Geragáo de 90 I Romance e Sociedade em Portugal nos Finais do Século XIX e nos Finais do Século XX 1.1. Relativismo Histórico e Cepticismo Social nos Romances Portugueses Finisseculares (Séculos XIX e XX) Estabelecendo um areo temporal de 100 anos e relendo alguns dos mais importantes romances Portugueses das duas ultimas décadas do século XEK, ressalta espontaneamente a conclusáo de que o seu conteúdo reflecte uma sociedade bloqueada, que vive quase exclusivamente de preconceitos e ilusoes sociais, exactamente a mesma conclusáo em nós despertada quando lemos alguns dos mais importantes romances Portugueses da ultima década do século XX. Porém, se, no final do século XEX, o pessimismo e o deca-dentismo expressos pelo romance reflectem uma monarquia em estado de acelerado apodrecimento, que, por si, arras-tava em desagregacáo as estruturas politicas fundamentais da sociedade e confundia as elites culturais, que na Europa Central viam o destino de Portugal, no final do século XX, diferentemente, os mesmos pessimismo e decadentismo expressos no romance portugues tem a ver, náo directamente com a realidade económico-social (náo existe nenhuma voz que náo aceite os benefícios económicos provenientes da nossa adesáo á Comunidade Europeia), mas com a profun- 19 Miguel Real Geragäo de 90 díssima transformacäo histórica que a identidade de Portugal e as suas representacöes colectivas tem sofrido de um modo impetuoso e acelerado com a descolonizacäo, em 1975, e a consequente perda do Império, e a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, em 1985. Em 25 anos mudámos o nosso ser fixo de nagäo imperial (espécie de vanguarda missionária do mundo durante meio milénio) para país-satélite daquela Europa Central que a Geracäo de 70 tanto admirava - e, face a tal passagem de Sol ilurninante a Lua üurninada, ao romance portugués, na sua diversificada multiplicidade e enquanto forma estética criada no seio de uma mentalidade colectiva conjuntural ainda muito recente, pouco hoje sobra de optimismo social; pelo contrario, se alguma tábua de valores domina os conteúdos ideológicos dos romances publicados ao longo da década de 90, essa é a de um singular cruzamento entre relativismo histórico e cepticismo social, como oprovam o Ensaio sobre a Cegueira, Todos osNomes e A Caverna, de J. Saramago, os diversos livros de Pedro Paixäo e de Rui Zink, o Livro das Maravilhas, de Vale Ferraz, os romances de Lobo Antunes publicados nesta década, os de Antonio M. Venda, de Luis Carmelo, Pedro Rosa Mendes, Manuel Jorge Marmelo, Jacinto Lucas Pires, Margarida Rebelo Pinto, Ricardo Ventura, Sergio Luis de Carvalho, Jose Luis Peixoto... e, com destaque, As Contadoras de Histórias, de Fernanda Botelho, e o decadentismo civilizacional expresso na totalidade da obra de Joäo Aguiar, ostensivamente evidenciado de um modo sintético no seu ultimo romance, A Catedral Verde. Tal como nos finais do século XLX, procurar hoje, em Portugal, um romance entusiasmado e militante, que ultrapasse ideologicamente o cepticismo de Eca ao escrever a ultima página de A Ilustre Cosa de Ramires ou o cepticismo de Mario de Carvalho ao escrever a ultima página de Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunta ou o cepticismo feito sangue de Pedro Rosa Mendes ao escrever Baía dos Tigres, e se assuma como defensor de uma causa considerada justa pelo autor, no intuito de transmissäo ao leitor de uma verdade, uma ideia pela qual valha a pena viver, será uma tarefa inglória caso nao incluamos nesta nossa busca a literatura juvenil, esta sim, täo carregadíssima de boas intencôes quanto estas falham na literatura de adulto. Assim, se insistirmos neste areo temporal comparativo e relacionarmos sociedade e romance, ou seja, acontecimentos historicamente marcantes nos dois finais de século com o con-teúdo ideológico dos romances cronologicamente correspon-dentes, poderemos extrair diversas conclusôes que, em síntese, nos apontaräo para o predomínio de urna comum atmosféra mental de pessimismo e de decadentismo, frutos da desorien-tacäo social quanto ao lugar e destino que Portugal viveu em fins do século XLX e está vivendo em finais do século XX: FINAIS D 0 SÉCULO XIX Äcontecimento histörico Mentalidade colectiva expressa nos romances 1. Desagregacäo das estruturas polftico--instftucionais da monarquia constitucional. 2. Humilhacäo nacional pelo "Ultimatum" britänico. 3. Advento imparavel do repufalicanismo. 4. Economia e financas nacionais em estado de falencia crönica. 5. Dominio dos interesses face ao dominio dos valores: individualismo e relativismo. 6. Irrupcäo dos valores ligados ao corpo: sensualidade e erotismo. 1. Pessimismo: Portugal e apresentado como urn pais incapaz de modernizacao senao por ruptura violenta, cujas elites se encontram fisicamente degeneradas e o povo ignorante. 2. Desorientacao social: o conteudo dos contos e romances de Ralho de Almeida, Eca deQueiros, Ladislau Batalha, Teixeira de Quei-ros, J. Lourenco Pinto, Abe! Botelho, Trindade Coelho criticam o modo de vida das elites economicas, politicas e culturais Portugueses, mas nao apresentam nenhuma altemativa social que nao seja, como criterio unico, o da elevacao do humanismo burgues do cidadao e da dignidade individual. Mas, para que esta dignidade seja conquistada, 20 21 Miguel Real Geragäode90 7. Substituicao dos valores da aristocracia pelos da burguesia comercial e industrial. 8. Desagreg^caodosistemaregeneradordos partidos confundido com os interesses individuals dos seus Ifderes. 9. Subalternizacao europeia da expansao africana portuguesa. 10. Forte pessimismo popular sobre o destino de Portugal ("Ze Povinho"). L. Batalha faz partir o personagem principal para a Argentina (Leocadio, in As Miserias de Lisboa) e Eca faz partir Goncalo para Mozambique, ou seja, so fora de Portugal a dignidade de cidadao era alcancada. 3.Decadentismo: existe a conviccao de que Portugal e um pais apenas viavel devido a emprestimos internacionais e que em nada conta na cena europeia: "Ser patriota e negar a nacionalidade" (A. Quental). FINAIS DO SECULO XX Acontecimento histörico 1. Perda do Imperio Ultramarino: retorno ao corpo territorial primitivo, com excepcäo da Madeira e Acores. 2. Novo concerto de cidadania: 3.a Geracäo dos Direitos Humanos. 3. Integragäo da Comunidade Europeia com absolüto predominio da sociedade capitalista de mercado econömico. 4. Soberania limitada de Portugal com partilha europeia de decisöes. 5. Substituicao da moeda nacional pela moeda europeia. 6. Independence social e econömica da mulher portuguesa. 7. Escolarizacäo macica da populacäo 8. Acesso fäcil ao credito. 9. Introducäo das novas tecnologias da informacäo com intensa aceleracäo no ritmo de vida social. 10. Predominio dos valores individualistas e relativistas, com expressaidolatria portodas as formas de prazer (hedonismo) e de riqueza econömica (luxo e superfluidade convivem com miseria e necessidade). Mentalidade colectiva expressa nos romances 0 conteüdo ideolögico dos romances reflecte: Ldecadentismo (vive-se, mas näo hä sentido ou ideia para a vida que näo sejam as ligadas ä idolatria do dinheiro, ä exaltacäo ao corpo, ao prazer ou ao prestigio individual - encontra-se aqui a raiz do sucesso editorial dos livros de M. Rebelo Pinto, R. Zink, M. J. Marmelo e Domingos Amaral); 2. pessimismo (geracöes anteriores säo geracöes perdidas - Fiama H. P. Brandäo, A. Neves, P. Paixäo, R. Zink, Sergio L de Carvalho - face ä avalancha de novos e duradouros costumes europeus); 3. desorientacäo social (evidencia-se como a sociedade e - beio retrato do Porto em M. J. Marmelo; de Lisboa em R. Zink, P. Paixäo e Lobo Antunes; de um certo Algarve em A. M. Venda... -, mas nada se critica, apontando-se uma alternativa; nada nos singulariza no concerto europeu: cidades, subdrbios e campo perderam a sua iden-tidade e tomaram-se iguais aos europeus). Embora as realidades histöricas e sociais apresentadas nos dois quadros sejam radicalmente diferentes, uma mesma representacäo colectiva as identifica: que o sentido histörico de Portugal estä fora de Portugal, ou seja, no final do seculo XEX, o sentido histörico encontrava-se na imitacäo da "civilizacäo" da Europa Central (Geracäo de 70) ou, para autores diversos, em Espanha (o Iberismo), e, para o povo-povo, em Africa, no Brasil ou na America Latina, para onde emigrava; no final do seculo XX, o sentido histörico de Portugal continua a mover-se e a ser atraido de novo pelos costumes e padröes de vida da Europa Central; porem - e como Eduardo Lourenco o provou inümeras vezes — encon-trando-se hoje a Europa, no final do seu segundo milenio e meio, em estado de progressiva decadencia face ao predo-rninio militar, econömico, politico e cultural americano, o nosso sonho europeu näo passa do sonho de um moribundo que, em luxuria, em insaciävel avidez, em ostentacäo e esbanjamento, vai gozando dos Ultimos momentos de vida. E o romance portugues reflecte este eldorado de pastiche e quinquilharia (Rui Zink, M. J. Marmelo, Margarida Rebelo Pinto, J. Lucas Pires, Ana Saldanha, Julieta Monginho, Possidönio Cachapa...), cujo brilho, parecendo de ouro de lei, revelar-se-ä a todo o momento como do mais enru-gado latäo, ou seja, o hedonismo socialmente manifestado em inümeros romances actuais revelar-se-ä, no fundo, como a sociedade reflectida nos romances de Jülio Cesar Machado, no Salüstio Nogueira, de Teixeira de Queirös, no Baräo de Lavos, de Abel Botelho, um bem expresso decadentismo. Romances gigantescos, em värios volumes, como, por exemplo, Miserias de Lisboa, de Ladislau Batalha, ou Come-dia Burguesa, de Teixeira de Queirös, reflectem uma literatura que abafa de valores de civilidade burguesa ultra- 22 23 Miguel Real Geragäo de 90 -romäntica (a nobreza de caräcter, a honra pessoal, a digni-dade individual, a honestidade a sucumbir äs mäos da malicia - valores entendidos num sentido universal e absoluto, inde-pendentemente das circunstancias concretas, transformando os protagonistas numa especie de cavaleiros andantes, defensores epicos da honra de "enjeitadas" e "humilhadas")-Ainda que sustentado por täo nobres valores, o ambiente mental e as relacöes sociais concretizados nestes romances säo indubitavelmente mesquinhos, fechados, acriticos e reprodutores da propria realidade quotidiana visivel, e, perpassando o olhar por uma vintena de romances entäo publicados, näo encontramos uma ideia original e valiosa que valha a pena ser destacada, pensamento que tambem nos acode quando lemos o conteüdo da maioria dos romances publicados no final do seculo XX: predominio da realidade social directamente fotografada com ausencia de transfiguracäo estetica. Camilo Castelo Branco e Eca de Queiros, lidos ä distäncia de um seculo, constituem duas fortissimas correntes de ar fresco em ambiente täo afectado, seja pelo modo de utilizacäo do vocabulärio, seja pelo conjunto de ideias criticas reveladas nos seus romances. A verdade e que näo era so-mente o conteüdo semäntico dos romances entäo publicados que se revelava pobre; era a propria realidade social que se manifestava artificiosa e impada de convencöes nobiliär-quicas, sem base solida. Por outro lado, esse mesmo conteüdo reflecte o desejo de ascensäo social por parte de cavalheiros burgueses e liberais que a todo o custo querem entrar na alta sociedade. As guerras civis entre liberais e absolutistas, o fontismo, a regeneracäo e, finalmente, a acelerada decaden-cia da monarquia a que o Ultimatum e o advento do republi-canismo a condenaram, tinham feito estilhacar o convencio-nalismo dos preconceitos aristocratas que desde o seculo XVII alimentava as relacöes sociais. Näo se tratava agora de evidenciar criticamente os expedientes e as manhas de fidalgos (D. Francisco Manuel de Melo), mas de condenar explicita-mente a aristocracia na sua totalidade como grupo social incapaz de se estatuir como herdeiro dos Gama, dos Afonso de Albuquerque e de D. Joäo II. Se em Almeida Garrett existe a contundente critica contra antigos e novos "baröes", e se em Alexandre Herculano co-existe a grandeza origi-näria da aristocracia que fundara Portugal com a possibi-lidade de regeneracäo da actual fidalguia, nos romances dos autores de final do seculo, a aristocracia e ja reflectida seja como uma perversäo genetica motivada pelos conti-nuos casamentos entre as casas nobres (tema fortemente explorado pelo naturalismo), seja como um adorno social que abrilhanta salöes, e os nomes ifustres dos nobres como uma especie de cocega que faz rir a antiga alma portuguesa. O que bem se denota no conteüdo dos romances destes autores finisseculares e que, em Portugal, näo hä salvacäo para os Portugueses. Por isso, Camilo Castelo Branco faz dizer, em A Brasileira de Prazins, a um conjunto de perso-nagens que querem ä viva forca ascender socialmente, "Nos deviamos ir todos para o Brasil"; Ladislau Batalha envia o seu purissimo Leocädio Bacelar para a Argentina, para que regresse rico e desafie os preconceitos sociais em que assentam as elites lisboetas; e o Eca de 1897 (que ja näo e bem o Eca de 1893, que ainda ve no modo simples de vida do campo uma possivel reabilitacäo de Portugal), revendo no tedio afidalgado de Goncalo Ramires a decadencia das familias ilustres, faz partir este para Mocambique no paquete "Portugal", para que talvez ai, pelo trabalho e pelo comercio, Portugal de novo se encontre. Ä medida que o esboroamento social se intensifica, ä medida que os republicanos conquistam lugares no Parlamente, que os dois partidos dominantes (Regenador e Pro- 24 25 Miguel Real Gerafäo de 90 gressista) se multiplicam em outros pequenos partidos, sobrevivendo do prestigio dos seus chefes e da capacidade destes de nomearem ministros, e que a humilhacäo nacional e patente face ao descalabro financeiro do Estado, a literature (poesia e romance) toma-se pessimista e decadente, ultrapassando o optimismo social de A. Garrett e Jülio Dinis. Nascem, assim, esse gigante do pessimismo humanista que e o terceiro Fradique Mendes e esse schopenhaueriano carregado de privilegios sociais que e Carlos da Maia; intensifica-se o cesarismo e o misticismo de Oliveira Martins e a necessidade da existencia de um Absoluto em Antero de Quental; em Salüstio Nogueira, de Teixeira de Queiros, inventam-se ministros em salöes como quem come um gelado e, em Miserias de Lisboa, criam-se artificiosamente, por propaganda de imprensa, "africanistas" emeritos que näo passam de ladröes procurados pela justica; desdobram-se falsas oposicöes que absolutizam cada um dos polos, como a oposicäo cidade-campo (Eca, Trindade Coelho, Guerra Junqueiro, Joäo de Deus, Fialho de Almeida) e a oposicäo entre a honra individual e a promiscuidade negativa das relacöes sociais (Abel Botelho, L. Batalha). Face a este artificialismo social, a propria lingua romanesca perde em fluencia real (Almeida Garrett), em inventiva vernacular historica (Alexandre Herculano) e rural (Camilo Castelo Branco), em criatividade adverbial e adjectivante (Eca de Queiros) o que ganha em formalismo: Teixeira de Queiros, Pinheiro Chagas, Abel Botelho, Ladislau Batalha assemelham-se, näo raro, a professores e advogados encar-regados de escrever ficcäo. Ou seja, as tramas romanescas, o estilo e o uso da gramatica, de täo pobres, parecem criados pela imaginacäo de funcionärios püblicos que obedecem a ditames de uma realidade social imediata e superficial: o que veem e o que sabem transmitem-no directamente sem a devida transfiguracäo estética, exactamente como em inúmeros romances publicados em Portugal na década de 90, principalmente nos que ä frente classificaremos como pertencentes ä corrente do "Realismo Urbano". Por isso, se em Fialho de Almeida, em Trindade Coelho, em Joäo de Deus ou Teixeira de Queirós encontramos um manifesto ambiente rural, näo encontramos já a forga vernacular de Camilo agastada de intrigas e ódios bestíferos, capazes de incendiar famílias e aldeias - no final do século XTX, a provincia imitara a cidade e aburguesara-se. Os instintos carnais, a sede da posse de terra, a pulhice de sacristia, mas também a generosidade aldeä e a honra familiar tomaram-se respeitáveis e etéreos vestidos por escritores de uma cidade falsamente cosmopolita a arremedar Paris no Passeio Publico. De A Cidade e os Serras (1893) para A Lustre Casa de Ramires (1897), em Eca, o campo abandona a sua imagem idílica e bucólica de confronto burgués com a cidade suja e gananciosa, repleta de negociatas, para se tornar, ela propria, lugar de tédio e de ambicóes mesquinhas: Goncalo Ramires súpera socialmente e enterra literariamente, no final da segunda metade do século XTX, toda a aristocracia fradesca e conservadora da primeira metade do século, magistralmente descrita por Camilo. Acompanhando a decadéncia da monarquia constitucio-nal e ferido o orgulho pátrio em 1890, a literatúra abandona-se a igual visäo decadentista de leitura folhetinesca da realidade social, ao uso de lantejoulas do estilo do ultra-romantismo, äs experiéncias naturalistas em segunda mäo e a uma con-cepcäo ora idílica, ora negatíva, do mundo rural. Exactamente como está acontecendo na passagem do século XX para o XXI, ä entrada no século XX, com a morte de Eca, Portugal abunda de romancistas, mas raramente se edita um romance marcante, daqueles cujo enredo literário, ambiente social e ideológico e/ou composicäo estilística marca toda uma época 26 27 Miguel Real (e quando tal acontece como a edicäo, em 1997, de As Horas deMonsaraz, de Sergio Luis de Carvalho, e, em 1998, de Sob a Sombra de Medeia, de Fiama Hasse Pais Brandäo, ou Natureza Morta de Paulo Jose Miranda, o publico leitor nem dá por eles, como se fossem apenas mais trés romances Portugueses entre os cerca de l60 editados nestes anos). E tal como Portugal ainda tern que esperar uma década para que um terramoto social o venha despertar (o advento da República, em 1910), assim a história do romance ainda terá que esperar 17 anos para que obras como Humus, de Raul Brandäo, ou Terras do Demo e a primeira versäo do Mälhadinhas, de Aquilino Ribeiro, a venham de igual modo remocar. De facto, entre a morte de Eca e a publicacäo de Humus, existe um vazio de criatividade e originalidade no romance portugués, embora tenham sido editados inúmeros romances. E se tal näo aconteceu entre a morte de Júlio Dinis e de C. C. Branco e a morte de Eca, deveu-se näo äs obras dos autores que temos vindo a citár (Lourenco Pinto, T. de Queirós, L. Batalha, A. Botelho, Trindade Coelho, Joäo de Deus...), mas ä propria obra de Eca, suficientemente criativa no campo estético e complexa no campo social para retratar as hesitacöes políticas e históricas de Portugal no final do século XLX. 1.2. Cepticismo Social em Ega de Queirós e Jose Saramago Tomemos a obra de Eca como modelo perfeito da situa-cäo do romance portugués no final do século XLX. Compu-semos o esquema a seguir desenhado, o qual nos permite constatar os trés diferentes caminhos do romance portugués na passagem dos séculos XLX e XX: A IlustreOasa de Ramíres \W1/ / / 'J A Cidade das Serras / < 1893 j £ < LU CC Os Maias 1888* O z como a síntese da totalidade do modo de escrita narrativa da primeira metade do século XX, segundo o enquadramento categorial já descrito: existe um Eu, existe uma Substäncia exterior e existe uma visäo que permite uma relagäo de identificagäo entre a realidade humana e natural e a estru-tura espacial e temporal do romance. A este modo de construcäo estética do romance, fundado em categorias fixas e permanentes, designaremos por Rea-lismo Substancialista, independente de o estilo do autor ser mais directo (terra a terra - Alves Redol, por exemplo) ou mais subjectivo (Carlos de Oliveira, Jose Regio, por exemplo), querendo com tal afirmar que nesta construcäo estético-literária poderemos sempre tirar a prova da realidade, tirando o dedo da linha do texto, apontar para a realidade exterior transcrita e dizer "Ei-la!", provando-se assim a intermutabilidade entre texto e realidade. Com raríssimas excepcöes (algum Raul Brandäo, textos de surrea-listas, por exemplo), a literatura portuguesa da primeira metade do século XX foi indubitavelmente realista e substancialista, o que significa que, setenta anos depois, as polémicas entre "presencistas" e "neo-realistas" sabem-nos historicamente a mofo, mais movidas por interesses ideológicos do que por concepcöes filosóficas de carácter estético, já que, sejam uns, sejam outros, obedecem a um mesmo fundo categorial de indole realista, ou seja, pertencem a um mesmo mundo ordenado categorialmente entre a solidez de um eu permanente e a solidez de uma realidade exterior substancial, igualmentepermanente. Se o estilo de Jose Regio é diferente do do primeiro Fernando Namora (até ä década de 60), se este escreve como pinta e aquele escreve prosa mantendo alguma liberdade poética 48 49 Miguel Real Geragäo de 90 subjectiva na sua propria prosa, a filosofia e a gramatica por que ambos veem e leem o mundo e exactamente a mesma e funda-se, tal como as obras da quase totalidade dos romancistas Portugueses da primeira metade do seculo XX, em cinco pontos comuns: R E A L 1 S M O SUBSTANCIALISTA 1.- 0 texto reflecte a realidade (exterior ou interior). 2.- A estrutura do texto reflecte a estrutura da realidade (as categorias sáo as mesmas). 3.- 0 tempo do texto reflecte a ordem do tempo real (cronológico). 4.- Portanto, existem homologias entre texto e realidade. 5.- A estrutura sintáctica do texto reflecte a estrutura categorial da realidade (visáo aristotélica e/ou kantiana do texto): - um Eu fixo e permanente; - um Objecto fixo e permanente. Na história do romance portugués do século XX, caberá ä década de 60, como em 2.2 se provará mais detalhadamente, o rompimento com esta plena e perfeita estabilidade rela-cional entre todos os elementos do texto (tempo, espaco, accäo, personagens), que espelhava a visäo de urna relacäo harmonica entre todos os elementos da realidade. E o que constatamos, como prenúncio desta radical alteracäo, que trará doravante a instabilidade categorial ao romance portugués, é que duas obras maiores publicadas ao longo da década de 50 antecipam já toda a revolucäo que verdadei-ramente só se iniciará na década de 60. Trata-se de A Sibila (1954), de Agustina Bessa-Luís, e de Aparigäo (1959), de Vergílio Ferreira. Näo sem obedecerem a um cänone com reminiscéncias realistas, diferentemente de Caranguejo'de Ruben A., publicado em 1954, estes dois romances operám uma cisäo entre tempo e espaco, ou seja, as estruturas temporais entram em ruptura com as estruturas espaciais forcando o narrador a multiplicar-se em variadíssimos processus de montagem narrativa de modo a poder dar conta da complexíssima estrutura da realidade. A antiga realidade substancial estável, permanente e fixa, apenas movente e alterável por via de qualidades adjacentes, estilhacou-se, e, agora, co-existem em Agustina e em V. Ferreira inúmeras realidades entrecruzadas, cada uma delas constituindo, com o seu tempo e as suas personagens, um mundo narrativo ä parte, ao conjunto dos quais (mundos) se dá o nome de romance. Ninguém melhor do que Óscar Lopes (in A. J. Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, ed. cit., p. 1146) deu conta desta irrupcäo das múltiplas histórias numa história, da fragilidade ontológica das personagens e do desdobramento quase infinite do tempo em A Sibila, e, por isso, permitimo-nos transcrever a sua abalizada sentenca sobre o estilo desta romancista: A vocacäo de facto excepcional de A. B.-L. näo é do romance como figuragäo de um mundo social, psíquica ou esteticamente coeso, mas a de colher momentos de surpreendente micro-rigor e irradiacäo instrutiva, quer em percepgöes objectivas, querem vivéncias interpessoais, quer em formas de sabedoria ancestral que, precisamente, ponham em causa qualquer forma de ordem ou inteligibilidade aceite; (...) a narracäo é feita de reiteradas corridas para (uma) intuicäo lucilante, relegando qualquer releväncia de continuidade pessoal ou ambiental, qualquer hierarquizacäo plausivel do acessório ao essencial narrativo, qualquer esquema óbvio de sequenciacäo; (...) o rumo narrativo salteia eziguezagueia de modo mais surpreendente, como em busca de pontos fusiveis 50 51 Miguel Real Geragäo de 90 por incandescěncia (...), de qualquer modo, nenhum grande fôlego realista - antes o mito de forcas ocultas e contagiantes, antes o magnetismo pessoal, antes os mistérios eleusinos ou demoniacos. Por outro lado, em V. Ferreira o tempo diegético é sempře envolvido por outro tempo, um tempo imemorial e eterno, plasmador das intencôes humanas na sua maxima insigni-ficancia face ä voragem de um absoluto. Porém, é pela auséncia deste Absoluto (Deus, o sentido da História, o Destino de um homem...), que apenas de uma memoria de raízes parece emergir reminiscentemente, que Aparigäo, romance täo realista quanto egotista, prende o leitor. Diferentemente de A. Bessa-Luís, näo se trata de cruzar tempos reais, artificia-lizando ou humanizando o tempo físico; trata-se, sim, de conferir ao tempo real e ao espaco em que este se movi-menta o estatuto depobrezaficcionalque a representacao imediata da realidade possui - a representacao mimética da realidade torna-se em si desinteressante quando näo contaminada por esse fulgor imaginoso da consciéncia que permite transfigurar a realidade em arte, sucumbindo esta e absolutizando aquela. Depois de Humus, de Raul Brandäo, Aparigäo constitui um dos mais altos cumes do reino da consciéncia na ficcäo portuguesa do século XX, ultrapas-sando definitivamente a fase realista e substancialista desta. É o que desde logo constatamos na primeira página: Sento-me aqui nesta sala väzia e relembro. Uma lua quente de Veräo entra pela varanda, ilumina urna jarra de flores sobre a mesa. 01ho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de urna memoria de origens. No chäo da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, veneer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face ultima das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece täo cedo, tudo é täo cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste siléncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho ä varanda e debruco-me para a noite. Urna aragem quente banha-me a face, os cäes ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, éram objectos inertes, dominados, todos revelados äs minhas mäos. Eis que os trespassa agora este fluido iniciál e urna presenga estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto é täo absurdo! Sinto, sinto Como se lé, todos os sinais da realidade servem näo como substäncias duradouras, mas como indícios para a descoberta da "face ultima das coisas e bem aí a minha verdade perfeita"; näo se trata de fazer equivaler substantivo gramatical e objecto substancial (eu - linguagem - realidade), ou seja, näo se trata de descobrir a verdade real em conformidade com o pensamento, mas, sim, de descobrir kierkegaardia-namente, existencialmente, a "minha verdade perfeita", aquela pela qual eu viverei e morrerei. O que faz aqui o realismo substancialista da primeira metade do século se agora a substancia ou a realidade exterior explodiu face a um eu ou urna consciéncia que se redescobre como fonte e motor da verdade? Para os novos escritores a partir desta década, a que propósito o neo-realismo e o subjectivismo da "Presenca" continuaräo a anunciar mundos novos se mundos assim só o podem ser se forem constituídos pelo que de mais irredutível e singular existe em cada indivíduo, ou seja, o individualismo da memoria e da consciéncia pessoais e o individualismo da genealógia cultural que cada autor, sem fazer caso da cronologia da história da literatúra, para si proprio promove? Onde estäo agora essa realidade 52 53 Miguel Real Gtn-agäo de 90 fixa e exterior e esse eu sempře idéntico que táo bem se transfiguravam em obras de arte? A Sibila e Aparigao, de deze-nas de romances publicados ao longo da década de 50, estatuem-se como momentos de uma ruptura estética relativamente as categorias de tempo e espaco, ruptura que náo mais permitirá que se possam criar em Portugal, com sucesso duradouro, romances escritos á moda de Eca, de E de Castro, de J. Régio, de Miguel Torga, de A. Redol, de J. de Paco dArcos. A partir de agora e com muita forca, náo existirá mais espaco unívoco, contínuo e sucessivo, lógico, coerente, formando uma unidade com o tempo crono-lógico. Simbolicamente, como que o titulo que Fernanda Botelho publica em 1958, Calendário Privado, nos ilustra como a partir da década de 50 cada autor possui o seu tempo próprio, incomunicável com o tempo fisico comum. E a verdade é que logo no inicio da década de 60 surgem trés novos autores editando trés romances cujos conteúdos náo só estilhacam as antigas categorias absolutas de tempo e espaco, como as pulverizam de todo, alterando radicalmente a imagem literária construida pelo romance portugués da primeira metade do século XX: Os Pregos na Erva, 1962, de Maria Gabriela Llansol, RumorBranco, 1962, de Almeida Faria, e OsPassosem Volta, 1963, de Herberto Hélder. Estas trés narrativas váo desenhar, em conjunto, um novo periodo da história do romance portugués, que se arrastará até aos finais da década de 80, embora o seu periodo brilhante tennine nos finais da década anterior. Simbolicamente, depois de 20 anos de forte pujanca, fechariamos esta fase com a publicacáo, em 1977, de Manual de Pintura e Caligrafia, de José Saramago, ou, se quisermos continuar a valorizar continuadores děste tipo de construcáo romanesca, fechá--la-iamos com a publicacáo, em 1988, de Matrix, de Yvette Centeno. Assim como em toda a Europa a década de sessenta se afirma enquanto contestagäo dos valores dominantes nas décadas anteriores (movimento hippie, Maio de 68, Brigadas Vermelhas, Festivais de Rock...), assim também a literatura daquele periodo, em Portugal, se afirma como contestagäo dos modos dominantes de criagao literária prevalecente nas décadas anteriores ("Presencismo", neo-realismo, catolicismo na vertente Francisco Costa...). Contestacäo por contestacäo, pensamos ser melhor näo atribuir nenhuma designacäo positiva a esta fase literária já que, francamente, nela apenas encontramos ou autores que, vista a história da literatura como um todo, se encontram temporalmente muito perto de nós para que tenhamos da sua obra um juízo crítico objectivo, ou autores cujos textos, intencionalmente ou náo, parecem animados por uma pulsäo de desconstrucäo das estruturas e categorias que enformaram as diversas narrativas publicadas anteriormente, como o esquema apresentado em 2.2 sobre a relacáo romance-sociedade pretende evidenciar. Assim, os romances publicados ao longos das décadas de 60 e 70 (arras-tando-se um pouco pela década de 80 para alguns autores que continuam a escrever do mesmo modo) só podem ser entendidos a luz dos romances publicados na primeira metade do século, já que náo só sáo destes a sua negacáo contraditória e estrutural, como, inclusivamente, vista a literatura como um todo, pouco avancam esteticamente senáo enquanto pulsäo de desconstrucäo. E se, como acima vimos, o título Calendário Privado, de Fernanda Botelho, sintetiza bem o espírito da década de 50, também o título Revolta dosHerdeiros, de Mario Ventura (1977), parece harmonizar-se com o espírito geral desconstrutivista desta década. Os cinco pontos apresentados seguidamente (que devem ser confrontados pelo leitor com os cinco pontos apresentados como caracterizacáo do realismo substancialista) 54 55 Miguel Real esclarecem melhor, pela positiva, o que temos vindo a tentar explicar: DESCONSTRUCÄO DO REALISMO SUBSTANCIALISTA 1. Autonomia semäntica e sintäctica do texto face ä realidade exterior. 2. Incorporacäo da realidade exterior na logica do sujeito - memoria, imaginacäo, sentimentos diversos do sujeito prevalecem sobre a lögica da realidade exterior, forcando esta, no texto, a adaptar-se. 3. O texto e dominado por urn tempo interior - cruzamento das tres dimensöes e/ou fragmentacöes do tempo em instantes eternos. 4. 0 estatuto da realidade e o de ser inspirador do texto, mas näo domina este. 5. A estrutura sintäctica do texto reflecte o pensamento anticategorial de Nietzsche: - näo existe um eu fixo e permanente; - näo existe um objecto fixo e permanente senäo ilusoriamente. Tentando provař o que acima afirmámos no quadro, apresentaremos vários exemplos sugestivos. Neste periodo, a história narrada, como motor da accao e concentracäo temporal e espacial das personagens, ou desaparece do romance ou perde a sua pertinéncia face as derivacöes retóricas do narrador. O eu, a consciencia do narrador, através da memoria e da imaginacäo, permite-se sobrevoar o tempo fisico, libertando o texto dos constrangimentos da substancialidade espacial e operando uma fusäo entre tempos e espacos constitutivamente humanos e, portanto, desobedientes a uma intrínseca logica da realidade. Se tomarmos como exemplo paradigmático a pág. 73 de Mairia Mendes (1969), de Maria Velho da Costa, constatamos que as cinco características enun-ciadas estäo todas presentes nessa página: Ceragäo de 90 Como todo o ar contido entre as quatro paredes forradas de damasco ouro e o estuque rico no pouco que dele deixa entrever o fulgor das muitas velas acesas, e seus reflexos no vidro cortado em pingentes, e nesta esfera burilada exacta-mente ao centra, e ainda no soalho, onde do lado de dentro está o mesmo negra tracado de branco do brilho das sapatos afiladíssimos neste pés aqui, como o ar é de ouro. Náo um ouro novo, mas aquecido já por outras noites de vela e pelo aprumo batido, ainda esmorecido agora dos homens, douradas as caras e mesmo as cabecas brancas, poucas, mas dentro em breve quentes, loiro tudo. É grave esta emocáo de as ver tombar as cabegas onde as coques de cabelo se enroscam, ouro ainda, já vermelho embora o das que o tém negra lustroso e nessas há as rosas chá, táo inacreditavelmente seguras como a abotoadura de pérola que náo sinto no punho, e sei segura, quebrando o ouro, dando-lhe o mate de seu branco, esmorecido embora, ouro ainda. Tule, sei o tule de delicadamente passar perto e da incerteza que dele fica de haver deveras passado sua teia miúda. Como as segue leve e Ihes voa na peugada da cinta e depois sobe carregado no bordado a matiz que alteiam no busto de suspirar um pouco. Como sáo rosa e ouro ainda as cobertas de azul pálido, nos chiffons doces que antes acalmam onde o tule exaspera, os chiffons franzidos sobre d cetim que as cobre mais perto dos seios e da garganta dourada das mais próximas dos candeeiros que o lacaio, pousada a bandeja do ponche, acende e protege a cháma já muito próxima do punho emergido, isolado na renda, náo suado ainda, que tudo é a comecar, e a cháma desce em ouro ás galantines do bufete e as aclara na iluminura translúcida dos legumes brancos, agora ouro dentro e as carnes untadas e tornáda no fogo sua cor, no fogo sáo ainda agora e fixo, permanente. E vém, e despidas Se quisermos aplicar a este texto de 1969 as categorias de leitura e análise categorial por que interpretamos Eca, Camilo, Aquilino, F. de Castro, Régio, M. Torga, F. Namora, C. de Oliveira, A. Redol, náo o conseguiremos. Primeiro, a substantia de que o texto fala náo é bem perceptível 56 57 Miguel Real Geragao de 90 (auséncia de uma substáncia exterior fixa e permanente); segundo e como consequéncia, é de facto necessário um esforco de interpretacáo para diferenciarmos os objectos sobre que o texto está discorrendo; depois, as antigas regras da sintaxe foram quase totalmente ofendidas, obviando a novos jogos de cruzamento de palavras e frases náo autori-zados pela logica física da realidade exterior e transformando esta em simples inspiradora do texto; depois, também, por-que sobre esta inspiracáo semántica do texto o eu narrativo constrói movimentos textuais livremente, como se a realidade estivesse dentro da consciéncia e pudesse ser submetida aos caprichos retóricos sem perder a sua fidedignidade. Mas também porque a propria consciéncia náo nos surge como dotada de uma identidade fixa veladora de uma ordem logica (náo é uma consciéncia racional), mas, diferentemente, é uma consciéncia multiplicada pelas suas diversas moda-lidades de representacáo ("como",... "como",... "como",...), ou seja, a estrutura categorial aristotélica e kantiana, que sustentava o romance portugués da primeira metade do século XX, cedeu o passo ao perspectivismo nietzscheniano que estatui o texto como uma projeccáo escrita e equili-brada dos cruzamentos desequilibrados de forcas instintuais que irrompem na consciéncia do narrador e o forcam a escrever. Aqui, a gramática clássica, de táo ordenada e racional, é um empecilho, e a liberdade quer-se total, tomando o texto o lugar onde as forcas do corpo encontram a sua projeccáo condensada. O romance, mais do que a poesia, estatui-se como o lugar de libertacáo de 800 anos de história da lingua, cortando com esta história e assumindo-se como referente de um novo comeco; novo comeco que passa, antes de mais, pela destruicáo das estruturas categoriais que até entáo enquadravam e orientavam a escrita roma-nesca. Para confirmar o que escrevemos, vejamos, agora, as pp. 22 e 23 de Depois dosPregos naErva (1973), de Maria" Gabriela Llansol. ra-me pelo corpo da bailarina e também pela alma que ela mostrava, nua de sombras, quando dancava. Amava-o com um amor claro e simples mas, naquela noite, sentia um desejo suave de o ouvir e de Ihe falar: náo comprendia a máscara que ele usava e queria ver-lhe a face. «Bateu á porta do camarim; viu voltar-se para ele a cara tonta, lambuzada de branco; a sua paixao aumentou a bailarina náo se despira ainda vestia o mesmo vestido alado calgava as mesmas sapatilhas de cetim com que, incerta, desmaiara e morrera no tablado; escutou-lhe as frases de amor acalmou--Ihe a paixao com carícias deixa-me ver-te a face náo só um instante deixavas de amar-me quero ver-te o meu rosto náo tem a beleza do meu corpo, é frío e morto mas eu amo-te a bailarina arrancou a máscara, a sua face era táo bela como o seu corpo o teu rosto é belo náo comprendo na outra noite a bailarina dangou sem pór a cara tonta; os espectadores espantavam-se de a veršem máscara e admira-vam-lhe a beleza estranha, mas o corpo da bailarina trans-formara-se em mármore: era apenas uma cara deslumbrante e morta donde tinham fugido a vida e a poesia e os seus bragos, as suas pernas já náo respondíam á música». Vai-te disse-me ele; náo respondi-lhe eu; vai-te insistia com amargura. «Náo voltei; na outra noite a plateia viu-a surgir com a cara tonta: dangou e ninguém a vira ainda dancar». Ficha 11 - a crianca matou o pai e a máe o pai matou a crianca e a máe 58 59 Miguel Real Geragäo de 90 a crianga matou a mäe e o pai o pai matou a mäe e a crianga a mäe matou o pai e a crianga o pai e a crianga mataram a mäe a mäe e a crianga mataram o pai a mäe e o pai mataram a crianga a mäe matou a crianga e o pai a crianga e o pai mataram a mäe a crianga e a mäe mataram o pai o pai e a mäe mataram a crianga o pai a mäe a crianga mataram; ninguem pode viver com meu pai sem ficar triste; se este quarto para onde me mudaram agora näo estivesse ocupado receberia os möveis com verdadeiro prazer, acumulä-los-ia num canto pai nosso que estais no ceu santificado, eu proprio adormeceria com o sono das pessoas da casa: ele, ao jantar, sentou-se ä mesa, comegou por fumar o cigarro com filtro marca Derezke que retirou da embalagem verde, com uma figura, embora possua uma cigarreira em prata, descansou-o no lugar proprio do cinzeiro e inclinou-se paraträs na cadeira de bragos, cujo lugar e junto da telefonia, e que a criada e eu deslocämos para a mesa; meu irmäo mais velho fica ä sua direita, eu e minha meia irmä ä sua frente e em frente do relögio de parede; minha mäe ainda ausente. Näo na cozinha; na casa de banho, atraida pelo espelho, repetindo-se nele; sabe que eu pinto e a destruirei ä minha maneira, sabe que eu me torno anormal e a vejo como ninguem a ve; por toda a casa temos encontros claros e cümplices. Se fosse possivel convidä-la-ia para uma pose: sentada e olhada por mim; eu fazia-a de novo, com a minha contemplagäo ou a minha mäo contemplativa: sofro, enquanto me vou aproximando deste livro; o meu pai verdadeiro chamava-se Joaquim e escutava, sentado, na altura em que eu disse tu e teu pai a janela e o banco. Joaquim vou ler-te meu diärio, meu caderno de escola, minhas cartas de amor e meus protestos: säo textos e meus cadernos de escola em värios anos 26 de Junho de 1949 (texto que depois se rasgou em diagonal) fago amanhä a ultima prova Como se constata, a filosofia do realismo substancialista é aqui totalmente desconstruída: náo existe história, nem sequer estórias com unidade coerente; visáo única do narrador, também náo; existem, sim, perspectivas, mas perspectivas náo coerentes entre si, náo provocando espontaneamente uma unidade harmonica do texto; objectos (substantias exteriores de que se fala) descritos e ficcionados, também náo; convivem "Fichas", citacóes em itálico apresentadas entre aspas, jogos de experimentacáo logica, interpelacáo directa á personagem "Joaquim" (marido da escritora, o que transforma a interpelacáo em confissáo); os artigos junto aos pronomes desapareceram e, acima de tudo, o corte propositado do texto com uma espécie de dedada evidencia-nos, possivelmente, que toda a realidade é nietzschenianamente fragmentária, que ninguem nunca sabe tudo e que o romance é o lugar onde as nossas genealogias culturais podem livremente emergir. Em Agosto de 1999, Teresa Rita Lopes, recenseando no "DNA" o entáo recente romance de Rui Nunes, Cdes, considera que esta total ausén-cia de normas estilíticas (digamos assim) é de uma grande virtude porque recobre a totalidade das grandes auséncias ontológicas que povoam a actual consciéncia humana, Deus, o Eu, a História, dando como exemplos as obras de Beckett e Joyce. Para alem de o argumentário de T. Rita Lopes ser fortemente datado (década de 60, em Portugal, defendido por Eduardo Lourenco, em Heterodoxia H- 1967) e de as obras dos autores apontados terem constituido uma riquissi-ma frescura matinal quando inicialmente sairam a publico, certamente que se concordará que a história da literatura portuguesa náo pode ficar para sempre presa a processos desconstrutivistas próprios da década de 60, e que a insisténcia nestes processos por parte de Maria Gabriela Iiansol e Rui Nunes promoverá em seu torno um fiel e restrito grupo de 60 61 Miguel Real Geragäo de 90 leitores, täo mais fiel quanto mais restrito, e täo mas restrito quanto mais insistir (com legitimidade cultural e pessoal, näo se duvida) em processos romanescos próprios de uma fase da literatura portuguesa ultrapassada nas décadas de 80 e 90. Por isso, Pedro Mexia, um dos melhores criticos literários da nova geracäo, tinha fortemente atacado, no mesmo DNA (3 de Julho de 1999), este romance de Rui Nunes, intitulando o seu artigo "Repulsa" e classificando-o de "Cruel, doentio, pretensioso". De facto, para um critico de uma nova geracäo, a insisténcia até ao delírio nas auséncias ontológicas e nos processos narrativos de há duas décadas só pode ser classificada como "Repulsa", já que o que agora colectivamente se intenta näo é uma deconstrucäo narrativa, mas uma outra re-construcäo, seja ä Lobo Antunes, ä Saramago, ä Fernanda Botelho de As Contadoras de Histórias, com uma irónia corrossiva ä R. Zink, fotografando literariamente momentos-eternos como Pedro Paixäo, recriando a sintaxe da lingua como Mia Couto, invertendo o processo clássico realidade-imagem em imagem-cultural--motor-da-realidade como Fiama H. P. Brandäo, ficcionando a história sem preconceitos morais ou apologéticos como Sergio L. de Carvalho, introduzindo abundantemente processos de montagem video e cinema como P. Cachapa e J. Lucas Pires, evidenciando através de histórias consistentes, solidamente narradas, quase classicamente construídas, o novo estatuto social da mulher portuguesa, como Margarida Rebelo Pinto e Rita Ferro, utilizando sem preconceitos abundante léxico inglés, como a primeira faz... Por isso, nesta fase portuguesa de integracäo europeia, com os indices de qualidade de vida a subirem monstruosamente, formando uma nova corrente de publico de classe média que procura encontrar na ficcäo a imagem positiva que tern da sua propria vida, bem como elementos negativos de desorientacäo so- cial a que est! sujeita, o argumentário de T. Rita Lopes (sem Deus, sem História, sem Consciéncia...) surge como social-mente desajustado e, para muitos, como démodé, exacta-mente como a publicacäo hoje de um romance profundamente neo-realista, tipo Alves Redol, Justamente, a desconstrucäo da unidade formal entre tempo e espaco do romance clássico forcou os novos autores a expe-rimentarem novos processos narrativos que pudessem substituir a antiga estrutura harmonica que prendia o sentido da escrita ä história que se ia contando. Assim, se, por exemplo, em 1944, no conto "Fronteira", do livro Novos Contos da Montanha, pág. 25, Miguel Torga näo parece ter dificuldade em conferir unidade a todos as personagens, vinculando-a a um mesmo espaco e a um mesmo tempo: FRONTEIRA Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil ausíero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta. Range primeiro a porta do Valentim, e sai por ela, magro, fechado numa roupa negra de bombazina, um vulto que se perde cinco ou seis passos depois. A seguir, aponta ä escuridäo o nariz afilado do Sabino. Parece um rato a surgir do buraco. Fareja, fareja, hesita, bate as pestanas meia dúzia de vezes a acostumar-se ás trevas, e corre docemente a fechadura do cortelho. O Rala, de braco bambo da navalhada que o D. José, em Lovios, Ihe mandou ä traicäo, dá sempře uma resposta torta ä mäe, quando já no quinteiro ela Ihe recomenda näo sei qué lá de dentro.. O Salta, que parece anäo, esgueira-se pelos fundos da casa, chega ao cruzeiro, benze-se, e ninguém Ihe poe mais a vista em cima. e se, em 1954, Fernando Namora, no seu magistral O Trigo e o Joio, compôe uma brilhante página clássica estrutu- 62 63 Miguel Real Geragäo de 90 rando o movimento simultäneo de inúmeras personagens (p. 105): Os homens que partiám de casa pela madrugada escolhiam as veredas das herdades para vigiar dia a dia a estrutura do trigo. Um frémito corria os cabelos da seara, um murmúrio prolongado, anelante, que pairava sobre a planície. Mesmo nessas alvoradas o céu brilhava como urna magä madura. A gente da vila interrogava-se a si propria e ä tranquilidade morosa do tempo se viriam chuvas tardias ameagar o trigo de alforra; e investigavam na brisa um rumor daquelas tempestades que vergam as searas até ao chäo, debulhando-as, despindo-as com sadismo; e inquiriam da atmosféra dura e pesada se o fogo das tardes poderia ainda calcinar as sementes, transformando-as em gräos vazios. As mulheres, a família, bragos ä espera das jornas dafeira, iam por detrás dos homens e repetiam essas apreensöes. E os lavradores picavam as montanhas até äslombas mais altas das herdades e traduziam todas essas perguntas em moios de trigo, em salários, em flutuagôes do mercado, e ainda as previsôes, sabiam que no proximo ano eles e os camponeses repetiriam a sementeira, a monda, a ceifa, e todos os alvorogos que éram o prego dessa persisténcia. Quando se sentassem ä roda de urna mesa de jogo ou ä porta de urna loja de comér-cio, assistindo ä lenta e afogueada agónia das tardes, por mais que se iludissem terminavam sempre por se reunir num único terna: a terra que se apresentava áspera ou fofa para receber em 1965, Almeida Faria, já no interior dessa década profun-damente crítica de toda a tradicäo clássica que foi a de 60, em Paixäo, romance de desconstrucäo de urna realidade social e cultural agraria tida como estável, apresenta a pluralidade das personagens de um modo perspectivante, identificando a accao do romance como urna espécie de caleidoscópio cultural, onde cada ponto de vista se limita a ser apenas um ponto de vista, sem se querer üuminado por urna qualquer mensagem de verdade, e assim rompendo com a unidade harmonica da escrita ŕundada na mútua vinculacäo entre tempo e espaco. Sem História, mas com muitas estórias, dei-» xando o tempo correr, mas mostrando-se incapaz de nele refiectir, seja ontologicamente (como urna verdade), seja ficcionalmente, a unidade da realidade que passa com o tempo, Paixäo ilustra a impossibilidade, a partir da década de 60, de evidenciar no romanceportugués urna figuragäo unitáriapara todos osseus elementos constitutivos (narrador, acgäo, local, tempo, personagens), deixando que o divórcio entre estes elementos se construa singularmente, ä medida de cada autor. Para além do conteúdo da sua escrita, a singularidade de cada autor medir-se-á pelo modo como des-constrói-recria, divorciados entre si, aqueles elementos estru-turais do classicismo da primeira metade do século. Dé-se como exemplo Fernanda Botelho. Em 1971, foi editado um romance estranho. Trata-se de Lourengo é Nome de Jogral, de Fernanda Botelho, urna F. Botelho em ruptúra com o entäo seu habitual modo de escrita psicologicamente labiríntico. Vejamos a estrutura do livro: Dedicatória.............................................7 Luis.........................................................9 Capítulo I........................................23 Matilde..................................................31 Capítulo II.......................................43 Firmino.................................................55 Capítulo 111.......................................75 Corina...................................................97 Capítulo IV....................................107 Matilde................................................ 125 Firmino...............................................129 Capítulo V.....................................135 Luzinha...............................................169 Capítulo VI....................................179 Luzinha...............................................195 64 65 Miguel Real Luis.....................................................217 Eu ......................................................229 Como se observa pelo índice apresentado, é, de facto, uma estrutura estranha para um romance: o romance opera o cruzamento entre duas estruturas - 1) por capítulos, uma espécie de confissäo/memorial de Lourenco, a vida e a morte anunciada de Lourenco narradas pelo proprio, tentando adivinhar a reaccäo de amigos e familiäres ao anúncio da sua morte; 2) por personagens, a reaccäo de cada uma ä morte de Lourenco. Nesta ultima estrutura, um capítulo é constituído por um longo poema e outro pelo esboco de um ensaio. Assim, a estrutura do romance, na década de 70, engloba ou permite-se englobar no seu seio a poesia e o ensaio. Por outro lado, no final deste romance de F. Botelho, surge uma estranhíssima personagem, designada por EU, cujo discurso constitui, para alem de um final radicalmente inesperado, um dos mais fortes textos de evidente cepticismo da literatura portuguesa. Assim, se R. Brandäo, Agustina e V. Ferreira podem ser apresentados como os precursores literários do descons-trucionismo, seräo porém M. G. Llansol, A. Faria e H. Hélder os trěs grandes nomes reais da história do desconstru-cionismo, estatuindo-se os escritores seus seguidores, näo como discípulos (evidentemente), muito menos como epígonos, mas apenas como aqueles que trilharam ä sua maneira o caininho aberto pelo primeiros, numa genealógia tipo: precursores - descobridores - continuadores -conservadores. Por exemplo, é assim que Nuno Braganca, Lídia Jorge, de O Dia dos Prodígios, José Saramago, de O Manual de Pintura e Caligrafia (1977), Eduarda Dionísio, de Retrato de um Amigo enquanto Falo (1979), podem ser entendidos como "continuadores", mas é também assim que 66 Geragäo de 90 os processos estilísticos ditos informáticos usados por Tiago Gomes na revista "Biblia", livros como Jogging para Escribds (Fenda, coord. Joäo Louro, 1998), ou Metacarne, de Manuel Pais (romance em que a forma, baseada numa linguagem e modelo informático, esmaga literalmente o conteúdo, provo-cando urna sensacäo de estranheza), sob a aparéncia de grande novidade, mais näo säo que a repeticäo já enfadonha, via informática, para épaterle bourgeois, dos processos estilísticos usados por Nuno Braganca na passagem das décadas de 60 e 70, e de Lídia Jorge no final desta ultima década, ou seja, processos hoje profundamente conservadores porque, ainda que vinculados a novas estruturas tecnológicas, estäo porém desligados de qualquer necessidade social carecida de ser ficcionada. Assim, em 1969, Maria Velho da Costa publica Maina Mendes, e Nuno Braganca A Noite e o Riso. Do primeiro romance já falámos como momento fundamental da libertacäo semäntica do texto face ä realidade. O segundo, porém, abre perspectivas novas da insersäo do espaco no corpo do texto, utilizando a propria mancha gráfica da escrita para simbolicamente representar, num mesmo momento do tempo, duas dimensöes espaciais diferentes (pp. 126-127): Aos onze de Novembra de mil novecentos e trinta, a com-panheira do funileiro ambulante Aufredo vira a cabega no tra-vesseiro pardo e olha Anible, vendedor ä escala do Pais. «Se a gente levasse a me-nina?» Anible levanta-se e acende um cigarro sem palavras. Comeca a vestir-se lenta-mente. 67 Miguel Real Geragäo de 90 «Anfble?» Acaba de vestir-se e vai direito ä porta, um silencio me-talifero. A mulher salta nua e interpöe-se. O hörnern pega-a pelo pescogo e afasta-a: «Amanhä äs seis e meia, Cais Sodre. E pega ou larga.» «Eu vou, ja disse que vou. Hörnern. Pensei sö...» «Näo tragas nada. Sö o que tiveres no corpo. O resto -pausa e olhadela panorämica - «o resto ele que o pendure dos cornos.» A mulher da casa e final-mente a mäe de Aufrede A Ve-Iha. Corrida a nora, o territörio e seu, de les-a-les, manhä ä noite. Sair para a Viela e sair d'A Velha. «Donde e que vens, gal-deria?» «Da rua, Senhora». «Äs onze da noite, na rua?» «A calcada näo se derrete com o escuro.» «Ordinäria. Cabra filha de cabra». «E de cabräo, senhora.» A ruiva ganfa a cabaz e grita para a esquerda: «O chui.» Vendedeiras engrenam, gestos räpidos treinados. Reu-niro material para pirarem. Ela permanece exaetamente como estava, sentada na orla do passeio. Come uma das bananas que hä no seu cabaz. «Lufsa, olha o chui.» «Quero ve-lo.» O da municipal avanga, tranquilidades de canhoneira em aguas imperiais. «Estas aqui a fazer?» «A comer.» Estendendo uma banana: «E servido?» Em 1980, Lidia Jorge, em O Dia dos Prodigios, utilizara tecnicas estiliticas semelhantes, embora com outro conteudo social, representando o ritmo do tempo presente e passado atraves da maior ou menor ocupacao do espaco grafico da mancha e tambem, ao que parece, atribuindo ao dialogo uma mancha maior e a descricao uma menor (p. 30): mao cheia de figos para dar a porcos. Ali no Vale Mortal no meio das mariolas e dos troviscos. Uma velha muito velha, mais velha que saragoga, oh Esperancinha. la andando curvada, pedrinha aqui, pedrinha ali, e vai e da com aquilo com um dia de parido, todo cheio de formigas e a roer os dedos. Com as gengivas calvas. Dizem que disse. Ai jasus, que acordi hoje com o traseiro virado ao santissimo. Mas acabou por pegar na lesminha de gente que ali logo havera de estar. Jose Jorge Junior sabe que sua mulher pode nao o ouvir, mas sempre o escuta. E por isso chega-se mais junto dela, arras-tando o banco para ai se empoleirar de novo. Mas antes tira a placa de dentes e coloca-a de gengiva vermelha e aberta sobre a mesa onde Esperanga Teresa descansa um brago. As denta-duras de baixo e de cima, uma ao lado da outra, lembram uma roma escarchada e comida em seculos passados. Agora devolvida ao presente. - A velha ao tempo ja era bisavo duma porgao de bisnetos, oh Esperancinha. Mas tinha uma cabra com tetas do tamanho de pipas. Vai daf, pensou a velha que esse seria o ultimo sacrificio da vida, e que assim, Sao Luis a alimparia de um resto de ofensas feitas em 68 69 Miguel Real Geragáo de 90 vida. Trouxe-o para casa, deu-lhe leite de cabra, papa de milho, umas colheres de batata doce, e náo é que o raio desse meu avo comecou a fazer-se gordinho, a crescer, a crescer e a medrar como se mamasse da mae? - E eu doze vezeš di á luz, José. Tu te alembras? Doze vezeš. Primeiro foi o Manuel. Depois veio a Engrácia. Depois o Saul, depois o Elói. Depois o Bento. Depois o Augusto. - Táo gordinho, alto e espadaúdo, que apenas com quinzeanos, Esperancinha, acabou porsechamar José Jorge. Tu bem sabes, oh moca, que ele só se chamava José. Mas um dia dizem que ele estava a comer uma alfarrobinha seca, e uma azeitona de sal, como nesse tempo se comia, e alguém Ihe disse. Está ali uma cobra da grossura dum cevado. Fujam todos que ela vai comer alguém. Nessa altura esse José pegou numa varinha que ali se encontrava arrumada á parede, foi ao buraco onde a diaba espreitava os passantes, e desencantou a bicha, esfuracando lá dentro. Assim a Por outro lado, nas páginas 22 a 25, Lídia Jorge opera com muita mestria a descricáo do aparecimento da cobra por Jesuína Pallia (usando de um forte regionalismo algarvio, mas adaptando este regionalismo a uma forma romanesca que já náo é camiliana ou aquiliniana) de um lado da página e, do outro, a descricáo colectiva ou a funcáo de legenda popular sobre o aparecimento da cobra. uma grande pedrada, e que as roupas tinham po como se todos os presentes se tivessem envolvido numa luta corpo a corpo pelo meio do chad. E Jesufna Palha olhando-as nos olhos. Primeiro muda. Como se as ameacasse, sem conseguirfazer uma palavra com a Ifngua. Ah filhas da su mae. Que aqui estao estas duas dentro de casa sem saberem de coisfs-sima nenhuma. Nao me digam que nao ouviram urn barulho de gente rebolvida. E estas aqui debaixo de telha e a fresca. Eu. Jesufna Palha. Eu andava a dar fogo ao fomo quando ouvi estes trés desgracados a pedirem acuda. Mas náo deixi que pedissem duas vezes. Pus os tojos de lado, salti por cima da parede, pegui numa cana comprida que ali tinha á máo, e fui-me para onde estes trés vai náo vai tentavam matá-la. Sem conseguirem os pobrezinhos. Ah meus amigos. Ah carago. Já a familia desta terra estava chegando ao largo. Ali. Eles que digam. Estavam todos suadi-nhos de tanta pedrada sobre a magana. Ah meus amigos, vizinhos da minha alma. Quando vi a vibora cegui os olhos. Alavanti a saia, brandi a cana, uma, duas, trés, sete e vinte vezes sobre a cabeca da bicha. Ela era azul, castanha e del-gada. Assim. Mas táo comprida como uma cilha, e mexia como a água e como o fumo mexem. Parecia um pensamento. Ali no chao. Di-lhe bem umas trinta canadas sobre a espinha e a cabeca. Di ou náo di? E a lingua dela, que parece uma gancha de cabelo, andava dentro e fora a desafiar a cana. E ela á roda. Á roda, á roda sem parar. Toda a gente se tinha já alevantado da cama. Das suas mesas e outras dos lavadoiros. Para virem vera cobra desses matos que ali andava no terreiráo da rua. Bailhando debaixo da pontaria. Ah sim, filhas de su máe. Toda esta gente pode dizer. Eu. Eu em vendo que ela continuava a rabiar o grande rabo. Que aquilo só tem cabega e rabo. Eu disse. Agora ou Toda a gente vinha correndo a ver a cobra. Chegui eu nessa altura. E vinha táo cega, que nem me apercebi do que via. A gente viu. Deu-lhe com a cana em cima e a valhaca esgueirava-se para a embei-radinha da berma. A vizinha com o instrumento na máo, afegava como se cavasse cháo duro do terreiráo da rua. 70 71 ■ Miguel Real Eu cheiri o cheiro a cobrum e o cheiro era säo forte que vomiti encostadinha ä parede. Ainda lá está a prova. nunca, vizinhanca. E atiri com a cana com toda a forga sobra a serpente. O cheiro. O cheiro a cobrum espalhou-se no ar, e a buchada comecou de sair pela pele da porca. Ninguem. Ninguem dava um ai nem um jasus. E aqui estes vizinhos sen-tiam ansias e punham a mao na boca do bucho. Mas eu. Eu olhava-a nos olhos e dizia. Va agora, va agora. E ainda alavanti a saia ate as calcas, e alci o pe para Ihe esfrangalhar os miolos. Mas estes aqui comecaram Tanibem em 1980 (ano admirável, em que Levantado do Chäo, de J. Saramago, propöe uma uma nova concepcao de tempo romanesco - o tempo é todo um. numa frase podem descrever-se, simultaneamente, situacöes reais, emocöes, estados confessionais do passado, do presente e do futuro, num jogo de linguagem que tudo engloba, desde a mais pura oralidade popular ä mais pura erudicäo histórica), é publicado Ä Hora da Sesta, de Rosa Abelaira (Regra do Jogo). É um texto belíssimo, fruto da confissäo e da memoria individual, onde o tempo é tornado como uma unidade cujas dimensöes säo totalmente permutáveis; neste romance, a estrutura espacial muda (ou pode mudar) parágrafo a paragrafe e, assim, os clássicos capítulos ou parte do romance transformam-se em "quadros", espécie de "cenas" de teatro, mas, diferentemente destes, näo retratam uma dramatizacäo momento a momenta, mas uma espécie de fulgor instantäneo da memoria transcrito para o texto em forma descritiva: Geracäo de 90 INDICE QUADRO 1 7 2 8 3 10 4 13 5 16 6 18 7 19 8 22 9 26 10 30 11 33 12 34 13 37 14 40 15 42 16 46 17 49 18 54 19 57 20 59 21 60 22 63 23 66 24 71 25 73 26 78 27 81 28 83 29 90 30 93 31 97 32 99 33 100 Tambem em 1980, galardoado com o Premio Revelacäo da Associacäo Portuguesa de Escritores, e publicado o romance O Outro eoMesmo, de Luis Martins. O conteüdo da primeira pägina era desconcertante: o romance comecava pelo capitulo V e, em nota de rodape, avisava-se que O Outro e o Mesmo "pode ser lido, indiferentemente, pela ordern de numeracäo normal dos capitulos ou pela ordern de numeracäo das päginas" - tempo cronolögico, espacos fisicos, coerencia da descricäo narrativa, coesäo de tracos pessoais das perso-nagens, todos estes elementos ficam assim interseccionados 72 73 Miguel Real Geragäo de 90 segundo duas leituras diferentes que conduzirá, inevita-velmente, a duas visöes diferentes sobre o mesmo romance. A limite, o romance de Yvette Centeno, Matrix, de 1988, pode simbolicamente ser considerado o derradeiro momento deste processo desconstrutivista que teve a sua fase crono-lógica mais importante ao longo das décadas de 60 e 70. Na página 44, escreve o narrador o que poderíamos designar por modelo ideal do romance descontrutivista-. Matriz. Narrativa dialogada? Ficcäo sem descricöes, sem personagens-tipo, sem fio regular e sem desenvolvimento. Abolindo o passado, abolindo o futuro, anulando o tempo e o espaco, deixando só o impulso, os impulsos, os movi-mentos e contra-movimentos, a busca? A interrogacäo nas entrelinhas do que é dito. 2.2. Romance e Sociedade no Portugal Contemporäneo Como consequéncia das nossas afirmacöes no capítulo 1 e no subcapítulo 2.1, podemos interpretar a história do romance portugués do século XX a partir de um modelo analítico diferente do vulgarmente apresentado nos manuais de especia-lidade. Ultrapassado que está o momento histórico-ideológico em que os autores se integravam a si próprios em correntes que presumiam adequadas ao conteúdo dos seus romances, a leitura que propomos assenta, näo na motivacäo ideológica de cada romancista, mas na composicäo estrurural dos ele-mentos constituintes presentes em cada romance, na relacäo destes com a sintaxe gramatical e na sua relacäo semántica com a realidade social. Deste modo, propomos a divisäo do romance portugués do século XX em quatro fases perfeita-mente definidas, singularizadas cronologicamente, como o quadro a seguir apresenta, relacionando sempre o conteúdo semäntico do romance com o momento histórico: ROMANCE SOCIEDADE 1900 1910 1926 1926 1933 1.a FASE 1 - Romance de costumes burgueses (realismo e naturalismo vulgarizantes de L Batalha, T. de Queirös, A. Botelho, J. L Pinto...) 2 - Romance e textos valorizadores das tradigöes rurais ligadas ao passado (J. de Barras, T. Coelho, D. J. da Cämara, F. de Almeida, A. Botelho, T. de Queirös, Brito Camacho...) 3 - Valorizacäo de antigos textos e figuras heröicas e de conceitos nacionalistas (T. de Pascoais, A. Lopes Vieira, A. Correia de Oliveira, A. de Figueiredo, Malheiro Dias, J. Dantas...) - Desagregacäo das estruturas rrionar-quicas de Governo. - Ditadura de Joäo Franco. - Regicidio. - Implantacäo da Repüblica. -IGuerraMundial. - Desagregacäo e desaparecimento da monarquia e advento da repüblica geram um regresso äs tradigöes liricas e bu-cölicas do mundo rural (2) e um regresso äs gestas misticas e heroicas de Portugal (3), enquanto a burguesia ur-bana se delicia com o convencionalismo artificioso do romance de costumes (1): eis as tres vertentes do romance por-tugues herdadas de Eca de Queirös (cf. Cap. 1). Elementos originais e rupturais com o estado do romance que vinha do see. XIX: R. Brandáo {Humus), F. Pessoa (Uvro do Desassossego), A Ribeiro (/Wa/had/nhas e Terras do Demo - evidenciam urn ruralismo vernacular e sofrido, a. Camilo, e nao bucólico e lírico a T. Coelho e á Eca de A Cídade e as Senas) eF.de Castro (Emigrantes e A Selva). _L a - MOMENTO INTERMEDIARY - "Presenca" (J. Régio, Gašpar Simôes, M. Torga, Branquinho da Fonseca...) - Golpe de Estado de Gomes da Costa. - Ditadura Militär. - Repressáo violenta sobre sindicatos e oposicäo (republicanos, comunistas, anarco-sindicalistas, macónicos...). - Escritor individualiza-se, eléva a genia-lidade pessoal a único critério de arte e mergulha na sua obra; excepgäo: F. de Castro. 74 75 Miguel Real Geragäo de 90 ROMANCE SOCIEDADE 2.a FASE 1933 Realismo Substancialista catolicismo "Presenga" neo-realismo Francisco Costa J. Regio M. Torga A. Redol M. Dionísio F. Namora C. de Oiiveira S. P. Gomes... 1945 1950 - Criacäo e consolidacäo das estruturas politicas e sociais do Estado Novo. - Discursos de Salazar sobre a Ordern: Deus, Patria e Família. - Reorganizacáo do P. Comunista. - Desorientacäo social dos republicanos. Primado ideológico de urna nova ordern racional na sociedade que o romancista reflecte criando romances de urna períeita coeréncia estruturä entre todos os seus elementos constituintes: tempo, espago, personagens, acgäo, numa unidade coesa segundo a ideológia do autor ou a sua inclinagšo estética, mais objectiva ou mais subjectiva. a-MOMENTO INTERMEDIARY -1954 -A Sibila, de Agustina B.-Luís -1959 - Aparigäo, de V. Ferreira 1960 - Fim da 2.a Grande Guerra. - Fomento da industrializacao. - Movimento eleitoral de Humberto Delgado. - As estruturas politicas organizacionais do Estado Novo fraquejam e as camadas sociais apoiantes do salazarismo dividem-se; a maior industrializacao e o crescimento das cidades criam novos grupos sociais de mentalidade mais aberta. - Tempo e espago divorciam-se no romance; a consciencia e a memoria sao superiores e englobam a realidade exterior. 0 realismo substancialista fenece. 1960 1980 1980 ROMANCE SOCIEDADE 3.a FASE 1962 - Os Pregos na Erva, de M. G. Uansol Rumor Branco, de A Faria Passos em Volta, de H. Hélder O DelUm, de J. Cardoso Pires Maina Mendes, de M. Velho da Costa A Noite e o Riso, de N. Braganca Lourengo é Nome de Jogral, de F. Botelho Manual de Píntura e Cďigrafia, de J. Saramago O que Diz Molero, de Dinis Machado Dia dos Prodigios, de b'dia Jorge Os Cus de Judas, de A. Lobo Antunes O Outro e o Mesmo, de L Martins Silěncio, de Teolinda Gersáo Mate, de Yvette Centeno 1963 1968 1969 1971 1977 1980 1981 1988 - Revolta de Beja e apropriacäo do paquete "Santa Maria". - Invasäo da india "portuguesa". -Inicio da Guerra Colonial. -Movimento hippie. - Contestacáo estudantii ao longo da década de 60 e princípio de 70. -Criagäo da central sindical CGTP. - Criagäo do Partido Socialista. - Revolucäo do 25 de Abril de 1974. - Perda do Império. - Adesäo de Portugal ä Comunidade Europeia. - O romance acompanha a crítica e contestagäo á fftosofe racioná de orga-nizagšo totäitária da sociedade: os ŕexŕos säo desconstruídos, instáando um divórtio entre tempo, espago, acgäo e personagens (unidade do romance), privilegiando-se texto sem história reä e coerente: a desconstru-gáo das instituigoes vinculadas ao Estado Novo é acompanhada peSa desconstrucáo das categorias clássicas do romance. a - MOMENTO INTERMEDIARY 1. - Início da fase de reconstrugäo do romance portuguěs (existe urna unidade racional no romance, diferente da unidade clássica, mas existe): 76 77 Miguel Real ROMANCE - J. Saramago -J. LoboAntunes 2. - Fteabilitacäo do romance histórico: -1984 - A Voz dos Deuses, de Joáo Aguiar -1986 - A Casa do Pó, de Fernando Campos 1990 1990 SOCIEDADE - Entrada plena de Portugal na Comu-nidade Europeia com integral aceitacáo de soberania partilhada, ou limitacáo de soberania nacionál. - Tal como se assiste a uma reconstrucäo europeia de Portugal (economia, leis, ambiente, educagáo...), assiste-se iguaimente no romance ä necessidade de uma reconstrucäo. É reintroduzida a necessidade de se contar uma história e de se possuir personagens sólidas e coerentes. O tempo é tornado como sendo "todo um", permitindo amplosjogos nanativos. Poroutrolado, páaprimára vez depois de A. Herculano, o romance histórico ganha dignidade por si, com auséncia de mensagens ideológicas explícitas ou integrado em correntes nacionalista de enaltecimento de Portugal. É um terna como qualqueroutro. 4.a FASE 2000 - Geragäo de 90 (Fase tratada com destaque proprio na II Parte) - O ser de Portugá comeca a confundir-se com osercomum europeu, com evidente perda de singularidade. Nascem novos conceitos de soberania nacional e cida-dania. Os temas do divórcio, da indepen-déncia da mulher, do encontro/desen-contro/acaso nas relacôes sociais e sexuais evidenciám alguma domináncia, a par da exaitacäo do corpo, do culto individualista doprazeredariqueza. 78 Geragäo de 90 A fase iniciál da história do romance portugués no século XX corresponde aos primeiros 26 anos do século, e, com as excepcöes referidas, que provém mais da mestria literária e da vitalidade do conteúdo social inscrito nos romances do que propriamente de novas correntes, constitui-se maio-ritariamente como a continuacäo dos trés vectores herdados da totalidade da obra de Eca de Queirós, como apontámos no capítulo 1. O conteúdo destes romances evidencia uma sociedade e uma mentalidade de passagem do século, que é também de passagem de um regime monárquico para um republicano, com as características que temos vindo a evidenciar em 1, em 2.1 e em 2.2 (quadro). Algumas destas características, de indole ruralizante mas já enquadradas numa filosofia urbana decadentista, ainda se encontram no primeiro romance de J. Saramago, Terra do Pecado, de 1947, cuja história ainda desconhece a luz electrica e o automóvel. Este tipo de literatura oitocentista, com prolongamentos no século XX, é suportado por uma burguesia endinheirada, vivendo ä sombra do Estado e tentando compatibilizar as antigas normas de honra e dignidade com o advento de novas realidades sociais expressas pelas sufragistas, pelo operariado das cinturas de Lisboa e Porto e pelo voto popular republicano. A novidade, isto é, a entrada do romance portugués no século XX, com rompimento da heranca realista, ruralista e humanista dos "trés" Ecas, faz-se por dois movimentos mentais opostos: a) por uma ideologizacäo da literatura (T. de Pascoais e o saudosismo, A. Lopes Vieira e o nacionalismo...), movimento correspondente positiva e negativamente ä emergéncia da república em 1910; b) por urna total desideologizagäo da literatura, deixando esta ser atravessada pelas mais profundas e permanentes tensôes metafísicas e psicológicas (Humus, de R. Brandao, e Livro do Desassossego, de Bernardo Soares/F. Pessoa), movimento 79 Miguel Real porventura correspondente ä absoluta descrenca no conjun-to de valores fundados e mantidos pela civilizacäo ocidental (bem/mal, justica/injustica, belo/feio...), que a I Grande Guerra e a longa turbuléncia social adveniente da instauracäo da República contribuíram para afundar e que o conteúdo de "Orpheu" (1915) täo bem reflecte. Face a täo forte desabamento das estruturas monárquicas e igual hesitacäo e fragilidade das novas estruturas do Estado republicano, que atinge a maxima expressäo com a faléncia das financas públicas (repetindo alguns anos das décadas de 80 e 90 do século anterior), é socialmente natural que as ideologias nacionalistas se exprimam fortemente (Saudo-sismo de T. de Pascoais, Integralismo Lusitano de Antonio Sardinha) e também é socialmente natural que se criem radicais interrogacöes cépticas que, arrastando-se no tempo, acabem por gerar intensos e profundos solipsismos, ou seja, uma retirada do autor para dentro de si, tentando encontrar motivos estéticos no mundo da consciěncia e da memoria e apenas através destas faculdades interiores manter um con-tacto com o mundo social. A tal factor parece corresponder p aparecimento da "Presenca" (1927) e principalmente a aventura literária de J. Regio, Gaspar Simöes e Branquinho da Fonseca. Näo dessubstancializando o eu narrativo (como o fará F. Pessoa), torna este em motor de busca e de inquie-tacäo, numa permanente interrogacäo sobre os fundamentos universais do Hörnern e da História. Encadeando a sociedade e o romance, a obra literária de J. Regio corresponde, entre os finais da década de 20 e a década seguinte, aofim da república Parlamentär e äs novas exigéncias de uma consciěncia intelectual que já näo vé nas antigas lutas pela república, pelo orgulho pátrio contra os imperialismus europeus que ambicionavam as nossas colónias, na exal-tagäo nacionalista de Camoes aquando das comemoracoes 80 k ; Geragäo de 90 í do terceiro centenário da sua mořte em 1880, no estabeleci-' mento de uma classe média urbana suficientemmte desafogada para menear os costumes nobres nos salöesfamiliäres, e que constata estar Portugal e a sua república em níveis econó-^ micos täo débeis e politicamente täo conflituosos, divididos s radicalmente entre Posicäo e Oposigäo ("Näo, näo vou por i aí/..."), que a única acgäo digna de um hörnern é recolher-se interiormente e criar uma obra que ultrapasse o momento conjuntural. Com J. Regio comecam, de facto, a surgir autores ; näo subsidiários da tripla mentalidade literária proveniente ; do século XLX. Devido ao seu carácter singular, que encontrará nos exce-^ lentes primeiros romances de Fernanda Botelho uma forte continuadora da sua obra, /. Regio näo constituipor si proprio uma fase, mas, diferentemente, um momento intermediá-rio, um caminho de descobertapara o romanceportuguěs do século XX nas seguintes quatro vertentes: r l.a consciěncia que o eu narrativo, sendo uno, é igual e constitutivamente múltiplo; I 2. a personalidade de cada personagem deve t evidenciar uma diversidade contraditória e näo a antiga solidez de um conjunto único e coerente de > tragos psicológicos; 3- o tempo, sendo ideal e subtraído ä cronologia i, objectiva, torna-se tanto materia de narragäo como \ processo estilístico de romance; ir . . . t 4. o menos importante para uma narrativa e a * concepgäo do espago (a sua importäncia é apenas a de ser um referente inspirador). \ Justamente, o neo-realismo tem dificuldade em aceitar I estas quatro características instauradoras da prosa dej. Régio, I Jf 81 Miguel Real Geragäo de 90 ele (o neo-realismo) que aspirava a um mundo novo, diferente e revolucionário, mas täo socialmente ordenado como aquele a que se opunha. Com o mesmo grau de empenhamento de Regio em evidenciar as voltas labirinticas do eu, o neo-realismo, face ä conflitualidade politica que fizera desabar a I República, privilegiará as relacöes sociais focando-as na busca da uma nova ordern politica. Na década de 30 e passagem para a de 40, apenas os surrealistas privilegiaräo a criacäo de textos subtraídos a uma ordern racional, bem como o jovem Eduardo Lourenco, já no final da década, no campo do ensaio (Heterodoxia-Ié publicado em 1949), ou seja, apenas os surrealistas Portugueses (certamente que influenciados pelos seus homólogos franceses) resistem a esse seráfico apelo de instauracäo de uma nova ordern social fundada, literariamente falando, num eu fixo e permanente, individual ou colectivo (o narrador e o eu de cada personagem), numa realidade estrutural fixa e permanente (o espaco) e num domínio quase absoluto da história pessoal ou colectiva (o tempo), assente numa gramática estilisticamente composta em perfeicäo por um sujeito, um predicado e complementos. Esta 2.- fase do romance portugués (que designámos por realismo substancialista- cf. subcapítulo 2.1) manifesta-se como uma das fases mais vivas e produtivas da história do romance do século XX, seja vista pelo lado dos católicos, seja pelo lado dos neo-realistas, seja, ainda, pelo lado dos continuadores da "Presenca". Assim, separar o mundo romanesco dos autores da "Presenca" do mundo romanesco dos autores neo-realistas e do mundo romanesco de Francisco Costa, por exemplo, é dividir politica e ideologicamente a literatura em trés mundos superficialmente conflituais, mas é também esquecer que estes trés mundos, saidos da calamidade de uma I Grande Guerra e da instauragäo de um novo bloco politico com o 82 aparecimento da Uniäo Sovietica, se constituem como uma reacgäo a) contra a irracionalidade de "Orpheu", b) con-^ tra a fragmentariedade de R. Brandäo, c) contra as visöes ideolögicas anarquistas, d) contra os debeis humanismos seareiros, e) contra a superficialidade das convengoes burguesas que dominara a escrita dos epigonos de Ega no principio do seculo XX, f) contra as oposigöes romänticas entre literatura rural e literatura urbana e, ao arrepio destas 6oposigöes, intentam instauraruma nova ordern harmonica na literatura fundada na estabilidade entre o narrador, as personagens, o tempo, o espago e a acgäo, centrando a narra-tiva mais num destes elementos do que nos restantes segundo a individualidade do escritor. Deste modo, se posso opor Antonio Maria Lisboa a C. de Oliveira, ja näo posso opor M. Torga a C. de Oliveira; se posso opor F. Pessoa (prosa) a A. Redol, ja näo posso opor Francisco Costa a F. Namora; aos que näo säo oponiveis, ainda que sejam diferentes, correspon-dem urn mesmo mundo social e urn mesmo impulso historico reflectindo-se numa especie de casa comum literäria. Sobre-voando literariamente "presencistas" e "neo-realistas", e publicado, em I944, Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemesio. Com o fim da II Grande Guerra, a abertura eleitoral do Estado Novo, uma maior industrializacäo das cinturas urba-nas e a consciencializacäo, por parte das elites culturais, que a Europa se encontrava em estado de renascimento econo-mico, a pretensa unidade estävel do pais perde-se e, com esta, perde-se igualmente a unidade harmonica em que se centrava o romance portugues. Como apontämos no quadro, A Sibila e Aparigäo, de 1954 e 1959 (e, para sermos justos, os primeiros romances de Fernanda Botelho e de Augusto Abelaira, bem como Caranguejo, de Ruben A., editado em 1954), vem incendiar o romance portugues de perspectivismos narra-tivos, espaciais e temporais. Ä anterior ordern social e narrativa 83 Miguel Real Gera f do de 90 (cujo exemplo perfeito de estrutura é indubitavelmente Uma Abelha na Chuva, de C. de Oliveira, de 1953) näo sucede a "desordem" social e narrativa (como acontecerá nas déca-das de 60 e 70), mas a possibilidade da existencia de uma outra ordern, necessariamente diferente, já de certo modo prevalecente em Agustina Bessa-Luís e Vergílio Ferreira: 1. uma ordern näo linear, fundada em múltiplos cruzamentos de perspectivas as mais diversas; 2. näo racional, aceitando a incoeréncia, compor-tando elementos de mistério e de metafísica, permi-tindo-se saltos lógicos no texto; 3. näo necessária, mas fundada na contingéncia da vontade humana, como quem está dizendo ao leitor que "isto é assim näo porque a minha vontade seja absoluta, mas porque, impulsivamente por vezes, reflectidamente outras vezes, a perspectiva que se me oferece é esta, mas bem podia ser de outro modo". Ou seja, o que é definitivamente expulso do romancepor-tugues do séculoXX, ao longo da década de 50, säo os conceitos enformadores e estruturais da "unidade narrativa" en-quanto harmonia coerente e coesa de uma multiplicidade de elementos constituintes (personagens, accäo, tempo e espaco - como elementos mais importantes). Tern sido um adeus definitivo e, por isso, qualquer autor que insista hoje em repetir os processos "presencistas", neo-realistas ou a mentalidade católica das boas intencöes morais no estilo e conteúdo dos seus romances (como é o caso de inúmeros romances publicados na editora Escritor) näo conseguirá ter um sucesso duradouro entre os seus pares, embora haja uma camada de publico sempře predisposta a leituras tais. Se já a nova crítica tem dificuldade em aceitar processos narrativos como os de Rui Nunes (processos próprios das décadas de 60 e 70), mais dificilmente aceitará processos realistas fundados num narrador unívoco, desprovido de toda a ambiguidade, e numa narracäo fundada em cronologias lineares e espacos físicos sólidos e estáveis! Tal como a obra dej. Regio encerra a l.a fase da história do romance portugués do século XX, assim as obras de Agustina e de V. Ferreira encerram literariamente a 2.- fase desta mesma história, näo abrindo propriamente caminhos para os outros seguirem (porque H. Hélder, A. Faria e M. G. Llansol näo seguiräo esse caminho), mas, principalmente, tornando-se ele próprios em fontes de futuro. Que A Sibila e Aparigäo perturbam a antiga mentalidade unitária do romance prova-se de imediato pelas alteracóes estilísticas produzidas nos romances posteriores de Fernando Namora e, especialmente, pela alteracäo relativamente substancial do estilo de A. Redol no seu romance de 1962, Barranco de Cegos - possivelmente e paradoxalmente, o melhor romance deste autor. E o Carlos de Oliveira de Finisterra, é ainda o mesmo de Urna Abelha na Chuva?. E as inflexóes estilísticas de Urbano Tavares Rodrigues? A fonte de futuro que acima falámos consiste na legiti-midade narrativa do perspectivismo, que a década seguinte elevará ao seu mais alto grau (tudo éponto de vista, tudo é perspectiva sintäctica e semäntica). Porém, essa que é a sua maxima virtude é também a sua maxima condenagäo literária, já que, se tudo éperspectiva e tudo se iguala a tudo (näo havendo pontos de vista fortes, superiores aos outros), entäo narrador, espago, tempo, acgäo, personagens entre-cruzam-se labirinticamente, confundindo-se mutuamente, deixando no ar a ideia de tudo é romance porque tudo é texto. Esta ideia, muito sinteticamente aqui evidenciada e já apresentada na prática em 2.1, designámo-la por 84 85 Miguel Real Geragäo de 90 Desconstrucionismo e corresponde ä 3-a fase da história do romance portugués do século XX, que, por sua vez, retira o seu fundamente social dos acontecimentos políticos e civilizacionais maiores das décadas de 60 e 70 em Portugal e da profundíssima crítica da sociedade civil ao totalitarismo do Estado até 1974: perda da índia, guerra colonial, crise estudantil, e, depois, revolucäo do 25 de Abril, adesäo de Portugal ä Comunidade Europeia, perda do Império. Ao longo das décadas de 60 e 70, Portugal desconstrói-se, muda de rumo, altera o seu espagofixo de500 anos e o romance desconstrói-se, muda de rumo e desprivilegia o espago como elemento sólido e estävel do romance. Tal como se criticavam as estruturas do Estado policial e totalitário, baseadas na crenca de um "Portugal uno do Minho a Timor", assim os romancistas da década de 60 (ver Quadro) criticam e desconstroem as estruturas do romance do realismo substancialista baseados na crenca de uma unidade formal que engloba coerente e harmonicamente a multiplicidade dos seus elementos. O descontrutivismo critica e desconstrói, mas näo refaz, näo procura uma outra unidade senäo a que na mente do leitor nasce da fragmentariedade, de algum sem-sentido, da liberdade semäntica, dos infinites cruzamentos temporals, dos jogos gráficos do espaco, enfim, do perspectivismo. Por isso, porque critica e desconstrói, nunca a lingua do romance foi reconstruída (só a da poesia), mas também nunca nos atrevemos a escrever urn romance ä J. Joyce constituido por inumeras palavras inventadas de raiz. Como já o mostrámos através do Quadro, o vigor e a novi-dade deste tipo de romance (para näo dizer a sua neces-sidade social) findou no final da década de 70, ainda que diversos autores o continuem a cultivar e - será ousadia dizé-lo? - a atribuicäo de altes galardoes literários äs obras de M. G. Llansol e de Rui Nunes, por parte da Associacäo Portuguesa de Escritores, na década de 90, se atribui consa-gracäo histórica definitíva a esta fase do romance portugués, também näo deixa de estabelecer que do que está consagrado poucoa novidade se espera. Esta 3-a fase termina na década de 80 com a publicacäo dos romances de J. Saramago e de Lobo Antunes, cujo modo reconstrutivo de escrita da narragäo os torna uma espécie de patriarcas do estilo, do conteúdo e da forma dos romances da Geracäo de 90, garantindo, ambos os romancistas, ä semelhanca da obra de Eca entre os finais do século XIX e os princípios do século XX, a continuidade estilística e ideológica na passagem do século XX para o século XXI. Usando uma espécie de lema comum narrativo de "tudo está em tudo, mas segundo ritmos e proporcôes diferentes", criaram uma nova alma na narrativa portuguesa e provaram que se pode criticar e desconstruir as antigas estruturas narrativas sem se perder o sentido da história, da accäo, das personagens, do espaco, jogando principal-mente com o tempo e uma nova gramática da imaginacäo. Fado Alexandrino, Tratado das Paixoes da Alma, Manual dos Inquisidores, Esplendor de Portugal, Exortagäo aos Crocodilos e Näo Entres täo Depressa nessa Noite Escura, vém igualmente provar que é possível contar uma história usando a técnica que, na ficcäo, diferente da História, o tempo pode ser encarado como uma unidade total, que o "tempo é todo um" e , assim, um paragrafe pode referir-se ao Natal de 1995, o paragrafe seguinte pode referir-se äs recordacôes de 1975 e no paragrafe posterior pode referir-se as antevisöes imagéticas do personagem sobre o Natal de 2005 (Lobo Antunes em O Manual do Inquisidores). Vale Ferraz, no recente Livro das Maravilhas(1999), usa a mesma técnica, cruzando inúmeras histórias diferentes pas-sadas em espacos diferentes e em tempos europeus 86 87 Miguel Real Geragäo de 90 diferentes, fundado na assercäo que o tempo humano é cul-turalmente qualitativo e, portanto, facilmente intermutável. O que também define constitutivamente a década de 80, no campo do romance, é a reabilitacäo do romance histórico portugués com a publicacäo, em 1984, de A Voz dos Deuses, de Joäo Aguiar (sobre o estatuto literário da personagem "Viriato", cf. Luis Martins, "Representacóes do Poder Politico na Literatura - o exemplo de Viriato", in Discursos, II Série, n.2 2, Lisboa, Ed. Universidade Aberta, 2000, pp. 183-211), e, em 1986, de A Casa do Pó, de Fernando Campos. De facto, pela primeira vez desde Alexandre Herculano, principal-mente enquanto autor de Lendas e Narrativas, o romance histórico ganha contornos de grande seriedade, seja no sentido de näo manipulacäo da mensagem narrativa como servical de uma ideológia político-histórica, seja pela näo utilizacäo de processos estilísticos dramáticos próprios do folhetinismo popular. Esta nova perspectiva do romance histórico é fiel as fontes historiográficas sem deixar de ficcionar, näo é apologético ou endoutrinador e näo se encontra ao servico de visôes gerais do mundo que encaram o romance, näo como um fim estético em si mesmo, mas como um instrumento de conversäo do leitor e de propaganda geral. É de admitir que quanto mais nos integrarmos na Comunidade Europeia mais os nossos autores sintam necessidade de explorar as raízes da nossa dimensäo nacionál, sem um patriotismo ä Antonio Sardinha ou ä A. Lopes Vieira, mas também sem o mundanismo de quem na História só vé mudanca, desprezando como anquilosado e dígno de museu tudo o que, pertencendo ao passado, alimenta quotidianamente as representacóes colectivas por que Portugal se identifica a si próprio. Na década de 90 surge uma outra geracäo, dotada de um outro poder narrativo e de uma outra concepcäo semäntica da realidade (näo me atrevo a ajuizar se positivus ou negativus), que constituirá a 4~ fase da história do romance portUT gués no século XX, geracäo que já interiorizou culturalmente, como factos irrevogáveis da Flistória, tanto a perda do Império, como a entrada de Portugal na Europa, e cujos romances mani-festam em absoluto esta dupla raiz, a primeira como auséncia e a segunda como excessiva presenca, näo raro uma presenca monopolizadora e acritica. Se quisermos escolher (e toda a seleccäo é sempre subjectiva e só envolve o autor da seleccäo e näo os autores dos romances visados), o momento espedfico em que os novos textos, enformados de uma nova menta-lidade, emergem no panorama literário portugués, originando o que temos vindo a designar por "Geragäo de 90", demar-cariamos dois romances-padräo que se constituem, de certo modo, como relativamente rupturais com o passado da literatúra. O primeiro data de 1986, é de Rui Zink e intitula-se HotelLusitano. É uma narativa brincalhona, despreconceituada face ä posicäo séria e intelectualizada da literatúra entäo dominante (Saramago, Lobo Antunes, Mário Claudio, Lídia Jorge...), narrada sob um pretenso olhar americano feroz-mente crítico do estado social portugués. Na página 18 da l.a edicäo, podemos ler uma violentíssima crítica ä ideológia literária dominante em Portugal desde a década de 60: Da Europa chegavam desde há alguns anos notícias de que por lá, sobretudo em Franca, continuava em moda escrever romances e novelas sem histórias, um fio condutor, sem um antes e um depois, sem personagens, sem peripécia, sem momentos de tensäo. Sem aventura, enfim. O romancista mais famoso, diziam, era um professor de Linguística chamado Roland Barthes - um francés, evidentemente, como já o era Robbe-Grillet. Parece que a ideia era devolver ä palavra finalmente o seu valor intrínseco, deixar vir ao de cimo toda a beleza do simples soletrar das frases sem que o tremendo Sentido desse ser-forma sofresse a castradora repressäo do maniqueísta 88 89 Miguel Real Geragäo de 90 estigma da narrativa. Devia ser mais ou menos isto, mas eu näo estava cem por cento seguro de ter compreendido bem. A teoria näo era o meu forte, e parecia-me que se estava a tentar reduzir a prosa ä linguagem da poesia, quando, na minha opiniäo, ela era muito mais do que simples poesia: era vida, näo apenas traducäo do seu pulsar ou artificial manipulacäo das palavras. A prosa tinha coisas portrás das palavras, näo era só palavras. O segundo parágrafo sintetiza a inspiracäo literária fran-cesa que dominara substancialmente o romance portugués das duas décadas anteriores e, no final do parágrafo, Rui Zink apresenta o quid distintivo de que este romance era portador, como que ressuscitando (na simplicidade da sua enunciacäo, que a prosa romanesca tinha que ser "vida" e näo apenas "artificial manipulacäo de palavras") os editoriais de Jose Regio para a "Presenca", no final da década de 20, ou as afirmacöes categóricas dos diversos pensadores neo--realistas da década de 30 sobre a relacäo entre a arte e a vida. Para quem conhece os diversos textos teóricos sobre a natureza e estatuto do romance publicados em Portugal ao longo do século XX, de Fidelino de Figueiredo a Mario Dionísio, de Eduardo Lourenco a Alexandre Pinheiro Torres, de Verguio Ferreira e Carlos Reis a Eugénio Lisboa e Jorge de Sena, como que esta simples afirmacäo do jovem Rui Zink no meio de uma página do seu romance (que a literatura é vida) assume o sabor do "triunfo do recalcado" de toda a história da literatura, de Alexandre Herculano e Julio Dinis a Fernando Namora, Miguel Torga e Manuel da Fonseca, contra o estado de permanente subversäo que as décadas de 60 e 70 tinham operado face ä relacäo harmoniosa entre as categorias estéticas literárias tradicionais. Esta página de Rui Zink como que vem reabilitar a necessidade de o romance contar uma história, de as personagens sérem solidamente delineadas e consistentes e do espaco possuir uma representacäo real e lógica ao longo de o desenho da história. Como que é possível 1er nestas palavras de Rui Zink uma espécie deresposta histórica (indirecta, evidentemente) ä constatacäo magoada que Teolinda Gersäo exprime no seu primeiro romance, Siléncio, publicado em 1981 (pp. 115-116), constatacäo que reflecte, indubitavelmente, a consciéncia do estado em que a literatúra portuguesa se encontrava depois de 20 anos de Desconstrutivismo: ... mas a literatura também se converteu em siléncio, tornou-se apenas imanente, as palavras ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempře um meio de demonstrar äs pessoas que elas significam tudo, e que, portanto, näo significam nada, a palavra escrita é uma palavra morta,... Rui Zink, autor integrado no movimento que nós designa-mos por "Geracäo de 90", fala em literatura feita de palavras vivas, a literatura é a vida; Teolinda Gersäo, uma das mais brilhantes escritoras actuais, fala justamente de literatura "imanente" (debrucada sobre si propria, criadora de contínuas ipseidades e ensimesmamentos, de fortes egolatrias), constituída por "palavras mortas". Eis, em estado bruto e radical, presente na década de 80, duas diferentíssimas concepcóes de literatura: o "Desconstrucionismo" a fenecer e a "Geracäo de 90" a nascer. O segundo romance que marca o início do aparecimento da "Geracäo de 90" foi por nós escolhido em funcäo do conteúdo ideológico da sua epígrafe. Trata-se de OPequeno Mundo, de Luisa Costa Gomes, publicado em 1988. É que o conteúdo ideológico da epígrafe revela a necessidade de um corte da consciéncia colectiva portuguesa näo só face ao 90 91 Miguel Real passado recente (do 25 de Abril de 1974 para cá), como face a qualquer pretensiosismo intelectual de iluminismo urbano (as mirificas vanguardas em que a literatura portuguesa sempre se viu enredada, näo raro seguindo modas francesas), criador de teorias e retratos teóricos sobre o que o povo é, irá ser ou deseja ser: Leitor! Este livro nao fala do 25 de Abril. Nao se refere ao 11 de Marco e esta-se nas tintas para o 25 de Novembro. Pior, nao menciona em lugar nenhum a guerra em Africa. Nao reflecte sobre a nossa identidade cultural como povo, o nosso futuro como nacao, o nosso lugar na comunidade europeia. Suportara o leitor um livro assim? Duvido. Foi a sombra do beneficio dessa duvida que o escrevi e agora o dou a publicar. É uma epígrafe de forte conteúdo ideológico, de profunda exaltacäo do individualismo face ä história do colectivo, mesmo de ruptúra com rudo o que marcara recentemente as grandes preocupacôes nacionais: a génese do Estado demo-crático, a perda do Império, a assumpcäo de um novo destino europeu para Portugal. Só uma nova geracäo, já cosmopolita, já vinculada a costumes hedonistas e relativistas europeus, já profundamente céptica face äs polémicas sobre a identidade nacionál, poderia escrever esta epígrafe - e por isso a marcamos como anunciadora de uma nova mentalidade na história do romance portugués, mentalidade enunciada no quadro intitulado "As 10 Características Principals dos Romances da Geracäo de 90" e no quadro "Trés Referentes Histórico-Literários Enquadradores da Geracäo de 90", principalmente o terceiro referente: "A Geracäo de 90 näo leva a História a sério". II. Geragäo de 90 Um Novo Portugal ä Procura de um Ser Literärio 92