando sentimentos como o da soli- däo (cf. Solidäo, 1939), transformando a escrita num sismógrafo emocio-nal que regista as mais ínfimas variacôes de estados de alma. Ä mesma geracäo pertenceu Vitorino Nemésio, um dos maiores poetas e ensaístas do Século XX, estreado na ľiccäo em 1924 com um volume de contos (Pago do Milhafre), cujo universo acoriano haveria de atingir o seu momenta mais alto em Mau Tempo no Canal (1944), livro que é hoje considerado urna das obras-primas da literatura portuguesa: impregnado pela atmosféra faialense dos anos 20, este romance conta--nos bem mais do que a história de Margarida Clark Dulmo e do seu magoado amor por Joäo Garcia, bem mais do que as tensas relacóes entre as duas famílias, conseguindo apresentar-nos, mercé de urna estrutura complexa, quase orquestral, mas sempre equilibrada, urna panorämica da sociedade acoriana, cujas flagrantes imagens transcendem porém qualquer regionalismo e confluem numa visäo universal das paixôes e dos medos, dos entusiasmos e das angústias que animam os seres huma-nos. Deve ainda salientar-se a capacidade de fundir com harmonia um agitado ambiente exterior e urna subtil dimensäo psicológica, habitando "sotoetudo essa rapariga enigmática e «com veneta» que é Margarida, espécie de quintesséncia ferninina, interrogada nos seus sonhos, mas também nos dilemas concretos da sua vida. Ainda enquadráveis neste periodo säo dois escritores que se salientaram sobretudo como excelentes contistas - Joäo de Araújo Cor-reia e Domingos Monteiro -, ambos oriundos de Trás-os-Montes-e--Alto-Douro: cultivando na sua escrita urna linguagem vernácula her-dada da melhor tradigäo literária oitocentista (nomeadamente de Camilo Častelo Branco), Joäo de Araújo Correia aproveitou a sua expe-riéncia de médico de provincia para nos apresentar alguns retratos muito vivos do que era a sociedade rural de Entre Dourp e Minho na primeira metade do Século XX, explorando-a através de personagens e tipos populares, burgueses ou aristocráticos, na rudeza das ambicôes ou das misérias de urna fauna humana dissecada com um grande espí-rito de observacäo realista (Contos Bdrbaros, 1939; Contos Durienses, 1941; etc.). Sabendo captar flagrantes instantäneos dessa permanente luta pela vida, os contos de Araújo Correia transcendem todavia o regionalismo ou ojrritoresco do cenário duriense gracas a um sentido de humanidade que os eléva e lhes confere urna aguda dimensäo ética. Urna apreciacäo deste género poderia igualmente aplicar-se a Domingos Monteiro, estreado em 1943 com um volume formado por trés häŕrativás - Enfermaria, Prisäo e Casa Mortuária - e autor de histó-rias bem representativas de um ambiente muitas vezes rural, cujas situa- goes parecem arrastar as personagens para certas atitudes extremas, imbuidas de um dramatismo que em algumas ocasiöes extravasa para lá dos habituais limites da verosimilhanca e se aventura nos reinos do fantástico ou do sobrenatural (Contos do Dia e da Noite, 1952; Histórias Castelhanas, 1955; etc.). Num contexto diverso se situa o percurso narrativo de Jose Rodri-gues Miguéis, inicialmente ligado ä revista Seara Nova, publicando a sua primeira novela em 1932 (Páscoa Feliz) e exilando-se depois por várias décadas nos Estados Unidos da America: retratando como poucas a socie-dade do seu tempo, as histórias de Miguéis oferecem-nos uma escrita extremamente fluente e capaz de desenhar com argúcia e nitidez, por vezes em poucas palavras, os tracos essenciais das personagens ou dos ambientes onde se movem, aliando ä consciéncia social um olhar terno e simultaneamente irónico sobre realidades que väo da adolescéncia lis-boeta, passada em ambientes de bairro (Saudades para Dona Genciana, 1956), ä vida nova-iorquina das comunidades imigrantes, passando pela Bélgica, onde decorre a accäo da curta novela «Leah», uma das melho-res do autor e inserida num conjunto com o mesmo titulo (1958). Ai se coloca com acuidade o dilema moral do protagonista, um portugués dividido entre e seducäo da jovem Léah e a cobardia que o impede de ser fiel a esse amor, deixando-lhe um amargo trávo de arrependimento. Ao longo de toda a sua obra - na qual sobressai ainda o romance A Escola do Paraíso (1960) -, a visäo de Miguéis exprime sempře a conjugacäo entre a densidade psicológica das personagens e uma nocäo das desigualda-des e hipocrisias sociais que haveria de abrir carninho ao neo-realismo. 3 A partir dos anos 40 o movimento cuja influéncia se tornaria rapi-damente dominante na paisagem literária portuguesa, tanto na poesia como na novelística, ficou conhecido sob a designacäo de j o surre-alismo portugués legou-nos igualmente obras que acrescentaram forca e diversidade ä nossa prosa. Ao defenderem urna libertacäo total da escrita a todos os níveis - que em ultima análise tenderia a abolir fron-teiras entre géneros literários -, os surrealistas desejaram de čerta maneira reatar o espírito vanguardista do Orpheu e contribuíram decisi-vamente para a reinvencäo da linguagem, facto visivel em obras poéti-cas como as de Mário Cesaririy ou Alexandre O'Neill, para citar apenas as mais relevantes. Deve realcar-se, no entanto, o papel ai desempenhado por Antonio Pedro, uma das figuras centrais do teatro portugués do Século XX (sobretudo como encenador), que esteve também ligado äs artes plásticas e foi um dos mentores do Grupo Surrealista de Lisboa nos anos 40. Classificado como «romance» pelo autor e dedicado «ao Senhor Aquilino Ribeiro», Apenas uma Narrativa (1942) é habitualmente consi-derado um dos melhores e raros exemplos de prosa surrealista em Portugal. Esse pequeno livro tem por base uma história passada no Minho, mas cujas personagens se väo dissolvendo numa paisagem quase oní-rica, onde os lugares concretos - a vila de Caminha, o rio Coura, a Serra d'Arga, etc. - se transfiguram e atingem urna dimensäo poetka que sur-preende o leitor, gracas ä profusäo de imagens insólitas e a urna notável criatividade da linguagem. Entre outros prosadores de algum modo ligados ao surrealismo ou influehciados pela visäo surrealista do mundo cumpre mencionar aqui Natália Čorreia (decerto mais consagrada na poesia), Mário-Henrique Leiria - cujos Confos do Cin-Tonic (1973) se tomaram rapidamerrte um livro de culto, gracas ä sua imaginacäo delirante^q sentido de humor e ä nocäo de certos absurdos quotidianos - e ainda Luiz Pacheco, escritor assumidamente libertino e marginal, cultivando uma aura de misan- tropo e um temperamente por vezeš muito cáustico, em cujos múltiplos escritos se destaca a narrativa Comunidade (1964). Dedicado a Mário Cesariny de Vasconcelos, «poeta do corpo», e tendo conhecido sucessi-vas reedicöes por vezeš ilustradas, esse pequeno texto logo se tornou célebre pela realidade quo evoca: cinco pessoas dormindo na mesma aima - o narrador, acompanhado de Irene, de um bebé recém-nascido e de dois řniúdos, a Lina e o Zé. Descrevendo a cama e as posicöes dos que nela se deitam, Comunidade mostra-nos uma situacäo aparentemente pro-míscua, mas sempře observada com uma terrível lucidez e embebida numa ternura animal que acaba por ligar as personagens através do calor dos seus corpos ou do suor da sua pele. Qualquer olhar que hoje lancemos sobre as novas correntes dos anos 50 tenderá, todavia, a sublinhar a importäncia da filosofia existen-cialista para muitos autores desse periodo, quando em Portugal se agu-dizou a descrenca no regime de Salazar, cada vez mais esgotado, e, no piano mundial, se exacerbou a Guerra-Fria, com a ameaca nuclear. Con-dicionada por tal atmosféra, a literatura dessa época corresponde frequentemente ao reflexo de uma angústia - ora ligada ao absurdo e ä irri-säo do quotidiano, ora com laivos metafísicos - alias inerente ä condicäo humana e aos temas postos em jogo em obras existencialistas täo lidas como as de Jean-Paul Sartre ou Albert Camus. Um dos escritores que melhor soube levar a cabo essa profunda indagacäo do destino humano e do aparen^te absurdo da nossa presenca nolnundo foi sem dúvida Vergílio Ferreira: oriundo de um neo-realismo logo posto em causa a partir do romance Mudanga (1949) e também de Manila Submersa (1954) - pungente regresso ä infäncia reprimida num seminário da Beira Interior, com aspectos autobiográficos -, Vergílio Ferreira consagrou-se sobretudo com Aparigäo (1959) e desde esse momento os seus romances interrogaram, sempře com um misto de ternura e lucidez, o significado mais amplo e como que espectral da existéncia humana - aí se destacando, entre outros, Estrela Polar (1962), Alegria Breve (1965), Nítido Nulo (1971), Para Sempře (1983, talvez o seu mais belo livro), Atéao Fim (1987, emocionada retrospectiva da relacäo entre um pai e um filho), Em Nome da Terra (1990, uma das melhores reflexöes sobre a ques-täo do envelhecimento) e finalmente Na Tua Face (1994). Gracas a uma escrita magnífica e por vezeš de tonalidades lírkas, por onde perpassa a «angustia universal e metafisica» de que falava Hermann Broch, as situacöes-limite das obras de Vergílio Ferreira pöem-nos quase sempře diante das encruzilhadas da vida e da mořte, perante o monólogo de um hörnern no lirniar dessa transfiguracäo, no absolute dessa evidencia, face a face consigo mesmo e com a solidäb que lhe per-mite proceder ao impiedoso balanco da sua vida. Num mundo deser-tado por Deus (que faz sentir o peso da sua auséncia), o mais íntimo e quase inconfessável refdgio dos protagonistas masculinos de Vergüio Ferreira reside na forca de um grande amor capaz de resistir a tudo, fora do tempo e do espaco, na eternidade de uma memoria quase onírica onde aparecem idealizadas as imagens de certas mulheres sempře um tanto irreais ou inacessíveis, mas por isso mesmo projectadas num horizonte infinite que acaba por resgatar o conjunto da existencia. Revelado em 1952 com A Porta dos Limites, Urbano Tayjires^Rqdri-gueschegou ä maturidade em volumes de contos como Uma Pedrada no Choreo (1958) ou As Aves da Madrugada (1959), enquanto cultivava também o romance (Bastardos do Sol, 1959, talvez o seu livro mais marcante; Os Insubmissos, 1961; Violeta e a Noite, 1991; O Supremo Interdito, 2000). Autor muito prolífico e sempře atento ä evolueäo da sociedade portu-guesa, Urbano Tavares Rodrigues partilha aindai comľo_ne"o:reaUsmo^vf^ dentes afinidades ideológicas derivadas da sua formaeäo marxista, mas insereve-se já no quadro do existencialismo pela atengäo que prestaX interioridade de cada uma das personagens, por vezeš adensada em vir-tude de uma dimensäo claramente erotica que acaba por individualižar o seu universo ficcional. Menos definíveis do ponto de vista ideológico säo os contos e nove-las da eseritora que acompanhou Urbano ao longo de toda a vida, Maria Judite de Carvalho: situados geralmente em cenários da pequena bur-guesia urbana, os seus Textös třansmitem-nos o doloroso sentimente de uma solidäo quotidiana quase sempře sentida por mulheres anónimas e sem horizontes para as suas vidas, que todavia as aceitam com resigna-cäo e espírito de saerifício {fanta Gente, Mariana..., 1959; PaisagemTem Barcos, 1963; Os Armários Vazios, 1966; A Seta Despedida, 1995). Impreg-nadas de uma funda melancolia, as narrativas de Maria Judite de Carvalho oferecem-nos, assim, num estilo sóbrio e subtilmente irónico, os pequenos mundos onde vegetam mulheres solitárias, cansadas e quase_ alheias a si mesmas, num clima de surda frustraeäo, feito de realidades aparentemente ínfimas e banais, que contribui para sublinhar uma angústia existencial e um sereno desespero em que as personagenspare-cem ignorar «o porqué de estar neste mundo ä espera de coisa nenhuma». Um fôlego diferente é o que se respira nos inconfundíveis livros daquela que é hoje considerada a mais singular vocaeäo feminina de romancista do Século XX, Agustina Bessa-Luís, consagradaapartir da publicacäo ď A Sibila em 1954 (em que avulta a forca de duas persona- gens femininas, Quina e a sua herdeira Germa) e desde entäo fecunda autora de várias dezenas de romances, entre os quais podem destacar--se Os Incuräveis (1956), Ternos Guerreiros (1958), As Relagöes Humanas (sequéncia romanesca em trés volumes, 1964-1966), As Fúrias (1977), Fanny Owen (1979, fascinante reconstituicäo de um funesto triängulo amoroso do ultra-romantismo, em que partieipou Camilo Castelo Branco); Os Meninos de Oiro (1983), Prazer e Glória (1988), Vale Äbraäo (1991, dando corpo a uma Ema Bovary portuguesa no ambiente do Alto Douro), Um Cäo que Sonha (1997), O Comum dos Mortais (1998, a partir da figura de Salazar), ou a recente trilógia O Princípio da Incerteza, consti-tuida pelos romances Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espagos em Branco (2003). Detentores de uma extrema clarividéncia quanto ä natureza humana e äs forcas que a movem, os romances de Agustina säo como que atraídos por atmosferas e personagens magistralmente recriadas por uma escrita aberta ao segredo que parece mové-las entre os fios das enigmáticas histórias em que se enredam, presas a urn destino miste-rioso, cuja intensidade mágica se articula com a sabedoria quase perversa de um discurso sempře aberto a um delírio de congeminacôes, a um permanente retomar de hipóteses, suposicöes, trabalhos da memoria e da imaginaeäo. Desse modo, ecoa em Agustina um sopro irracio-nal, expresso através de uma linguagem que vai tecendo sabiamente a sua teia sem fim, quase sem rumo certo, ao sabor de fulguracöes que se desdobram em luminosos aforismos, cheios de um Witz muito especial, um espírito que observa o lado trágico mas também irrisório das rela-côes afectivas e das paixôes que acabam por comandar os actos mais decisivos das personagens. Além de Agustina Bessa-Luís ou Maria Judite de Carvalhcva partir de meados do Século XX comecou a surgir, pouco a pouco, uma pleiade deliutoras^adavelTmáís importantes no panorama novelístico portu-guěsTalsělhcluem, entre outras, Ilse Losa - alemä reŕugiada do nazismo, que testemunha a sua atroz experiéncia no romance autobiográfico O Mundo em que Vivi (1949); Isabel da Nóbrega - dotada de uma fina sen-sibilidade para analisar as relacôes humanas (Viver com os Outros, 1964); Natália Nunes (Regresso ao Caos, 1960) e ainda duas eseritoras cujas vozes se individualizaram relativamente cedo - Graca Pina de Morais e Fernanda Bqtelho: enquanto na obra da primeira avulta, acima de tudo, o romance A Origem, publieado em 1958 - excelente pela profundidade de penetracäo psicológica das personagens, centrado numa veľha casa rural e acompanhando ao longo de várias geracôes, no seu clima denso, a saga de uma família cheia de enigmas e de paixôes ocultas, quase ä maneira d'O Monte dos Vendavais -, a escrita de Fernanda Botelho (inicialmente ligada ä poesia e ao grupo da revista Távola Redonda) sobressai desde logo pela sua notável capacidade para criar urna arquitectura romanesca quase geométrica, sem que tal implique qualquer menosprezo pela espessura das personagens ou para a sua evolucäo interior (O Ángulo Raso, 1957; A Gata e a Fabula, 1960; Xerazade e os Outros, 1964). Um dos méritos de Fernanda Botelho consiste, pelo contrário, na faculdade de articular habilmente vários pianos de desenvolvimento da intriga, man-tendo intacta a irredutibilidade psicológica das personalidades nela envolvidas, e mostrando simultaneamente um olhar irónico apto a des-montar o jogo tantas vezes hipócrita ou mesquinho das relacôes sociais, faceta visível, por exemplo, num dos seus romances da fase mais tardia (Esta Noite Sonhei com Breughel, 1987). Antes de transitarmos para outro periodo, convirá chamar a aten-cäo para o lugar que dois dos maiores poetas de meados do século -Sophia deMelbBreyner Andresen e Jorge de Sena - ocuparam também na ficcäo narrativa: assim, além do sortilégio das suas belíssimas histó-rias infantis - das mais lidas por múltiplas geracôes de jovens -, Sophia publicou em 1962 os seus Contos Exemplares, cujo luminoso discurso con-segue fazer-nos vibrar no mesmo comprimento de onda das suas personagens e nos transmite sempre urna carga moral assente na denúncia das injusticas e numa ética da inteireza ou integridade humanas, capa-zes de triunfar sobre os voláteis e passageiros ídolos de cada tempo ou cada sociedade. Mais complexo é o caso de Jorge de Sena enquanto ficcionista, cujos contos (Andangas do Demónio, 1960; Novas Andangas do Demónio, 1966; Os Gräo-Capitäes, 1976) reflectem urna interseccäo entre um realismo crí-tico por vezes quase šärcástico e, por outro lado, um pendor onírico de inspiracäo quase surrealista, que chega mesmo a intrometer-se no fan-tästico - vejam-se, a título de exemplo, as rocambolescas aventuras d'O Ftsico Prodigioso (novela editada separadamente em 1977). A sua obra de maior fôlego foi, contudo, o romance Sinais de Fogo (1979, póstumo), narrativa destinada a iniciar um ciclo intitulado Monte Cativo, que deveria cobrir a vida portuguesa entre 1936 e 1959. O periodo nele abrangido centra-se no Veräo de 1936 e no ambiente balnear da Figueira da Foz, invadida por espanhóis acossados pela Guerra Civil, recriando todo o contexto dessa época e desse lugar cuja tranquilidade provinciana é per-turbada por factos decisivos para o rápido amadurecimento psicológico do protagonista, um adolescente no qual podem reconhecer-se aspectos biográficos do proprio Jorge de Sena. Tais factos dizem sobretudo res-peito ä revelacäo do amor e ä tomada de consciéncia politica, transfor-mando o romance num percurso de descoberta de um jovem que pela primeira vez ganha contacto com os desejos, medos, paixöes e angústias de que se forma a vida humana. 5 Á medida que entramos na década de 60, abre-se um periodo em que a literatura portuguesa mais representativa será influenciada pelo pano de fundo de duas situacöes, legiveis no contexto nacionál e inter-nacional: por um lado, temos o ambient^pjrático portugués, marcado pelo conflito que opöe as novas geracöes universitárias ao regime da ditadura, desta vez por causa da guerra nas colónias africanas, facto que irá acelerar a sua decomposicäo e culminará no 25 de Abril de 1974; por outro lado, avulta a crescente importäncia das correntes teóricas estru-turalistas, que acentuam a componente linguistica dos textos íiterários e prestam atencäo ä escrita em si mesma (mais do que aos autores que a produzem), concebendo a Htoatura mais como pesquisa do que simples-mente como expressäo de sentimentos ou universos individuals. É neste enquadramento teórico e social que teräo de entender-se algumas tendéncias pouco a pouco reforcadas por um certo declinio da critica literária mais tradicional - personificada na figura de Joäo Gaspar Simöes -, impulsionando a novelística portuguesa rumo a novos cami-nhos, alias paralelos ao que sucedia noutras latitudes. Repare-se, como exemplo alias tipico dessa atitude, na tentativa de introducäo em Portugal do «nouveau roman» francés, já muito em voga, através das propos-tas de um «novo romance» formuladas por dois escritores dessa época - Alfredo Margarido (No Fundo deste Canal, 1960; A Centopeia, 1961) e Artur Portela Filho (Avenida de Roma, 1961) -, ambos mais tarde conhe-cidos pelo seu trabalho respectivamente crítico e jornalístico, mas de qualquer modo sem grandes seguidores no piano da ficcäo. Como näo terá ocorrido, todavia, uma ruptura estética muito nitida (ou pelo menos täo clara como no campo da poesia), devem aqui refe-rir-se alguns autores vindos já de um periodo anterior, mas que apenas agora vém a alcancar a sua plenitude literária e um indiscutivel reco-nhecimento publico: comecemos, assim, por Ruben A., que, dedicando--se também ä pesquisa historiográfica sob o seu nome civil (Ruben Alfredo Andresen Leitäo), se afirmou sobretudo na ficcäo, aplicando cer- / 7 tas ^ova?068 estruturais em algumas narrativas e analisarldo com men-talidade aberta e cosmopolita as idiossincrasias portuguesas. O seu pri-meiro romance (Caranguejo, 1954) apresenta a caracteristica original de um encadeamento invertido, i.e., fazendo com que a história vá recu-ando cronologicamente ä medida que avancam as páginas. Dando-nos igualmente uma dinämica autobiografia em trés volumes (O Mundo a Minha Procura, 1964-1968), o autor publicou ainda Silencio para 4 (romance de 1973), embora no conjunto das suas obras sobressaia A Torre da Barbela (1964), romance estranho e desconcertante, centrado em torno de um velho solar ou castelo minhoto, a «Torre da Barbela», por onde desfilam os oito séculos da História de Portugal através de personagens vivas e mortas que dialogam umas com as outras num ambiente fantas-magórico e de recorte quase surrealista. O caso mais flagrante de um escritor capaz de aproveitar com éxito a heranca do neo-realismo para a renovar de um modo muito pessoal, conseguindo fundi-la com uma nova perspectiva social mais vasta e mais complexa, já urbana e cosmopolita, foi o de Jose Cardoso Pires: revelado em 1949 com Os Caminheiros e Outros Contos, o autor prosseguiu na via das pequenas narrativas (Histórias de Amor, 1952; fogos de Azar, 1963), mas veio a consagrar-se através de romances como O Anjo Anco-rado (1958), O Hóspede de Job (1964), Balada da Praia dos Cäes (1981, de enredo policial) ou Alexandra Alpha (1987, captando muito bem alguma vida nocturna de Lisboa e as desilusöes pós-revolucionárias). Detentor de uma escrita contida e cirurgica, avessa ao derrame sentimental e ä profusäo de adjectivos, Cardoso Pires foi influenciado pelo dinamismo de alguma narrativa norte-americana e soube aliar, de modo inédito entre nos, uma técnica desenvolta da montagem e da elaboracäo roma-nesca - com uma boa nocäo da oralidade e dos diálogos, incorporando habilmente cenas do quotidiano - a uma fulgurante capacidade para retratar fielmente e com um fino sentido de humor certos comporta-mentos ou mudancas sociais das ultimas décadas. Para lá da especificidade do seu livro derradeiro - De Proflindis, Valsa Lenta (1997), doloroso relato da semi-inconsciéncia e progressiva recuperacäo de um acidente vascular cerebral que vitimou gravemente o proprio autor - o romance decisivo na obra de José Cardoso Pires é certamente O Delfim (1968), fruto da investigacäo meticulosa e quase jor-nalística de um crime passional cuja verdade permanece nebulosa e envolta num mistério por desvendar. Deslocando-se ä fictícia aldeia da Gafeira - perto de uma lagoa que esconde o segredo do que realmente aconteceu -, o narrador vai procedendo a conjecturas a partir de teste- munhos exteriores e da sua propria intuicäo, escavando e interrogando um passado recente onde avulta a sombra tutelar da famflia Palma Bravo, projectada nas figuras do criado Domingos, de uma mulher ainda jovem e fascinante, Maria das Mercés, morta em estranhas circunstän-cias, e do seu marido, o engenheiro Tomas Palma Bravo, o «delfim» -personagem que adquiriu um estatuto mitico, na medida em que sim-boliza o'marialvismo portugues, mas para lá da qual se tece em filigrana o destino de uma sociedade tradicional em decomposicäo. Outro autor que depressa encontrou o seu timbre de voz pessoal foi Augusto Abelaira, cujo romance de estreia (A Cidade das Flores, 1959, descoberta do amor e da consciéncia individual num ambiente politico opressivo) conserva ainda uma frescura e uma inquietacäo susceptíveis de interpelar o leitor de hoje. O seu percurso singularizou-se ao longo de diversos romances por vezes de estrutura complexa e inovadora (Os Desertores, I960; As Boas Intengöes, 1963; Enseada Amena, 1966; Bolor, 1968, romance fragmentário e muito interrogativo, inspirado num titulo de Carlos de Oliveira; Sem Tecto Entre Ruinas, 1978; Ö Bosque Harmonioso, 1982; Outrora Ägora, 1996, partindo de um verso de Pessoa), gragas a uma escrita que, ao iluminar com espontaneidade os conflitos, as hesitacöes ou as dúvidas das personagens, evolui numa perspectiva critica, Mdica ou irónica, que a leva a reflectir sobre o mundo contemporäneo, nunca deixando de exibir um inteligente e por vezes amargo sentido de humor. Constituindo a revelacäo excepcionalmente precoce de Almeida Faria, antes de completar 20 anos, Rumor Bronco (1962) surgiu no ambient? cultural portugues como urn fulgurante meteoro que contribuiu para renovar a narrativa dessa época: estruturado numa sequéncia de sete fragmentos e escrito numa torrente discursiva próxima do monólogo interior, o livro surpreende-nos pela inovacäo da sua voz, que foge ao tradicional encadeamento narrativo, mas deixa, apesar disso, entrever certas fases decisivas no percurso biográfico do protagonista, Daniel Joäo, quer no que toca ä sua aprendizagem erotica, quer no seu empe-nhamento numa luta política revolucionária em que parece desdobrar--se noutro Daniel, espécie de reflexo ou projeccäo do primeiro, num efeito de dupla personalidade. Elogiosamente prefaciado por Vergilio Ferreira, este livro viria depois a dar lugar ao célebre ciclo da Tetralogia Lusitana, que acompanharia a saga de uma famflia alentejana ao longo dos anos 60 e 70 (Paixäo, 1965; Cortes, 1968; Lusitänia, 1980; Cavaleiro Andante, 1983). Mais recentemente, Almeida Faria dar-nos-ia ainda o retrato satirico das peripécias de um estranho Don Juan portugues (O Conquistador, 1990). Paralelamente a Rumor Branco, é hábito referir a importäncia ino-vadora de dois livros também aparecidos logo no dealbar dos anos 60 e curiosamente publicados por poetas: O Mestre (1963), de Ana Hatherly - perturbador diálogo entre um «Mestre» e a sua «discipuia», numa ver-tiginosa dialéctica - e Os Passos em Volta (também de 1963),Jamoso volume de pequenas narrativas em que Herberto Held^rsurpreende o leitor pelos ängulos de visäo inesperados com que vemos desfilar dife-rentes situacöes de um quotidiano por vezeš insólito, numa linguagem radicalmente nova no contexto da prosa portuguesa do seu tempo, alias dépois retomada noutro livro igualmente inclassificável - Photomaton & Vox (1979). Este rumo de risco e descoberta virá a aprofundar-se e a atingir um dos seus pontos mais altos na obra daquela que tem sido considerada como uma das autoras mais irradiantes da literatura portuguesa con-temporanea, Maria^eUiodaCosta - talvez a que mais longe soube levar esses procešsoTde desconstrucäo da escrita. Revelada em 1966 com um volume de contos (O Lugar Comum), a autora veio a destacar-se sobre-tudo a partir de Maina Mendes (1969), livro que marcou uma tendencia de ruptúra com o encadeamento narrativo tradicional, do quaí se afasta decisivamente, optando por um discurso rente ao fluxo do pensamento e äs pulsöes mais inconscientes. O que se vai desvelando ao longo das suas páginas, num estilo torrencial e fulgurante, consiste na aprendiza-gem interior de Maina Mendes, personagem feminina que ultrapassa a sua mudez iniciál e que, na dolorosa tessitura das suas relacöes com a mäe ou com os homens, identifica o poder oculto da sua f ala balbuciante, por vezes próxima da alucinacäo ou do delírio, mas indissoluvelmente ligada a um ancestral sentimento de revolta que a leva a libertar-se de todos os constrangimentos sociais burgueses e de alguns dos seus valo-res morais instituídos. O percurso de Maria Velho da Costa alargou-se depois com dois livros dificilmente enquadráveis segundo os modelos genológicos tradi-cionais, entre a crónica e uma escrita quase lírica - Desescrita (1973) e Cravo (1976) - prosseguindo sempre de um modo surpreendente ao longo das ultimas décadas com os romances Casus Pardas (1977), Lucia -lima (1983), Mz'ssa in Albis (1988, exprimindo uma das mais belas e per-turbadoras visöes do amor), o volume de contos Lores (1994), de inser-cäo cabo-verdiana, e o ainda recente Irene ou o Contrato Social (2000). Um dos seus livros mais marcantes (Novas Cartas Portugtiesas, 1972) foi, todavia, escrito em conjunto com duas outras autoras, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta: vinda a lume pela primeira vez em 1972, nos Ultimos anos de vigéncia do Estado Novo, a obra provocou escän-dalo pela sua atitude assumidamente feminista e ousada para a época, tendo implicado um processo em tribunal (naturalmente anulado após 1974) e a apreensäo de muitös exemplares pelas autoridades policiais. Recriando e reinterpretando toda a problemática da mulher a partir da situacäo de Sóror Mariana Alcoforado e das suas apaixonadas cartas ao Marqués de Chamilly, o livro apresenta-se como uma miscelänea de dis-cursos por vezes muito díspares, mas literariamente conseguidos: fragmented epistolares, poemas, sequéncias narrativas ou ainda pequenos ensaios de onde ressaltam sempre, em maior ou menor grau, a injustica e a opressäo sentidas pelas mulheres, assim como um desejo de liber-tagäo sexual que impregna estas páginas de uma forte carga erótica. Quanto äs outras duas co-autoras das Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno - estreada em 1968 com o romance De Noite as Árvo-res säo Negras - tem delimitado o seu território através de um discurso formalmente inovador e assente quer numa atenta observacäo socioló-gica da situacäo das mulheres na sociedade em que vivemos, desmon-tando os seus padröes de conduta, quer na ocasional atraccäo pelos dorninios do fantástico (Inventário de Ana, 1982; Cäia e Celina, 1985; Crónica do Tempo, 1990; O Chäo Saigado, 1992; A Ponte, 2003). Maria Teresa Horta - mais claramente consagrada na poesia desde a sua participacäo em Poesia-61 - enveredou igualmente pela ficcäo em volumes que expri-mem sempre um ängulo feminista no modo como encaram o amor, a sexualidade ou o caleidoscópio das relacöes sociais dominantes, sendo talvez o mais conseguido A Paixäo Segundo Constanga H. (1994). Também partindo de pontos de vista essencialmente femininos e nesse sentido renovadores da nossa narrativa, embora talvez menos ousados ou escandalosos, devem aqui referir-se trés escritoras cujos uni-versos rapidamente se singularizaram e se mostram, alias, muito dife-rentes uns dos outros: Luisa Dacosta - que tem abordado aspectos da vida quotidiana das mulheres, penetrando bem nos seus sentimentos por vezes aparentemente banais, por vezes na linha de uma Irene Lisboa (Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu, 1969; Corpo Recusado, 1985) -, Yvette K. Centeno - cujo limpido discurso percorre veios mais liricos e portadores "de uma sedutora carga simbólica ou esotérica, frequentemente ligada ao amor e ä sua alquimia (Quem, se eu Gritar, 1962; Näo Só Quem nos Odeia, 1966; As Palavras, que Pena, 1972; Matrix, 1988) - e ainda Maria Ondina Braga, autora de obras muito peculiares na nossa novelística, já que se "situam geralmente no espago geográfico do Extremo-Oriente, influen-ciadas por Macau e pela presenca da cultura chinesa, observada através do olhar de uma mulher ocidental capaz de aderir com alguma empatia ä vibracäo afectiva desse outro mundo onde tenta integrar-se - aí se des-tacam alguns contos (A China Fica ao Lado, 1968; Amor e Morte, 1970; O Hörnern da Ilha e Outros Contos, 1982), o romance A Personagem (1978), a novela Aventura em Macau (1991) ou a autobiografia Estátua de Sal (1969). Outros casos por vezes notáveis de subversäo dos códigos narra-tivos tradicionais foram os de Jqäo Palma-Ferreira e Álvaro Guerra: enquanto no primeiro estamos perante obras nas quais se conjugam monólogos inferiores, descrkôes quase oníricas e divagacôes irónicas, num pano de fundo memorialístico (Trés Semanas em Maio, 1968; Na tua Morte, 1970; A Viagem, 1971; Os Craniocratas, 1972; Vida e Obras de D. Gibäo, 1987), em Álvaro Guerra assistimos ä evolucäo do neo-realismo iniciál (Os Mastins, 1967; O Disfarce, 1969; A Lebre, 1970; os trés reunidos em Noite de Cäes, 1971) rumo a um estilo mais lúdico e criativo no qual se misturam ecos de diversos géneros literários (Do General ao Cabo mais Ocidental, 1976) e, enfim, a urna trilógia de romances que procura acom-panhar as mudancas de Portugal durante todo o Século XX, contempla-das a partir de um café de uma vila de provincia - Café República 11914--1945 (1982); Café Central 11945-1974 (1984) e Café 25 de Abril (1987). Também inovador quanto ä estrutura narrativa ejnujtq^iginal no piano da linguagem, que recolhe licôes do surrealismo, Nuno Braganca consagrou-se logo a partir do seu primeiro romance (A Noite e o Riso~ 1969), dividido em trés «paineis» que acompanham a evolucäo psicoló-gica do protagonista e dos seus modos de interpretar o mundo que o rodeia - um universo essencialmente lisboeta e por vezes marginal ou nocturno, em cujas personagens detectamos os sinais de uma sociedade em mudanca, condensada numa čerta boémia urbana dos anos 60, mas igualmente o agitado percurso interior de alguém que tenta reflectir com lucidez sobre a sua aprendizagem sexual e as suas relacöes com as mulheres. Dotado de um estilo desenvolto e de um fino sentido de humor, este livro tornou-se rapidamente célebre quer pelo seu mérito literário, quer por traduzir as experiéncias da sua geraeäo, alias reto-madas em dois romances igualmente interessantes - Directa (1977), em que o narrador na tereeira pessoa acaba por incorporar a visäo do sujeito, e Square Tolstoi (1981), passado numa atmosféra parisiense onde sobres-saem os efeitos da libertaeäo sexual típica dessa época. Iremos deparar com a mesma vontade de questionar alguns valores herdados do catolicismo mais convencional em Antonio Aleada Baptista, alias oriundo do mesmo grupo de católicos na altura considerados «pro-gressistas». Editor da Moraes e sobejamente conhecido como ensaísta e cronista do seu tempo, Algada Baptista é também autor de narrativas que tém iluminado uma aprendizagem interior com vestígios autobi-ográficos, pondo em causa os podereš conotados com a masculinidade tradicional e substituindo-os por urna ética da liberdade e do despoja-mento (Os Nós e os Lagos, 1985; O Riso de Deus, 1994; O Tecido do Outono, 1999). Antes de concluir a abordagem deste periodo, devem mencionar--se alguns eseritores cujos itinerários provém ainda do neo-realismo e que, embora evoluindo e aproveitando já certas aquisicôes estilísticas mais recentes, podem de certo modo considerar-se como os Ultimos representantes dessa via: aí se incluem, entre outros, Orlando da Costa - que em O Signo da Ira (1961) nos forneceu um belo retraf o dos anos der-radeiros de Goa sob administraeäo portuguesa, publicando ainda Podem Chamar-me Euridice (1964) e muito recentemente O Ultimo Olhar de Manú Miranda (2001) -, Mario Ventura - A Noite da Vergonha (1963); Vida e Morte dos Santiagos (1985) e outras histórias de cenário alentejano - Alexandre Pinheiro Torres - A Nati de Quixibá (1977); Espingardas e MúsicaClásšica 7Í987) -, Manuel Tiago - pseudónimo do dirigente politico Álvaro Cunhal, que testemunha a clandestinidade comunista em Até Amanhä, Camaradas (1989) e noutros romances -, Antonio Rebordäo Navarro e, finalmente, num piano literário talvez mais elevado que os anteriores, Armando Baptista-Bastos, que desde a sua revelacäo em 1963 (O Secreto ~Ädéu~s) tem explorado um universo basicamente lisboeta, cujas personagens se recortam num fundo colectivo por onde passa toda a evolucäo social do pais, mas sem deixarem de afirmar a sua singularidade psico-lógica, sobretudo mediante urn olhar sobre a repressäo política (Coo Velho Entre Flores, 1974) ou de uma intensidade lírica muito emotiva e cada vez mais desiludida com as consequéncias da revolueäo (Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura, 1981; Elégia para um Caixäo Vazio, 1983; A Colina de Cristal, 1987; Um Hörnern Parado no Inverno, 1991). 6 Chegamos agora a um periodo que poderiamos situar, grosso modo, entre a instauraeäo da demoeracia em 1974 / 1976 e o apareeimento de uma nova geraeäo que virá a marcar os anos 90, já na viragem do milé-nio, que deixaremos para o final deste roteiro. Nesta fase, verifica-se que säo já bem visíveis os efeitos da heranca iřiovadora dos anos 60, embora cada autor vá naturalmente aproveitá-la e recriá-la ä sua maneira. Dito isto, convirá lembrar que um dos aspectos maik importantes das transformacöes sofridas pela literatura portuguesa nos Ultimos 25 anos consiste na relativa perda de importäncia da ideia de vanguarda e no progressivo desgaste ou desaparecimento dos grupos e movimentos literários que marcaram o Século XX até aos anos 60 / 70 (modernismo, neo-realismo, surrealismo, experimentalismo, etc.). De facto, cada escri-tor apresenta-se hoje näo como o porta-voz de uma mensagem colectiva, mas simplesmente como o detentor de um olhar pessoal, que exprime e dá forma a um universo singular. Neste contexto (a que geralmente se tem chamado pós-moderno), a atmosféra actual tem sido encarada ä luz de um certo cépticismo em face das ideias positivistas do progresso científico e das principais «grandes narrativas» (Lyotard) que desde o Huminismo se propuseram libertär e emancipar a humanidade da ignorancia, da servidäo, da pobreza ou da alienagäo, gracas ao uso das faculdades racionais. É da erosäo de algu-mas dessas intencöes que recolhemos hoje as consequéncias, uma das quais consiste num decréscimo de confianca na leitura da História e na ideia de future, que agora nos reserva uma incognita e se mostra aberto a certas pulsöes irracionais que voltam ä superfície e se condensam infe-lizmente, ao nível politico, em conflitos nacionalistas ou religiosos. Imbuídos do desejo de encontrar características vinculáveis äs ten-déncias literárias ditas pós-modernas, teóricos como o norte-americano Ihab Hassan ou o holandés Douwe Fokkema tentaram sintetizar - de forma por vezeš algo simplista, é verdade - aspectos que permitissem identificá-las: aí se incluem, por exemplo, uma čerta pluralizacäo ou mesmo indecidibilidade semánticas, desestruturando alguns códigós nar-rativos; a maior fluidez das fronteiras entre o passado e o presente, acar-retando uma nocäo mais volátil e menos linear da temporalidade; o aban-dono do desejo de explicates globais para os fenómenos, consideradas potencialmente totalitárias e pouco adaptadas ä complexidade do real; uma falta de seguranca epistemológica propagada a múltiplos doiriínios das ciéncias sociais e humanas; a contaminacäo omnívora entre diversos géneros e estilos, que podem mesclar-se numa amalgáma em que partici-pam um vivo gosfó pelo pastiche, a paródia, o remake, a glosa, a citacäo ou ó merö revivalismo; o reconhecimento de que as obras literárias exibem irresolúveis ambiguldades, levando a leituras que desmontam e descons-troem as redes metafóricas que subjazem a qualquer discurso; e enfim, de um modo geral, a percepcäo de toda a realidade humana como algo de flutuante ou movedico, que nenhuma apreensäo de teor científico logra captar com absoluta eficácia, sejam quais forem os métodos utilizados. Tudo isto pode acarretar como consequéncia urna čerta fluidez de fronteiras entre géneros literários, mas também urna cadä vez menor exclusividade genológica por parte de muitos autores, embora tal näo aconteca apenas nesta fase. Na verdade, um dos dados mais curiosos da situacäo portuguesa corresponde ao numero de poetas que se tém dei-xado seduzir pela ficcäo, alcancando por vezes excelentes resultados. Desde 'os já aqui citados (e hoje clássicos) Mau Tempo no Canal (1944), de Vitorino Nemésio, Finisterra (1978), de Carlos de Oliveira, ou Sinais de Fogo (1979, póstumo), de Jorge de Sena, até ao relativamente recente Um Amor Feliz (1986), de David Mouräo-Ferreira - um dos mais belos e lúci-dos romances sobre a seducäo amorosa e os labirintos de paixôes proibi-das ou semi-consentidas pelas regras da sociedade, que funciona como corolário de urna vocacäo narrativa de David já bem exemplificada nas pequenas mas extremamente fascinantes narrativas incluídas nos volumes Gaivotas em Terra (1959) e Os Amantes eOutros Contos (1968), em geral voltadas para temas eróticos -, muitos säo os casos em que o género lírico se prolongoü no narrativo: foi o que sucedeu, por exemplo, com os já refe-ridos casos de Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberte Helder, Ana Hatherly ou Yvette K. Centeno, mas também com outros poetas mais novos, que enveredaram num ou noutro momento pela narrativa, podendo citar-se autores täo significativos como Armando Silva Carvalho (O Alicate, 1972; Donamorta, 1984; Em Nome da Mäe, 1994; O Hörnern que Sabia a Mar, 2001; etc.), Manuel Alegre (Jornada de Africa, 1989; Alma, 1995; A Terceira Rosa, 1998; Rafael, 2004, balanco geracional com tracos autobio-gráficos), Nuno Júdice (Pläneton, 1981; Adagio, 1989; A Roseira de Espinhos, 1994; Vesper as de Sombra, 1998; etc.), Vasco Graca Moura (Quatro Ultimas Cangöes, 1987; Naufrdgio de Sepúlveda, 1988; A Morte de Ninguém, 1998; Meu Amor, Era de Noite, 2001; O Enigma de Zulmira, 2002), Joäo Miguel Fer-nandes Jorge (Nem Vencedor Nem Vencido, 1988; Urna Paixäo Inocente, 1989; Fins-de-Semana, 1993; etc.), Al Berto (Lunário, 1988), Luis Filipe Castro Mendes (Correspondéncia Secreta, 1995) ou Fernando Assis Pacheco, que em 1993 nos deu em Trabalhos e Paixöes de Benito Prada a picaresca recons-tituicäo da vida de um galego cujas ancestrais raizes familiäres se con-fundem com as do proprio autor. De um modo geral, sobre a prosa des-tes poetas fleam a pairar climas semelhantes aos que envolvem os seus versos, como se cada conto, novela ou romance correspondesse ao desen-volvimento mais alargado (e até orquestral, digamos assim) de um escrito que näo coubesse nos limites por vezes estreitos de um poema. O problema das separates entre os géneros literários coloca-se, alias, em alguns textos contemporäneos difieeis de classificar segundo os / modelos tradicionais. Se nos lembrarmos de escritores porivezes menos acessiveis ou mesmo um tanto herméticos, como Rui Nunes ou Maria Gabriela Llansol, verificamos que fazem estilhagar quaisquer fronteiras , entre o que designamos por ficcäo, ensaio, diário, poesia, memórias, etc. Levando äs últimas consequéncias a criacäo de um universe pessoal que desde os anos 60 näo tem paralelo em toda a literatura portuguesa, a obra de Maria Gabriela Llansol - Os Pregos na Brva (1962); O Livro das Comunidades (1977); Um Falcäo no Punho I Diário-I (1985); Contos do* Mal Errante (1986); Finita I Diário-II (1987); Um Beijo Dado Mais Parde (1990); Lisboaleipzig-1: O Encontro Inesperado do Diverso; Lisboaleipzig-2: O Ensaio de Música (ambos de 1994), etc. - coloca-nos perante um magma de vozes que dialogam umas com as outras (Bach, Ana de Pefialosa, Fernando Pessoa, Mestre Eckhart e outros místicos, filosof os, poetas, etc.), todas elas convergindo num caudal cujabeleza progride através de «cenas-ful-gor» que irradiam uma forca propria e se repercutem por um território onde säo capazes de gerar uma nova espécie de harmonia, situada para lá da vontade humana de quem escreve. É como se a escrita adquirisse vida propria e irradiasse uma energia mágica cujos ecos se repercutem e amplificam ao longo de tempos, lugares e personagens, abrindo hori-zontes sempre novos e surpreendentes. Quanta a Rui Nunes, o seu percurso tem-se distinguido também por uma escrita fragmentária, cujo modo de composkäo polifónico, levando a linguagem aos seus Hmites, nem por isso deixa de exprimir com grande intensidade as emocöes humanas, muitas vezeš ligadas ä dor, ä šolidäo ou ao puro e simples esvaziamento de sentido do mundo (cf., ěntre outros textos, O Mensageirö Difefido; 1981; Osculatriz, 1992; Que Sinos Dobr am por Aqueles queMorrem como Gado?, 1995; Grito, 1997; Cäes, 1999). Embora por motivos bem diferentes, outro nome extremamente singular é Dinis Machado: aparecido trés anos depois do 25 de Abril, O Que Diz Molem (1977) surpreendeu o meio literário e atingiu um ~~~~ grande éxifo junto do publico, revelando o seu autor para lá do género policial onde já assinara romances sob o pseudónimo Dennis McShade. Escrita numa linguagem coloquial e rente ä oralidade, evoluindo por associacöes de ideias que remetem umas para as outras, esta narrativa consiste no relato das múltiplas experiéncias e memórias do protagonista, desde a infäncia e adolescéncia num bairro popular de Lisboa até äs suas viagens por lugares remotos do globo terrestre. Tendo-se revelado já há várias décadas como poeta, dramaturgo e ficcionista - o seu romance de estreia, Terra do Pecado, data de 1947 -, José Saramago constitui um caso absolutamente ä parte na nossa novelística contemporänea, culminando com a atribukäo do Prémio Nobel da Lite- 83 ratura em 1998. Vendo reconhecido o seu talento narrativo em 1980 (Levantado do Chäo), foi sobretudo a partir de 1982 (com o célebre Memorial do Convento, situado no contexto do reinado de D. Joäo V, aquando da construcäo do Convento de Mafra, sob o pano de fundo da crónica histórica do século XVIII portugués, em que avulta a figura do Padre Bartolomeu de Gusmäo, um dos pioneiros da aeronáutica) que a sua escrita veio a ganhar um impulso decisivo, espraiando-se segundo linhas de fuga e de subversäo dos dados históricos, num processo em que cer-tas personagens aparentemente comuns adquirem papéis ou podereš relevantes e em que os pontos de vista do narrador se fundem com os dessas personagens, muitas vezeš carregadas de magia ou de um estra-nho magnetismo. Os romances de Saramago partem geralmente de ideias originais, bizarras e de grandes potencialidades ficcionais - por exemplo, e entre outros, O Ano da Mořte de Ricardo Reis (1984), em que o heterónimo pes-soano regressa ä Lisboa dos anos 30; A Jangada de Pedra (1986), em que a Peninsula Ibérica se separa do resto da Europa; O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), versäo da vida de um Crista humanizado, que alias pro-vocou acesa polémica; ou ainda Ensaio Sobre a Cegueira (1995), belíssima e aterradora parabola de um mundo cujos habitantes se tornám pro-gressivamente cegos -, conseguindo criar um ritmo que mistura ele-mentos coloquiais e quase barrocos, muito peculiares ä sua escrita. Cul-tivando um estilo em que a fluéncia discursiva se conjuga com o verti-ginoso rendilhado da linguagem, Saramago torna como ponto de partida os dados históricos para criar situacóes em que o real, o fantástico e o maravilhoso parecem flutuar e acabam por confundir-se, até se desva-necerem os códigos e os limites da verosimilhanca realista, mergu-lhando por vezeš claramente no domínio do fantástico (cf. também os recentes O Hörnern Duplicado, de 2002 e Ensaio Sobre a Lucidez, de 2004, este ultimo de evidentes conotacöes políticas). Outro autor que tem obtido grande éxito junto de um largo publico portuguěs e mundial é Antonio Lobo Antunes - aparecido pela pri-meira vez em 1979 com Memoria de Elefante -, que se tornou em vinte anos um dos romancistas Portugueses mais traduzidos e divulgados por todo o globo. Os seus textos, sobretudo na fase iniciál da sua obra, espelham uma variada gama de experiéncias sexuais, políticas ou sim-plesmente humanas, colhidas na memoria da guerra africana, na prá-tica clínica psiquiátrica ou numa imaginacäo delirante que se afirma com uma enorme exuberäncia metafórica, manifestando uma tendén- / / »4 cia para o excesso que tanto pode cair em efeitos de caricatura como alcancar urna brilhante penetracäo psicológica das personagens, geral-mente pertencentes a mundos de recorte céliniano, por vezes degrada-dos ou viciosos, mas reflectindo bem um universo portugués (Os Cms de Judas, 1979; Conhecimento do Inferno, 1980; Fado Alexandrino, 1983; Auto dos Danados, 1985; etc.). Nos Ultimos anos, adensou-se ainda mais essa penetracäo no interior das personagens, que adquiľiram uma espessura pouco habitual gracas ä plasticidäďe de uma escrita muito dialogada, mas simultanea-mente próxima de um fíuxo inconsciente que tende para a poesia - um dos seus recentes romances (Näo Entres Täo Depressa Nessa Noite Escura, 2000) é alias classificado como «poema». Narrados por diversas vozes e entrecortados por fragmentos de diálogos que afloram ao discurso e se cruzam num ágil caleidoscópio de constantes^flsfrbac/cs subjectivos, recu-perando «as coisas absurdas que se fixam na memoria», os livros de Lobo Antunes conseguem levar muito longe a confusa percepcäo dos tempos e a translúcida projeccäo das lembrancas, como se alguns gestos do presente pudessem magicamente transformar-se em experiéncias vividas no passado (O Manual dos Inquisidores, 1996; O Esplendor de Portugal, 1997; Exortagäo aos Crocodilos, 1999; Que Varel Quando Tudo Arde?, 2001, Boa Parde as Coisas Aqui em Baixo, 2003, etc.). Talvez na sequéncia do impacto das Novas Cartas Portuguesas e de ficcionistas mais antigas já aqui citadas - que funcionaram como pre-cursoras -, é importante sublinhar o aparecimento de diversas escrito-ras a partir dos anos 80, mantendo-se activas e intervenientes desde essa altura: ai ressalta, por exemplo, a intensidade do discurso de Lídia Jorge, indo beber parte da sua forca a mitos populäres. Saudada desde o seu livro de estreia (O Dia dos Prodígios, 1980) como uma das grandes vocacöes literárias das ultimas décadas, Lídia Jorge evoluiu desde essa fase iniciál, próxima de um realismo mágico em ambientes rurais algarvios (Ö Cais das Merendas, 1982; Noiicia da Cidade Silvestře, 1984), para histórias mais ligadas aos problemas da sociedade contemporä-nea (A Ultima Dona, 1992; O Jardim sem Limites, 1995), passando por um romance que descreve a Guerra Colonial através do olhar das mulhe-res dos oficiais Portugueses (A Cosřa dos Murmiírios, 1988) e atingindo n'O Vale da Paixäo (1998) talvez o ponto cimeiro do seu percurso, inter-rogando as correntes de amor e ódio que alimentam urna família algar-via e reconstruindo os elos que unem um pai e urna filha cada vez mais assombrada pela sua imagem, por esse espectro que a visita numa ines-quecível noite de chuva. Mencionem-se ainda O Vento Assobiando nas Gruas (2002), exploracäo de um universo multiétnico que marca actual- s5 mente a sociedade portuguesa, e o recente volume de contos O Belo Adormecido (2004). Importante é também a riqueza simbólica inerente ao ängulo de visäo femininode Teolinda Gersäo, ao explorar, por exemplo, o universo das relacöes humanas e da tensäo entre os dois sexos (O Silencio, 1981, livro de estreia que logo a consagrou). Numa escrita feita de reminis-céncias lacunares pouco a pouco sobrepostas na memoria, oscilando entre a l.a e a 3.a pessoas, as suas narrativas compöem um quadro frequentemente melancólico dos afectos humanos, sempře de certa forma desajustados entre homens e mulheres, mostrando-se todavia capazes de um efeito de repercussäo interior que vai dilatando a memoria das personagens, gracas a uma escrita sempře fiel ä respiracäo do seu tempo subjectivo (Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, 1982; Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984; O Cavalo de Sol, 1989; A Casa da Cabega de Cavalo, 1995; A Árvore das Palavras, 1997, num cenário africano; Os Teclados, 1999; Histórias de Ver e Andar, contos, 2002; etc.). Revelada também em 1981 com O Separar das Águas, Hélia Correia tem conseguido recriar todo um mundo mágico e ritualizado, onde as personagens parecem recuperar as vivéncias de uma ruralidade misteriosa e por vezes carregadas de uma forte simbologia sexual (A Fenda Erotica, 1988). A sua escrita irradia igualmente uma aura estranha e um fasdhio por situacöes insólitas que a tém aproximado quer da poesia, quer da literatura fantástica (Montedemo, 1987; A Casa Etema, 1991), quer de uma atmosféra de loucura (Insänia, 1996), alcancando um dos seus cumes no recente romance Lillias Eraser (2001), aplaudido pela crítica, e que acompanha a vida de uma rapariga escocesa dotada de estranhos podereš de vidéncia, desde a fuga da terra natal até ä sua chegada a Portugal, onde encontrará o ter-ramoto de 1755, descrevendo as suas terríveis consequéncias. Duas autoras consideravelmente prolíficas tém sido Clara Pinto Correia e Luisa Costa Gomes: quanta ä primeira - revelada em 1984 com Agriäol -, tem mantido um ritmo de publicacäo muito assiduo, entre-meando obras de investigacäo e divulgagäo científica (biológia, embrio-logia), história da ciéncia, livros infantis, crónicas jornalísticas ou narrativas de ficcäo, destacando-se sobretudo Adeus, Princesa (1986) - um dos romances mais lidos das ultimas décadas - nesse caudal discursivo capaz de tomar o pulso a um certo Portugal posterior äs alteracöes do 25 de Abril. De um modo geral, os livros desta autora tracam o retrato fiel de uma sociedade cujos valores tradicionais säo abalados pela mudanca dos comportamentos da juventude, facto sensivel nas suas personagens / e no seu modo desenvolto de se adaptarem äs circunstäncias, alias geral-mente encaradas com sentido de humor (Ponto Péde Flor, 1990; Domingo de Ramos, 1994; Mais Mores que Mannheims, contos, 1996; Mensageiros Secundários, 1999; A Anna dos ]uizes, 2002; etc.). No segundo caso, pode dizer-se que, embora os primeiros livros de Luisa Costa Gomes denotassem uma fecunda atraccäo pelo fantás-tico (por exemplo, Treze Contos de Sobressalto, 1981; Arnheim e Desirée, 1983; O Gémeo Diferente, 1984), esta autora se individualizou pelo tom céptico, irónico e algo desprendido com que descreve pensamentos e emocöes, vividos quase como jogos de linguagem, numa atitude que por vezes parece estar filosoficamente próxima de Wittgenstein e que nos mostra com lucidez alguns paradoxos e contradicöes dos seres humanos, aqui olhados sob uma inteligente irónia reflexiva cujo estilo evidencia por vezes um toque reconhecidamente camiliano, como sucede no excelente romance epistolar O Pequeno Mundo (1988). Nunca Nada de Ninguém (1991) é o título de urna sua peca de teatro e pode tal-vez ser apontado como paradigma da posigäo de quem já näo se ilude com quaisquer solucöes para os problemas contemporäneos, prefe-rindo abordá-los (sobretudo nos contos) sob o ängulo da paródia ou de uma satira já pós-moderna ou pós-teórica (Vida de Ramón, 1991; Olhos Verdes, 1994; Educagäo para a Tristeza, 1998; Império do Amor, contos, 2001; etc.). No diversificado panorama da narrativa actual deve ainda recor-dar-se o denso e obsessivo trabaľho literário de Mario Claudio, apostado em conciliar o extremo virtuosismo da escrita e a rigorosa fidelidade aos dados históricos de que se serve. Também poeta e dramaturgo, Mario Claudio tem publicado com maior regularidade ficcäo narrativa, cons-truindo uma obra notável, em que se destaca a Trilógia da Mao, composta pelos romances biográficos Amadeo (1984, original relate de uma pes-quisa para a biografia do pintor Amadeo de Souza-Cardoso), Guilher-mina (1986, alusivo ä violončelista portuense Guimermina Suggia) e Rosa (1988, sobre a ceramista Rosa Ramalho). Após A Fuga para o Egipto (1987, de óbvia inspiracäo bíblica), o autor publicou ainda A Quinta das Virtu-des (1990), saga que acompanha trés geracöes de uma família aristocrata do Porto, e evoluiu a partir daí para uma escrita que, sem perder o apu-rado sentido estético, tem retratado figuras inspiradas na vida real (Tocata para Dois Clarins, 1992), deixando-se regularmente seduzir pelo romance historko (As Batalhas do Caia, 1995; Peregrinagäo de Bamabé das índias, 1998; Orion, 2003) e mais recentemente pela marginalidade do Portugal dos nossos dias (Ursamaior, 2000). Outro percurso extremamente singular é o de Mario de Carvalho, num dominio muito pessoal onde mistura talentosamente a reflexäo filosófica, a abertura ao fantástico, a paródia e uma eficaz dimensäo satí-rica face äs contradicöes da sociedade contemporänea. Revelado em 1981 como um eximio contista (Contos da Sétima Esfera; e logo depois Casos do Beco das Sardinheiras, 1982), Mario de Carvalho tem-se desta-cado cómo uma das vozes mais estimulantes da literatura portuguesa contemporänea, explorando uma fertil imaginacäo, quase sempre aliada ä ironia. Embora a sua atracgäo pelo fantástico tenha prosseguido nou-tros volumes (A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, 1983; FabuU-rio, 1984; etc.), tal dimensäo irá de certo modo transcender-se e alargar--se mediante o recurso ao romance historko - A Paixäo do Conde de Fróis (1986) ou o magnifko Um Dens Passeando pela Brisa da Tarde (1994), recu-ando ä época do Império Romano -, a abordagem do meio militar (Os Alferes, 1989) ou ainda uma irónica desconstrucäo do quotidiano da militäncia partidária levada a cabo num lúcido e hilariante romance (Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto, 1995). Recentemente, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (2003) analisa com humor subtil e queirosiano algumas contradigöes da sociedade portuguesa contemporänea. Noutro registo se situa a prosa de Joäo de Melo, que se tem distin-guido pela evocacäo das memórias da guerra nas ex-colónias africanas, mas também pela emocionada recuperacäo de uma realidade acoriana entretanto alterada pela emigracäo rumo ä America do Nořte (O Meu Mundo Näo é Děste Reino, 1983; Autópsia de um Mar de Rutnas, 1984; O Hörnern Suspenso, 1996). É esse o pano de fundo do seu romance mais traduzido e divulgado, Gente Feliz com Lágrimas (1988), narrativa em que se descrevem com realismo os lacos que, apesar da distäncia, unem os membros de uma família através da qual vemos desfilar algumas ima-gens do Portugal das ultimas décadas. Já quase a terrninar este periodo, poderäo ainda citar-se, por exemplo, o impulso contestatário radical de Eduarda Dionísio, autora de um interessante percurso ficcional (Comente o Seguinte Texto, 1972; Pouco Tempo Depois I As Tentagoes, 1984) e sobretudo de um dos livros mais emblemáticos e inovadores sobre a experiéncia de libertacäo vivida antes e depois do 25 de Abril (Retrato de um Amigo Enquanto Palo, 1979); a inter-rogacäo da identidade nacionál e dos fantasmas da «saudade» portuguesa levada a efeito por Fernando Dacosta (O Viúvo, 1986; Os Infiéis, 1992; Nascido no Estado Novo, 2000, reflectindo com frequéncia algum fas-cínio pela figura de Salazar); a forca do universo regionalista transmon- / tano de Bento da Cruz (Planalto de Gostofrio, 1982; etc.); a riqueza dos romances históricos cultivados com rigor e maestria por um autor cuja revelacäo foi já algo tardia, Fernando Campos, obtendo alias grande impacto (A Casa do Pó, 1986; O Pesadelo d'Eus, 1990; A Sala das Pergun-tas, 1998; etc.); o já solido percurso narrativo de Joäo Aguiar, autor pro-lífico, detentor de uma escrita bem articulada, sempře imaginativa, ' escorreita e muito lida pelos mais jovens (A Voz dos Deuses, 1984; O Hontem sem Nome, 1986; O Trono do Altíssimo, 1988; A Hora de Sertório, 1994; Navegador Solitário, 1996; O Dragäo de Pumo, 1998; etc.); a escrita geralmente discreta, mas sempre muito carregada de sentido, com que Teresa Veiga tern sabido criar atmosferas cuja densidade se amplia a cada instante pela forca das suas personagens (Jacobo e outras Histórias, 1981; O Ultimo Amante, 1990; História da Bela Pria, contos, 1992; A Paz Doméstica, romance, 1999); os romances de aprendizagem ou de costumes de Américo Guerreiro de Sousa (Os Cornos de Cronos, 1980; Onde Cai a Sombra, 1983; etc.); a sensibilidade assumidamente homossexual do universo de Guilherme de Melo, também de contornos pós-coloniais mocambicanos (A Sombra dos Dias, 1981; O Que Houver de Morrer; A Porta ao Lado, 2001; etc.); o olhar feminino de Olga Goncalves sobre algumas comunidades portuguesas no estrangeiro (por exemplo A Floresta de Bremerhaven, 1975); a visäo geracional patente num Álvaro Manuel Machado (Exüio, 1978), numa Wanda Ramos (Percursos, 1981), num Jose Viale Moutinho, num Julio Conrado (Era a Revolugäo, 1977), num Julio Moreira (O Insecto Perfeito, 1971; A Barragem, 1993; Périas de Veräo, 1999; etc.), num Jose Manuel Mendes (O Despir da Névoa, 1984) ou numa Filo-mena Cabral (Um Hörnern de Sonho, 1986; Obsidiána, 1990; Mar Saigado, 2002; etc.); a elegäncia cosmopolita e quase blasée de Amadeu Lopes Sabino (Novelas Imperfeitas, 1991) ou de Antonio Mega Ferreira, cujo percurso se tem ultimamente destacado como o de um Optimo contista (O Heliventilador de Resende, 1985; As Caixas Chinesas, 1988; A Expressäo dos Afectos, 2001; Amor, novela curta, 2002); e finalmente alguns textos täo inclassificáveis, excessivos ou situados perto do inconsciente, como os de Jose Amaro Dionisio (todos reunidos num único volume em 1996, O Nome do Mundo), Silvina Rodrigues Lopes (Täo Simples como Isso, 1984; E Se-Pdra, 1988) ou ainda Jaime Rocha (Tonho e as Almas, 1984; A Loucura Branca, 1990; Os Dias de um Excursionista, 1996), que perturbam e des-montam os códigos narrativos mais correntes, mantendo viva uma von-tade de questionamento dos limites da propria literatura e mesmo uma certa atitude de vanguarda. 7 s9 E eis-nos enfim chegados á etapa final desta viagem, a um periodo em face do qual nao podemos dispor de um olhar critico suficientemente distanciado para averiguar com clareza a releváncia da maioria dos auto-res, quase todos relativamente jovens: estamos perante obras ainda em formacáo, constituidas por livros cuja recepcao, apesar de ter já permi-tido em certos casos um amplo reconhecimento publico, irá definir-se melhor ao longo das próximas décadas - as primeiras do Século XXI. Seja como for, também nesta fase mais recente se assistiu á revela-cao de certo modo tardia ou seródia de autores que entretanto desper-taram para a narrativa. Foi o que sucedeu, por exemplo, com Helder Macedo e Paulo Castilho: no primeiro caso, estamos perante um autor radicado numa universidade británica, já antes claramente consagrado nos domínios do ensaio e da poesia, mas que em 1991 nos deu um romance bem recebido pela critica (Partes de Africa) e, sete anos mais tarde, uma outra narrativa (Pedro e Paula, 1998) cujo discurso interpela os dilemas afectivos de personagens que atravessam a história portu-guesa desde as décadas de 60 e 70 (cf. também Vicios e Virtudes, 2001). Quanto a Paulo Castilho (O Outro Lado do Espelho, 1984; Fora de Horas, 1989, o seu romance decisivo; e Sinais Exteriores, 1993), trata-se de alguém que se tornou importante pela maneira como rejeitou um certo peso retó-rico tradicionalmente associado á ideia de literatura, despojando-se dessa énfase e optando decididamente por um estilo mais linear, de fra-ses curtas e incisivas, contando histórias por vezeš ligadas á sua já longa experiéncia de diplomata e ao seu conhecimento do mundo. Talvež esta vontade de contar histórias verosímeis e partilháveis com os lei tores possa constituir ran dos tracos mais significativoš da nova geracáo de ficcionistas Portugueses, agora que entrámos no terceiro milé-"nió: mais cosmopolitas e por isso menos presos ás questóes ideológicas ou aos grandes temas em torno da identidade nacionál que de um modo ou de outro preocuparam a maioria das vozes que os antecederam, estes novos autores encontram-se já decididamente situados - até por motivos geracionais - numa perspectiva historka segundo a qual as mudancas politicas de 1974 foram já absorvidas e integradas no quotidiano de ran pais democrático europeu, como é Portugal nos nossos dias, escrevendo, por assim dizer, já descomplexados e por isso em pé de igualdade com os seus congéneres de outros países democráticos europeus. Estamos, portanto, em face de autores cuja escrita reflecte as influéncias cada vez maiores de um ambiente cultural muito aberto ao exterior, dialogando com as literaturas estrangeiras mais conhecidas - / sobretudo as anglo-saxónicas hoje dominantes, mas também a espanhola ou hispano-americanas, a francesa, a alemä, a italiana, a brasileira, as africanas, até as orientals, etc. -, integrando tudo isso numa visäo do mundo que, sem deixar de se afirmar como portuguesa, passa a inscre-ver-se no quadro mais amplo de uma vocagäo universal, de resto acen-tuada pelo irreversível processo da globalizacäo, que está a marcar o ini-cio do terceiro milénio. Tal diálogo estabelece-se igualmente com outras artes e novas formas estétkas äs quais a literatura cöntemporäneä se mostra naturalmente permeável - o cinema, a televisäo, a banda desě-nhada, o video, o jornalismo, a publicidade, etc. -, recusando geralmente qualquer conceito sacralizado ou essencialista da literatura. É nesta atmosféra já claramente pós-moderna que tem florescido algumas das propostas novelísticas mais interessantes dos Ultimos tempos, podendo citar-se, por exemplo, os casos de Pedro Paixäo - cujos tex-tos se apoiam num estilo fragmentário, baseado em múltiplas experién-cias pessoais, comhistórias quase sempre amorosas ou, pelo menos, emo-cionalmente muito intensas (A Noiva Judia, 1992; Histórias Verdadeiras, 1994; Viver Todos os Dias Cansa, 1995; Muito Meu Amor, 1996; Nos Teus Bra-cos Morreriamos, 1998; Girls in Bikinis, 2002; etc.) -, Ines Pedrosa - que na luminosa escrita dos seus trés romances (A Instrugäo dos Amantes, 1992; Nas Twos Maos, 1997; Fazes-me Falta, 2002) tem tracado um mapa dos afec-tos contemporäneos, revelando uma sabedoria intuitiva e por vezes afo-ristica das relacöes humanas, sobretudo quanto ao tema da intimidade entre os dois sexos (cf. também Fica Comigo Esta Noite, contos, 2003) -, Rui Zink - cujo discurso reflecte com humor e desenvoltura sobre algumas idiossincrasias do Portugal contemporáneo, ultrapassando o gosto pro-vocatório que em geral lhe é apontado (Hotel Lusitano, 1987; A Realidade Agora a Cores, 1988; Homens-Aranhas, 1994; Apocalipse Nau, 1996; O Suplente, 2000; etc.) - ou, mais jovens e revelados já perto do final do século, Jacinto Lucas Pires - perseguindo fragmentos do quotidiano, mostrando uma boa técnica descritiva, quase cinematográfica (Para Ave-riguar do seu Grau de Pureza, contos, 1996; Azul Turquesa, romance, 1998; etc.) -, Possidónio Cachapa - que surpreendeu o publico e a critica com o seu romance de estreia (A Materna Docura, 1998), tanto pela linguagem como pela densidade das personagens (também Viagem ao Coragäo dos Pássaros, 1999 e O Mar por Cima, 2002) - e outras já menos jovens autoras, como Maria do Rosário Pedreira (Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu, 1993) ou Julieta Monginho, profissionalmente ligada aos meios judiciais (Juizo Perfeito, 1996; A Paixäo Segundo os Infiéis, 1998; Ä Tua Espera, 2000), geralmente englobáveis numa corrente dita de realismo urbano. Num pólo quase oposto se tem desenvolvido o itinerário ficcional de Jose Rico Direitinho, que desde o seu livro iniciál (A Casa do Firn, 1992) tem procurado reactualizar de um modo pessoal as experiéncias de uma ruralidade perdida, recuperando saberes ancestrais e transmitidos de geracäo em geracäo (Brevidrio das Más Inclinagöes, 1994; O Relógio do Cár-cere, 1997). Sem uma täo forte marca rural, mas dentro de um universo talvez com algumas semelhancas, podem situar-se as obras narrativas de Abel Neves (com os romances Coragöes Piegas, 1996; e Asas Para que vos Quem, 1997), o romance de estreia de Henrique Monteiro (Papel Pardo, 2002, revisitacäo muito pessoal das «Terras do Demo» onde o protagonista reconstitui toda a história da sua vida), assim como a fulgurante revelacäo do ainda jovem José Luis Peixoto (Morreste-me, 1999; Nenhum Olhar, 2000; A Casa na Escuridäo, 2002; e Antidote, 2003), que rapidamente se notabilizou como detentor de uma escrita afectivamente muito intensa e capaz de se repercutir num terreno muito pessoal, por vezes atingindo um piano quase alucinatório e pleno de magia. Igualmente perturbadores säo os romances da autora madeirense Ana Teresa Pereira e de Mafalda Ivo Cruz: enquanto a primeira, na linha da britänica Iris Murdoch, delimita um microcosmos carregado de emo-cöes, presságios e segredos que parecem ficar sempre por desvendar, obsessivamente encerrada no labirinto das suas personagens e dos seus múltiplos fantasmas (Matar a Imagem, 1989; A Cidade Fantasma, 1993; A Coisa que eu Sou, 1997; As Rosas Mortas, 1998; O Rosto de Deus, 1999; Até que a Mořte nos Separe, 2000; A Danga dos Fantasmas, 2001; etc.), em Mafalda Ivo Cruz é o movimento da escrita a desencadear todo um las-tro de memórias quase inconfessáveis, cujo caleidoscópio interior se adensa e concentra em certos momentos-chave de narrativas que fogem a um encadeamento linear e vivem dessas reminiscéncias (Um Requiem Portugues, 1995; A Casa do Diabo, 2000; O Rapaz de Botticelli, 2002; e Ver-melho, 2003). No campo do romance historko ou similar, podem referir-se dois autores como Francisco Duarte Mangas - que no seu Didrio de Link (1993) recria com grande vigor narrativo as peripécias de um anarquista fugido ao regime franquista - ou Paulo Jose Miranda, cuja Natureza Morta (1998) se destacou pela forca de uma linguagem poderosa e inovadora. Quanto ao género policial, é hoje recuperado por Miguel Miranda (cf. por exemplo O Estranho Caso do Cadaver Sonidente, 1998) e sobretudo por Francisco José Viegas, que, após a novela mais lírka Regresso por um Rio (1987), tem acompanhado com humor e subtileza a carreira dos investigadores cri-minais Jaime Ramos e Filipe Castanheira ao longo de romances que extravasam a faceta estritamente policial e observam comironia todo o panorama da sociedade portuguesa - Crime em Ponta Delgada (1989), Morte no Estddio (1991), As Duas Águas do Mar (1992), Um Céu Demasiado Azul (1995), Urn Crime na Exposigäo (1998), Lourengo Marques (2002), etc. Um fenómeno talvez mais sociológico do que estritamente literário dos anos 90 consistiu no aparecimento de uma tendencia geralmente conhecida pela designacäo de literatura light ou pop: trata-se de romances concebidos para uma leitura mais fácil ou um consumo mais rápido, cujas histórias tém seduzido e captado para a leitura urn publico muito vasto que nelas procura sobretudo algum entretenimento. Apesar de precursores relativamente recentes como Manuel Arouca (Os Filhos da Costa do Sol, 1984), pode dizer-se que a pioneira (e também a voz consi-derada mais solida) a afirmar-se nesse campo foi Rita Ferro, autora de uma obra já vasta (O Nó na Garganta, 1990; O Vestido de Lantejoulas, 1992; O Vento e a Lua, 1993; Uma Mulher näo Chora, 1997, talvez o seu melhor livro; Os Filhos da Mäe, 2000; A Menina Danga?, 2002; e És Met//, 2003), tendo-se-lhe seguido Margarida Rebelo Pinto - cujo Sei Lá! (1999) cons-tituiu desde logo um estrondoso éxito de vendas, depois confirmado em Näo Há Coincidéncias (2000), Alma de Pässaro (2002) e ľm in Love With a Popstar (2003) -, Maria Joäo Lopo de Carvalho (Virada do Auesso, 2000; e Acidentes de Percurso, 2001), Domingos Amaral (Amor ä Primeira Vista, 1999) ou ainda, entre muitos outros, Mafalda Belmonte, Rodrigo Moita de Deus, Margarida Faro, etc. Antes de terminar, convirá näo esquecer o justo impacto que tive-ram duas notáveis revelacöes, qualquer delas ainda relativamente recente - a do reporter Pedro Rosa Mendes, que no romance A Baía dos Tigres (1999) conseguiu transfigurar literariamente uma viagem / repor-tagem ao ponto de a tornar capaz de nos fornecer um excelente retrato de uma certa Africa contemporänea; e a de outra jornalista, Filipa Melo, que no romance Esŕe É o Meu Corpo (2001) nos oferece a retrospectiva de uma personagem feminina, reconstruída através da sóbria mas emocio-nada visäo do médico legista que procede ä autópsia do seu cadáver -, assim como o surgimento ainda mais recente de um outro jornalista, Miguel Sousa Tavares, no domínio do romance - oferecendo-nos em Equador (2003) o relato de uma história bem alicercada no ambiente dos finais da monarquia -, bem como de Frederico Lourenco, autor que, vindo dos meios universitários ligados äs literaturas clássicas (alias tra-dutor da Odisseia), nos deu também há pouco tempo uma trilógia de romances (Pode um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas e Ä Beira do Mundo, 2002 / 2003) em que retrata o ambiente académico com grande lucidez e desenvoltura narrativa, abordando-o ä luz da progressiva descoberta da homossexualidade de algumas personagens. Refira-se ainda a escrita segura e narrativamente bem arquitectada de certas vozes femininas tardiamente surgidas na nossa literatura, con-tando-nos por vezeš apaixonantes sagas familiäres - o caso mais mar-cante corresponde ao de Rosa Lobato de Faria, que soube construir uma já assirialável obra romanesca (O Franto de Lucifer, 1995; Os Pássaros de Seda, 1996; Os Trés Casamentos de Camila S., 1997; Romance de Cordelia, 1998; O Prenúncio das Águas, 1999; A Tranga de Inés, 2001; O Sétimo Véu, 2003), mas refira-se também Helena Marques (O Ultimo Cais, 1992, que teve alguma repercussäo e aborda a história de uma família madeirense; A Deusa Sentada, 1995; Os íbis Vermelhos da Guiana, 2002) e Luisa Belträo, autora de uma vasta tetralogia familiar (Os Pioneiros, Os Impetuosos, Os Bem-Aventurados e Os Mal-Amados), reunida em Uma História Privada (1998) e também do romance Todos Vulneráveis (1999), abordando a história de um jogador compulsive Mencione-se, enfim, o humor corrosivo daquele que foi um lúcido cronista da sociedade portuguesa dos anos 80 e 90, Miguel Esteves Cardoso - com dois intrigantes romances, O Amor É Fodido (1994) e Cemité-rio de Raparigas (1996) -, a inspiragäo subtilmente queirosiana de Fernando Venäncio (Os Esquemas de Fradique, 1999), a fértil imaginacäo romanesca de Catarina Fonseca (Boi Vermelho, 1992; O Amansador, 1999; A Guardiä, 2000), o amplo fôlego diseursivo de Leonel Brim (Magistério e Desgosto, 1999), o pendor para a rigorosa investigacäo historka de Cris-tina Norton (O Afinador de Pianos, 1998; O Segredo da Bastarda, 2002) ou ainda muitos outros nomes que tém contribuído para alargar a riqueza e a diversidade da actual literatura portuguesa, por vezes näo apenas no dornínio da ficcäo narrativa, como Goncalo M. Tavares - talvez a maior revelacäo deste início do Século XXI -, Antonio Cabrita, Fernando Cabral Martins, Maria de Fatima Borges, Ernesto Rodrigues, José Dinis Fidalgo, Laura Gil, Ana Nobre de Gusmäo, Alberto Oliveira Pinto, José Antonio Saraiva, Ana Saldanha, Miguel Viqueira, Luis Carmelo, Antonio Vieira, Helena Malheiro, Leonor Xavier, Fernando Fonseca Santos, Isabel Cris-tina Pires, Antonio Manuel Venda, Miguel Ramalho Santos, Maria Joäo Lehning, Margarida Goncalves Marques, Rui Miguel Saramago, Jose Pinto Carneiro, Manuel Jorge Marmelo, Doris Graca Dias, Manuel Jorge Marmelo, Rodrigo Guedes de Carvalho, Joäo Rosas, etc. No limiar final deste roteiro, gostaria de sublinhar a vitalidade actual da literatura portuguesa: na multiplicidade das suas vozes, ela continua a exprimir os desafios, as seducoes ou os problemas de uma sociedade que mudou muito nas ultimas décadas, embora ainda mostre indices de leitura comparativamente baixos no contexto europeu. Seja como for, é plenamente integrada nesse contexto que ela se abre ao ter-ceiro milénio, com essa espécie de verdade incerta que de vez em quando sabe transmitir aos que a léem e que resulta sempře de um gesto sem retorno, de uma forca que necessita daquelas palavras para produzir o seu efeito, mas que vive também de tudo aquilo que nessas palavras somos capazes de projectar, com os nossos desejos, os nossos medos, os nossos sonhos mais reconditos ou as nossas angústias mais inconfessá-veis - enfim, todas as emocoes que alimentam o mistério de cada leitura e prolongam o texto nesse território desconhecido e sempre novo que é o olhar de cada leitor. Bibliografia sumária (inclui apenas obras genéricas) AA. W., Biblos — Enciclope'dia Verbo das Literaturas de Lingua Portuguesa, Lisboa / Säo Paulo, Ed. Verbo, 4 vols, já publicados desde 1995. AA. VY, História da Literatúra Portuguesa, Lisboa, Publicacöes Alfa, 7 vols, já publicados desde 2001. COELHO, Jacinto do Prado (dir.), Dicionário de Literatúra, Porto, Figueirinhas, 1994 (reimp.), está em curso a publicacäo da 2r ed. actualizada. LISBOA, Eugénio, et alii (orgs.), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Lisboa, Insti-tuto Portugués do Livro e das Bibliotecas / Publicacöes Europa-América (5 vols, publicados), ainda em curso de publicacäo. REIS, Carlos (org.), História Crítica da Literatúra Portuguesa, Lisboa, Ed. Verbo, 9 vols, publicados, em curso de publicacäo desde 1993. ROCHA, Ilídio, Roteiro da Literatúra Portuguesa, Frankfurt am Main, TFM Verlag, 1995 (edicöes em Portugués e Alemäo). SARArVA, António Jose e LOPES, Óscar, História da Literatúra Portuguesa, Porto, Porto Editora, s/d. (sucessivamente reeditada e actualizada, vai actualmente na 17.- edicäo). Dramaturgia Maria Helena Serôdio 1. Ä maneira de prólogo Pergunto-me se näo haverá uma «razäo» dramatúrgica implícita, como sejam os tradicionais «Prologos» de pecas exortando ä benevolencia do público, que, por transferéncia metonímica, impôe aos estudiosos do drama ou teatro em Portugal que iniciem a sua escrita por um ques-tionamento mais ou menos sistemático sobre a existencia ou näo de teatro no nosso país e sobre a capacidade ou incapacidade de se escrever drama em portugués. Garrett falou de falta de «tete dramatique»1; Eca de Queirós de auséncia de génio dramático2; Fialho de Almeida de inabili-dade para construir enredos3; António Jose Saraiva viu no teatro portugués um «descampado»4, declarando, de resto, que «pôr o problema do teatro nacionál é nada menos que pôr todo o problema da estrutura da sociedade portuguesa»5; António Pedro, em 1955, declarou que teatro em Portugal «é, muito infelizmente, uma coisa que näo há»6; Joäo Gašpar Simôes decretou-lhe, em 1982, um idéntico anátema de inexisténcia7 e Jacinto Prado Coeľho, em finais dos anos 70, em diagnóstico bem defi-nido, lamentäva o nosso «teatro pobre» apontando algumas das razôes para essa debilidade: «subjectivismo congénito, incapacidade de erguer figuras-símbolo ou tipos, falta de dons tectónicos e de poder de sintese»8. Almeida Garrett, Prefácio ä l.4 ed. de Catäo, 1822. Eca de Queirós, «Junho 1871», in Urna campanha alegre 1,3,ä ed., Lisboa, Iivros do Brasil, 1980, pp. 24--25. Fialho de Almeida, «Teatro D. Maria 11» (1906), in Adores e Autores (Impressôes de Teatro), Lisboa, Livra-ria Clássica Editora, 1925, p. 9. Cit. Luiz Frandsco Rebello, Breve História do Teatro Portugués, 5.a ed., Mem Martins, Europa-América, 2000, p. 14. Cit. Luiz Frandsco Rebello, O teatro naturalista e neo-romántico, 1870-1910, Lisboa, ICP, Biblioteca Breve, 1978, p. 9. António Pedro, «Falar por falar», publicado no suplemento do Come'rcio do Porto, depois integrado no volume 2° da EstradaLarga: Antológia do Suplemento aCultura e Arte» de O Coniércio do Porto (Org. Costa Barreto), Porto, Porto Editores, s /d, p. 371. Joäo Gašpar Simôes, «António Pedro: Teatro», Diário de Notícias, 18 de Marco de 1982, integrado pos-teriormente no volume Crítica IV: O teatro contemporäneo (1942-1982), Lisboa, IN-CM, 1985, p. 337. Jacinto do Prado Coelho, Originalidade da literatúra portuguesa (1977), Lisboa, ICLP, Biblioteca Breve, 1983, p. 52. / As razöes sustentadas, parecendo exprimir um juízoíartístico e evo-car um possível atavismo nacionál, ultrapassam, porém, esse ämbito e essa alegacäo identitária, para expor, deliberadamente ou näo, motivos de ordern política, cultural e social que nos diversos tempos tern cer-ceado as possibilidades de criacäo dramática e teatral no nosso pais: teve a ver com limites censórios prolongados (a Inquisicäo durante muito tempo, a censura do final da monarquia9 e o exame prévio do fascisms10), reporta-se a diversos constrangimentos culturais11, mas tem também a ver com «a auséncia de vida social intensa, auséncia de um vasto publico educado, auséncia também de uma crítica orientadora»12. Podemos ainda apontar outras razöes: debilidades de preparacäo e de profissionalizacäo por parte dos artistas e técnicos de teatro; a irregulari-dade de escrita (por razöes várias, editoriais e de producäo); a deficitária educacäo artística, incapaz de formar um publico conhecedor e atento; as difíceis condköes de producäo e de circulacäo de espectáculos; ou ainda a complicada manutencäo e gestäo de teatros que muitas vezeš os tornám inacessíveis ä prática continuada de apresentacäo de producöes teatrais. Mas haveria também que ter em conta alguns preconceitos que se intrometem na escrita de quem reflecte sobre a cultura em geral e mini-rniza, na maior parte dos casos, o papel do teatro, talvez - numa expli-cacäo generosa - por o considerar um campo relativamente difícil de equacionar. De facto, por um lado, o teatro näo se restringe ao texto escrito - de acesso facilitado, se porventura encontrou editor -, antes visa uma realidade artística e social mais vasta e complexa; por outro lado, o Trata-se do decreto de 7 de Abril de 1890. V. Luiz Francisco Rebello em Fragmentes de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, pp. 28 e 85) uma lista de várias pecas censuradas antes da implantacáo da República. Referindo-se ä censura prévia instituída pelo decreto n' 13.564, de 6 de Maio de 1927, Luiz Frandsco Rebello escreve em «Pascoaes e o teatro», ColóquiolLetras, n° 45, Setembro de 1978, posteriormente integrado no volume Fragmentos de urna dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, p. 162: «De tudo isto resul-tou uma longa série de obras irrepresentadas (e, em grande parte, irrepresentáveis, ou quase), a redu-cäo ao siléncio, voluntário ou imposto, de grande numero de escritores, o divórdo cada vez mais pro-fundo, e ainda hoje por anular, entre os autores e o publico». Sobre os vários diplomas que foram sendo aprovados e que restringiam cada vez mais a actividade teatral veja-se Luiz Frandsco Rebello, «O combate contra a censura», Combate por um teatro de combate, Lisboa, Seara Nova, 1977, pp. 25-40. Veja-se Luiz Frandsco Rebello, Breve História do Teatro Portugués, 5* ed., Mem Martins, Europa-Amé-rica, 2000, pp.14 e 15. Jadnto do Prado Coelho, op. cit., p. 52. Por curiosidade näo deixaria de ser pertinente comparar estas afirmacöes com as produzidas por Henrique Lopes de Mendonca em 1901 na Assodacäo dos Jorna-listas em torno do terna «A crise do teatro portugues», pardalmente transcritas por Luiz Frandsco Rebello em Fragmentos de urna dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, pp. 30-31:«(...) os critérios mercantis dos empresários; (...) a indiferenca dos governos näo só perante as empresas que "por contrato espe-dal com o Estado tinham obrigacäo de subordinar aos Interesses artísticos os seus Interesses materials", como ainda no que respeitava ä educacäo estética do publico, "completamente abandonada pelas entidades ofldais", as condicôes de trabalho e a falta de preparacäo dos actores, a preferencia dada ao repertório estrangeiro, a escassez de encenadores sufidentemente hábeis; (...) a decadéncia da crítica teatral». seu estudo exige uma competéncia de leitura de espectáculos que näo 99 tem sido praticada de forma intensa e sistemática entre nos. Escasseiam, de facto, as «escolas» críticas; a Universidade só muito recentemente introduziu os Estudos de Teatro13 no seu curriculo; as companhias de teatro receiam, de um modo geral, arriscar a encenacäo de novos autores e, relativamente aos mais antigos, quase só revisitam os que constam dos prógramas escolares; säo raríssimas e irreguläres as revistas de teatro em Portugal; a crítica ao teatro ou ä escrita dramática tem visto redu-zir cada vez mais o seu espaco na comunicacäo social; os estudos que vém sendo publicados ultimamente sobre «publicos do teatro»14 těm uma componente exclusivamente sociológica sem atender a especifici-dades artísticas (por resultarem de investigacöes que näo integram equi-pas multidisciplinares), e säo poucas as editoras que apostam na publi-cacäo de pecas de teatro15 ou no incentivo aos estudos sobre teatro. Mas outra questäo maior há que enquadra a problemática do teatro entre nós e que, derivando das reflexöes de Garrett, tem tido clara e repetida expressäo no pensamento de vários autores e, em particular, na historiografia de Luiz Francisco Rebello: a inevitável convergéncia entre, por um lado, pensar o drama e teatro em Portugal e, por outro, definir o estatuto e a funcäo de um Teatro Nacionál16. E aí säo muitas as expec-tativas defraudadas, por näo ter havido até hoje uma política sustentada para animar uma dramaturgia original, rodeá-la de um efectivo debate crítico e de uma oficina de escrita, confrontá-la com formulacöes cénicas mais exigentes. O que näo significa que pontualmente se näo tenham feito esforcos nesse sentido, quer por esporádicas revisitacöes do Teatro Nacionál D. Maria II ao nosso repertório dramático, quer pelo trabalho de algumas companhias de teatro que operám dentro e fora de Lisboa, quer por incentivos vários de prémios17 ou seminários de escrita18 que algumas estruturas de teatro e literatura vém promovendo. 13 Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa foi criado um curso de espedalizacäo em Estudos de Teatro em 1992, o Mestrado da mesma area em 1998 e o Doutoramento em 2001. 14 Ver Rui Telmo Gomes (Coord.), Publicos do Festival de Almada, Lisboa, Observatório de Acüvidades Culturais, 2000; Maria de Lourdes Lima dos Santos (Coord.), Público(s) do Teatro Nacionál S. Joäo, Lisboa, Observatório de Actividades Culturais, 2001. 15 As excepcöes honrosas säo os Livros Cotovia, a recente Campo das Letras, a Imprensa Nacionál / Casa da Moeda (aqui só as obras completas de autores consagrados) e a Dom Quixote em parceria com a SPA. 16 Cf. Luiz Francisco Rebello, 100 mm de teatro portugues (1880-1980), Porto, Brasilia, 1984, p.ll, e Fragmentos de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, pp. 172-173. 17 É o caso mais emblemático do prémio Sociedade Portuguesa de Autores / Novo Grupo, o da Assodacäo Portuguesa de Escritores, do INATEL e, mais recentemente, do DRAMAT (Centro de Drama-turgias Contemporäneas, no Porto). 18 Vários tém sido os seminários oferecidos pelo DRAMAT, uma estrutura ligada ao Teatro Nacionál S. Joäo, no Porto, mas também a companhia de teatro Efémero em Aveiro organizou ateliers de escrita. Estas säo algumas das especificidades «nacionais» rríais debatidas, mas pressentem-se nelas outras questôes nem sempře claramente for-muladas e que se prendem quer ä necessidade de definicäo do drarrtá-tico num sentido mais amplo do que o articulado aristotélico, quer ä con-sideracäo das matérias e das perspectivas de análise no ämbito do que se tem praticado nos estudos culturais19. Esse é um programa de estudo que terá de ser feito mima explícita abordagem interdisciplinar, inte-grando a reflexäo sociológica e política, analisando as particulares esté-ticas teatrais postas em marcha, atendendo a múltiplas formas de tea-tralidade que operám na vida social e cultural, e ultrapassando a restrita atencäo äs «grandes obras»20. Sobretudo quando sabemos que muitn dessa «grandiosidade» é, como em parte explica a formacäo do cänone, garantida por urna continuada reflexäo crítica e recriacäo cénica, e disso näo tem havido prática constante entre nós por algumas das razôes acima expostas. Esse projecto de estudos de teatro no piano mais alar-gado e exigente dos estudos culturais, que se há-de cumprir um dia, näo dispensa, porém, urna análise da dramaturgia enquanto matéria literá-ria de vocacionalidade cénica, embora requeira urna atencäo äs condi-côes e consequéncias da sua recriacäo em palco, bem como ao momento histórico - politico, social e cultural - em que ocorre a sua escrita e a sua producäo cénica. 2. A história em dráma: as diversas modalizacôes t. A circunstäncia histórica é, porém, no caso portugués, näo apenas categoria interpelativa do facto artístico, mas também urna persistente matéria dramática, a ponto de Luciana Steggano Picchio ver aí urna das Ver, entre outros: Marvin Carlson, «Theatre Studies and Cultural Studies», in Degre's: Revue de Synthese a orientation se'miologique, n.s 107-108, Outono-Inverno 2001, pp. 1-11; Erika Fischer-Lichte, Vie Shoiv and the Gaze of Theatre: A European Perspective (Studies in Theatre History & Culture), Iowa City, University of Iowa Press, 1997; Kathleen S. Berry, The Dramatic Arts and Cultural Studies: Acting against the Gram, New York & London, Falmer Press, 2000; Lizbeth Goodman & Jane de Gay (eds.), The Rou-tledge Reader in Politics and Performance, London & New York, Routledge, 2000. Com inteira razäo Jose Oliveira Barata escreveu recentemente em O espaco literdrio do teatro: Estudos sobre literatura dramdtica portuguesa I, Coruna, Bafa Ediciones, 2001, p.101: «Defendemos que (...) o estudo de autores que, sistematicamente secundarizados, ajudam a melhor compreender as princi-pais coordenadas evolutivas da nossa dramaturgia. (...) Autores que, tidos quase sempre como mar-ginais äs grandes escolas e periodos estetico-literärios, contribuem para uma melhor compreensäo -dos modos como se articulam as värias escolas. Alem disso, näo raro, e neles que se divisa, em fase embrionäria, o que so muito mais tarde se assumirä na plenitude da escola». rMÔes da sua debilidade, quando, em finais dos anos 60, identificava Jois tipos de causa para a deficiéncia de um repertório portugués de teatro: por um lado, a existencia da censura21 (só abolida em 1974, com a Revolucäo dos Cravos), naturalmente referida com eufemismos pela autora22, e, por outro, uma razäo de ordern temática: a tendencia para «decompor a realidade pelos prismas da história e da lenda», e a persistente nostalgia de um passado heróico23. Luiz Francisco Rebello fala também dessa fixacäo no «eco de pretéritas grandezas, a memoria de tempos gloriosos»24 e faz remontar essa pecha a uma equívoca compreensäo das propostas de Garrett25. Com efeito, o rigor trágico de Frei Luis de Sousa em breve cedeu o lugar a um ethos melodramático, que, na opiniäo do critico Andrade Ferreira26, tornou o drama histórico oitocentista numa «praga», ou «pesa-delo». Assim, artificialismo na evocacäo do passado, esquematismo na visäo do mundo, desenho estereotipado de personagens e declamagäo retórica foram os tracos dominantes de uma dramaturgia que no pós--romantismo se serviu da história para inventár territórios fantasiosos e de fraca consisténcia humana. E a tendencia ressurgiu em forca nas duas ultimas décadas do Século XIX como resposta a uma situacäo política que parecia ferir o orgulho nacional (como séria emblematicamente o caso do Ultimatum inglés de 1890), e que favorecia uma visäo de heroísmo exaltado e de apologia deslumbrada do passado (mesmo entre os adeptos do republicanismo). Será o teatro simbolista de António Patricio que, prolongando embora este legado romäntico, trará para a evocacäo histórica o frémito Tírico e a dimensäo mítica que a resgatam ä banalidade dos enredos com-piicados. As suas pecas Pedro, o cru (1918), sobre o mito de Inés, e Dinis e Isabel (1919), sobre o milagre das rosas, evocam - no sortilégio de sensi-bilidades exacerbadas, ambientes lúgubres, actuacöes extravagantes e a presenca obstinada da morte - figuras do nosso passado medieval para 21 Trata-se näo apenas de referir a censura dos Ultimos tempos da monarquia e até do início do republicanismo, mas de forma mais explícita a que foi institulda pelo decreto da censura previa de 6 de Maio de 1927. 22 Luciana Steggano Picchio, História do teatro portugués, Lisboa, Portugália, 1969, p. 344. 23 i6/rf.,p.335. 24 Luiz Francisco Rebello, O teatro naturalista e neo-romäntico: 1870-1910, Lisboa, ICR Biblioteca Breve, 1978, p. 49. 25 Luiz Francisco Rebello, «Uma planta exotica de há cem anos», Prefácio para a reedicäo de Fígados de tigre, de Francisco Gomes de Amorim, Lisboa, IN-CM, 1984; posteriormente integrado no volume Fragmentos de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, pp. 13-22. 26 Cit. Ibidem, p. 16. nelas representar «a saudade do amor que a morte frustrou»27, por ai miti-ficando a história e engrandecendo a alma de Portugueses exemplares. É, porém, Ofim (1909) a peca de Patricio que mais claramente dra-matiza o decadentismo finissecular, proprio do simbolismo, a que se alia a premonicäo de um fim, este já claramente abrindo para o Século XX: näo apenas o fim da pretensäo de recuperar épicas grandezas (embora se fantasie o despertar da «Raca», ou os «remorsos» de um povo que vivera em cobardia muito tempo), mas também o fim da propria monar-quia, fortemente ameacada com o regicídio de 1908 e que cairá no ano seguinte ao da publicacäo da peca. Por essa razäo vé José Oliveira Barata nesta crepuscular história dramática em dois quadros o início de «uma tímida tendéncia para jogar com a História em sentido metaforico»28. Todavia, embora destacando-sě pela qualidade teatral e pela den-sidade humana conferida äs personagens, o drama de Patricio näo deixa de acompanhar a veia saudosista - ainda que sem manifestamenle se comprometer com ela - que o movimento da Renascenca Portuguesa procurou activar através da revista Águin. Partilha, assim, a seu modo, da visäo idealista do povo honrado e leal äs suas tradicöes, tal como Teixeira de Pascoaes efusivamente (mas dramática e teatralmente pouco consistente) glosou no drama em verso D. Carlos (escrito em 1919, só publicado em 1925), construindo a accäo justamente em torno do regicídio de 1908, e por ai afirmando-se, nesta sua episódica intervencäo no teatro29, como o mais fiel representante do ideário saudosista. Outros autores prosseguiräo nas primeiras décadas do Século XX a escrita de dramas históricos, por ve/es f'uncionando como reaccäo contra o regime republicano, como foi o casode Rui Chianca, com assuas pecas vers\ňca.das-Aljubarrota(1912)eNun'Álvares (1918), ou o de Vasco de Mendonca A Ives com A conspiradora (1913) e Os Marialvas (1914). Noutros casos tratava-se de prosseguir um exercício dramaturgico proprio, como é o caso de Henrique Lopes de Mendonca, com Afon>, Pessoa advogava um teatro que prescindisse da accáo, do movimento e do conflito, um teatro verdadeiramente lírico que se tor-nasse «revelacao das almas através das palavras trocadas (...) momentos de almas sem janelas ou portas para a řealidade»60. Para além do que se poderá conšiderar o «drama em gente» que construiu através dos seus Jnetemmmos, podemos assinalar a peca O marinheiro como exemplo maior do drama estático que o poeta defendia. Num ambiente irreal, de um caštelolTobre o mar, trés donzelas velam, sentadas, o corpo de uma outra, nao ousando o mais pequeno gesto e lancando-se em monólogos que cada vez mais se confundem entre si, como modalizacóes de uma mesma voz. Sobrepondo tempos, idealizando espacos e inventando um Marinheiro prisioneiro numa ilha, que é referente maior do universo oní-rico inventado, o texto poético pessoano é exemplo claro do simbolismo 57 Luiz Francisco Rebello, «1900-1945: Un siglo que se inicia com retraso», in Escenarios de dos mtmdos: Inventario teatral de Jberoamérica, Vol. IV, Dir. Moisés Pérez Coterillo, Madrid, Centro de Documenta-ción Teatral, 1988, p. 17. 58 José-Augusto Franca, Os anos vinte em Portugal, Lisboa, Presenca, 1992, p. 7. 59 Luiz Francisco Rebello, O teatro simbolista e modernista (1890-1939), Lisboa, Institute) de Cultura Portuguese 1979, p. 54. 60 Fernando Pessoa, Vaginas de estétíca e de teoria e crítica literárias, Lisboa, Ática, 1973, p. 112. no teatro como Maeterlinck o cultivou. De entre outros eslbocos dramá-ticos que nos deixou - A morte do principe, Salome, Diálogos no jardim do paldcio - destaca-se Fausto, peca em que trabalhou de 1908 a 1933. Das quatro pegas que terá escrito o outro poeta do Orpheu, Mario de Sá-Carneiro, duas perderam-se e as outras duas tem autoria dupla: Amizade (1909-1910) com Tomas Cabreira Junior, e Alma (1913, publicada em 1982), com Antonio Ponce de Leäo. Enquanto a primeira é devedora da estética naturalista, a ultima desenvolve de forma inesperada o motivo do triángulo amoroso, representando uma incursäo ä psicologia profunda do protagonista - Jorge, poeta e dramaturgo - que, no casa-mento, considera mais grave o pecado da alma do que o amor adultero realizado sem uma verdadeira entrega espiritual. Define-se, deste modo, näo apenas a recusa da ideia convencional do casamento e do adultério, mas também a consciéncia de que o hörnern näo se limita ao corpo e ä vida social, antes integra uma dimensäo espiritual bem importante. Com um diálogo fluente e uma resolucäo dramatúrgica eficiente, a peca apre-senta um desenlace inesperado mas feliz, dando conta, no seu conjunto, de uma ideia de teatro que, de resto, o autor desenvolveu num artigo sobre «O teatro-arte» que publicou no jornal O Rebate, em 1913. Todavia, na geracäo do Orpheu é o pintor Jose de Almada Negrei-ros o verdadeiro espirito inconformista. Foi ele que integrou de forma mais ousada o pensamento modernista nas artes do especl:acure,-denun-ciou o conservadorismo do teatro portugues e propös uma formula dramatúrgica e espectacular que, invocando inicialmente o discurso satirico--futurista de Marinetti, virä, de certo modo, a aproximar-se mais de alguns pontos da estética de Meyerhold (a teatralidade visual, os jogos circenses, a figura do palhaco, etc.). Todavia, Armada, enquanto dramaturgo, permanecerá fundamentalmente, e malgré lid, ligado mais a um lirismo pessoal de tonalidade simbolista, evocando nas suas pecas uma visäo ingénua, de pureza infantil, e iconograficamente representando bonecos ou figuras da commedia dell'arte, como é o caso de Pierrot e Arle-quim (1924) e do «lever de rideau» Antes de comegar (1912). Recusa vigo-rosamente a acgäo e o realismo mimético, atém-se a figuracöes abstrac- ___tas piifipificadas - a noiva, ele, a vampa -, procura a enunciacäo poética no espaco, rompe, enfim, com um teatro convencional, como é o caso da peca Deseja-se mulher (1928), que encena uma sequéncia de quadros em que se digladia o princípio abstracto do ferninino e do masculino. Contestando a arte académica - emblematicamente representada pelo proficuo dramaturgo Jtilio Dantas, autor de A ceia dos cardeais (1902), «obra-prima de futilidade e convencionalismo»61 e Sóror Mariana (1915) -, Almada Negreiros publicou um agressivo Manifesto Anti-Dan-tas ePpr Extenso (1915) onde näo apenas ridicularizou, de forma icono-clasta, a peca sobre Mariana Alcoforado, mas tambem vituperou tudo o que considerava de intolerävel complacencia com o convencionalismo e os lugares comuns da arte dramätica do seu tempo: «as pinoquices de Vasco Mendonca Alves, passadas no tempo da avözinha, as infelicida-des de Ramada Curto as gaitadas de Brun e os actores de todos os tea- .62 tros» Um dos pouquissimos dramaturgos Portugueses que poderíamos aproximar da outra vanguarda que é o expressionismo63 é Raul Brandäo, que, todavia, se iniciara nas letras participando na redaccäo do manifesto dos Nefelibatas em 1891. Para a caracterizacäo das suas personagens, Brandäo näo apenas os recqrta de entre os mais humildes e desgracados, vitimas dos mgcanismos iniquos da exploracäo económica e da injuslica social, como também os apresenta ä luz de uma irreprimível piedade e ternura. Säo figuras próximas dos mundos ficcionais de Dostoievski e Gorki, que, de resto, povoam a sua obra romanesca também, e nělás o autor desenha vidas habitadas pela dor e pelo sonho, oscilando entre o trágico, o patético e_o grotesco. Da sua incursäo pelo teatro, que, em apontamentos vários, parece ter ultrapassado os 20 títulos (correspondendo seguramente a projectos e esbocos), chegaram até nós apenas sete pecas: dois monólogos (O rei ima-ginário, 1923, Eu sou um hörnern de bem, 1927), a farsa O doido e ajnqrte (1923JLo^«ej)isódio dramatico» O Avejäo (1921, publicado naintegra sóem 1929), a peca em dois actos O Gebo e a sombra (1923) e duas pegas escritas em colaboracäo: Noite de Natal (1899, com Júlio Brandäo) e a tragicomédia Jesus Cnsřo em Eisboa (1927, com Teixeira Gomes). Nelas deparamos com uma construcäo dramätica forte baseada na evocacäo de ambientes mise-räveis, caracterizacäo a traco grosso de personagens dominadas pelo pänico de pecar ou de morrer, e um tecido verbal que, mesmo no monó-logo, empreende uma permanente confrontacäo entre atitudes inconcili-áveis (a exigéncia da verdade absoluta e as regras mesquinhas do quoti-diano) ou entre o eu (respeitador da lei) e o seu fantasma (que intui a zona obscura do desejo ou a terrível aprendizagem de que näo vale a pena o Luiz Francisco Rebello, 100 anas de teatro portugués (1880-1980), Porto, Brasilia, 1984, p. 17. Cit. Luiz Francisco Rebello, O teatro simbolista e modernista (1890-1939), Lisboa, Institute de Cultura Portuguesa, 1979, p. 55 Cf. Luiz Francisco Rebello em Fragmentos de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, p. 89: o autor ata neste contexto näo apenas o estudo introdutório de Vítor Vicoso ao Pobre de pedir, mas também uma passagem da História de um paihaco que, na sua opiniäo, descreve com rigor o que se poderia consi-derar uma verdadeira cenografla expressionista. sacrifício). Daí falar-se também a propósito do seu teatro de acentos pirandellianos, pela dialéctica do eu e do outro, e se eleger a farsa O doido eajnorte como «uma obra-prima e o momento mais alto de todo teatro brandoniano»64. Na sua visáo da condigao humana, tal como no-la apresenta no seu drama, estao elementos vários que Ihe afeicoam uma tragicidade muito propria em que distinguimos o libelo social de raiz^anarquista (contra a injustica, a falsidade, o sacrifício imposto aos humildes), a revelacao psi-cológica (em que convergem a dor, o espanto, a indignacao e o sonho), a inquietacao metafísica perante o mistério da vida (breve, pareděs meias com «uma coisa sofrega e imensa» aos gritos) e a misericórdia crista face á miséria e ao sofrimento. Outra peca referida a elementos do expressionismo é Gladiadores, de Alfredo Cortez, levada á cenano Teatro Nacionál em 1934, mas é-o sobre-tudo pelo lado da fria caricatura e do grotesce Dez homens e dez mulhe-res sao o ingrediente de uma luta de sexos que tem na Protagonista o símbolo da rapacidade destemperada: uma mulher, de aspecto temível e glutona, que casa pela vigésima vez (depois de 19 vezeš enviuvar) e dá á luz um filho de 87 quilos. Um dos aspectos aqui visados é o discurso de emancipacao das mulheres (que nos surgem representadas em recorte grand-guignolesco, quase como figuras satánicas), mas outras questoes candentes sao ainda abordadas, como a intromissao da publicidade e dos meios de comunicacáo na vida privada ou a ánsia desregrada pelo dinheiro e pela fama. Independentemente dos exageros fársicos, náo ě possível, todavia, ignorar o saudável eseándalo artístico que a irreve-réncia da peca trouxe ao panorama geral de convencionalismo e «boas» maneiras do teatro portugués dos anos 30. De resto, na consideracao do panorama teatral dos anos 30, parece menor a atencáo a novidades estéticas65, o que se deve, na opiniáo de Luiz Francisco Rebello a «uma censura táo arbitrária como rigorosa [que] mantinha o publico cuidadosamente afastado das grandes obras do repertório mundial» e eriava as condkpes para uma «resignada aceita-cáo dos padroes mais conformistas do teatro mais convencional», tudo deserevendo, afinal, a «espessa noite que sobre o nosso teatro descera»66. E contra essa apatia intelectual e moral que se irá afirmar a revista presenga, que se editou em Coimbra de 1927 a 1940, e cujos colaboradores Luiz Francisco Rebello, Fragmentos de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, p. 95. Cf. 100 anos de teatro portugués (1880-1980), Porto, Brasília, 1984, p. 23. Luiz Francisco Rebello, Fmgmentos de uma dramaturgia, Lisboa, IN-CM, 1994, p. 193. mais prestigiados se deixaram entusiasmar pela escrita dramática, como foi o caso de Branquinho da Fonseca, Jose Regio, Miguel Torga (Terrafirme e Mar, ambas de 1941), Joäo Gaspar Simöes (Vestido de noiva, 1952) e Antó-nio Botto (Alfama, 1933)7Näo se pode, pórem, falar de uma dramaturgia específica da presenga, mas antes de percursos individuais, sendo genera-lizada a ideia de que o grande protagonista das ideias presencistas em teatro - até pela consisténcia e valor da sua escrita -, foi Jose Regio. No caso de Branquinho da Fonseca a ineursäo pela escrita de teatro fez-se mais cedo na sua carreira do que aconteceu com Jose Regio ou Miguel Torga, tendo publicado no seu n.fi 16 o «drama em um acto» A posigäo de guerra (1928), a que se seguiram o diálogo Os dois (1929), o «poema em um acto»_Curua do céu (1930: este jájia revista Sinal, que fun-^foucomjyfiguel Torga, depois da cisäo havida no grupo presencista). Em 1939 sairá um volume de Teatro, com uma nova versäo de Curva do céu, «o apólogo em um acto» Ras, uma «parabola em nove quadros» A grande estrela, e um «apontamento para uma peca» Quatro vidas. Ässim, apesar da referenda a outros títulos que encontramos no seu espólio, apenas estas seis pecas foram publicadas e, no fundamental, estäo aquém da sua obra narrativa. Porém, o modo como dramatiza o desdobramento das personagens (um alter ego que surpreende a sua face obscura ou revela a contradicäo que o habita), a rantengäq externa do diálogo, a capacidade visionária que parece invadir o quadro estreito da evocaeäo do real conferem äs suas pegas uma qualidade teatral intimista e uma clara^ressonáncia lírica. Como exemplarmente encontramos na Curva do Céu, que nos comove pelo lirismo sofrido com que dramatiza a mořte de unia erianga, inventando, em contraponto com o coro de Pescadores que se ouve lá fora, a entrada onírica dos trés Reis Magos que em breve se transformam nas trés Parcas. E ainda pelaatengäo ao indivíduo na dupla relacäo com o social (que cerceia a sua liberdade) e o espiritual (em que procura um sentido divino que o resgate ä vida limitada do corpo) que o outro presencista -José Régio - irá pautar a sua escrita dramática, que, todavia, surge já mais tarde na sua carreira das letras (quase dez anos depois da publicaeäo dos Poemas de Deus e do Diabo). Considerado o verdadeiro dramaturgo da presenga, a ele se deve o ensaio «Vistas sobre o teatro» - um dos que publi-cou no posf ácio do seu Primeiro Volume de Teatro sob o titulo «Tres Ensaios sobre Arte» (1940) -, e nele o autor reivindica a importäncia da dimen-säo espectacular do teatro que, a seu ver, näo se devia restringir ao campo do literário (apesar de atribuir em muitos outros passos da sua reflexäo escrita uma importäncia decisiva ä qualidade literária dos tex- tos dramáticos). Apesar da sua vontade de ver as pecas rjassarem pela prova do palco, näo foi fácil a criacäo cénica dos seus textos, e teve mesmo de esperar 15 anos sobre a finalizagäo do seu mistério Jacob e- o anjo (1937) para o ver representado em Paris, no Studio des Čhamps Ély-šees, em 1952. Revelando algumas influéncias do expressionismo säo, porém, autores católicos como Claudel ou T.S. Eliot que se revelam os referentes maiores de muito do seu teatro. Como em Branquinho da Fonseca (ou nos órphicos Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), a obra de Regio interroga a dualidade do hörnern, des-dobrando cada um no seu alter ego, ou nos outros várips que q habitam, e analisando, assim, a dupla solicitacäo a que é exposto o hörnern. Essa é a razäo pela qual o Anjo revela ser a outra face de Jacob (Jacob e o anjo), Simôes Gomes o reverso de Sebastiäo (El-rei Sebastiäo, 1949), Jerónimo o «complemento» de Pedro I da Trasländia (na tragicomédia alegórica A salvagäo do mundo, 1954), dedicando-se ainda urna das suas pecas - o episódio tragicómico Mário ou eu proprio o outro - ä problemática que a vida e poesia de Mário de Sá Carneiro emblematizaram. E ainda legível no seu teatro a incomunicabilidade entre os homens que deriva do egó-centrismo de cada um, fixado no seu proprio «caso» (a farsa O men caso, 1957). É, porém, com Benilde ou a Virgem Mäe (1947) que o seu teatro atinge a mais arrebatadora expressäo do corvflito entre o terreno e o divino, colocado na propria vivéncia da protagonista e mostrado na sobŕeposicäo do piano natural (que explica a gravidez de Benilde, pela presenca do vagabundo idiota) e do piano místico (de a jovem se julgar escolhida por Deus). Um aparente naturalismo está presente na evoca-cäo de urna atmosféra (um solar alentejano), no desenho das persona-gens, na fluéncia coloquial posta no diálogo. Mas é num frémito espiri-tual, que percorre o universo da peca e lhe confere um ethos trágico, que localizamos a razäo perturbadora de urna ambiguidade essencial, que sc mantém para lá da «explicacäo» verosímil, por näo se pôr em causa a autenticidade do fervor místico de Benilde. Ligado ä revista presenga, onde publicou a peca Continuagäo da comé-dia (1939), de evidente traco pirandelliano, Joäo Pedro de Andrade escre-veu cerca de 15 pecas, foi crítico de teatro na Sear a Nova, e relativamente ä sua escrita dramática Jose Regio elogiou «a naturalidade e qualidade literäria do diálogo, a finura da observacäo psicológica, a seguranca dos recursos técnicos, o interesse dos motivos»67. É ainda na década de 30 que Jorge de Sena inicia a sua aproxima-cäo ao^te^ro" (comli cómédia Luto, 1938), assumindo, de resto, nas trés í -"aécadas subsequentes, um compromisso completo com a arte no seu i todo: traduz pecas (Longa Jornada para a noite e Desejo sob os ulmeiros, de Í Eugene O'Neill), adapta narrativas ao teatro radiofónico (13 ao todo, no I ano de 1948), escreve pecas de teatro (oito completas, várias outras em 1 esboco oú incompletas), faz crítica a espectáculos (a partir de 1947 na j Seara Nova, na Vértice e na Gazeta Musical)68, publica recensöes a pecas e j dramaturgos (nos jornais O Primeiro de Janeiro, Jornal de Notícias, j O Comércio do Porto e O Estado de S. Paulo, bem como na revista O Tempo e o Modo), escreve ensaios sobre teatro, envolve-se, enfim, na fundacäo de urna companhia de teatro - os Companheiros do Pátio das Comédias - juntamente com Antonio Pedro e Costa Ferreira, j ^Sejn'O Indesejado (1944-1945, publicada em 1951) Sena escolhe a J austeridade do decassüabo, o rigor de urna tragédia estruturada em 4 actos, o brilho de um estilo gongoricö, reclamando a seriedade do I assunto e da sua candente significacäo «exemplar», as restantes pecas, i todas bem curtas, apresentam tracos mais ligeiros, iconoclásticos, deve-\ dores de uma irreveréncia deliberada, embora näo destituida de sentido ! mais profundo, que Luiz Francisco Rebello refere ä matriz surrealista, j A farsa ferocissima Amparo de mäe (1948), a mais conhecida e represen-I tada, inventa um velório de urhäjovem para evocar näo apenas o ambi-ente de urna pequena burguesia convencional e mesquinha, mas sobre-i tudo para fazer explodir na bofetada, que a mäe dá na filha defunta, a raiva de ver ali terminar o seu «amparo», revelando por aí a rapacidade I e egoísmo que marcam em Sena a figura da mulher e «mäe». E ainda que l o autor por vezeš reporte o seu teatro ao de Raul Brandäo, e, em jeito de parabola, até se possa cotejar a situacäo de um velório que O Avejäo tam-bém evoca, a verdade é que há na pega de Sena urna visäo mais cínica e amarga_da humanidade, e no realismo subvertido, em vez do sonho e do yisionarismo brandoniano, explora-se o gesto brutal como uma «rea-lidade» näo convencional, por isso «surreal», mas traduzindo um ins-tinto «verdadeiro». As outras farsas - Ulisseia adulter a (1948), A morte do Papa (1964), O império do Oriente (1964), e a fantasia mitológica O banquete de Diónisos (1969) - säo incursôes sarcásticas, em jeito de parabola, a aspectos do regime, quer na sua vertente pretensamente épica, quer a formas de repressäo e imposicôes ideológicas, quer ainda a tendéncias Jose Regio, «Duas pecas de Joäo Pedro de Andrade», in Joäo Pedro de Andrade, Teatro ff - Ttrans-viados; II - Uma só vez na vida), Lisboa, 1941, p. 261. 68 Reunidas no volume Do teatro em Portugal, Lisboa, Edicöes 70,1988. / culturais e artísticas de que o autor desconfia (como no caso do Bouquete, reportável a alguns espectáculos americanos de vanguarda). Para o fazer, recorre parodisticamente ä citacäo de vários generös teatrais (como o melodrama, o circo ou, revista, o happening, etc.), usa um tom de grand--guignol na caracterizagäo das figuras - tornadas títeres caricatos -, inventa situacöes absurdas, rudo elementos que confirmam a aproxima-cäo do seu teatro ä dramaturgia surrealista, evocadora de Jarry ou Apollinaire. ---------- A sua ultima peca - a tragédia satírica em um acto Epimeteu, ou o hörnern que pensava depois (Í97ÍJ- é uma eomplexa meditacáo em torno do que julga ser o fim do legado cultural do Ocidente - de racionalidade e humanismo - que detecta nos tracos mais evidentes do novo mundo: a geracäo hippy, o endeusamento da cibernética e da tecnplogia, a exces-sivá cedéncia ao imědiato, ao instinto e ä incapacidade de pensar criti-camente. Ao fazé-lo o autor usa de uma extrema liberdade de citacäo -literária e intelectual em geral, e do espectáculo em particular - o que confere a esta fantasia uma característica de patchiuork-de carácter forte-mente experimentalista e de exigente realizacäo performativa, espécie de paródia em forma de delírio maneirista. Dois outros dramaturgos seräo referidos ao surrealismo: o drama-turgo e encenador Antonio Pedro (embora a sua participacäo nesse movimento seja mais relativa ä sua poesia e ä sua pintura) e NataliaCor-reia, de O homúnculo (1964) e Sucubina ou a teoria do chapéu (1952), esta escrita em colaboracäo com Manuel de Lima. No início dos anos 60, uma curiosa eolectánea de pecas - Novíssimo teatro portugués (1962) - procu-rava lancar, em paralelo com iniciativas semelhantes na poesia e no romance, alguns trabalhos dramatúrgicos referidos a experimentalismos vários de jovens autores como Fiama Hasse Pais Brandäo, Augusto Sobral ou Maria Teresa Horta. Todavia, alguns aspectos quer do delírio de enredo, quer do grotesco das figuras e gestos caros ao surrealismo säo visíveis ainda nos dramas de tonalidade existencialista (Augusto Abe-laira, A palavra é de oiro, 1961; Urbano Tavares Rodrigues, As tones míle-nárias, 1971), mas estäo mais claramente presentes no teatro do absurdo que entre nos se firmou nos dramas de Jaime Salazar Sampaio, Hélder Prista Monteiro e, parcialmente, no de Augusto Sobral. Prista Monteiro deixou-nos textos em que revela alguma influén-ciä äbsurdista (A rabeca, 1961, e O meio da ponte, 1966), embora, a meu ver, o aspecto mais interessante da sua obra tenha sido a análise de compor-tamentos sociais vistos, ora com alguma compaixäo e assombro (Ofio, 1980, e A vila, 1985), ora com urn forte rigor sarcástico (A caixa, 1980). Jaime Salazar Sampaio, iniciando-se numa escrita de tópica existencialista e absurdista, mantemcomo centro da sua composicäo a figura individual, marcada pela solidäo, desencanto e, por vezes mesmo, deses-pero (Junto do pogo, 1964; Conceigäo ou o crime perfeito, 1979; O desconcerto, 1980). Experimentou também um registo crítico de alguma comicidade (Os pregos, 1976) e, mais recentemente, criou em Adieu e Magdalena (1992), bem como em A escolha acertada (2000), exercícios hábeis de uma curiosa indecisäo de personalidades e situacöes, de modo a confundirem-se ver-dade e sonho, passado e presente, comédia e drama. Nesse sentido, jus-tifica-se amplamente que o seu teatro seja referido a aspectos do absurdo ou da dramaturgia pirandelliana, pela visäo algo inquietante que nos revela e que deriva da indecidibilidade a propósito da caracterizagäo das personagens ou da definkäo do tempo e espaco. Assim, entre os elementos do cenário, pelo menos um parecerá inadequado ao lugar ou ä circunstäncia, lancando a dúvida sobre a consisténcia do conjunto; as personagens surgem com uma caracterizacäo relativamente vaga e incerta, e nem os seus actos, nem as suas intencöes säo completamente compreensíveis; por ultimo, a accäo no seu todo aparece rodeada de hesi-tagöes, sobrepondo-se constantemente passado e presente, realidade e ficcäo, num jogo em que se cruza o estigma da solidäo e uma vaga iro-nia nostálgica com a ideia da imprevisibilidade da vida. Augusto Sobral, com uma escrita tensa e económica, trabalha uma zona entre o realismo e o simboHco, indagando algumas das razöes que determinant as relacöes sociais num mundo em que a violéncia é mui-tas vezes subliminar. Assim, as contradicöes, os conflitos, a luta pelo poder, a oposkäo entre fracos e fortes säo elementos decisivos do uni-verso ficcional de pegas täo interessantes como O Borräo (1962), Memó-rias de uma mulher fatal (1982), ou Abel Abel (1992), esta explorando de uma forma original a situagäo arquetípica do episódio bíblico num registo aparentemente naturalista, mas com uma depurada construgäo dramatúrgica que se encarninha para um final ambíguo. Um caso singular no panorama portugués, pela persisténcia e pes-soalidade da sua escrita, é Vicente Sanches. Abordando, de forma singular, aspectos da comédia de costumes e integrando alguma reflexäo sobre a teatralidade, Vicente Sanches tem uma vasta produgäo dramá-tica, de onde se destacam pegas como Uma impossível inocencia ou a pos-sível loucura (1958); A birra do morto (1973); Grupo de vanguarda (1989); Liturgia polémica (1992) e A casa do ser (1995). Compondo comédias e far-sas de tom desconcertante e por vezes absurdo, a sua escrita opera geral-mente sobre o modelo da comédia de costumes, reelaborando sem ces- sar as aventuras e desventuras de casais, näo faltando pormenores de algum realismo sórdido do viver quotidiano. As suas personagens, des-ligadas de contextos sociais precisos, deambulam por casas onde näo f al-tam criados solícitos e vivem situacöes de conflito em que amores, infi-delidades e ódios (que decorrem de uma visäo misógina) se desenca-deiam com grande ligeireza, num contexto de repetidos casamentos, divórcios e tentativas de suicídios ou assassínios. É assim, de facto, que se cruzam no seu universo, em registos muito variados, amor e morte, quer desenvolvendo a temática da morte por amor (Gilberto e Mónica, 1993), quer cultivando formas de humor negro em que doencas incurá-veis, caixôes, enterros e cemitérios säo motivos de exasperacäo grotesca (sendo aqui A Una do morto a sua mais notável composigäo). Näo faltam na sua dramaturgia casos estranhos, como loucura, neuroses e supersti-cöes populäres, e em muitos acontecimentos bizarros parece visivel a mäo interventora do diabo (o que decorre de uma obsessiva religiosi-dade, embora esta possa aparecer de forma paródica). A sua dramaturgia ensaiou também^sátira-pojítica (O mágico; Fabula das fábulas; etc.), num recorte de extravagäncia absurdista, e inclui ainda formas de envol-vimento do publico, quer programando a intervencäo de actores situa-dos entre os espectadores, quer através do que veio a propor como «tea-tro de aforismos» que, prescindindo da accäo, é feito de curtos diálogos aťorísticos, trocadilhos e jogos de palavras, apelando a possíveis reacgôes da plateia. Outro percurso individual, menos afeito a escolas ou tendéncias mais generalizadas, é o de Norberta Avila. Conhecedor dos processos dramatúrgicos da literatura clássica, Avila interpela a tradkäo teatral (do teatro vicentino ä commedia delľarte, de Moliěre ä moderna comédia de costumes) e confabula histórias fantasiosas. Säo assim As histórias de Hakim (1968) na tradicäo do contador de histórias, mas percebemos em grande parte das suas pegas uma igual tendencia para refazer (com algum engenho e saber) enredos e personagens de outros universos dra-máticos e culturais, geralmente em forma de comédias, e, ainda que refe-ridos a urna realidade contemporänea, desligados de qualquer proble-mática social ou política, como exercícios competentes de alguma super-ficialidade humana. É o caso de D. Joäo no Jardim das Delícias (1987); Arlequim nas ruínas de Lisboa (1992); Uma nuvem sobre a cama (1997), sobre Anfitriäo; O marido ausente (1968), sobre Ulisses; ou Salome ou a cabega do profeta (2001). 5, Visöes críticas do quotidiano A VÁRIAS VOZES, NA COMÉDIA Na escrita para urn teatro de divertimento, que aliasse a palavra ä música e a elementos de forte visualidade, foi o teatro de revista näo ape-nas a moldura cénica mais popular e persistente, mas também o desafio a várias parcerias autorais de relativa fidelidade, sem que, todavia, essa autoria reclamasse a publicagäo das pegas, mesmo as que encontraram o maior favor do publico. E críticos há que reconhecem na revista uma fonte importante de estudos sociológicos que permitiriam conhecer näo apenas aspectos interessantes da linguagem e do imaginärio populäres, mas também um roteiro de questöes candentes do ponto de vista politico, social e cultural69. Independentemente das filiagöes canónicas com que se tem pre-tendido prestigiar ou nacionalizar o género revisteiro - reportando-o ä comédia de Aristóf anes ou aos autos de Gil Vicente70 -, a verdade é que esse tipo de teatro parece derivar do modelo trances da revista do ano que terá tido a sua primeira apresentagäo entre nós em meados do Século XIX, mas ajme Sousa Bastos, dramaturgo e empresário, imprimiu uma fisionomia propria (a partir de Coisas e loisas, 1869) que faria passar para segundo piano o comentário critico aos acontecimentos do ano, para pri-vilegiar antes a fantasia, a espectacularidade plastica e o erotismo. Inter-pelando de moďos diversos a realidade política (umas vezes num sen-tido mais conservador, noutras ensaiando posigöes mais progressistas71) e usando, com alguma flexibilidade, uma determinada estrutura dra-matúrgica e cénica, o teatro de revista foi conjugando elementos diversos: comentários políticos em rábulas ou pela voz do compere; quadros satfricos (de «maus» costumes); caricaturas de personagens da vida política e cultural; cangöes (ficando algumas delas no repertório popular muito para alem do tempo do espectáculo); cenas coreografadas ou dan-gas; o final das suas duas partes (depois de um primeiro modelo que ainda decorria em trés actos) com quadros de apoteose. Nestes finals verificava-se um acréscimo de plumas, lantejoulas, sedas, cores (em cenários e figurinos), luzes, música e vozes que conduziam a momentos de vibrantě espectacularidade. 69 Arnaldo Saraiva, «Revista (á) Portuguesa» in Literatura marginalizada, Porto, Edicoes Árvore, 1980, pp. 37-62. 70 Cf. Luiz Francisco Rebello, Históría do Teatro de Revista em Portugal, 2 vols, Lisboa, Dom Quixote, 1984. 71 Luiz Francisco Rebello, Op. cit., vol. I, pp. 28-30. No que diz respeito ao texto, é de assinalar a «Parceriai» em Lisboa de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes e Joäo Bastos que, entre 1912 e 1927, assinou éxitos reconhecidos como as comédias O Conde-Baräo (1918), O amigo de Peniche (1920) e O Leäo da Estrela (1925), para alem de várias revistas de éxito como a De capote e lengo (1925), tendo usado a čerta altura o pseudónimo de Fulano, Cicrano e Beltrano. Juntou-se a esta uma outra parceria - de Luis Galhardo, Alberto Barbosa, Xavier de Magalhäes e Lourenco Rodrigues - para criarem, sob o pseudónimo de Gregos e Troianos duas revistas de grande popularidade - Rataplan! o Foot-Ball -, que assinalaram em 1925 a importäncia do Parque Mayer como novo centra de divertimentos de Lisboa, depois da inauguracäo em 1922 do Teatro Maria Vitória72. É ainda Luis Galhardo, em parceria com Alberto Barbosa e Pereira Coelho, que assina uma das revistas de maior longevidade -O 32 - estreada em 1917 e que se manteve - ainda que intermitentemente - quatro anos em cartaz. Também na cidade do Porto se pode registar umá parceria de longa duracäo de Arnaldo Leite e Carvalho Barbosa a quem o teatro ficou a dever operetas de costumes tripeiros - O garoto da Ribeira (1927) e A catraia do Bolhäo (1936) -, mais de vinte revistas e a farsa muito popu-larizada Cama, mesa e roupa lavada (1922). Dois outros autores que se repartiram pela revista e pela comédia foram Eduardo Schwalbach e André Brun. O primeiro iniciara-se com grande éxito na revista com Retalhos de Lisboa (1896), assinara depois mui-tas outras criacóes do mesmo género com talvez menor originalidade, mas veio a assegurar uma invejável producäo dramática (mais de 50 pecas) que passou ainda pela opereta e pelas comédias brilhantes A Senhora Ministra e A bisbilhoteira (1900). André Brun cuidou de passar para o teatro de revista o melodrama de Júlio Dantas A Severa, em 1909, em parceria com Filipe Duarte, pros-seguindo depois a sua carreira dramática em 1911 com a revista Pó de Per-limpimpim (em parceria com Ernesto Rodrigues), e dando ä comédia por-tuguesa dois textos que merecidamente se tornaram éxitos de indiscutí-vel popularidade: A vizinha do lado (1913) e A maluquinha de Arroios (1916). A par do teatro de revista, cada vez mais centrado nos teatros do Parque Mayer, outros pólos de celebracäo da comédia surgem em Lisboa, como o Teatro Monumental (do empresário Vasco Morgado) no iní- Em 1926 é inaugurado o Teatro Variedades, em 1931 o Capitólio e em 1956 o ABC. cio dos anos 50 e em meados de 60, o Teatro de Villaret em torno de Raul Solnado, mas em ambos os casos é, com raríssimas excepcöes, funda-mentalmente um repertório estrangeiro que aí tomará assento. O início da década de 70 verá uma čerta renovacäo do Parque Mayer com a contribuicäo de novos autores como César de Oliveira, Rogério Bracinha, Jose Viana, Gonsalves Preto e Francisco Nicholson, entre outros, mas a radicalizacäo política a que se assistiu depois de 1974 levou ä criacäo de uma cooperativa - o Ádóque - que funciónará hum teatro desmontáveí no largo do Martim Moniz. Abriu a sua producäo com Fides na grelha (1974) e terá um ponto alto do seu repertório na revista A Paródia (1977), celebrando o centenário de Rafael Bordalo Pinhěiro (que se perfizera um ano e meio antes), ao mesmo tempo que nos teatros do Parque Mayer se assistia, sobretudo a partir de finais de 75, a uma acentuada viragem ä direita do seu repertório. Para o Adóque escreveräo, para alem dos que no Parque tinham assegurado uma renovacäo de escrita e de processos do cómico no início de 70, poetas como Ary dos Santos e Joaquim Pessoa. De um modo geral, a dramaturgia do Adóque representará a visäo mais progressista do ponto de vista politico, sem, porém, perder de vista a estrutura, a música e os modos espec-taculares da teadicäo revisteira. Alguns dos autores que aqui se juntavam em parcerias provisórias iräo assinar comédias musicais, de cariz forte-mente politico, que subiräo ä cena no Teatro Aber to - Os macacöes (1977) e O caso da mäozinha misteriosa (1978) - como é o caso de Ary dos Santos e Augusto Sobral, entre outros. Curiosamente é no ano em que o Adóque fecha as suas portas por imperativos urbanisticos da zona - em 1982 - que no Porto uma companhia independente de teatro - a Seiva Trupe - inaugura um novo tipo de teatro musicado que procura renovar o teatro de revista numa interessantissima solucäo de café-teatro. Trata-se de Um cálice de Porto, de autoria de Norberto Barroca, Manuel Dias e B. Veludo, e, para alem de ter sido, merecidamente, um éxito extraordiná-rio nos dois anos em que se manteve em cena, criou uma nova «tradi-cäo» de teatro a que aderiram muitos grupos. Tratava-se de experimen-tar formas de divertimento em que a relacäo directa de actores e publico, a música e o cómico revisteiro - de tipos sociais, comentários políticos e paródia a outros textos - se redimensionava a pequenas salaš, de meios cénicos mais modestos, com o publico agrupado em mesas, e apelando a uma mais viva participacäo. Este tipo de café-teatro atrai, para a sua escrita, actores de teatro como Carlos Paulo e Fernando Gomes, e será uma das alternativas a um teatro de revista que ia progressivamente per-dendo, ao longo da ultima década do século, os seus actores (que se pas- savam para a televisäo) e o seu publico (geograficamente' empurrado para as periferias das cidades). Na mais recente dramatizacäo do quotidiano, encontramos o pre-domínio de urna visäo cómica sinalizando os modos de viver contem-poräneo sobretudo nas grandes cidades. Assim se abordam medos, obsessôes, manias, fragilidades várias no modo de relacäo com os outros, consigo mesmo e com a vida em geral. Em jeito de comédia, estas pecas säo aproximacôes curiosas a cenas da vida contemporänea, registando temáticas amorosas (geralmente para falar de desencontros e incompa-tibilidades) ou formas de actuacäo reveladoras de urna mentalidade reprovável. . Luisa Costa Gomes estreou-se na escrita dramática com Nunca nada de ninguém (1991), convencendo de imediato pela sua capacidade de cap-tar, com fina observacäo, cenas do quotidiano e construir, com grande fluéncia e humor subtil, fragmentos de conversas que nos reenviam para temáticas contemporáneas, fazendo um exame quase exatistivo das obsessôes de hoje. É sobretudo a mulher com os seus problemas, medos, frus-tracôes e desejos que povoa este universo, oscilando o diálogo entre a con-fissäo ou desabafo monologado e os acertos e desacertos das relacôes cru-zadas que vive em casa e na sociedade. Ainda em registo de comédia säo: A vinganga de Antero, ou a boda deslumbrante (1996), urna curiosa danca de roda para um sólista que se desdobra em vários papéis para compor uma comitiva de casamento, e Arte da conversagäo (1999) que parece visitar ambientes e personagens do Século XVIII. De sentido e intencäo diferen-tes säo as pecas Clamor (1994), que evoca a figura e os escritos de Padre Antonio Vieira, bem como O céu de Sacadura (1998), que relembra a faca-nha da primeira travessia aérea do Atläntico por portugueses. Teresa RitaJLopes, que se iniciara no teatro com Tres fósforos (1962), escreveu ainda para o palco Sopinhas de mel (1981) e Rimance da mal-mari-dada (1994). Mais recentemente, com Esse tal alguém (2001), a autora dese-nha urna composicäo dramatúrgica que desafia, como diz na introducäo, «os géneros puro-sangue», optando por elementos que tém a ver com poesia, narrativa, teatro. A peca apresenta urna sequéncia de monólogos - de um Ele e uma Ela - (que poderäo ser figurados por urna simples dupla de actores multiplicados por vários personagens), bem como um coro, com uma apresentacäo física e funcäo próximas do da tragédia grega, embora esteja repartido por um semi-coro masculino e um semi--coro feminino. A sequéncia de vozes que monologam - ou encenam mesmo diálogos imaginários - contam histórias ou descrevem situacôes captadas do quotidiano e nelas as figuras revelam-se frágeis, alucinadas, contraditórias, incompetentes, provocadoras, sonhadoras, enfim huma-nas. Säo histórias inventadas com um brilho invulgar, de urna concisäo e eficiéncia discursiva notáveis, e que nos devolvem - com uma irónia cúmplice, serena, quase amorosa - urna visäo das fraquezas humanas num projecto teatral de rara criatividade. Ainda no registo crítico do quotidiano assinalaria a comédia de costumes dé António Torrado em Conte comigo (1996), urdida, com grande verve, em torno de um apresentador de um talk-show de televisäo, bom como a peca de Mário de Carvalho Se perguntarem por mim näo estou (1999), urna comédia inteligente e bem arquitectada sobre as reaccôes de alguns vizinhos perante um perigo no prédio - talvez um tigre ä solta -, símbolo do eventual espectro de um estado repressivo. Mas na aproximacäo ao nosso quotidiano tem havido também urna tentativa para centrar os universos dramáticos em torno de figuras jovens, o que por vezes coincide, mas nem sempře, com autores que podemos considerar jovens. As pecas Pentateuco: Manual de sobrevivéncia para o ano 2000 (1998), de Carlos J. Pessoa, Universos e frigoríficos (1998), de Jacinto Lucas Pires, e Contos do ódo (1997), de Mário Botequilha, exercitam uma escrita que poderíamos grosso modo referir como pós-moderna. Trata-se de uma escrita fragmentária, escandida em quadros sem grande articulacäo de tempo, espaco ou accäo, e em cujo universo de personagens se confun-dem figuras mais ou menos individualizadas, estereótipos (sociais, cul-turais ou outros), além de seres fantasiosos de recorte fílmico ou da banda desenhada. Säo exercícios verbais que repousam numa čerta fri-volidade, embora possam permitir alguma liberdade de interpretacäo aos actores e possam ainda consentir alguns efeitos cénicos e visuais mais ou menos interessantes. Neste conjunto de escrita mais ágil (mas talvez mais dispersa e desequilibrada) é de anotar a consisténcia da dramaturgia de Abel Neves. Com uma obra já considerável, sublinharia a sua capacidade de iluminar cenas do quotidiano numa estratégia de aleatoriedade. Assim, em Além as estrelas säo a nossa casa (1999) Abel Neves dá-nos um conjunto de 30 cenas, apelando a que cada encenador escolha aleatoriamente (como num jogo de dados) um conjunto de 7 ou 8 cenas, para o que pre-cisará apenas de 3 actrizes e 2 actores. Explora, assim, o jogo do quotidiano em quadros breves que exercitam um esquema proximo do conto: descricäo de uma situacäo na qual se vem introduzir um elemento imprevisível - que pode ser romántico ou absurdo -, e do qual decorre um final inesperado. Da irreconciliaclo, entre a situacäo do quotidiano e esse elemento, advém uma crítica em jeito de irónia fantisiosa a que näo faltam transformagôes delirantes ou a confirmacäo de. uma suspeita, tudo conducente a um desenlace repentino. NOVAS DECLINACÖES DO TRÁGICO Muitos foram, como vimos, os autores que ao longo da primeira metade do Século XX se aproximaram do género trágico, quer falando do passado (em visôes neo-romänticas ou em efusivas expressôes sim-bolistas), quer olhando a realidade sofrida de bairros populäres (em enredos a que näo faltam elementos declaradamente melodramátkos), quer ainda veiculando uma visäo pessimista que parece negar qualquer traco de esperanga ä vida em sociedade (por razôes morais ou religio-sas). Desiguais foram essas declinagôes do trágico, sendo, todavia, visí-vel em muitas delas um recurso mais ou menos continuado ao pathos. Nos anos 50 e 60, é Bernardo Santareno indubitavelmente o dra-maturgo mäís importante pela espessura trágica dos seus universos, pela forca com que desenhou as suas figuras - em conflito agónico com urn mundo injusto ou opressor -, pelo exasperado processo de culpa que faz dos seus protagonistas anjos feridos73 de morte. A riqueza poetka dos seus diálogos, criando um tecido rico de metáforas e aforismos, conjuga uma forca telúrica popular com urn preciosismo estilistico de cuidada elaboracäo literária, o que, por vezes, pode dificultar a sua transposkäo cénica se referida a um quadro realista. Proximo da dramaturgia de Arthur Miller, Tennessee Williams e Federico Garcia Lorca, Bernardo Santareno articula a sua voz trágica de forma veemente e sofrida, revelando uma compaixäo pelos fracos e excluídos, vitimas em geral de preconceitos sociais e de fanatismos vários. Uma forte componente psicologista no esboco das personagens e uma localizagäo da acgäo em pequenas comunidades fechadas (rurais, pesqueiras ou urbanas) säo dois dos elementos usados no que parece ser a sua «procura sistemática de psicanalisar o «pathos portugues», segundo a expressäo de Jose Oliveira Barata74. Algumas das suas obras marcaram profundamente o nosso imaginário teatral e säo hoje referentes impor-tantes de uma dramaturgia do trágico em portugués. É o caso de O crime da aldeia velha (1959), sobre uma acusacäo de bruxaria, António Mannheim: O Édipo de Alfama (1960), sobre um amor incestuoso, O Pecado de Joäo Agónia (1961), sobre a homossexualidade, e, já depois de 1974, quatro curtas José Oliveira Barata, História do Teatro Portugués, Lisboa, Universidade Aberta 1989 p 386 Ibid., p. 385. pegas sob o título genérko Os marginais e a Revoluqäo (1979) e O punho, esta sobre a Reforma Agraria, publicada já postumamente em 1987. Outras formas tém sido usadas para figurar o trágico, como é o caso de Jaime Rocha que se iniciou na escrita dramática com pegas de recorte grotesco e absurdo como Deuscäo (1985), uma alegória tragicómica para criticar a falsa democracia e os seus cínicos jogos de poder, prosseguindo depois com a trilógia O construtor (1994), Quinze minutos de glória (1996) e O terceiro andar (1997), onde alia uma crua análise psicológica aos sinais mais visíveis da disfungáo política e social do mundo contemporäneo. É, porém, em Casa de pássaros (1999, publicado em 2001) que o autor melhor realiza o piano da tragédia aliando uma intriga forte, de pendor quase policial, a urn conflito psicológico de fundo freudiano (entre mäe e filha), ao mesmo tempo que explora de uma forma obsessiva urn sim-bolismo ominoso dos pássaros, de clara referencia hitchcockiana. E ainda a interpelar o trágico nos seus mais reconhecíveis ícones que Hélia Correia e Eduarda Dionísio ^xercitam a forma da tragédia. Hélia Correia,que^pôde vera sua narrativa Montedemo vivifkada em teatro num inspiraďo trabalho do Bando (1990), escreveu para teatro Perdi-gäo, exercício sobre Antígona (1991) e, sobre Helena de Tróia, a pega Rancor (2000) em ambas interrogando o lugar do feminino no mundo violento dos homens. Eduarda Dionísio, que se iniciou no teatro como actriz no Grupo de Teatro da Faculdade de Letras, tem colaborado dramaturgica-mente tanto para o Teatro O Bando (Noivos velhos, novos noivos), como para o Teatro da Cornucopia (Dou-che-lo vivo, Dou-che-lo mor to, (1981), em torno de Camôes, e Primavera Negra (1994, sobre textos de Raul Brandäo). Publicou em 1992 Antes que a noite chegue, um conjunto de monólogos poéticos pensados para um espectáculo que, em princípio, pareceria des-construir a expressa interpelagäo de quatro canónicas tragédias. Com efeito, partindo, embora, das figuras de Julieta, Antígona, [Ines de] Castro e Medeia, seria num contexto contemporäneo e envolvendo «prosti-tutas» que o espectáculo presentificaria o lamento destas mulheres, desenhando, nas diferentes idades e distintas expiagôes por amor, a dor de viver e morrer mulher num mundo em que o poder se define pelo masculino. Parece-me, todavia, que a moldura ficará, porventura, como um jogo estranho äs falas belíssimas que a pega coloca na voz das quatro heroínas trágicas (trés monólogos para cada uma) e poderá ser dis-pensada noutros projectos cénicos. A dramaturgia de Jorge Silva Melo é provavelmente a que, nos anos 90, mais inovou em termos temáticos, estruturais e de construgäo teatral. Devedora da ligäo de Brecht e de Heiner Müller, mas também de Tchekov, e Jourdheuil, a sua dramaturgia interpela ou usa outros textos '(numa assu-mida intertextuaHdade), visando um teatro que seja a voz da cidade e interrogue a realidade próxima e de hoje. A sua gramática composicional mistura diálogos com narracäo, discurso directo com indirecto (até no interior de urna só réplica); transita da fala monologada ou dialogada para a voz que canta ou recita (cancöes em voga ou passos de textos «celebres»); sobrepöe os pianos temporais de passado, presente e futuro (na conjuga-cäo verbal e na construcäo «caotica» de cada cena e das cenas entre si, num esquisso de pluriperspectivacäo); repete frases, gestos ou incidentes num processo de construcäo anafórica ou de refräo; desenha personagens cuja consciéncia «ingenua» ou, mais rigorosamente, cuja «falta de consciencia de si»75 provoca o «descentramento» das suas pecas (isentas, portanto, de um sentido «moral»); assume, como eixo do fazer teatral, a palavra na sua contraditória solicitacäo: «funcional e lírica, evocativa e eficaz, colorida e pertinente e trivial»76, por ai criando o que se poderá considerar justa-mente uma poética do quotidiano e do «trivial» (numa clara evocacäo tchekoviana), que é também, de resto, uma poética do politico. Com efeito, no piano da sua funcionalidade estética, o teatro de Jorge Silva Melo aspira a ser um teatro politico, ou seja, proximo do que foi em tempos: «o proprio corpo do pensamento e vivéncia concreta da Cidadania - da História e da Politica»77. Isso implica, entre outros pres-supostos, a defesa do valor da palavra contra o «espectaculo»78, o do tempo presente contra a contemplacäo do passado, o dos lugares próxi-mos (a nós) contra a evocacäo de outros lugares distantes ou inexistentes, o da linguagem do quotidiano contra a da elaboracäo literária. Tudo a configurar um teatro que possa ser a voz da cidade, registando as expectativas, medos, contradköes, problemas, alegrias e fracassos que assaltam e modulam a vida no mundo de hoje. Trata-se, por isso, de um teatro que procura representar «os gestos com que vivemos», «um texto de hoje com palavras de hoje» onde se possa falar «das pessoas que sobrevivem e se esganam por sobreviver» sem que sejam olhadas com desprezo79. Só que na convocacäo desse 75 V. a leitura do teatro de Brecht feita por Louis Althusser em «Le Piccolo, Bertolazzi et Brecht: Notes sur un theatre materialiste», Pour Max, Paris, Maspero, 1974, pp. 129-152. 76 Jorge Silva Melo, Introducäo a Antonio, um ravaz de Lisboa, Lisboa, Cotovia, 1995, p. 13. 77 Id., «O que flcou depois de qué?», Prometen: rascunhos, Lisboa, & etc., 1997, p. 181. 78 Näo se trata de recusar a necessária vocacäo teatral do texto, mas sim de pôr em causa a dominän-cia no teatro do paradigma visual e espectacular que implica a opuléncia por vezes «operatica» dos recursos cénicos, a predileccäo pela magia do palco, a concessäo ao divertimento e, enfim, a supre-macia do encenador sobre o autor. 79 Id., Introducäo a Antonio, um rapaz de Lisboa, op. cit., passim. fresco social, onde claramente predominam os jovens, näo opera o «regulär» (e regulador) registo naturalista, antes se exercita a construcäo e montagem de cenas que, partindo de estilhacos do real e da confron-tacäo de processos discursivos (a linguagem do quotidiano de encontro aos referentes culturais e literários citados na sua literalidade) compöem urna representacäo realista que é consequéncia de um olhar crítico sobre o mundo e a vida. Por um lado, nesse universo dramático entram figuras sociais que, no geral, andam arredadas da (ou distorcidas na) dramaturgia contem-poränea, como o operário, a mulher da limpeza, o arrumador de carros, a camponesa, o funcionário publico, os jovens que procuram um pri-meiro emprego, o polícia, o toxicodependente, o soldado, entre muitos outros. E, por outro lado, mais do que explicar (racionalizando ou mora-lizando) personagens e situacöes, o esforco é para se apresentarem os «dados do problema» numa verificacäo «materialista» e histórica, o que abre a uma zona de hesitacäo (e fascínio) por onde passa näo só a exi-géncia de posicionamento do espectador, mas também, e claramente a meu ver, a possibilidade do trágico. E assim na representacäo de confli-tos e temas que obsessivamente väo marcar este mundo: a difícil relagäo entre filhos e pais, os desencontros afectivos, a degradacäo inexorável das relacôes e dos ideais, o envelhecimento do corpo, a dificuldade de arranjar emprego, a emigracäo (e imigracäo), a toxicodependéncia, e, em parte ligada a esta problemática, a morte. Pelo lado da visäo crítica do quotidiano estäo as pecas Antonio, urn rapaz de Lisboa (1995) e O fint ou tende misericórdia de nós (1997). Esta ultima parte de um caso real ocorrido na Sicília (em 1993) e relatado no jornal La Republica, a que o autor vai, porém, conferir uma identidade portu-guesa, ao mesmo tempo que reenvia para um outro universo dramático - o de Woyzeck, de Büchner80 - quer na evocacäo de um quartel e das atmosferas que a ele se prendem, quer em alguns tracos do protagonista. Mas, enquanto estas obras experimentam a representacäo do quotidiano - a dramatizacäo do trivial -, o projecto que iniciou em 1996 em torno de Prometeu promove urna outra forma estrutural e visa um pro-cedimento mais abertamente politico. Reunidos posteriormente em Prometeu: rascunhos (1997), säo um conjunto de quadros que visam a inter- Jorge Suva Melo., O fim, ou tende misericórdia de nós, Lisboa, Cotovia, 1997, p. 4 (encima a lišta de textos indicados como obras consultadas); p. 9 (lembrando a sua visitacäo teatral ao texto de Büchner em 1978, quando o co-traduziu e co-encenou para a Cornucopia, escreve: «...o que Bergman dizia: nunca se faz essa peca inacabada uma só vez. Hoje, arranjei esta maneira de voltar ao Woyzeck...»). 140 rogacäo e avaliagäo da accäo política, questionando o papel de pěnsa-dores e dirigentes revolucionários que tém em Prometeu o seu referente maior. A tragédia grega é assim ampliada e posta em confronto com outros lugares, tempos, figuras e textos, ao mesmo tempo que o protagonista (na sua variedade proteica) é visto como simbolizando uma ati-tude e uma accäo que, sendo positivas, näo podem deixar de ser ques-tionadas. Em primeiro lugar porque estaräo eivadas de um individua-lismo paternalista, em segundo lugar porque eventualmente näo eram desejadas pelos «homens» e, por ultimo, porque terá havido, na prática de alguns, a traicäo, o siléncio cúmplice ou a deformacäo do ideal. A peca näo deixa, apesar de tudo, de retomar uma das traves impor-tantes do projecto teatral que Jorge Silva Melo defende: a de representar «os gestos com que vivemos», falando de pessoas simples num quoti-diano vulgar. Neste caso, porém, a convocacäo do modelo grego apelou, por um lado, a um discurso mais claramente marcado pela poeticidade e pelo aspecto coral (vários Prometeus que falam e säo interpelados da mesma maneira) e, pelo outro, a uma referencia explícita ao pensamento politico, com o que isso implica de opinativo e polémico. Neste sentido, ainda que invocando o trivial neste ou naquele ponto, haverá um aden-samento dessa experiéncia, na medida em que ela é confrontada e ava-liada de encontro a referentes históricos e políticos precisos. Por outro lado, e comparando com as outras trés pecas anteriores atrás referidas, este Prometeu desenvolveu de forma diferente a sua arti-culacäo com o universo da tragédia: quer porque reporta várias figuras e diferentes histórias ao (mesmo) «protagonista», quer porque reflecte sobre a experiéncia passada mas näo a presentifica cenicamente, quer porque ensaia uma outra relacäo com o publico ao torná-lo mais claramente o seu real interlocutor. Neste sentido, os dois textos em torno de Prometeu, prosseguindo em muitos aspectos (mas superando artistica-mente, a meu ver) uma experiéncia dramatúrgica e teatral iniciada trés anos antes, ganha uma outra dimensäo, talvez mais claramente com-prometida com um teatro verdadeiramente politico, o teatro que quer ser uma meditacäo sobre a cidade. BRAGA, Vitoriano, Teatro Completo, com pecas inéditas, Introducäo, pesquisa e fixacäo de textos de Duarte Ivo Cruz, Lisboa, IN-CM, 1998. CORTEZ, Alfredo, Teatro Completo, Introducäo, pesquisa e fixacäo de textos de Duarte Ivo Cruz, Lisboa, IN-CM, 1992. NEGREIROS, Almada, Obras Completas, vol. VII, Teatro, Lisboa, IN-CM, 1993. PACO D'ARCOS, Joaquim, Teatro Completo, Introducäo, pesquisa e análise crítica de Duarte Ivo Cruz, Lisboa, IN-CM, 2003. REBELLO; Luiz Francisco, Todo 0 Teatro, Introducäo de Jose de Oliveira Barata, Lisboa, IN-CM, 1999. SAMPAIO, Jaime Salazar, Teatro Completo, Prefácio de Sebastiana Fadda, 3 vols. Lisboa, IN-CM, 1997-2002. 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Teresa Amado e Vítor Silva Tavares, Prefácio de Augusto Sobral, Lisboa, IN-CM, 2000. salo Literário Serafina Martins Antes de se iniciar o balanco da actividade ensaística em Portugal no Século XX, é necessário fazer algumas consideracöes prévias ou, diga-mos realisticamente, um levantamento de dificuldades. O universo a que respeita este balanco comeca por ser problemático desde logo por-que para o ensaio, enquanto forma escrita específica, näo dispomos de uma definicäo que circunscreva liminarmente a matéria contemplada. Isso mesmo é reconhecido em textos que, seja de um ponto de vista teó-rico, seja de um ponto de vista crítico, levam o assunto a juízo, textos onde se afirma a abertura do conceito e, portanto, a abrangéncia ine-rente. Embora se reconheca que o ensaio é resultado de uma tradicäo cujas origens se encontram na literatura clássica, existe algum consenso na ideia de que se trata de um género que ganha corpo plenamente com os Essais, de Montaigne, escritos ao longo de mais de vinte anos e publicados em 1580. Silvio Lima, autor do celebrado Ensaio sobre a Essentia äb~ Ensaio (1.- ed.: 1944), mostra-nos neste texto em que medida os Essais como obra e o ensaio enquanto tipo de discurso säo algo pro-piciado pela mentalidade do Renascimento, pelas «novidades» que neste periodo säo trazidas ao saber, pelo desenvolvimento e assuncäo cle um espírito crítico que colide com aquilo a que chama o «sono dog-matico» da época medieva. Dispensamo-nos aqui de fazer a síntese do trabalho de Silvio Lima, porque näo se fará um aprofundamento da questäo «o que é o ensaio?», nem do ponto de vista teórico, nem do ponto de vista histórico. Retenha-se, contudo, a afirmacäo, feita ao longo de toda a obra, de que o ensaio implica a inscricäo de um ponto de vista crítico e de um sentido individual nos assuntos tratados, os quais podem ser os que se quiserem imaginär. Pedro Aullón de Harp, em Los Géneros Ensayísticos en el Sigh XX (1987), chama a atencäo, jus-tamenté/para o facto de uma definicäo de ensaio em sentido restrito näo poder ser feita segundo critérios temáticos. Aliás, di-To a teória e dizem-no os factos, o ensaio parece implicar uma espécie de dispersäo organizada, uma näo sistematizacäo, uma «erräncia», como afirma Rosa Goulart em «Vitorino Nemésio: o ensaio do escritor» (1998), escre-vendo sobre um autor que, no Século XX portugués, parece justamente encarnar a figura do ensaísta, que faz da variedade temática uma prá-tica de escrita; Nemésio tal como Luis Antonio de Verney, no Verdadeiro Método de Estudar (1746) ou como Antonio Sergio nos seus Ensaios (1920,1.° vol.). JEduardo Prado Coelho, num trabalho a que chamou «O ensaio em geral» (O Cdlculo das Sombras, 1997), classifica a visäo do texto ensaistico enquanto afirmacäo de um saber e de uma razäo individual, do «exame ponderado de todas as ideias» que encontramos ainda em Silvio Lima, como sendo uma «concepcäo humanista» deste género discursivo, divergente da concepcäo moderna, que evolui a partir do pensamento romän-tico, de acordo com a qual o ensaio é, digamos, urna consagracäo em texto de um cepticismo que vé no conhecimento e na sua afirmacäo näo mais do que uma utopia, embora encarada distintamente por diferentes autores. O mesmo trabalho ajuda-nos a perceber o contributo do roman-tismo e das expressöes sequentes (e consequentes) da modernidade para a consideracäo do ensaio näo simplesmente como género discursivo, mas como género literário multifacetado e cujo grande traco distintivo será precisamente uma considerável indistincäo. As palavras anteriores säo necessárias para nos conduzirem a duas ordens de consideracöes. Antes de mais, o adjectivo «literario» que aqui qualifica o ensaio pode ter mais do que um sentido. Poderá dizer respeito ä sua «literariedade», ou seja, aos atributos que o fazem aproximar-se da literatura entendida enquanto processo artístico. Pensemos no facto de muitos escritores, de poesia ou de prosa ficcional, sérem também gran-des ensaístas (poderíamos voltar a Nemésio), no facto de o tom ensaís-^co_surgir em géneros convencionalmente literários, como o romance, ou, em contrapartida, no facto de inúmeros textos que se pressupôem ensaísticos térem um recorte poético ou mesmo até ficcional (pense-se, no campo do ensaio filosófico, em Assim Falava Zaratustra). No entanto, quando se fala o^t se escreve sobre «ensaio literario», por entre, näo raro, uma razoável e decerto inevitável ambiguidade, parte-se do j^rincípio de que se trata näo uma forma literária, mas de um discurso tendo como matéria a literatura enquanto area de conhecimento. Esta circuhstancia leva-nos a uma segunda ordern de consideracöes, neste caso sobre o que, no campo do conhecimento da literatura, pode ou näo ser considerado ensaio. Ao que se pôde saber, uma averi-guacäo sistemática em torno deste problema näo foi ainda levada a cabo, nomeadamente para a literatura portuguesa, nem é possível fazé--la neste balanco. Assim, sobre muitos dos trabalhos que aqui compa-recem paira a dúvida sobre a sua natureza, ensaística ou näo. Faltando a definicäo näo só de ensaio em sentido geral, mas de ensaio literário em sentido particular, optou-se por um entendimento abrangente do conceito, admitido teoricamente pelos autores que aceitam a abertura do género e até mesmo confirmado pelo uso - quantos textos, de diversa natureza, näo conhecemos nomeados sob essa designacäo? Eduardo Prado Coelho escreveu que o ensaio é «um género que se enreda nas suas próprias contradicöes» (op. cit., p. 23), um quase aforismo que podemos confirmar, por exemplo, nas dúvidas ou reservas que susci-tam algumas tentativas de definir ensaio em sentido restrito, quase sempře cautelosamente acompanhadas de um levantamento de afinidades com outras formas escritas. Assim, por exemplo, Aullón de Haro, autor de uma definicäo desse tipo, salvaguarda, no entanto, que p ensaio con-fina, ém maior ou menor grau, com o artigo, ou com o tratado, Helena Buescu («Ensaio», 1997) cháma a atencäo para o teor ensaistico de alguma producäo cronística, Rosa Goulart explica que ensaio pode ser uma «breve dissertacäo sobre um terna, um assunto, um autor» (op. cit., p. 618), ou um «trabalho académico de considerável extensäó e anco-rado numa precisa e aturada pesquisa teórico-crítica, etc.» (id. ibid.). Este balanco será, portanto, orientado peloWincípio, aceite pelas «autoridades», da abrangéncia do género. Impossível será, contudo, rea-lizar o desejo de exaustividade, o qual, a ser viávql, sanaria as lacunas que se iräo decerto encontrar e fariamaior justicaao século e aos nomes que neste domínio o preencheram. Houve que delinear critérios e reali-zar uma seleccäo. Que critérios? Antes de mais^a especificidade da matéria contemplada - a literatura -, vista sob um angulo historko, crítico, teórico, cultural; mais precisamente, a literatura portuguesa, pois assim ^pareceu razoável tendo em atencäo o objectivo do conjunto do qual este texto faz parte. Um segundo critério foi a representatiyidade. Fazer o balanco de um século implica, ainda que com imensos limites, fazer história e seguir os trilhos da temporalidade. Como se vera, aprdem temporal constituiu umprincípio para organizar a exposicäo, a^deum outro^porvehtura mais esclarecedor, o das tendéncias que desde cerca ~de 19ÖÖ até mais ou menos 2000 se foram desenvolvendo no ensaíšmo literário portugués. Assim, a seleccäo realizada foi-o tendo em cóhtä os diferentes modos de pensar a literatura e de proceder ao seu conhecimento, apontando escolas, autores, textos que pareceram exemplares, na expectativa tanto de dar um sentido, uma razäo de ser, äs mencöes, como de salvaguardar as obviamente lamentáveis omissöes. O saber literário no Século XX desponta ainda sob a egide do raci-onalismo oitocentista. Embora as orientacöes do Século XIX fenham sido, / í sob muitos pontos de vista, sujeitas a crítica e a revisäo, o facto é qu<.. algumas figuras tutelares das primeiras décadas tinham consolidado o seu magistério ainda na centúria anterior. E o que sucede com Carolina Michaelis de Vasconcelos, a investigadora alemä tornáda portuguesa pelo casamento e cuja obra representa em larga medida as grandes ten-déncias dos estudos literários em Portugal nos primeiros anos do século. Com um saber conseguido a expensas de um esforco de autodidacta, Carolina Michaelis desenvolve uma obra de orientacäo filológica de grande importäncia quer para o património literário portugués, quer para a propria constituicäo da filológia enquanto disciplina e modelo de conhecimento, como podemos Vernas suas Ligöes de Filológia Portuguesa (1944). Aí podemos encontrar explicitada a posicäo da investigadora relativamente ao que devem ser os estudos filológicos, sustentando, em dissonáncia com contemporäneos seus, o primado do estudo da literatura e näo da lingua (ou da literatura como mera ilustracäo da lingua ou da história). Esse primado do literário consagrou-o na prática a autora, por exemplo, nos seus «Estudos Camonianos», na edicäo crítica do Can-cioneiro da Ajuda (1904), na edicäo também das Poesias de Francisco de Sd de Miranda (1885) ou nas monumentais Notas Vicentinas (1912-1922). Pri-vilegiando o estudo de erudicäo, o trabalho de recolha, a síntese didác-tica, dedicou-se também ao estudo biográfico, com sintomáticas notas sobre a «psique» dos biografados. Como seu contemporáneo e estando irmanado num mesmo trabalho de orientacäo filológica, refira-se José Leite de Vasconcelos, o qual, como é sabido, marcou lugar fundamen-talmente na área de etnografia, mas cujas Ligöes de Filológia Portuguesa (1926; 2.- ed., melhorada) ilustram urna perspectiva da filológia distinta da da romanista alemä (precisamente a que ela critica), orientada sobretudo para a linguística e mais subsidiariamente para o texto literário. Dis-cípulo efectivo de Carolina Michaelis, e declarando-se como tal, é José Joaquim Nunes, cujo trabalho de compendiacäo e edicäo de textos da literatura medieval portuguesa nos mostra também o pendor, que marca o princípio do Séčulo XX, para a organizacäo bibliográfica, para o esta-belecimento do texto e para a informacäo de cariz histórico. Por ser da mesma geracäo e por estar congracado com o «espirito da epoca», lem-bramos José Maria Rodrigues, que, com Afonso Lopes Vieira, preparou uma edicäo d'Os Lusiadas com «Notas filológicas e historicas» (1931) e uma edicäo crítica da obra lírica do poeta (1932). Atento, tal como os seus contemporäneos, ao que se considerava ser a genese directa e identifi-cável dos textos (apoiado no determinismo positivista), publicou em 1905 umas Fontes d'Os Lusíadas e, entre outros textos polémicos sobre Camöes e a sua obra, um trabalho de cariz biografista - Camöes e a Infanta D. Maria, 1910 -, no qual se percebe a sujeicäo da léitura de urna obra äs peripécias da vida de quem a escreveu; mais näo faz do que prosseguir urna tendencia que encontramos a esmo no princípio do século e que vemos em exercício, por exemplo, em muitos dos títulos de uma iniciativa editorial denominada «Os escritores: sua vida e sua obra», coorde-nada por Albino Forjaz de Sampaio. Deste bibliófilo e escritor de veia polemista, que também coordenou a História da Literatura Portuguesa Ilus-trqda(1929-1942), destaque-se o ensaio Antonio Nobre (1918), atravessado por avaliacöes psicológicas deduzidas a partir da obra e por uma crítica de teor moralista relativa ao trabalho do poeta. Estreitíssimo laco entre vida e obra encontramos também nos textos de Alberto Pimentel, amigo pessoal e biógrafo de Camilo Castelo Branco. A sua abundante «materia camiliana» tem um muito interessante cunho memorialista, pois fala de factos que viveu e de pessoas com quem přivou, mas tem os equívocos resultantes de assentar no princípio arriscado de que a obra de Camilo é a sua vida - e de confundir a memoria com a fantasia pessoal, como notou Alexandre Cabral. Por esta época, outros estudiosos estabelecem nexos entre vida e obra, mas com processos e intuitos diferentes dos que podemos depreen-der em Alberto Pimentel. Se este faz do hörnern Camilo Castelo Branco uma figura/personagem romanesca, Anselmo Braamcamp Freire inte-ressa-se pelo escritor enquanto figura histórica e de um tempo histórico que os textos literários f actualmente documentam. E dele o ensaio Vida Döbras de Gil Vicente: trovador e mestre da balanga (1919), um estudo eru-dito, de natureza historiógráfica, uma pesquisa paciente de dados cir-cunstanciais (o mais discutido de entre esses factos ter sido Gil Vicente o ourives escultor da custodia de Belem). Braamcamp Freire explicita-mente näo pretende fazer «apreciagöes literarias», como ele proprio escreveu. Em sentido diferente, por ter também um alcance crítico, vai um outro ensaio de natureza históríca-biográfica, o monumental Francisco Rodrigues Lobo: estudo biográfico e crítico (1920). O seu autor, Ricardo Jorge, celebrado em seu tempo e ainda hoje pelo trabalho de higienista e epidemiologista, deixou outros estudos de cariz biográfico, como Ramalho Ortigäo (1915), sobretudo memórias do seu contacto pessoal com o escritor, de quem foi aluno. Nos autores até aqui referidos, independentemente das caracterís-ticas do seu trabalho, podemos observar uma continuidade no transito do Século XIX para o Século XX. Daí o especial merecimento do trabalho de Fidelino de Figueiredo, parte do qual, embora continuando o paradigma histórico de Oitocentos, sujeita a revisäo quer ai metodoki-gias, quer um saber tido como adquirido. O seu trabalho como historia-dor da literatura foi realizado na observáncia de princípios expostos em A Crítica Literária como Ciéncia (1913), que o proprio considera ser um ensaio teórico e no qual preconiza a necessidade de uma ligacäo entiv teoria e «exercicio pratico». A sua revisäo dos estudos literários do Secu i o XIX traz, entre outros contributes, uma crítica äs pesquisas sobre a «psi-que» dos escritores, uma crítica, consequente, äs analogias entre a crítica literária e as ciéncias naturais, a exposicäo de um metodo histórico-lite-rário inovador, a valorizacäo da literatura comparada, a defesa de um saber ecléctico em oposicäo ao fechamento científico do positivismo e a valorizacäo do texto literário como «produto estetico», uma ideia que atravessa o conjunto da sua obra e que será täo importante na sua ediíi-cacäo como o rigor que defendeu e praticou e verificável, por exemplo, nas sucessivas refundköes e ampliacöes de A Épica Portuguesa no Século XVI (1950, ultima edicäo). A influéncia do magistério de Fidelino de Figueiredo será asse-melhável ä de Hernäni Cidade, cujo trabalho comeca a vir a publico na década de 20. A sua actividade ensaística, centrada sobretudo nos Sécu-los XVI, XVII e XVIII, funda-se na certeza da «intima uniäo da história e da cultura», cuja mútua implicacäo mostrou quer em obras abran-gentes, como Portugal Histórico-Cultural (1958) ou nas Ligöes de Cultura e Literatura Portuguesa(1933, l.2 vol.), quer em estudos de fundo, como o importante conjunto que dedicou a Luis de Camöes e nos quais se com-bina o comentário literário, a pesquisa filológica e indagacöes sobre a genese dos textos. Convém dřzer que a perspectiva histórico-cultural, na qual poderemos ver um aprofundamento ou uma especializacäo dos estudos filológicos, define uma das grandes tendéncias do ensaio em Portugal, podendo-se dizer que atravessa todo o século pela mäo de figuras gradas do saber literário. Aos nomes antes indicados, juntemos, para já, Álvaro Júlio da Costa Pimpäo (que estudou e editou, entre outros, Gil Vicente, Camöes, Fernäo Mendes Pinto), ou M. Rodrigues Lapa, com urn vasto legado como editor literário de cíássicos Portugueses e autor, entre outras obras, de umas indispensáveis e sucessiva-mente reeditadas Ligöes de Literatura Portuguesa. Época medieval (1934). Estreando-se ainda na década de 20, temos Joaquim de Carvalho, que estuda numa perspectiva histórico-filosófica autores como Pedro Nunes, Luis Antonio Verney, Francisco Sanches, mas também nomes da literatura com vocacäo especulativa, de entre eles, sobretudo, Antero de Quental e Teixeira de Pascoaes, sempre correlacionando p pensamento dos escritores com o magma cultural que os envolve e acompanhando a sua evolucäo. Num outro quadrante, os fiéis do movimento da Renascenca Portuguesa e por diversas formas colaboradores da revista A Águia, con-temporäneos de Joaquim de Carvalho, enlacam literatura e filosofia näo tanto para exercicios de exegese interdisciplinar e metodologica-mente orientados, mas, dir-se-ia, para ensaios marcados por uma forte ruptura com as convencöes dos estudos no ämbito do literário. Essa ruptura näo é täo perceptível, por exemplo, no ensaísmo literário de um Teixeira Rego, com alguns textos de sistematizacäo didáctica e reve-lando um interesse particular pela narrativa mítica, mas é-o num Teixeira de Pascoaes ou num Leonardo Coimbra. Nos ensaios literários děste filosof o (reunidos em Dispersos I - Poesia portuguesa, 1984), encon-tramos, por um lado, textos que constituem uma poética näo só da poesia, mas de toda a arte de cariz idealista, vistas como realizacöes esté-ticas, como formas de conhecimento näo-racional, como forma de se criar um traco de uniäo cindindo religiäo, poesia e filosofia; por outro lado, análises críticas iluminadas por essa poética, num tom propria-menfe mais divagativo do que crítico, mas também exortativo - «Vinde ao Poeta, vinde a nós que vos amamos, e sereis os apóstolos do Deus Infante, redentor do Universo e alma de Portugal» - e valorizando a poesia como expressäo de inquietacöes metafísicas. No tom de exorta-cäo oujno engrandecimento da figura do escritor, como realidade e como ideia, comunga com Teixeira de Pascoaes, no qual näo escasseia a exaltacäo do génio criador, visível, por exemplo, em textos de A Sau-dade e o Saudosismo (compilacäo, 1988). Das quatro biografias que escre-veu, aquela que dedicou a um escritor, Camilo Castelo Branco (O Peni-tente, 1942), näo resistiria talvez a uma prova fiduciária, mas é uma obra muito bela, onde se retrata näo o hörnern no seu traco circuns-tancial, mas uma ideia de hörnern e de escritor que é inteligida alem da obra e do facto contingente. Pascoaes é um dos muitíssimos poetas do Século XX que säo também ensaístas (como também o säo inúmeros escritores de prosa ficcional) e podemos juntá-lo, nesta medida, a Fernando Pessoa, que precisamente n'A Águia publicou um conjunto de vários artigos sobre «A nova poesia portuguesa» t O ensaísmo de Pessoa saiu pela primeira vez em conjunto em Páginas de Doutrina Estética (1946), coligidas por Jorge de Sena, e, relativamente a inéditos, foi reunido em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, chamando este ultimo a aten-gäo para «as flutuacöes e até contradicöes» no pensamento do poeta, para a sua vocacäo mais teórica do que crítica, mas insistindo na defesa de uma crítica objectiva e näo intuititiva. Curiosamente, o problema de a crítica ser ou näo ser intuitiva vai constituir um dos motivos geradores de polémica em torno de uma geracäo que ficou na história da literatura portuguesa tanto pela sua produ-cäo literária como pela sua producäo ensaística: a geracäo da presenga. O trabalho de Jose Regio, figura de proa do presencismo, é bem ilustra-tivo de que terá havido alguma estreiteza de vistas no ajuizar sobre as figuras děste movimento. Regio, embora validando a importäncia da intuicäo para apreender o distintivo artístico da obra literária, está também ciente de que a crítica é um trabalho de cuidado, atencäo, dos quais, tanto como das intufcöes, igualmente depende a imprescindível capaci-dade de julgar. A novidade do ensaísmo crítico da presenga, tal como o podemos encontrar exemplarmente em Régio ou em Adolfo Casais Monteiro, está na constante afirmacäo de que a obra de arte literária deve ser apreciada em funcäo de valores que lhe säo imanentes e näo de prin-cípios apriorísticos, sejam eles de natureza moral, social, política. Régio acusa a crítica sua contemporänea de «superficial, arbitrária e em grande parte esteril» e contrapöe-lhe um modelo crítico a que chamou «critica compreensiva», exigindo cultura, inteligéncia, objectividade e sobretudo uma atencäo ao fenómeno artístico enquanto tal. Podemos encontrar uma idéntica exigéncia em Vitorino Nemésio, também colaborador da presenga, que deixou um ensaísmo multifacetado, onde cindiu o estudo biográfico com o crítico e ambos com a sua verve täo marcante de poeta e romancista. Nunca deixando de ser rigoroso, Nemésio claramente näo apreciava a leitura distanciada das obras, ou o relate desprendido das biografias e favorecia quer a manifestacäo do gosto, quer a empatia com os seus biografados e, embora sem ser assistemático, praticava um tom diletante que faz dos seus textos um agradável discorrer pleno de associates e conjecturas, uma verdadeira «conversacäo», como lhe chamou Eduardo Lourenco. Outra figura grada da presenga, Adolfo Casais MonteiroKprocurou demonstrar o simplismo de binómios arte pela arte / arte social, que dis-cutiu com a geracäo neo-realista, ou subjectividade / objectividade na crítica literária, uma «frente de batalha» com os racionalistas da Seara Nova, dos quais se falará posteriormente. Em termos mais sistematizan-tes do que os de Jose Régio e mostrando uma permanente acualizacäo teórica, este ensaista reflectiu sobre a necessidade de a arte literária ser discutida näo no piano de uma estética geral, mas no piano de uma teo-ria literária que desse conta do «caracter orgänico da literátura» e valo- rizando a obra em si. Desta valorizacäo decorre urna separacäo das águas que autonomiza a obra em relacäo ao autor, ou em relacäo ä história factual - «as grandes obras do passado säo um eterno presente», escreveu em Clareza e Mistério da Crítica (1961). Convém ter presente que Adolfo Casais Monteiro deixou um importantíssimo legado como crítico literário, destacando-se o que publicou sobre Fernando Pessoa, sobre a narrativa ŕomanesca e sobre a literatúra do Brasil, país onde se acolheu e fixou por forca das circunstäncias políticas portuguesas. A obra, mais escassa, de Albano Nogueira, um outro ensaísta que também escreveu para a presenga, permitir-nos-ia, em trabalho mais ambicioso, voltar äs grandes questôes que separaram as geracóes literá-rias das décadas de 30 e 40; registe-se apenas, do prefácio que escreveu para Imagens em Espelho Côncavo (1940), a assuncäo de «um critério impressivo», sobrepondo-se a «um critério puramente exegético ou objectivo» e também o pressuposto da separacäo entre a arte / a criacäo e a vida, urna matéria que trata explicitamente voltando ao problema de a arte ser ou näo social. Saído igualmente das «fileiras da presenga», usando palavras de Dávid Mouräo-Ferreira, temos o nome de Guilherme de Castilho, cujo trabalho crítico se publicou postumamente em presenga do Espírito (1989) e do qual se celebram particularmente as biografias de Raul Brandäo (Vida e Obra de Raul Brandäo, 1979), e de António Nobre (Vida e Obra de António Nobre, 1950), esta última interessante näo apenas para conhecer a vida do poeta (naturalmente, um ponto de vista), mas também para acompanhar episódios do itinerário simbolista. O nível dos seus estudos biográficos ainda mais se destaca se os compararmos com os inúmeros «perfis» vindos da mäo de Cruz Malpique, que deixou um vastíssimo trabalho editado em livro e disperso por inúmeros jornais e revistas, mas que por vezes enveredou por um didactismo algo simplista (veja-se Arte de Escrever, 1949) e pelos caminhos já gastos do positivismo. Muito haveria dizer sobre o papel da revista presenga como ponto de charneira para geracóes e figuras do ensaísmo literário em Portugal na primeira metade do século e a apreciacäo a fazer teria passagem indis-pensável pelo trabalho historicamente exemplár de Joäo Gašpar Simôes. Crítico influente desde a década de 40 até inícios da década de 80 a par-tir sobretudo das páginas do Diário de Notícias e do Diário de Lisboa (textos reunidos em Crítica, 1942-1985,6 vols.), foi um dos doutrinadores da escola presencista e deixou obra importante, nomeadamente no respei-tante ä divulgacäo de Fernando Pessoa, no respeitante também a Eca de Queirós e a Geracäo de 70, ao movimento da presenga, ä história da literatúra portuguesa, prosa e poesia, etc. Espírito polémico, verteu em todos os quadrantes da sua producäo os princípios doutrinários da gera-cäo a que se orgulhava de pertencer, defendendo uma história da literatura que näo se limitasse ao estudo das fontes, mas que se orientasse para o exame psicológico dos fenómenos, obras, escritores, uma história que inculcasse sobre os factos passados um ponto de vista do presente; defendendo, alem disso, uma crítica que fosse ao mesmo tempo judica-tiva e interpretativa e virada «para a esséncia da obra». Quando Joäo Gašpar Simöes se emprega a ponderar argumentos sobre a oposicäo crítica intuitiva / crítica racionalista ou quando Adolfo Casais Monteiro discute a oposicäo subjectividade / objectividade na crítica literária estäo a pôr o dedo numa querela que teve, do lado da posi-cäo racionalista, Antonio Sérgio como figura dominante. Considerado por Jorge de Sena como o maior crítico portugués da primeira metade do século, considerado também como uma verdadeira figura de ensaísta, pelo espírito crítico e autonómia reflexiva, visível mesmo no tom colo-quial dos seus Ensaios, António Sérgio deixou bem ciaras algumas das suas orientacóes relativamente ao particular dos seus ensaios literários, orientacôes nas quais transparece o seu ideário de republicano e peda-gogo, base da edificacäo da Sear a Nova, movimento e revista que cons-truiu e dirigiu com outros nomes grados da intelectualidade portuguesa da Primeira República. Assim, esclarece que näo pretendera fazer «crí-tica de carácter literario», mas «critica de carácter pedagogico-social», norteada pela «reaccäo do publico perante a obra». Nestes ensaios, a matéria literária e a crítica sobre ela exercida estäo ao servko de uma pedagogia social e política do publico, e António Sérgio distingue clara-mente deste ponto de vista aquilo a que chama a «critica estetica» e / ou filosófica, tratando, como diz, «da obra considerada em si», da crítica bio-grafista, que desvaloriza Defensor, no saber humanístico em geral, do exame crítico, da aná-lise, contra o «o eruditismo arquivistico», os «palavreados e devaneios ocos», e em favor do «verdadeiro exercício da inteligencia», António Sérgio pode ser tomado como uma figúra tutelar de um determinado tipo de ensaísmo que, embora näo tendo resolvido o dissídio (muito cordato e até cooperante) entre crítica intuitiva e crítica racionalista, superou os vícios das leituras biografistas e elevou o ensaio literário acima, precisa-mente, dos ditos «palavreados» e das hipóteses fantasiosas, que se podem testemunhar até mesmo em obras da mais rigorosa pesquisa historka ou, sobremaneira, nalguma crítica literária de jornais, muitas vezes palavrosa, vä e dada ao elogio fácil e ao lugar-comum. A este título, e pelo contraste, é de referencia obrigatória o nome de Castelo Branco Chaves, colaborador da Seara Nova, com ensaios que se destacam por uma grande atencäo ä complexidade das obras, lucidez analítica, cla-reza verbal e temeridade judkativa (veja-se Crítica Inactual) e, dir-se-ia, por uma čerta capacidade de antecipacäo ao interessar-se precocemente por areas que a crítica virá a privilegiar, como a da literatura de viagens, tendo publicado em 1977 Os Livros de Viagens em Portugal no Século XVIII e a Sua Pro'jecgäo Europeia. De lembrar também o nome de outros «seareiros», como Raul Rego, ensaísta politico acima de tudo, mas que deixou valiosos textos sobre literatura em páginas de jornais e que publicou em 1981 Aquilino Ribeiro, ensaio de maior fôlego; como Joäo Pedro de Andrade, em cujo Raul Brandau (1963), da excelente coleccäo da Arcadia «A obra e o hörnern», se rea-firma a ideia problemática de que a vida se projecta na obra, mas onde se faz uma análise percuciente das obras do autor de Burnus-, como Manuel Mendes, que se dividiu entre o ensaio literário e o ensaio na area das artes plásticas - propendendo, näo raro, para a biografia, nota-se, aqui e ali, tendencia para uma visäo um pouco romanesca e épica dos biografados; nomes ainda como o de Álvaro Salema, sobre quem David Mouräo-Ferreira publicou na ColóquiolLetras (123-124,1992) um sentido In Memoriam, lembrando o seu interesse duradouro por Antero de Quen-tal e a sua relacäo de discipulato com António Sérgio e Castelo Branco Chaves. Seareiro desde a primeira hora foi tamběm Aquilino Ribeiro, que nos seus ensaios literários, de natureza vária, nunca temeu o teor polémico das suas propostas (que deu origem a polémicas como as sus-citadas pelas suas biografias de Camilo Castelo Branco e Luis de Camóes, respectivamente em O Romance de Camilo, 1957, e Luis de Camoes Fabidoso, Verdadeiro, 1950, ou pela sua interpretacäo da Menina e Moga de Bernardini Ribeiro), nem o parti pris das suas pessoalíssimas preferéncias (sendo um fervoroso admirador de Camilo, por vezes parece quase tomar as dores do escritor romäntico em relacäo a Ega de Queirós). Tal como a revista presenga é sempře um ponto de regresso para se compreender parte do ensaísmo literário portugués do Século XX, também a Seara Nova e António Sérgio constituem um núcleo irradiante cuja influéncia se faz sentir em movimentos literários e críticos autónomos, como é o caso do movimento neo-realista. Mario Sacramento, que sobre o neo-realismo publicou uma obra de referencia, de notável orientacäo fěórica e abstractizante - Há uma Estética Neo-realista? (1968) -, diz-se reconhecido discípulo de António Sérgio no terceiro volume dos seus Ensaios de Domingo (1990, póstumo), no qual, como nos dois anteriores, se reúnem textos dispersamente publicados revelando o ensaísta exi- gente, que dispensa o apriorismo e defende a investigacäo, a problema-tizacäo e, como afirma no volume de 1990, o «engagement» desde que se processe «em termos estritamente literarios». É necessário sublřnhar que o ensaísmo vindo de neo-realistas da primeira geracäo (para usar as coordenadas de Alexandre Pinheiro Torres) näo tem a rigidez que, no fundo preconceituosamente, se poderia esperar. Um bom exemplo será o trabalho de Mario Dionísio, que, alem de ensaio de crítica e doutrina que deixou em jornais e revistas, publicou os trés volumes de A Paleta e o Mundo (1956-1962), onde reconhece as relacöes entre arte e sociedade, mas recusando «reflexos mecánicos, directos, da estrutura social» no feito artístico, sobrelevando a individualidade do artista e reconhecendo uma causalidade näo determinista e, sobretudo, näo evidente na criacäo. Mario Dionísio é de, qualquer forma, uma voz politizada do ensaísmo, como um Óscar Lopes e um Antonio Jose Saraiva, de quem falaremos, e ao contrario de um contemporaneo, que também marcou a crítica ensaís-tica das décadas de 50 e de 60, mas sublinhando a condicäo apolítica do seu trabalho. Referimo-nos a Taborda de Vasconcelos, que nestes decé-nios publicou, entre outros títulos, Tempo Dividido. Temas literários (1958) e Regresso a Inteligencia. Temas literários (1962), colectäneas de ensaios mar-cados por uma orientacäo judicativa valorizando a «afectividade» e a «fidelidade ao senrido das obras e äs intencöes dos autores». Ainda na década de 60 publicou aquela que será porventura a obra mais signifi-cativa da sua bibliografia, Aquilino Ribeiro, um estudo de referenda sobre este autor, abrangendo questöes temáticas, estilísticas, genológicas e uma antologia. Mencionados de passagem Antonio Jose Saraiva e Óscar Lopes, impöe-se um retorno a estas duas figuras, marcantes por incontáveis motivos: porque a sua obra é obrigatória para quem pretenda conhecer a literatura e a cultura portuguesas - indique-se, neste limiar,^ a História daUteratumPortugiiesa (1954), em co-autoria -, porque o seu ensaísmo constitui um exercício constante de saber erudito, de mteligénďa crítica e-de elegancia expressiva, porque levaram longe o auto-exame do trabalho proprio e se empenharam em consequentes revisöes, porque, em suma, tem o alcance simbólico de sábios. Näo é este o lugar para indicar a extensa bibliografia de ambos e será muito difícil sintetizar as linhas--mestras de um ensaísmo, que, ä medida que se vai fazendo, vai evo-luindo e se vai transformando. No prólogo da 1.- eáiq&o^PamMHist&rm da Cultura ein Portugal (1946), Antonio José Saraiva estabelece as suas premissas de ensaísta colocando-se, também ele, sob a tulela de Antonio Sérgio e da Seara Nova, mostrando o seu favor pelas elites culturais que se ligariam «capilarmente» äs massas educando-as e a sua confianca num saber guiado, como escreverá posteriormente, pela «dialectica da razäo», que revelaria «a dialectica das coisas», na qual acredita em 1946, mas da qual se desiludirá. A interaccäo dialéctica entre o meio e o indi-víduo e, para o que aqui mais importa, entre p meio e a arte (a ver, também, As Ideias de Ega de Queirós, 1947) é um princípio que Antonio José Saraiva pofá em causa em edicöes posteriores da obra antes referida; do mesmo modo questionará a ideia, igualmente de cariz marxista, de uma evolucäo escatológica das formas artísticas, do menos perfeito para o mais perfeito, como pretendeu no seu Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval (1942), que sujeitou incisivamente a exame. Historiador da cultura, historiador da literatura, crítico literário (com éstudos, entre outros, sobre Gil Vicente, Camöes, Bernardim Ribeiro, Antonio Vieira), nesta sua ultima faceta vé-se uma deslocacäo das preocupacöes com a historici-dade dos fenómenos e um centramento na sua natureza verbal e estética, como se pode constatar em O Discurso Engenhoso (1980). No trabalho de Óscar Lopes (do mais puro ensaísmo, como tem sido considerado), reencontramos a uniäo do historiador com o crítico, do saber plurifacetado com a hermenéutica minuciosa. Alongando-se para alem dos textos que estuda, para «lancar pontes» (metafora parti-cularmente feliz de um admirador, Vasco Graga Moura), entre épocas, autores, saberes e artes (da ciéncia ä filosofia, da pintura ä música), Óscar Lopes preenche os seus textos com um conhecimento fundamentalmente cultural, em extensäo e em profundidade, quer da literatura portuguesa, quer das margens internacionais com que a nossa literatura se liga. Embora se possa dizer que näo é o tipo de ensaísta que tende para a espe-cializacäo limitativa, mas antes para aquilo a que poderíamos chamar uma «dispersäo totalizante», a verdade é que, relativamente a muitos autores, Óscar Lopes é uma voz de percuciéncia e capaz de visöes pano-rämicas aprofundadas porque partem de um conhecimento apurado das obras. Os seus vários volumes de ensaios säo o espelho de um saber plural que visa um conhecimento plural também, com o estabelecimento de nexos, enlaces, que väo desde o particular de um livro, ao global da obra de um autor, ao macrocosmo literário-histórico-cultural, um conhecimento que näo dispensa as marcas do «afecto» estético, da admiracäo, por exemplo, por um Aquilino Ribeiro, um Vitorino Nemésio, um Eugé-nio de Andrade, para nomear só uns poucos. Antonio José Saraiva e Óscar Lopes, embora situando-se, numa f ase iniciál da sua producäo, adentro da pespectiva marxista do estudo da literatura, těm o seu lugar no ensaísmo literário portugués do Século XX menos por essa inscricäo ideológica e histórica e mais pela grandeza, ori-ginalidade e excepcionalidade da sua obra. Näo indo embora a contra--corrente no tempo em que comecam construir o seu magistério, na década de 50, väo de facto muito além do seu tempo. Esta ultima afir-macäo terá igualmente cabimento em relacäo a outra figura ímpar, que se estreia ainda na década de 40 e que vem agitar as águas do ensaísmo de «franco-atiradores», como o proprio escreveu. Trata-se de Jorge de Sena, Parafraseando Jorge Fazenda Lourenco, o trabalho seniano é, pela dimensäo, variedade, abrangéncia, inadjectivável. Situando-se contra o impressionismo, o historicismo de erudicäo acrítica, desenvolveu um ensaísmo que se reparte, simplificando, pela crítica e história literária, pela matéria histórico-cultural, pela teorizacäo metodológica. Se nos seus trés volumes de Estuäos de Literatura Portuguesa (1982, 1988, 1988) o encontramos a escrever sobre autores que väo da Idade Média ä con-temporaneidade, a tragar panoramas da crítica ou da história literária em Portugal, noutros trabalhos vé-se o aprofundamento e quase que o exas-pero de ir até ao limite do possível no estudo hermenéutico. Tal caracte-rística perceber-se-á nos estudos sobre os dois grandes a que dedicou parte considerável da sua obra - Pessoa e Camôes -, mas sobretuďo nos que versam sobre este ultimo poeta^ teorizacäo metodológica de Jorge de Sena, concretizada em estudos críticos, é particularmente reveladora de um espírito avesso ao sistema ou ä rigidez das orientacôes doutriná-rias, mas predisposto para a integracäo de saberes. É tendo estes prihcí-pios como horizonte que podemos captar o sentido do anti-didactismo almejado por Jorge de Sena, a entender, cremos, como proscricäo do método ou da doutrina singular, predicado que criticou na intelectuali-dade portuguesa, muita da qual näo poupou ä sua verve crítica e ä sua irónia, vendo-a por dentro ou pelo seu óculo de expatriado. Nisto e sobretudo na busca de urna ruptúra com a crítica encartada o vemos afim de um hörnern da sua geracäo quer de crítico, quer de poeta; trata-se de Jose Blanc de Portugal, que em 1960 publicou um Anticrüico (reuniäo de ensaios), polémieo, irónico, assumidamente contraditório, pretendendö que a crítica deve promover a discussäo e juntando num nó Cognitivo interpretacäo e poesia (como, alias, faz Jorge de Sena e, pode-se dizer, pretende a geracäo literária dos Cadernos de Poesia, de que ambos fazem parte): «E como poder é ser, apenas diremos que poesia é interpretacäo e interpretacäo conhecimento. A Poesia fará dos leitores poetas, pois deles fará interpretes». Um nó semelhante encontramo-lo na voz também polémica de Vergílio Ferreira, que nos cinco volumes de Espago do Invisível (onde se vai desde o ensaio literário até a uma escrita de pura meditacäo) promove, com o rasgo de quem sabe, a «contaminacäo» entre ensaio e romance: «E se, como é o meu caso, se pratica o romance e o ensaio, naturalmente que um e outro se contaminam». Em 1949, é publicado o primeiro volume de Heterodoxia, uma obra que traz a publico a voz de um ensaísta que terá um papel e um lugar únicos no ensaísmo portugués: Eduardo Lourenco. Neste trabalho inaugural, embora sem o distanciamento e a ironia cortante de um Jorge de Sena, Eduardo Lourenco aparta-se ideologicamente das ortodoxias que dominavam a intelectualidade portuguesa da época, de recorte conser-vador, por um lado, de orientacäo marxista, por outro. «O meu problema era romper essa muralha da China constituída pelas ortodoxias circu-lantes», afirmou em 1988 em entrevista ao Expresso. Este rompimento, que acaba por colocá-lo em «lado nenhum», (diz nessa entrevista) tem como motivo, para além de uma reflectida atitude de ruptúra, a vontade de «imaginär» e produzir um discurso de questionamento, céptico quanto äs possibilidades de chegar a qualquer forma de verdade absoluta, seja sobre a arte, seja sobre a política, seja sobre o seu pais, sobre o qual tem escrito como poucos. Embora dividindo o seu pensamento por inúmeras matérias, a literatura constitui um núcleo fundamental dos jseus escritos, abordando-a numa perspectiva que integra, entre outros saberes, a filosofia, a poetka, o pensamento religioso, etc. Eduardo Lourenco, do «häö-lugar» que sabiamente escolheu, tem sempře mostrado reservas relativamente a um conhecimento enquadrado em sistemas, o que faz dele uma figura modelár de ensaísta. Dai que ao longo da sua obra o vejamos täo distanciado de perspectivas críticas de base linguís-tica, que fecham o texto ao imaginário, aquilo a que cháma a «suspen-säo indefinida do sentido», ä compreensäo da literatura como jogo, «o mais eficaz dos jogos que soubemos inventár para veneer dentro da vida aquilo que no seu coragäo a esboroa: o tempo», como escreve num dos textos publicados em O Canto do Signo (1994), que reúne ensaios literá-rios publicados entre 1957 e 1993. Ö sentido didáctico que atravessa a obra de um grande ensaísta cuja obra se comeca a publicar também no final da década de 40 näo é equiparável ao didactismo que antes vimos ser eriticado por Jorge de Sena ou José Blanc de Portugal. A tendencia didáctka de Jacinto do Prado Coelho, esse ensaísta, tem a ver com a vontade mais fina de divul-gar, ensinando, urn conhecimento da literatura que sempře entendeu numa perspectiva comunicacional, de diálogo ou encontro entre o texto e leitor, entidade central no seu pensamento e cuja importäncia se paten-teia no titulo de uma das suas obras, A Letra e o Leitor (1969). Emérito pro- fessor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores, manteve sempre, ao longo de um produtiva vida de ensaísta, uma visäo humanista da literatura, exaltando o poder evocativp da palavra literária e acentuando a importäncia do lei-tor j>ara «despertar» o que tal palavra evoca. Este procedimento de esteta, que näo pretende fugir ä subjectividade no conhecimento do texto Hterário - «A palavra vive e morre no rio subjectivo» -, nunca o incom-patibilizou com a objectividade, mais, com a pretendida cientificidade "ďas těorias literárias, que acompanhou com sentido crítico e das quais aproveitou sem extremismos pondo em prática aquilo a que chamava a «incessante mobilidade do critico», em necessária adequacäo ao carácter multifacetado do fenómeno literário. Grande parte da sua obra diz res-peito a autores dos Séculos XIX e XX (Carnilo, Garrett, Eca de Queirós, Cesário, Teixeira de Pascoaes, Fiaľho, Raul Brandäo, Fernando Pessoa). Se Jacinto do Prado Coelho traca uma linha de referencia fundamental no ensaísmo que tem a sua origem no meio universitário (tal como urn Antonio Quadros fora da academia), menos näo se poderá dizer de Maria de Lourdes Belchior, outra figura de urna geracäo que desenvolveu uma fraternidade intelectual (mencione-se também o nome de Luis Filipe Lindley Cintra) e uma «escola» de recorte humanista, com-binandp valores como a erudicäo criticamente produtiva, a precisäo e um idealismo na busca da forma mais adequada de revelar as obras literárias no seu «significado näo fugaz», como escreveu a ensaísta em causa no seu Itinerário Poetko de Rodrigues Lobo (1959). Este como outros traba-Ihos de fundo realizou-os ä luz do projecto analítico e interpretativo da estilística, escola que modelou parte dos seus estudos e que divulgou em trabalho crítico. O interesse pela estilística marca inicialmente a perspectiva crítica de um grande poeta, ficcionista e também ensaísta, David Mouräo--Ferreira, mas o que de mais interessante caracteriza o seu ensaio é a varie-dade de abordagens, que acontece por forca da variedade dos objectos literários. Dando a ver a sua «generalizada auséncia de espírito de sis-tema», como escreveu em Hospital das Letras (1966), afirma como neces-sárias as «metamorfoses do critico». O seu ensaísmo, no qual confluem questöes de natureza teórica, é ao mesmo tempo rigoroso e diletante, fluido e encantatório e, na variedade de autores que abränge (dos clás-sicos aos contemporáneos), revela o curioso e, sobremaneira, o epicu-rismo de leitor. De notár igualmente que David Mouräo-Ferreira, tendo embora atravessado, como crítico, o «grande cisma» das escolas teórico-críticas a que chamaremos formalistas e que foram decisiyas nas déca- das de 60, 70 e 80, com a «morte» dos sujeitos autor, leitor, o abandono da historicidade, etc., nunca deixou, nos seus ensaios literários, de con-, templar questöes epocais, biográficas, a abjurada intencäo do autor, ou de juntar a inflexäo laudatória, a afectividade que, como fica claro, o ligava amorosamente äs obras literárias. Embora näo seja do mais proprio estabelecer proximidades autorais em funcäo" de tópicos como o agora referido, a verdade é que também em Urbano Tavares Rodrigues podemos encontrar um ensaísmo onde é patente uma simpatia intelectual que súpera o indispensável do trabalho crítico. Também este escritor favoreceu a variedade e o pluralismo da visäo interdisciplinar, como explica em Tradigäo e Ruptúra (1994), um volume onde colige ensaios nos quais comparecem, por um lado, autores de primeiro piano nos seus Interesses - Antonio Patricio, Manuel Tei-xeira-Gomes, mencionando só os Portugueses -, e, por outro lado, temas a que deu sempre grande favor e que constituem os pontos triunfantes da literatura - o erotismo, o amor, a morte. E porque se tem falado de sim-patias intelectuais e de um tipo de ensaísmo que näo se abisma numa čerta convencionalidade académica, que näo se coíbe na manifestacäo de efusôes estéticas e de profunda familiaridade, como sugere David Mouräo--Ferreira, caberia aqui referir, por exemplo, o trabalho de Joäo Bigotte Choräo, que parte de investigates rninuciosas no piano histórico para um conhecimento simultäneo do autor e da obra, como se vé na sua bibliografia camiliana ou também, por exemplo, em Carlos Mallwiro Dias na Ficgäo e na História (1992). De empatia e devocäo se poderia falar igualmente no que respeita ao valioso trabalho que Eugénio Lisboa desenvolveu em torno dä obra de Jose Regio, quer como crítico e biógrafo, quer como director da edkäo da sua obra pelo Circulo de Leitores. Menos näo se poderia dizer da dedicacäo de Alexandre Cabral a Carnilo e ä sua obra, editando e prefaciando textos, mas, sobretudo, elaborando o monumental Dicionáriode Carnilo Castelo Branco (1989). Urna das conclusöes a que se pode chegar quando se avanca num balanco como o presente é que, sendo possível compreender o correr das tendéncias, será possível também perceber que tais tendéncias näo se fecham em períodos estanques; passado, presente e futuro cruzam-se sem dificuldade seja na revitalizacäo, sempre transformadora, do passado, seja na novidade. Mais longinquamente, estas afirmacöes pren-dem-se com as perspectivas do ensaio literário portugués das décadas de 80-90 e, no mais imediato, com o trabalho de um ensaísta acima de tudo poeta, Antonio Ramos Rosa. Do muito que há de interessante no seu trabalho, registe-se em especial a clareza com que tern dilucidado a distincäo entre poesia clássica e poesia moderna, a especificidade do dis-curso poetko moderno e a singularidade da relacäo da poesia com o real (Poesia Liberdade Livre, 1962; A Poesia Moderna e a Interrogagäo do Real, 1979-1980). No que respeita ao texto poético, Antonio Ramos Rosa leva a cabo uma curiosa síntese (daí o preämbulo anterior) entre as visöes intuicio-nistas que se manifestam no principio do século e que se prolongam nal-gumas tendéndas da estilistica, valorizando a leitura imediata e pré-racio-nal e a análise minudosa, indo além da «leitura criadora». Permita-se concluir que será sob a egide do racionalismo que se desenha a fekäo do ensaísmo literário em Portugal nas décadas de 70 e também ainda na década de 80. A pretensäo e vontade de fazer do éstudo da literatura uma ciéncia foi o dado, sempře mantido sob dis-cussäo, que esteve na base das preocupacôes teóricas do formalismo russo, da estilistica, do estruturalismo, da semiótica, estas entre outras correntes que deslocaram o eixo dos estudos literários: do autor e da obra para o texto, da superfície histórico-literária ou histórico-cultural para a imanencia da estrutura ou do sistema, etc. A obra do poeta e também ensaísta E. M. de Melo e Castro Essa Crítica Louca (1981) mostrabem quer a perplexidäde motivada por urna viragem täo consequente no campo da propria concepcäo da literatura e da leitura, quer as possibilidades críticas das novas metodologias. Alias, e falando de viragem, convém lembrar a importäncia que teve na difusäo do estruturalismo em Portugal a obra Estruturalismo. Antolologia de textos teóricos (1978) com seleccäo de Eduardo Prado Coelho, que lhe junta urna extensa e muito inf ormada introducäo, explanando as grandes linhas de forca da referida corrente teórica. Diga-se aqui que Eduardo Prado Coelho tern lugar cimeiro no ensaísmo portugués do Século XX, realizando um trabalho multiface-tado no qual se manifesta um acompanhamento da contemporaneidade, e näo apenas no campo do saber literário. E de sua autoria também um estudo de referencia no ämbito da teória literária do Século XX, Os Uni-versos da Crítica (1982). No que respeita ao saber teórico, em 1967 Vítor Manuel de Aguiar e Silva publica uma obra que constitui, para além de uma súmula de saber, um avanco de propostas e problematizacöes. Essa obra, Teória da Literatura, será, na area teórica, a mais representativa do trabalho de um estudioso que sempře revelou uma aprofundada actua-lizacäo (o texto antes mencionado será no início da década de 80 pro-fundamente refundido) e que tem dividido o seu ensaísmo por questöes de indole histórico-literária, filológica e hermenéutica. Nos ensaios de fundo que resultaram de uma abordagem da literatura a partir de uma metodológia definida, está sempře pressuposto ou explicitado «que o metodo näo cria o objecto», como escreveu Maria de Lourdes A. Ferraz no prefácio de um desses ensaios -A Ironia Roman-tica. Estudo de um processo comunicativo, 1987 -, o que quer dizer que a literatura_como arte näo fica ou näo deverá ficar obscurecida pelo apa-rato metodológico. Isso mesmo se verifica no texto agora referido de Maria de Lourdes A. Ferraz, que tem prosseguido um trabalho no campo' da teoria literária e da poética da narrativa, com incidéncia em autores do Século XIX (Almeida Garrett, Camilo, Eca de Queirós). Uma mesma valorizacäo da literatura pelo método (e näo o indesejável contrario) encontramo-la num ensaio de Maria Vitalina Leal de Matos rea-lizado segundo a perspectiva da semiologia de Greimas e obra maior no dornínio dos estudos camonianos - O Canto na Poesia Epica e Lírica de Camôes. Estudo da isotopia enunciativa (1981); mostrando ao mesmo tempo a pertinéncia e eficácia do método adoptado, mostra também as capacidades analíticas da autora e urna vocacäo teorizante que se paten-teia nalguns ensaios de Ler e Escrever (1987) e que prosseguirá em várias vertentes do seu trabalho. As possibilidades de uma leitura realizada seguindo urna metodológia definida podemos verificá-las igualmente na obra de Maria Lucília Goncalves Pires Para urna Leitura Intertextual de Exercícios Espirituais do Padre Manuel Bernardes (1980), que, numa abordagem de fundo historko, mostra a produtividade de um «exerci-cio» de erudkäo teoricamente orientado. Esta autora tem-se dedkado fundamentalmente ä literatura renascentista e barroca. Um estudo a considerar, näo só pelo saber que fornece, mas igualmente pela natureza do estudo em si, é o trabalho de Joäo David Pinto-Correia Os Romances Carolíngios da Tradigäo Oral Portuguesa (1993-1994), no qual encontramos cindidas urna investigacäo de cariz histórico-cultural, análise filológica e urna abordagem semiótko-narrativa. A literatura oral e tradicional fem sido o principal campo de interesse deste ensaísta e nisto podemos juntá-lo a Pere Ferré ou Maria Aliete Galhoz, esta ultima com um lugar fundamental também no estudo e divulgacäo da obra pessoana. Sob um enquadramento estruturalista, escreveu Joäo Camilo dos Santos Carlos de Oliveira et le Roman (Paris, 1987), um longo ensaio cujo cerne diz res-peito ä questäo puramente intratextual da construcäo narrativa, mas que se alarga a dados de natureza historko- literária. Crítico excelente, tem produzido, num ensaísmo breve, estudos de uma natureza difícil de classificar, mas que se mostram muito atentos aos textos e que se desobrigam sensatamente de ideias feitas, o que é ainda mais evidente quando trata de autores de grande estatura, como Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. Também o trabalho de Carlos Reis nos dá urna visäo dp ínteresse pelo estruturalismo (e näo apenas) e das possibilidades da teória como instrumenta para a abordagem dos textos. Comecando por publicar ensaios onde se ilustram diferentes abordagens teórico-críticas dös textos literários, em trabalhos posteriores faz a sua auto-crítica, mostrando a necessidade de um recuo na hegemónia teórica e na rigidez das meto-dologias. «É preciso, pois, recuperar, um equilíbrio aparentemente per-dido», escreve em OConhecimento da Literatura. Introdugäo aos estudos literários (1995). De qualquer modo, o interesse pela ärea da téoŕíä tem sido estável na sua obra, a qual, no que respeita ä literatura portuguesa, se tem centrado principalmente no neo-realismo e no realismo, sendo hoje um dos grandes conhecedores da obra de Eca de Queirós. Considerando urna outra vertente do ensaísmodas décadas de 70 e 80 (lembrando que as fronteiras temporais säo sempre fugidias...), podemos dizer que as circunstäncias políticas - o pós-25 de Abril - pro-piciam a continuacäo e o desenvolvimento de um ensaísmo de raiz marxista, como, é, por exemplo, o de Álvaro Pina. No trabalho deste autor, em estudos críticos e em estudos teóricos (alguns de feicäo programá-tica), encontramos um entendimento da literatura na sua articulacäo dia-léctica com a sociedade e o acento no princípio de que o texto literário é / deve ser antes de mais comunicacäo veiculando conteúdos da cons-ciéncia social orientada para «o desenvolvimento humano ou desenvolvimento historico», como escreve em Realismo e Comunicagäo, Ensaios de teória e crítica literária (1980). Em idéntica perspectiva podemos enqua-drar algum do trabalho de Joäo Ferreira Duarte, que em 1989 publica O Espelho Diabólico. Construgäo do objecto da teória literária, conjunto de ensaios teoricamente densos, onde «se pretende construir o conceito de literário [...] pensado a partir de urna teória, um 'ponto de vista', o mar-xismo» e nos quais encontramos também uma atitude de distanciamento relativamente a uma posicäo que se vai afirmando nas ultimas trés décadas do século: um cepticismo extremo no que respeita ä necessidade e pertinéncia da teoria da literatura. Joäo Ferreira Duarte trabaľha igual-mente na area da literatura comparada. A mencionar também, é claro, o vasto trabalho de Alexandre Pinheiro Torres, um daqueles autores que deixaram inscrita em páginas de jornais uma crítica regular e de quali-dade. Doutrinador e crítico do neo-realismo, defensor do primado das relacöes da arte com o social, percebe-se nos seus ensaios criticos uma reeonducäo dos textos a processos e a urna estética de cariz socialmente interventivo mesmo quando isso näo cabe na linha programática dos autores, trazendo ä superfície algo que acaba por se configurar como um sistema simbólico dos textos e näo necessariamente como observäncia de teses doutrinárias. Os anos 70-80 viram surgir no ensaísmo literário urna variedade de abordagens inovadoras que vale a pena mencionar. Comece-se por Yvette K. Centeno; trabalhando na área da tradicäo hermética e de urna simbologia difundidanos textos religiosos e filosóficos, tem dado parti-cular atencäo ä obra de Fernando Pessoa e de Luis de Camôes. Seguindo urna abordagem análoga, Helder Macedo publicou Do Significado Oculto da Menina e Moca (1977) e Camôes e a Viagem Iniciática (1980). Helder Godinho, por seu lado, trabaľha no domínio da mitocrítica na senda das propostas de Gilbert Durand, problematizando a questäo do imaginário universal na sua articulacäo com o estudo da literatura e analisando o modo como os mitos gerados por esse imaginário se realizam em obras singulares, sendo de destacar os seus estudos-sobre Vergílio Ferreira. Estudos de fundo sobre os mitos, näo já na perspectiva da construcäo imaginária, mas considerando uma realidade histprico-cultural, encon-tramo-los no trabalho de Maria Leonor Machado de Sousa, que se inte-ressou em especial pelo o mito de D. Ines de Castro e a sua repercussäo dentro e fora de Portugal. Ainda sobre os mitos, mas associando urna análise de cariz teológico, histórico e simbólico, temos o trabalho de Dalila Pereira da Costa, onde se desenvolve uma indagacäo em torno da «espiritualidade nacional». Um outro ensaísta, Filipe Furtado, trabalhou em profundidade o género da literatura fantástica. Arnaldo Saraiva, para alem de uma especializacäo no modernismo portugués e brasileiro, para alem também de trabalhos de edicäo de autores modernistas, publicou dois volumes sobre Literatura Margina-lizada (1975 e 1980), nos quais contempla materiais täo poucó cänónicos como os hinos nacionais7 o anúncio, a cancäo, a literatura de cordel, ou as gralhas (estas num texto alem do mais divertido). De referir também a sua actividade em torno da obra de Fernando Pessoa, podendo aqui juntar-se os nomes de ensaístas como Maria da Gloria Padräo, Teresa Rita Lopes e Jose augusto Seabra. Maria Lucia Lepecki, que tem um importante papel na crítica de autores da literatura portuguesa moderna e contemporänea, como Camilo, Júlio Dinis, Nemésio, Vergílio Ferreira, Saramago, Lidia Jorge, Abelaira, Maria Judite de Carvalho, Maria Gabriela Llansol, Jose Cardoso Pires, Maria Lucia Lepecki, dizia-se, é uma ensaísta que revela uma curiosidade intelectual variadissima, da história do pensamento, äs religiöes, ä antropológia, äs ciéncias naturais, e praticante de uma interdisciplinaridade que, obviamente, ultrapassa o campo dos estudos literários e que lhe permite näo só estabelecer nexos / intertextuais particulares, mas também fazer uso de uma metalinguagem inovadora. Maria Lepnor Buescu, que dedicou grande parte da sua obra aos clássicos Portugueses, destacando-se o seu trabalho sobre os gramá-ticos do Século XVI, tem igualmente um ensaismo que se superioriza pelo grande saber, pela actualizacäo teórica e pela prática da «pluridis-ciplinaridade» e «prurimetodologia», usando palavras suas. O facto de os estudos literários se térem encaminhado para vincu-lacöes a determinadas metodologias foi motivo, esperadamente, de polé-mica, dissensäo, crítica e também auto-crítica. Näo cabe aqui fazer a retrospectiva desses acontecimentos, mas apenas sublinhar que, ou vee-mentemente contra ou em paralelo com o ensaio norteado por urna base metodológica, se continuou a produzir um ensaismo que se propôe ser, diga-se com cautela, mais auto-suficiente. É o que sucede com o trabalho de Jose Martins Garcia, este um dos autores que se «levantaram» contra os métodos, nomeadamente de cariz formalista e marxista. Acen-tuando a individualidade das obras, o seu ensaismo mostra que ós textos literários säo um todo composite) onde se inscrevem o autor, o tempo, as circunstäncias, pretendendo aliar, como escreveü no introito a Exercicio da Crítica (1995), «o rigor analítico possivel com a avaliagäo desse algo mdefinivel que numa obra nos seduz». Trabalhando no domí-nio da literatura portuguesa contemporánea, o mais preponderante na sua obra seräo os estudos que dediča a Vitorino Nemésio, num diálogo de acoriano para acoriano. Outro autor a quem seria de mencionar desde logo pela dita «auto-suficienda» é Vasco Graga Moura, uma figura mar-cante das letras portuguesas, como poeta, como tradutor, como critico e, genericamente, como hörnern de cultura ao qual näo falta o rasgo inter-ventivo. No seu trabalho domina o estudo da obra camoniana, em ensaios que těm sido louvados pela origihalidadě - uma originaíidade que o proprio, alias, procura enfatizando sempře a sua (duplice) condi-gäo de amador. Fazendo uso de uma linguagem muito clássica, os seus textos säo temperados näo raro pelo humor ou até pelo sarcasmo, um torn que também passa nas crónicas que desde há muito publica na imprensa periodica, muitas das quais já reunidas em livro. Defensor dos valores da lingua e da literatura portuguesa, tem-se empenhado em polémicas (äs vezes, «hörnern a hörnern») interessantes de acompanhar. No que respeita ao «grande cisma» de que se falava anteriormente e que pôs em causa a pertinéncia de um entendimento da literatura na sua relacäo com a história e suas variadíssimas manifestacöes, podemos dizer que nos anos 80 e 90 temos plenamente um «regresso de Clio», glo-sando o título de um ensaio de Joäo Barrento, introdutório de urna anto- lógia de textos sobre história literária (História Literária. Problemas e pers- l6? pectivas, 1982). Na obra děste autor, que se tem dedicado sobretudo á literatura alema e á literatura comparada, podemos ver uma forma de ir ao encontro da história no seu interesse pelo recorte do pensamento epocal cruzando a literatura com a filosofia. Numa mesma linha de regresso á história,j3erá de mencionar o nome de Maria de Fátima Marinho, que se tem dedicado ao estudo da poesia portuguesa contemporánea e que é autora de um trabalho de grande fólego sobre o surrealismo portugués - O Surrealismo em Portugal, 1987 -, pelo panorama que traca nao só da história do movimento, mas também das suas manifestacóes aquém e alem desse movimento. Caberá também aqui f alar da obra de Isabel Pires de Lima, uma grande conhecedora da obra de Ega de Queirós, sobre quem publicou, entre outros títulos, As Mascaras do Desengano. Para uma abordagem sociológica de Os Maias de Ega de Queirós, 1987, onde a autora leva a cabo o seu pessoal «regresso a Clio» por via da sociologia da literatura, como o título do trabalho indica. Problemas de cariz histórico-cultural e histórico-literário estáo também no centro do trabalho de José Carlos Seabra Pereira, que já vem da década de 70 (Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, 1975) e que tem sido sobretudo dirigido para a literatura finissecular (Do Fim-de--Século ao Tempo do Orfeu, 1979) e para a configuragao metódica, literária e culturalmente muito informada de úm periodo histórico-literário, ou, como escreve o autor, de uma «categoria estilístico-periodológica»: a do neo-romantismo. Este trabalho, que tem na sua cupula O Neo-Roman-tismo na Poesia Portuguesa (1999), revela um conhecimento profundíssimo das componentes culturais de uma época e uma visáo da obra literária como labor verbal (patente no estudo dos dados de natureza estilística), como labor congeminativo reflectindo nao só o tempo da sua criagao, e também um lastro cultural de milhares de anos. José Carlos Seabra Pereira tem também um importante trabalho de edigáo literária de autores do periodo finissecular. Tarefa idéntica tem sido levada a cabo por Fernando Cabral Martins no respeitante a obras de Fernando Pessoa e de Mario de Sá-Carneiro; sobre este escreveu um ensaio monográfico contemplando igualmente materia histórico-literária - O Modernismo em Mario de Sá-Carneiro, 1994 - e no qual se debruga sobre assuntos táo opor-tunos como, por exemplo, as peculiaridades da recepgáo crítica do poeta. No que respeita á primeira metade do século, fundamentalmente sobre poesia, tem vindo a publico o trabalho de Fernando Guimaráes, indis-pensável pela leitura crítica dos textos, pela explicitagao das pqéticas dos movimentos literários (Poetka do Saudosismo, 1988; Poetka do Simbolismo / em Portugal,í99Q-LOModernismo Portugués e a Sua Poetka, 1999), óu ainda pelo enlace do eonhecimento literário com a reflexäo filosófica, cpmo súcede em Os Problemas da Modernidade (1994). Preocupacöes de cariz periodológico, que vimos nortearem algu-mas das obras antes referidas, estäo também no horizonte do trabaľho de Isabel Almeida (uma ensaísta que segue o rumo do aprofundamento histórico-literário no domínio da literatura portuguesa clássica) ou em parte da obra de Fernando J.B. Martinho, que estudou, com grau apu-radissimo de informacäo, as Tendéncias Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50 (1991,2.ä ed.) e que é um nome fundamental na critica da poesia portuguesa moderna - destacando-se na sua obra os títulos sobre Fernando Pessoa -, tal como Joaquim Manuel Magalhäes ou Nuno Júdice. Na ensaistica do primeiro percebe-se o seu «lugar de poeta», em particular por uma consciéncia reiterada de que a poesia é linguagem que segue um curso autónomo e de que «é supérfluo o que se possa dizer acerca dela» - frase de abertura do conjunto de ensaios Pirna Pobre (1999), assim intitulado para enfatizar o que distingue e separa critica e poesia. Nuno Júdice valoriza uma leitura de contextualizacäo historka e de recu-peracäo da biografia, escrevendo com sarcasmo, num estudo sobre Antero de Quental, que aceita correr o «risco de recuperar o Autor, vitima de uma impiedosa eutanásia por correntes criticas que hiperva-lorizam o Texto convertendo-o numa entidade absoluta que, como Deus, se cria a si propria». Talvez sem sarcasmo, mas seguramente com ironia, Helena Buescu intitulou um volume de reuniäo de ensaios EmBusca do Autor Perdido. Histórias, concepgöes, teorias (1998), conjunto de reflexöes teórkas e de «analise de casos» que nos permitem perceber, tal como outras obras da autora, que a visäo pós-formalista ou pós-estruturalista da literatura, recobrindo as décadas de 80 e de 90, consiste num fenó-meno de manifestacöes muito variadas no campo do ensaísmo literário. Tendo feito um doutoramento em literatura comparada, sobre a descri-cäo na paisagem romäntica (Incidencias do Olhar. Recepgäo e representagäo, 1990), uma parte considerável do seu trabalho situa-se nesta área, privi-legiando as litera tu ras portuguesa e francesa dos Séculos XVIII, XIX e XX. O romantismo, também numa perspectiva comparatista, tem sido a principál área de investigacäo de Álvaro Manuel Machado, que estudou em profundidade as «metamorfoses» do modelo romántico até ä contem-poraneidade, ňomeadamente até ao romance de Agustina Bessa-Luís. Ainda tendo em conta a recuperacäo do autor, deve lembrar-se o trabalho de Luis Mouräo sobre a diarística de Vergílio Ferreira ou de Clara Rocha sobre literatura autobiográfka. Do primeiro, destaque-se também um trabaľho de grande qualidade no qual se faz o questionamento dos efeitos nalguma narrativa portuguesa do anunciado «fim da historia» -Um Romance de Impoder: a paragem da história na ficgäo portuguesa contem-poränea (1997). De Clara Rocha, refira-se o precioso levantamento e estudo crítico das Revistas Literárias do Século XX em Portugal (1985). — «A preocupacäo com os textos, e menos com modelos teóricos, näo represénta, no entanto, qualquer menosprezo pela pluralidade das teorias literarias», afirmou Jorge Fazenda Lourenco em A Poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose, peregrinagäo (1998) - urna obra de «impe-cável scholarship*, como escreveu Vasco Graca Moura -, dando voz a um sensato eclectismo que se testemunha noutros autores. Um eclectismo semelhante, no que respeita aos apetrechos teóricos, podemos encontrá-lo no trabalho de Rosa Goulart, por exemplo no seu Romance Lírico. O per-curso de Vergilb Ferreira (1990), ensaio cujo valor está näo apenas no estudo da obra do escritor, mas também naquilo que nos dá a conhecer sobre as coordenadas do romance moderno: a mistura de generös e de modos, a ruptúra com a organizacäo realista do tempo e do espaco, a incidéncia do discurso metanarrativo, a hiper-subjectivizicäo, etc. Aos autores que partem de uma visäo critica do exclusivismo e rigidez meto-dológicos (em particular de orientacäo estruturalista) podemos juntar o nome de F. J. Vieira Pimentel, que realizou, entre outros trabalhos sobre literatura portuguesa dos Séculos XIX e XX, um estudo de fundo sobre a lírica da presenga - A Poesia da presenca (1927-1940). Tradigäo e moderni-dade (1989). Por idénticas razôes, lembre-se o ensaísmo, por mais de urna vez premiado, de Paula Moräo, que tem dedkado muito do seu trabaľho ä edkäo e estudo da obra de Irene Lisboa, num regresso, amplamente renovado, ä questäo do autor e da biografia (Irene Lisboa. Vida e escrita, 1989), e que, mais recentemente, se tem dedkado ä problemática da representacäo do feminino nos textos literários. O problema do ferninino, questionado agora enquanto especifidade autoral, predomina no ensaísmo de Isabel Allegro Magalhäes. Autores como os que temos estado a referir acentuam a indivi-dualidade dos textos enquanto actualizacäo particular das possibilida-des da linguagem e da tradicäo literária, do mundo circundante, da História, lato sensu. É esta atencäo ä história que, diríamos, decide a especi-ficidade do ensaísmo de Manuel Gusmäo, um ensaísmo marcante e denso, atento ä importäncia da construcäo dos sujeitos nos textos, ao seu «processo de individuacäo», mas sempře considerando que essa construcäo resulta de um encontro dos sujeitos com a história, um encontro fundador na sua constituicäo. Manuel Gusmäo tem publicado um tra- balho crítico inovador em torno da poesia e da narrativa contemporá-neas (Alberto Caeiro, Fernando Pessoa, Carlos de Oliveira, Nuno Bra-ganca, Maria Velho da Costa). O percurso, cauteloso e sempře hesitante, que temos estado a seguir neste panorama do ensaísmo literário em Portugal mostra que o conhecimento, neste particular o conhecimento da literatura, nao avanca em linha recta de transformacao em transformacao (de paradigma em paradigma), mas numa espiral que pressupoe um encontro, mais ou menos efectivo, mais ou menos pacífico, mais ou menos recal-citrante, entre os vários modos de saber. Na colectánea Outros Erros. Ensaios de literatura (2001), Maria Alzira Seixo reitera a ideia do conhe-čfmento da literatura como erráncia, quer no sentido de deambulacáo, quer no sentido de erro significando «processo de busca e indagacáo». Estas «busca e indagacao» designaráo convenientemente o trabalho desta ensaísta, que tem levado a cabo a sua pesquisa em estudos de literatura comparada, em estudos teóricos ou em inúmeros e fundamentals estudos sobre a narrativa portuguesa contemporánea. Fazendo apelo a um saber muito variado, da música, ás artes plásticas, ao colorido (e polémico) da cultura de massas, poder-se-á dizer que no horizonte do seu trabalho está o entendimento e a valorizacao da literatura enquanto fenómeno estético e enquanto manifestacao que move de forma extraor-clinária os afectos; ďaí ser um ensaísmo «eufórico» e crente nas possibi-lidades da literatura enquanto arte e enquanto materia de conhecimento, uma crenca, alias, partilhada por muitos dos nomes que aqui referimos. A esses poderemos juntar aqui o de dois autores que publi-cam sobre Raul Brandáo, já na década de 90, dois trabalhos de indole muito distinta, mas cativantes na interpretacao, na argumentacao e na escrita: de Vítor Vicoso, A Mascara e o Sordio. Vozes, imagens e símbolos na ficgao de Raul Branddo (1999) e de Maria Joao Reynaud Metamorfoses da Escrita. Humus, de Raul Branddo (2000). No entanto, na criacao literária, no estudo da literatura e no seu ensino tem-se vivido um certo mal-estar, uma consciéncia de crise que fez tombar os alicerces de uma primeiro desejada e depois nao raro abo-minada abordagem teórico-científica dos textos. O exorcismo (assim Ihe chamou Carlos Drummond de Andrade num poema muito conhecido) das orientacoes pretensamente científicas e, antes de mais, as próprias orientacóes trouxeram á linha de água uma renovacáo do pensamento teórico sobre a natureza do literário, já sem a ambicao de decidir de uma vez por todas o que a literatura é. Lembre-se, neste ámbito, o nome de Manuel Frias Martins, que tem publicado trabalhos na area da poesia portuguesa contemporänea e que publicou igualmente o ensaio Matéria Negra. Urna teória da literatúra e da crítica literária (1995; Ír ed., revista), em cuja introducäo faz um veemente pronunciamento dirigido a quem aŕirma a «näo necessidade» da teória da literatúra e defende a articula-cäo desta disciplína com a crítica, o que tem sido um caminho centrál da sua obra. O geral do estudo agora mencionado centra-se em torno de urna questäo que Manuel Frias Martins sintetiza na metafora «matéria negra»: o «mistério» da literatúra, o «lado obscuro da comunicacäo literária que, decorrendo de urna vertente näo racional da comunicacäo, nunca pode ser formalizada». Este estudo leva a conclusôes que, näo sendo risonhas, näo säo desanimadoras. Embora verifique com amável desespero as crises (anunciadas e / ou efectivas) da literatúra e dos estudos literários, adianta também: «Apesar dos perigos que a instituicäo literária corre nos nossos dias, a literatúra continua a conter em si as pos-sibilidades intemporais de um conhecimento insubstituível ou «dificil-mente substituível» do homem e do mundo.» Pode-se dizer que o traco definidor de urna linha ensaística dos anos 80-90 e a que se tem chamado pós-moderna é justamente a problematiza-cäo da crise do literário, näo como resultante de condicôes externas, mas como algo que se inscreve no mais fundo da literatúra. Genericamente (e pesando o risco das generalizacôes), o ensaísmo da pós-modernidade questiona tanto a perspectiva humanista do conhecimento da literatúra, que parte, assim se tem admitido, do princípio de que é possível reconhe-cér um sentido nas obras literárias, como as perspectivas que teoricamente pretendem configurar um estatuto da literatúra definindo-a, estabelecen-do-lhe os limites e alinhando critérios de interpretacäo. Toda esta proble-mática é ampla e excepcionalmente tratada na obra de Silvina Rodrigues Lopes A Legitimagäo em Literatúra (1994), onde se conclui, depois de urna densa ponderacäo sobre as propostas «legitimadoras» da literatúra, que «[n]enhum critério permite designar urna obra como literária» e se defende «uma concepcäo da experiéncia literária que tenha em conta a impos-sibilidade de definir os limites da experiéncia e a impossibilidade de definir a literatura». Este ponto de vista, alicercado sobretudo no pensamento desconstrudonista, tem, ainda no trabalho de Silvina Rodrigues Lopes, um prolongamento consequente nos seus textos de crítica literária, nos quais se reconhece a contingénda da interpretacäo e se estabelece entre esta e o exerdcio ensaístico um continuum criativo. Urna densa reflexäo teórica sobre os problemas e paradoxos da interpretacäo encontramo-la no "trabalho de Miguel Tamen, nomeadamente Hermenéutica e Mal-Estar (1987) e Maneiras de interpretagäo. Osfins dos argumentos nos estudos literários (1993). / O cepticismo ou relativismo do ensaio pós-moderno (como item sido caracterizado, neutral ou acusatoriamente) vemo-lo igualmente no tra-balho de Abel Barros Baptista, mostrando, dir-se-ia, a faléncia do domí-nio do ensaísta sobre aquilo que escreve, a impossibilidade da sistemati-zacäo e da racionalidade, a «duvida radical», como escreveu George Steiner em Presengas Reais, a desconstrucäo näo só do texto alheio, mas também do texto proprio, a auto-ironia, uma ideia de crítica literária como jogo e como fracasso inevitável e necessário. Uma compreensäo do pós--modernismo surge, por exemplo, no livro de Carlos Ceia O que É Afinal o Pós-Modernismo? (1998); este ensaísta, a par de um trabalho sobre literatura portuguesa contemporánea, tem-se pronundado também, por vezeš num tom crítico muito forte, sobre os estudos literários e sobre o ensino da literatura em Portugal. A estes nomes podemos juntar os de Osvaldo Silvestře, de Américo Lindeza Diogo com um trabalho periodo-logicamente abrangente, marcado pelo desconstrucionismo, ou de Fernando Pinto do Amaral, um ensaísta que se afirma na década de 90, tendo a seu modo desenvolvido algum trabalho em torno das questöes da pós--modernidade, mas sem a viruléncia crítica ou o cepticismo que por vezeš vém ä boča de cena. Embora a sua producäo sej a variada, o principal dos seus estudos centra-se na poesia portuguesa contemporánea. Aproximando-se este pequeno (e infelizmente incompleto) balanco do seu fim, voltamos a esclarecer que as tendéncias que aqui se foram sintetizando apontam para certas dominantes que o tempo e as circuns-táncias foram ťavorecendo e nunca para hegemonias ou rasuras do conhecimento herdado. De facto, no ensaísmo portugués, a actualidade sempře conviveu e até se combinou saudavelmente com a tradkäo, e, de certo modo fechando o círculo, podemos hoje beneficiar do saber de estudiosos que desenvolveram a area dos estudos filológicos, como Ivo de Castro, ou Elsa Goncalves, eminente investigaďora da lírica medieval galego-portuguesa. O ensaísmo de orientacäo histórico-cultural ou his-tórico-literária inscreveu ao longo do secülö uma linha contínua, e aos nomes já aqui reféridos podemos juntar o de Jose VitorinödePina Martins, com uma obra de grande saber centrada em particular no legado do Renascimento portugués visto no seu cruzamento com o Humanismo europeu, ou o de José-Augusto Franca, o qual, a par de granděhisto-riador da arte portuguesa, tem também um trabalho original na area da história da literatura, compulsando e interpretanto factos de natureza política, artística, da vida social, biográficos. De referéncia indispensável também o nome de Aníbal Pinto de Castro, seja pelo extraordinário trabalho de erudito que se pode testemunhar, por exemplo, numa obra sobre uma area ä qual nem sempře se dá a merecida importáncia nos estudos da literatura portuguesa - Retórica e Teorizag&o Literária em Portugal. Do humanismo ao neoclassicismo (1973) -, seja pela variedade do seu campo de interesses, näo impedindo, essa variedade, o rigor e o apro-fundamento, como sucede no seu trabalho sobre Luis de Camöes ou sobre Camilo Castelo Branco. Joel Serräo, que tem um trabalho fundamental, em co-autoria, na edicäo de textos de Fernando Pessoa, dedicou--se também ä edicäo e estudo da obra de Cesário Verde e publicou, em dois volumes (1959 e 1962) Temas Oitocentistas. Para a história de Portugal no século passado, uma obra de referéncia conduzida segundo uma pers-pectiva histórico-cultural. Um saber rigorosíssimo da retórica clássica, uma sřntese interdisciplinar sustentam uma obra de exceléncia sobre A Oratoria Barroca de Vieira (1989), de Margarida Vieira Mendes. Preco-cemente desaparecida, deixou, para alem de um importante trabalho como editora literária, uma reflexäo promissora sobre o ensino do portugués e da literatura, dispersamente publicada. Continuando ainda no classicismo, mencione-se igualmente o trabalho de José Augusto Cardoso Bernardes, quer em torno de questöes genológicas - O Bucolismo "' Portugués. A écloga do Renascimento e do Maneirismo (1988) -, quer sobre nomes grandes do periodo clássico, como Camöes e Gil Vicente. Vindo a lume mais recentemente, temos o estudo de Rita Marnoto O Petrar-quismo Portugués do Renascimento e do Maneirismo (1997). Ainda numa perspectiva histórico-literário e / ou histórico-cultural, o Século XIX tem sido atentamente estudado por autores como Ofélia Paiva Monteiro, que publicou, entre outros títulos, A Formagäo de Almeida Garrett. Experiéncia e criagäo, como Antonio Machado Pires (A Ideia da Decadéncia na Geragäo de 70,1980) ou Ernesto Rodrigues, este ultimo tendo dedicado parte do seu extenso e variado percurso como investigador a áreas de grande inte-resse até para uma compreensäo sociológica da época, como o folhetim e, genericamente, a imprensa oitocentista. Pela mäo de historiadores těm vindo a publico trabalhos fundamentals sobre escritores do Século XIX e do Século XX, como os que Joäo Medina tem regularmente publicado sobre Eca de Queirós, ou os que Luis Vidigal tem realizado sobre Aquiline, combinando uma visäo historka e antropológica. Olhando os tex-tos como «testemunho cultural» (palavras de Antonio Machado Pires), Maria das Gracas Moreira de Sá publicou, sobre um autor de transicäo, Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes (1992). Num piano historko particular, o da recepcäo, podemos mencionar Maria Fernanda de Abreu com Cervantes no Romantismo Portugués (1994) ou Henrique Almeida com Aquilino Ribeiro e a Crítica (1993). O século foi também percorrido por um interesse assinaláv^l na area da dramaturgia. Bastaria pensar que foi um campo de trabalho, porven-tura menos conhecido, de um Jorge de Sena, mas também de Paulo Quin-tela, a quem se devem estudos importantes sobre o teatro vicentino, tal como a Osório Mateus ou Maria Idalina Resina Rodrigues. Ainda na area do teatro, outros ensaístas há que obrigatoriamente ter em consideracäo, como Andrée Crabée Rochá, José Oliveira Barata, Helena Serôdio, Duarte Ivo Cruz e, naturalmente, Luiz Francisco Rebello, com textos de referencia no dornínio da historiografia do teatro portugués. Todo o saber é naturalmente composite, e porventura a maior perda num trabalho, digamos, de inventário é näo se dar conta näo tanto da quantidade, mas sobretudo da variedade. O recorte do ensaísmo literário portugués do Século XX ficaria ainda mais incomplete sem uma referencia a uma forma que se dividede ummodo artisticmnentehíbrido entre a prosa poética e o ensaio propriamente dito (um Alberto Ferreira no seu Diário de Édipo, 1965; Antonio Vieira em Metamorfose e Jogo em Mario de Sá-Carneiro, 1997). As relacöes da literatura com outras artes constituem outro campo de grande interesse, onde se sente o pulsar da inovacäo - as artes plásticas, a que se tem dedicado Rui Mário Goncalves ou mais pontualmente Ana Hatherly, uma das nossas grandes espe-cialistas da literatura barroca; a música, em trabalhos de Rita Marte ou Mário Vieira de Carvalho. O estudo do livro e da leitura tem interessado Fernando Guedes e José Afonsö Furtado; o líltimo publicou, entre outros títulos, justamente Os Livros e a Leitura. Novas ecologias da informagäo (2000). Para (quase) rematar com uma matéria senäo vanguardista, pelo menos absolutamente contemporänea, lembremos a ligacäo da literatura com as novas tecnologias, area a que se tem dedicado Pedro Barbosa, autor de A Ciberliteratura. Criagäo literária e computador (1996). De igual modo, a literatura vista por outros ängulos disciplinares, como a filoso-fia, tern tido urn caminho frutuoso, como podemos comprovar no trabalho de José Gil sobre a obra de Pessoa, de Luis Adriano Carlos sobre Jorge de Sena, ou até mesmo de Antonio Guerreiro, que é conhecido sobretudo como crítico literário do jornal Expresso e que publicou em 2000 O Acento Agudo do Presente, conjunto de ensaios levantando, sobre a literatura, problemas de natureza ética, estética e historka. Diga-se, finalmente, que o século fechou com chave de ouro voltando a um género ensaístico que brilhava no dealbar da centúria de Novecentos: a biografia. Maria Filomena Mónica publicou Ega de Queirós, dando conti-nuidade a urna linhagem onde aparecem autores distintíssimos, alguns já mencionados, mas aos quais näo se poderia deixar de acrescentar Agustina Bessa-Luís, com as suas romanescas biografias de Florbela Espanca ou de Camilo Castelo Branco. Esta escritora e todos os nomes aqui mencionados fazem jus ä ideia, bastante pacifica, de que o ensaio é uma forma de escrita que implica autonómia, liberdade, espirito refle-xivo e que tern prosseguido acompanhando / determinando as variacoes epocais. Assim o verificámos, procurando explicitar, no que foi possivel, algo do recorte e dos matizes do ensaio literário portugués no Século XX. Bibliografia AULLÓN de HARO, Pedro, Los Generös Ensayxsticos en el Sigh XX, Madrid, Taurus Edi-ciones, 1987. BERNARDES, José Augusto Cardoso, «Historia literária. II - Em Portugal», in Biblos. Enci-clopédia Verbo das Literaturas de Lingua Portuguesa, vol. 2, Lisboa-Säo Paulo, Verbo, 1997. BUESCU, Helena Carvalhäo, «Ensaio», in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Lingua Portuguesa, vol. 2, Lisboa-Säo Paulo, Verbo, 1997. COELHO, Eduardo do Prado, «Dez anos de literatura portuguesa (1974-1984). Ensaio», in ColóauiolLetras, n.9 78, Marco de 1984, pp. 43-54; n.9 79, Maio de 1984, p. 37. COELHO, Eduardo do Prado, «A 'nouvelle critique' em Portugal», in ĽEnseignement et l'Expansion de la Líttérature Francoise au Portugal (actes du colloque), Paris, Fondation Calouste Gulbenkian-Centre Culturel Portugals, 1984, pp. 223-236. COELHO, Eduardo do Prado, «O ensaio em geral», O Cálculo das Sombras, Lisboa, Edicôes Asa, 1997, pp. 18-49. FERREIRA, Joäo Palma, «Ensaio», in COELHO, Jacinto do Prado (dir.), Dicionário de Literatura, vol. 1, 3r ed., Porto, Figueirinhas, 1983. FIGUEIREDO, Fidelino de, A Crítica Literária como Ciéncia, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1913 (várias edicôes, revistas e ampliadas). GOULART, Rosa, «Vitorino Nemésio: o ensaio do escritor», in Nemésio Vinte Anos Depots, Lisboa-Ponta Delgada, Edicôes Cosmos-Seminário Internacionál de Estudos Neme-sianos, 1998, pp. 617-624. LIMA, Silvio, Ensaio sobre a Esséncia do Ensaio, 2r ed., Coimbra, Arménio Amado Editor, 1964. LOPES, Silvina Rodrigues, «Do ensaio como pensamento experimental*, Literatura, Defesa do Atrito, s.l., Vendaval, 2003. SARAIVA, Arnaldo, «Para uma teória da crítica portuguesa», Literatura Marginalizada, Porto, s.n., 1975, pp. 67-100. SENA, Jorge de, «Ensaismo crítico em Portugal» e «A crítica portuguesa no século XX»; Estudos de Literatura Portuguesa - III, Lisboa, Edicôes 70,1988, pp. 45-49 e 95-106. SÉRGIO, Antonio, «Prefacio», Ensaios, vol. 1, 2.- ed., Coimbra, Atlantida, 1949, pp. 11-67. SILVESTŘE, Osvaldo, «Critica Literária. II - Em Portugal», in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Lingua Portuguesa, vol. 1, Lisboa-Säo Paulo, Verbo, 1995. SIMÖES, Joäo Gašpar, Críticos e Ensaístas Contemporäneos (1942-1979), Lisboa, IN-CM, 1983. Tndice de antores citados A., Ruben (1920-1975) ABELAIRA, Augusto (1926-2003) ABREU, Maria Fernanda de (1948) AGUIAR, Joäo (1944) AL BERTO (1948-1997) ALEGRE, Manuel (1936) ALEXANDRE, Antonio Franco (1944) ALMEIDA, Bernardo Pinto de (1954) ALMEIDA, Henrique (1960) ALMEIDA, Isabel (1963) ALVES, Vasco de Mendonca (1883-1962) AMADO, Fernando (1899-1968) AMARAL, Ana Luisa (1956) AMARAL, Domingos (1967) AMARAL, Fernando Pinto do (1960) AMARAL, Freitas do (1941) AMARO, Luis (1923) ANDRADE, Eugénio de (1923) ANDRADE, Joäo Pedro de (1902-1974) ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1919) ANTUNES, Antonio Lobo (1942) AROUCA, Manuel (1955) AUGUSTO, Fernando (1947-2003) AVILA, Norberta (1936) BAPTISTA, Abel Barros (1955) BAPTISTA, Amadeu (1953) BAPTISTA, Antonio Algada (1927) BAPTISTA, Jose Agostinho (1948) BAPTISTA-BASTOS, Armando (1934) BARATA, Jose Oliveira (1948) BARBOSA, Carvalho (1884-1936) BARBOSA, Pedro (1948) BARRENO, Maria Isabel (1939) BARRENTO, Joäo (1940) BASTOS, Joäo (1883-1957) BASTOS, Sousa (1844-1911) BELCHIOR, Maria de Lourdes (1923-1998) BELMONTE, Mafalda* BELO, Ruy (1934-1978) BELTRÄO, Luisa (1943) BENTO, José (1932) BERMUDES, Felix (1874-1960) BERNARDES, José Augusto Cardoso (1958) BESSA, Carlos Luis (1967) BESSA-LUÍS, Agustina (1922) BORGES, Maria de Fátima (1943) BOTELHO, Abel (1855-1917) BOTELHO, Fernanda (1926) BOTEQUILHA, Mario (1969) BOTTO, Antonio (1897-1959) BRAGA, Jorge de Sousa (1957) BRAGA, Maria Ondina (1932) BRAGA, Vitoriano (1888-1940) BRAGANCA, Nuno (1929-1985) BRANCO, Rosa Alice (1950) BRANDÄO, Fiama Hasse Pais (1938) BRANDAU, Julio (1869-1947) BRANDÄO, Raul (1867-1930) BRIM, Leonel (1939) BRITO, Casimiro de (1938) BRUN, André (1881-1926) BUESCU, Helena (1956) BUESCU, Maria Leonor (1932-1998) BUGALHO, Francisco (1905-1949) CABRAL, Alexandre (1917-1996) CABRAL, Filomena (1944) CABRAL, A. M. Pires (1941) CABRAL, Rui Pires (1967) CABREIRA JUNIOR, Tomas (1892-1911) CABRITA, Antonio (1959) CACHAPA, Possidónio (1965) CÁMARA, D. Joäo da (1852-1908) CAMILO, Joäo (1943) CAMPOS, Fernando (1924) CARDOSO, Miguel Esteves (1955) CARLOS, Luis Adriano (1959) CARMELO, Luis (1954) CARNEIRO, Eduardo Guerra (1942-2004) CARNEIRO, Jose Pinto (1967) CARVALHO, Armando Suva (1939) CARVALHO, Coelho de (1855-1934) CARVALHO, Gil de (1954) CARVALHO, Joaquim de (1892-1958) CARVALHO, Maria Joäo Lopo de (1962) CARVALHO, Maria Judite de (1921-1998) CARVALHO, Mario de (1944) CARVALHO, Mario Vieira de (1943) CARVALHO, Raul de (1920-1984) CARVALHO, Rodrigo Guedes de (1963) CASTILHO, Guilherme de (1912-1987) CASTILHO, Paulo (1944) CASTRO, Anibal Pinto de (1938) CASTRO, E.M. de Meio e (1932) CASTRO, Eugénio de (1869-1944) CASTRO, Ferreira de (1898-1974) CASTRO, Ivo de (1945) CASTRO, Joäo Osório de (1926) CASTRO, Manuel de (1934-1971) CEIA, Carlos (1961) CENTENO, Yvette K. (1940) CESARINY, Mario (1923) CHAVES, Castelo Branco (1900-1992) CHIANCA, Rui (1891-1931) CHORÄO, Joäo Bigotte (1933) CID ADE, Hernäni (1887-1975) CINATTI, Ruy (1915-1986) CINTRA, Luis Filipe Lindley (1925-1991) CLAUDIO, Mario (1941) COCHOFEL, Joäo Jose (1919-1982) COELHO, Antonio Borges (1928) COELHO, Eduardo Prado (1944) COELHO, Jacinto do Prado (1920-1984) COIMBRA, Leonardo (1883-1936) CONRADO, Júlio (1936) CORREIA, Clara Pinto (1960) CORREIA, Hélia (1949) CORREIA, Joäo de Araújo (1899-1985) CORREIA, Natália (1923-1993) CORREIA, Romeu (1917-1996) CORTESÄO, Jaime (1884-1960) CÔRTES-RODRIGUES, Armando (1891-1971) CORTEZ, Alfredo (1880-1946) COSTA, Dalila Pereira da (1918-1999) COSTA, Francisco (1900-1988) COSTA, Heider (1939) COSTA, Maria Velho da (1938) COSTA, Orlando da (1929) COUTINHO, Carlos (1943) CRUZ, Bento da (1925) CRUZ, Duarte Ivo (1945) CRUZ, Gastäo (1941) CRUZ, Liberto (1935) CRUZ, Mafalda Ivo (1957) CURTO, Ramada (1886-1961) DACOSTA, Fernando (1945) DACOSTA, Luisa (1927) DANTAS, Julio (1876-1962) DEUS, Rodrigo Moita de (1977) DIAS, Carlos Malheiro (1875-1941) DIAS, Doris Graca (1963) DIOGO, Américo Lindeza (1952) DIONÍSIO, Eduarda (1946) DIONÍSIO, José Amaro (1947) DIONÍSIO, Mario (1916-1993) DIREITINHO, José Rigo (1965) DUARTE, Afonso (1884-1958) DUARTE, Joäo Ferreira (1947) ECHEVARRÍA, Fernando (1929) ESPANCA, Florbela (1894-1930) FALCÄO, Carlos Pocas (1951) FARIA, Almeida (1943) FARIA, Daniel (1971-1999) FARIA, Rosa Lobato de (1932) FARO, Margarida (1954) FEIJÓ, Álvaro (1916-1941) FELIX, Emanuel (1936-2004) FERRAZ, Maria de Lourdes A. (1942) FERRÉ, Pere (1953) FERREIRA, Alberto (1920-2001) FERREIRA, Antonio Mega (1949) FERREIRA, Costa (1918-1997) FERREIRA, José Gomes (1900-1985) FERREIRA, Reinaldo (1922-1959) FERREIRA, Vergílio (1916-1996) FERRO, Antonio (1895-1961) FERRO, Rita (1955) FIDALGO, Jose Dinis (1959) FIGUEIREDO, Fidelino de (1888-1967) FIGUEIREDO, Tomas de (1902-1970) FILHO, Artur Portela (1937) FONSECA, Branquinho da (1905-1974) FONSECA, Catarina (1970) FONSECA, Manuel da (1911-1993) FORTE, Antonio Jose (1931-1988) FRANCA, Jose-Augusto (1922) FRANCISCO, Jose do Carmo (1951) FRANCO, Miguel (1918) FREIRE, Anselmo Braancamp (1849-1929) FREITAS, Manuel de (1972) FURTADO, Filipe* FURTADO, Jose Afonso (1953) GALHOZ, Maria Aliete (1929) GALVÄO, Henrique (1895-1970) Garcia, Jose Martins (1941) GASTÄO, Ana Marques (1962) GEDEÄO, Antonio (1906-1997) GERSÄO, Teolinda (1940) GIL, Jose (1939) GIL, Laura* GODINHO, Helder (1947) GOMES, Luisa Costa (1954) GOMES, Soeiro Pereira (1909-1949) GONCALVES, Egito (1920-2001) GONCALVES, Elsa (1930) GONCALVES, Manuel Fernando (1951) GONCALVES, Olga (1929-2004) GONCALVES, Rui Mario (1934) GOULART, Rosa (1946) GRALHEIRO, Jaime (1930) GUEDES, Fernando (1928) GUERRA, Älvaro (1936-2002) GUERREIRO, Antonio (1951) GUERREIRO, Fernando (1950) GUIMARÄES, Fernando (1928) GUIMARÄES, Joäo Luis Barreto (1967) GUISADO, Alfredo (1891-1975) GUSMÄO, Ana Nobre de (1952) GUSMÄO, Manuel (1945) HATHERLY, Ana (1929) HELDER, Herberto (1930) HORTA, Maria Teresa (1937) INÄCIO, Ana Paula (1966) IRIARTE, Rita (1934) JORGE, Joäo Miguel Fernandes (1943) JORGE, Lidia (1946) JORGE, Luiza Neto (1939-1989) JORGE, Ricardo (1858-1939) JÜDICE, Nuno (1949) KIM, Tomaz (1915-1967) KNOPFLI, Rui (1932-1997) LACERDA, Alberto de (1928) LACERDA, Augusto de (1864-1926) LAPA, M. Rodrigues (1897-1989) LARANJEIRA, Manuel (1877-1912) LEÄO, Antonio Ponce de (1891-1918) LEHNING, Maria Joäo* LEIRIA, Märio-Henrique (1923-1980) LEITÄO, Luis Veiga (1915-1987) LEITE, Arnaldo (1886-1968) LEPECKI, Maria Lucia (1940) LETRIA, Jose Jorge (1951) LIMA, Isabel Pires de (1952) LIMA, Manuel de (1915-1976) LISBOA, Antonio Maria (1928-1953) LISBOA, Eugenio (1930) LISBOA, Irene (1892-1958) LLANSOL, Maria Gabriela (1931) LOBO, Fonseca (1919) LOPES, Adilia (1960) LOPES, Joäo Santos* LOPES, Oscar (1917) LOPES, Silvina Rodrigues (1950) LOPES, Teresa Rita (1937) LOSA, Ilse (1913) LOURENCO, Eduardo (1923) LOURENCO, Frederico (1963) LOURENCO, Jorge Fazenda (1955) LOURENCO, M.S. (1936) MACEDO, Helder (1935) MACHADO, Älvaro Manuel (1940) MACHADO, Dinis (1930) MÄE, Valter Hugo (1971) MAGALHÄES, Isabel AUegro (1942) MAGALHÄES, Joaquim Manuel (1945) MALDONADO, Fätima (1941) MALPIQUE, Cruz (1902-1992) MANGAS, Francisco Duarte (1960) MANTUA, Bento (1878-1932) MARGARIDO, Alfredo (1928) MARINHO, Maria de Fátima (1954) MARMELO, Manuel Jorge (1971) MARNOTO, Rita (1957) MARQUES, Helena (1935) MARQjJES, Margarida Goncalves MARTINHO, Fernando J.B. (1938) MARTINHO, Virgílio (1929-1994) MARTINS, Albano (1930) MARTINS, Fernando Cabral (1950) MARTINS, José Vitorino de Pina (1920) MARTINS, Luzia Maria (1926-2000) MARTINS, Manuel Frias (1949) MATEUS, Osório (1940-1996) MATOS, Maria Vitalina Leal de (1939) MEDINA, Joáo (1939) MELLO, Pedro Homem de (1904-1984) MELO, Filipa (1972) MELO, Guilherme de (1931) MELO, Joao de (1949) MELO, Jorge Silva (1948) MENDES, José Manuel (1948) MENDES, Luis Filipe Castro (1950) MENDES, Manuel (1906-1969) MENDES, Margarida Vieira (1949-1997) MENDES, Pedro Rosa (1968) MENDONCA, Henrique Lopes de (1856-1931) MENDONCA, José Tolentino (1965) MESQUITA, Marcelino (1856-1919) MEXIA, Pedro (1972) MIGUÉIS, José Rodrigues (1901-1981) MIRANDA, Jorge Gomes (1965) MIRANDA, Miguel (1956) MIRANDA, Paulo José (1965) MONGINHO, Julieta (1958) MONICA, Maria Filomena (1943) MONTALVOR, Luis de (1891-1947) MONTEIRO, Adolfo Casais (1908-1972) MONTEIRO, Domingos (1903-1980) MONTEIRO, Hélder Prista (1922-1994) MONTEIRO, Henrique (1956) MONTEIRO, Luis de Sttau (1926-1993) MONTEIRO, Ofélia Paiva (1935) MORAIS, Graca Pina de (1927-1992) MORÄO, Paula (1951) MOREIRA, Helga (1950) MOREIRA, Julio (1930) MÖHRA, Vasco Graca (1942) MOURÄO, Luis (1960) MOURÄO-FERREIRA, David (1927-1996) MOUTINHO, Jose Viale (1945) NAMORA, Fernando (1919-1989) NAVA, Luis Miguel (1957-1995) NAVARRO, Antonio Rebordäo (1933) NEGREIROS, Jose de Almada (1893-1970) NELSON, José-Emílio (1948) NEMÉSIO, Vitorino (1901-1978) NEVES, Abel (1956) NÓBREGA, Isabel da (1925) NOGUEIRA, Albano (1911) NORTON, Cristina (1948) NUNES, Jose Joaquim (1859-1932) NUNES, Jose Ricardo (1964) NUNES, Natália (1921) NUNES, Rui (1946) O'NEILL, Alexandre (1924-1986) OLIVEIRA, Carlos de (1921-1981) OSÓRIO, Antonio (1933) PACHECO, Fernando Assis (1936-1995) PACHECO, Luiz (1925) PACO D' ARCOS, Joaquim (1908-1979) PADRÄO, Maria da Glória (1941) PAIXÄO, Pedro (1956) PALMA-FERREIRA, Joäo PASCOAES, Teixeira de (1877-1952) PATRÍCIO, Antonio (1878-1930) PAVIA, Cristovam (1933-1968) PEDREIRA, Maria do Rosário (1959) PEDRO, Antonio (1909-1966) PEDROSA, Ines (1962) PEIXOTO, Jose Luis (1974) PEREIRA, Ana Teresa (1958) PEREIRA, Helder Moura (1949) PEREIRA, Jose Carlos Seabra (1949) PEREIRA, Miguel Serras (1949) PESSANHA, Camilo (1867-1926) PESSOA, Carlos Jorge (1966) PESSOA, Fernando (1888-1935) PIMENTA, Alberto (1937) PIMENTEL, Alberto (1849-1925) PIMENTEL, F. J. Vieira (1945) PIMPÄO, Alvaro Julio da Costa (1902-1984) PINA, Álvaro (1942) PINA, Manuel Antonio (1943) PINTO,' Alberto Oliveira (1962) PINTO, Margarida Rebelo (1965) PINTO-CORREIA, Joäo David (1939) PIRES, Antonio Machado (1942) PIRES, Isabel Cristina (1953) PIRES, Jacinto Lucas (1974) PIRES, Jose Cardoso (1925-1998) PIRES, Maria Lucilla Goncalves (1939) PITTA, Eduardo (1949) PORTUGAL, Jose Blanc de (1914-1999) QUADROS, Antonio (1923-1993) QUEIRÓS, Joäo Miguel (1969) QUEIROZ, Carlos (1907-1949) QUINTAIS, Luis (1968) QUINTELA, Paulo (1905-1987) RAMOS, Wanda (1948) REBELLO, Luiz Francisco (1924) REDOL, Alves (1911-1969) REGIO, Jose (1901-1969) REGO, Raul (1913-2002) REGO, Teixeira (1881-1934) REIS, Antonio (1925-1991) REIS, Carlos (1950) REYNAUD, Maria Joäo (1945) RIBEIRO, Aquilino (1885-1963) RICARDO, Maria do Céu (1941) ROCHÁ, Andrée Crabée (1917-2003) ROCHÁ, Clara (1955) ROCHÁ, Jaime (1949) RODRIGUES, Arrnindo (1904-1993) RODRIGUES, Ernesto (1875-1926) RODRIGUES, Ernesto (1956) RODRIGUES, José Maria (1857-1942) RODRIGUES, Maria Idalina Resina (1933) RODRIGUES, Urbano Tavares (1923) ROSA, Antonio Ramos (1924) ROSA, Faure da (1912-1985) ROSAS, Joao (1981) ROVISCO, Miguel (1953-1987) SA, Isabel de (1951) SA, Maria das Gracas Moreira de (1956) SA, Vitor Matos e (1927-1975) SAA, Mario (1894-1971) SABINO, Amadeu Lopes (1943) SA-CARNEIRO, Mario de (1890-1916) SACRAMENTO, Mario (1920-1969) SALDANHA, Ana (1959) SALEMA, Alvaro (1914-1991) SAMPAIO, Albino Forjaz de (1884-1949) SAMPAIO, Ernesto (1935-2001) SAMPAIO, Fernando Luis (1960) SAMPAIO, Jaime Salazar (1925) SANCHES, Vicente (1936) SANTARENO, Bernardo (1920-1980) SANTOS, Fernando Fonseca* SANTOS, Joao Camilo dos (1943) SANTOS, Jose Carlos Ary dos (1937-1984) SANTOS, Miguel Ramalho (1972) SANTOS, Polibio Gomes dos (1911-1939) SARAIVA, Antonio Jose (1917-1993) SARAIVA, Arnaldo (1939) SARAIVA, Jose Antonio (1948) SARAMAGO, Jose (1922) SARAMAGO, Rui Miguel (1969) SASPORTES, Jose (1937) SCHWALBACH, Eduardo (1860-1946) SEABRA, Jose Augusta (1937-2004) SEIXO, Maria Alzira (1941) SELVAGEM, Carlos (1890-1973) SENA, Jorge de (1919-1978) SERGIO, Antonio (1883-1969) SERODIO, Helena (1948) SERPA, Alberto de (1906-1992) SERRAO, Joel (1919) SILVA, Jose Marmelo e (1913-1991) SILVA, Jose Miguel (1969) SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e (1939) SILVESTRE, Osvaldo (1961) SIMOES, Joao Gaspar (1903-1983) SIMOES, Manuel (1933) SOARES, Fernando Luso (1924) SOBRAL, Augusto (1933) SOUSA, Americo Guerreiro de (1942) SOUSA, Antonio de (1898-1981) SOUSA, Joäo Rui de (1928) SOUSA, Maria Leonor Machado de (1932) TAMEN, Miguel (1960) TAMEN, Pedro (1934) TAVARES, Goncalo M. (1970) TAVARES, Miguel Sousa (1952) TEIXEIRA, Paulo (1962) TEIXEIRA-GOMES, Manuel (1860-1941) TERRA, Jose (1928) TIAGO, Manuel (1913) TORGA, Miguel (1907-1995) TORRADO, Antonio (1939) TORRES, Alexandre Pinheiro (1921-1999) VASCONCELOS, Carolina Michaelis de (1851-1925) VASCONCELOS, Jose Leite de (1858-1941) VASCONCELOS, Taborda de (1924) VEIGA, Teresa (1945) VENÄNCIO, Fernando (1944) VENDA, Antonio Manuel (1968) VENTURA, Mario (1936) VIANA, Antonio Manuel Couto (1923) VTCOSO, Vitor (1943) VIDIGAL, Luis (1957) VIEGAS, Francisco Jose (1962) VIEIRA, Afonso Lopes (1878-1946) VIEIRA, Antonio (1941) VIEIRA, Vergilio Alberto (1950) VIQUEIRA, Miguel (1952) VITORINO, Virginia (1898-1967) XAVIER, Leonor (1943) ZINK, Rui (1961) * N.A. - Näo foi possivel conseguir os dados relativos a estes