temporänea (1922-1926) e Athena (1924-1925), näo tiveram influéncia marcante e profunda sobre o publico em geral, näo logrando impor-Ibe os nomes mais significativos do primeiro modernismo portugués. O espectáculo fora intenso e fulgurante, mas breve e, em muitos casos, mortifero. A aventura esgotara alguns dos seus actores: Mário de Sá-Carneiro suici-dou-se tout court; Raul Leal e Angelo de Lima suicidaram-se simbolicamente na loucura; Luis de Mon-talvor veio a morrer, em 1947, num trágico e estranho «acidente», de automóvel; Fernando Pessoa suicidou--se devagar, mas com eficácia, no quase-siléncio do retiro, da náusea e dos copinhos de aguardente (que näo matam, mas ajudam); Alfredo Guisado suicidou--se no siléncio. Mas nem o devastador rescaldo chegou para impor, em termos de rentabilidade, a «sinceri-dade» do investimento feito... Por outro lado, a maior figura do primeiro modernismo, Fernando Pessoa, näo chegou a publicar, durante todo o periodo que durou este movimento, um único livro. Com excepcäo da sua estreia em livro, com Mensagem, é aos elementos do grupo da presenqa que se vai dever o arranque da publicacäo da obra completa de Fernando Pessoa, a qual, neste momento, ainda prossegue. Os do Orpheu fulguraram, e recolheram logo ao ineditismo. Caberia aos homens do segundo modernismo ressusci-tá-los, valorizá-los, impô-los e, como diria Eduardo Lourenco, meté-los dentro da História da Literatura, onde näo tinham naturalmente nascido nem posterior-mente tentado entrar. II / O SEGUNDO MODERNISMO: A «PRESENCA» Seul Vart m'agrée, parti de ľinquiétude, qui tende a la sérénité. André Gide O primeiro numero da revista presenga apareceu no dia 10 de Marco de 1927, na cidade de Coimbra, com um subcabecalho que indicava tratar-se de urna «Folha de Arte e Critica». Os directores e editores da revista eram Branquinho da Fonseca, Joäo Gašpar Simöes e Jose Regio. A revista comecou por ser quin-zenal mas, a partir do quarto numero, deixou de res-peitar-se a periodicidade iniciál. No entanto, com maior ou menor regularidade, ela foi saindo durante 13 anos, até Fevereiro de 1940, data da publicagäo do ultimo numero (editaram-se, ao todo, cinquenta e seis, isto é, uma média de cinco por ano). Nesse primeiro numero, saído fez há pouco cinquenta anos, Jose Regio, que publicara dois anos antes os Poemas de Deus e do Diabo e tinha, incontesta-velmente, um grande ascendente intelectual sobre os seus companheiros de tertúlia, assinava um artigo pro-gramático que, em termos de grande abertura, indicava as linhas de forca orientadoras da revista: «Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artistica. A primeira condicäo duma obra viva é pois ter uma personalidade 26 27 e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou näo) čerta sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excéntrico, estranho, extravagante, bizarr o... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astu-ciosa. Eis como também pertence ä literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade propria»29. Neste texto invulgarmente firme, Regio interligava, com subtileza, dois conceitos: o de originalidade e o de sinceridade.jA literatura näo original, isto é, näo nascida da «parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de urna personalidade artistka », cedo se mostrava como aquilo que era: uma obra näo profundamente necessitada, näo sincera, um tronco morto, uma retórica sediga. Era o caso de quase toda a literatura portuguesa publicada no primeiro quartel do século xxj Esse ponto era explícita e elo-quentemente sublinhado no texto de Regio: «Pre-tendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferio-rizam grande parte da nossa literatura contemporä-nea, roubando-lhe esse carácter de invencäo, criacäo e descoberta que faz grande a arte moderna. Säo eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade de uma literatura contemporänea está documentada pelos nomes que mais aceitagäo publica gozam. É triste — mas é verdade. Em Portugal, raro urna obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais sediga) morde os pró-prios temperamentos vivos; e se a obra de um moco traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germes de literatura viva se desenvolvem. O pe-dantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. (...) Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só entao os criticos Portugueses comegam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua ve-Ihice precoce e paramentada. Regra geral os nossos criticos sao amadores de antiguidades.» 30 (os itálicos sao nossos). Quando hoje se relé o «programa» da presenga, até pelo que ele tem de amplo e pouco claramente circuns-crito (nele cabia, nem mais nem menos, qualquer obra com algum interesse...), torna-se difícil compreender algumas das variadas e, nalguns casos, muitíssimo bar-rocas acusagoes de que a revista coimbrá veio a ser alvo: «subjectivismo», «umbilicalismo» «esteticismo», «a-historicismo», «individualismo», «pessoalismo», «psicologismo», «formalismo», «intemporalismo», «eternismo», «torre-de-marfismo»... (Por vezeš carre-gava-se um pouco no sal e aludia-se a «esteticismo fe-chado» ou a «umbilicalismo trágico»). Raramente um movimento literário terá desencadeado, em Portugal, uma tao florida panóplia de qualificativos redutores! Ao ponto de se pensar que, se a presenga nao tivesse existido, teria sido preciso inventá-la... Definir, é sempře limitar. Definir de modo deliberadamente redutor — como, muitas vezeš, se fez — é apenas propor, como descrigao do objecto que se visa, uma caricatura de uma sombra. É um acto de «des-leitura», cometido sem inocéncia. ,Os textos programáticos da presenga sao claros, desde o primeiro numero; o que nem se-quer excluirá algumas justas observagSes e reservas que se lbe possam fazer, como sao, até certo ponto, algumas daquelas — táo civilizadamente articula-das! — que lhe fez, ao longo dos anos, Eduardo Lou-rengo. Mas os textos, as intengoes e, nao pouco frequentemente, os actos críticos, sáo, repetimos, 28 29 muito claros. Quando por exemplo se diz (e disse-se vezeš sem conta) que £oi «esse esteticismo quejsolou. a Presen£a-:das^inqmĚt-a§oes^ú&.yM por um lado, um uso abusivamente limitado do significado de «vida» («o amor. depravado», as «escavag5es freudia-nas», o «subjectivismo doentio», o «egocentrismo agudo feito de isolamento, de solidao, de impoténcia de amar, de megalomania»31 sáo também parte inte-grante da «vida»), por outro, passa-se ao lado das ver-dadeiras intencoes e dos textos publicados. Logo no n.° 9 da revista Presenga, de Fevereiro de 1928, no célebre manifesto intitulado «Literatura livresca e literatura viva», ÍJosé Régio como que antecipadamente se defendia deste tipo de acusacáo, em termos de inex-cedível eloquéncia: «Quer isto dizer», perguntava, «que as preocupátjoes de ordem politica, reiigiosaTrpa-triótica, social, ética, — háo-de,^orcpsapíé^te^ěr' h&-nídas da Obra de Arte? De módo nenhum. E quem dirá que tais preocupacoes sáo banidas da obra de um Dostoiewsky, ou dum Ibsen, dum Strindberg ou dum Pirandello, dum Gide ou dum Shaw, dum Claudel ou dum Gorkyy; dum Antero ou dum Tagore? í O Artista é homeme^na sua humanidade que a Arte1 aprof unda />5'.: >' raizes. As obr as de Arte mais completes podem ser,' mesmo, aquelas em que mais complexamente se agitam todas as preocupacoes de que o homem é vííima... glo-riosa vítima. E a paixlépoHtica, a paixao patriótica, arpaixao reíigiosa, como a paixao por uma ideia ou por um ser humano — podem inspirar grandes e puras Obras de Arte. Mas... entendáhió-hos: O que entáo ínspira a Obra de Arte — é a paixao; e uma paixao considerada infamante ou uma paixao considerada no-bre — podem da mesma forma inspirar Obras eleva-das sob o ponto de vista que nos interessa: estético. O ideal do Artista nada tem com o do moralista, do patriota, do crente, ou do cidadáo: Quando sejam pro-fundos e quando se tenham moldado de uma, čerta individualidade, tanto o qye se cháma um yício^corilo o que se cháma uma járfííde ^oSem igualmente ser agentes de criagao, artística: podem ser elementos de vida de uma Obraj Náo sei se deveria ser assim — mas é assim» 0\j Este rirme arrimar-se a uma «viva» qua-lidade artística que nada exclui do que ao homem diz respeito, será, ao longo dos anos, pisado e repisado, quase até á náusea (mas com poucos efeitos visíveis nas reaccoes dos usuais comentadores da história lite-rária). No ensaio que, em Í938, dedicou a Antonio Botto e o Amor, voltaria á carga: «Mergulhe em que mergulhar as suas raízes, a arte realiza sempře, e pelos seus únicos meios enquanto arte, esta espiritualízagao do homem. E nao é senao em virtude desta moralidade intňnseca da arte que as paixoes infamantes e os ví-cios, as ideias falsas e o egoísmo, as inclinacóes doen-tias e todas as misérias da humanidade se redimem através da visáo do artista que deles próprios se nutre como homem. Outra moralidade nao devemos pedir á obra de arte como obra de arte. Ora assim como pode servir a moral mas livremente, espontaneamente, involuntariamente, com seus próprios meios e por de-terminacao da sua própria natureza, — assim pode a arte servir a religiao, a filosofia, a ciéncia, a sociologia, a política. Só assim, porém. E eis o que nem sempře satisfaz certos maníacos da accao imediata, e outras espécies de maníacos. Estes — náo podem perdoar á arte a independéncia que ela afirma até quando serve: Dir-se-ia odiarem tudo o que se liberta da escravidao a que eles próprios se condenam.»33 Nesta ilimitacSo exigente que Régio e os seus companheiros da Presenga viam como a característíca -inerente da obra de arte válida, nesta «aproximacáo» ampla e generosa- 30 31 mente plurifacetada (o objecto artistico e poliedrica-mente rico), estava prodigiosamente presente a grande sombra tutelar de Flaubert: «Du temps de La Harpe», dizia ele, numa carta a George Sand, «on etait gram-mairien; du temps de Sainte-Beuve et de Taine, on est historien. Quand sera-t-on artiste, rien qu'artiste, mais bien artiste? Ou connaissez-vous une critique qui s'inquiete de l'oeuvre en soi, d'une facon intense?»34 Num texto publicado em 1944, no jornal 0 Primeiro de Janeiro, Regio resumira de modo lapidarmente em-blematico o programa englobante que for a, a seus olhos, o da Presenga: «A personalidade do artista-cria-dor nada proibe a «presenca» senao que se falseie; nada impoe senao que se revele.» 35 E, de novo, em 1956, no suplemento de «Cultura e Arte», de O Comercio do Porto: «0 que sucintamente acabamos de expor nos podera, desde ja, sugerir como a critica ! da presenga viria a ser fundamentalmente compreen-\ siva, ou visando a compreensao. Aceite o homem em ' toda a sua complexidade infinita, aceites todas as for-i mas de expressao desde que eficientes, — decerto es-! tava a critica da presenga menos sujeita a uma : ridfcula, a uma estupida posicao que, para cumulo, chega actualmente a merecer aplausos: a da quase sis-tematica oposicao do critico ao criticado; a duma po-bre, mesquinha, domestica, particular bulba entre os dois.» 36 (Os italicos sao nossos). Outra das vantagens de se recorrer aos textos de preferencia a seguir-se passivamente o rasto das len-das e dos lugares comuns (praticamente so ha vantagens em se adoptar uma atitude destas, embora o preco, em trabalho, seja indubitavelmente elevado!), eoar fresco de surpresa e descoberta que nao raro nos acolhe. A critica da presenga tern frequentemente. ja o dissemos, sido acusada de um formalismo ou este- ticismo «figido», «fechado», «tragico», algidamente remote em relacäo a urn algo a que se chama «vida». A presenga interessaria sobretjido_,a_forma... Já vi-mos o desmentido caloroso e empenbado que alguns textos de Regio (seleccionados de entre material de diferentes periodos) dab a este tipo de assercäo. Näo fiquemos por aqui. Joäo Gaspar Simoes-éusualmente tido pelo <>^á&^presenga.jye^nt&náo o que tal qualificacäo possa ter de incomodamente «oficioso», a verdade é ter ele sido a personalidade presencista mais sistematicamente empenhada (e so-bretudo nisso empenhada) numa actividade critica de avaliagäo, seleccäo, interpretacäo, promogäo e sanea-mento da «coisa literaria» que, pelo seu volume, con-tinuidade e durabilidade, encontrará poucos pares na nossa História Literária (com altos e baixos, carecendo de uma solida cultura filosófica que o defendesse contra alguns seriös deslizes em que ocasionalmente cai37, com bases teóricas de uma flagrante fragilidade, Joäo Gaspar Simöes é, ainda assim, pěla independéncia de que sempře fez gala, pela coragem — aqui ou acolá minada por uma susceptibilidade de mau conselho —, pela intuicäo quase sempre certeira, pela persistente tarefa de uma omnipresente e incómoda vigiláncia focada sobre o «estado da república das letras», uma figura que näo poderá ser esquecida na História Literária Portuguesa do ultimo meio século). Vejamos pois, a seguir a Régio, que é a mais importánte personalidade total que a presenga revelou, o que teve a dizer Joäo Gaspar Simöes, o critico mais em evidéncia e mais sistemático do movimento, que pudesse legiti-mar a acusagäo de formalismo ou de esteticismo feita ao grupo. Logo no n.° 6 da revista (18 de Julho de 1927) publkava o autor de O Mistério da Poesia, um artigo intitulado Depots de Dostoiewsky. Nesse texto, 32 33 \ e logo no comedo, assim define ele a importäncia do romancista russo: «Em Dostoievsky tudo é vivo. A contribuicäo mais extraordinária com que o escritor : russo acorreu ä salvacäo da novela ocidental, foi preci-\ samente urna contribuiqao vital, biologica.» 38 (Os itá-! licos säo nossos). Independentemente das reservas que se possam pôr ao sentido que a palavra «biologica» ali possa ter, do que näo restam dúvidas é de que se näo faz uma defesa dos valores formats da arte do autor dos Karamazov 39. E para que näo haja, a este respeito, qualquer dúvida, G. Simöes esclarece, logo a seguir, o seu ponto de vista: «Desde Chateaubriand que se introduzira na novela francesa —, consequentemente, na europeia — o estilo, isto é, o culto da forma pela forma, clara negaqao das mais característícas qualida-des novelísticas: símpatia humana, perseguicäo exaus-tiva das pulsacôes mais vivas de cada coragäo e total divido de si proprio. Quer dizer, dum procedimento objectivo, externo, cairam os novelistas num subjecti-vismo formal em tudo contrario ä boa conduta dos criadores de microcosmos — que outra coisa näo de-/vem ser as verdadeiras novelas. E da introduqao sim-\ pies do estilo na criaqao novelistica, passou a novela j a sofrer de todos os males que a insisténcia do escritor j sobre a sua matéria plastica — a lingua — ocasio-\ nou.» 40 (Os itálicos säo nossos). E mais adiante, repi-i sando, para näo ficarem dúvidas sobre o que considera mais importante, na jicqao: «Ora o que mais peculia-riza uma novela é o fundo — o subsolo humano em que assenta a sua engrenagem cosmologica.» 41 (O itá-lico é nosso). Cremos que os extractos acima dados, com os quais näo precisamos sequer de estar de acordo (e de facto näo estamos: há, numa boa novela ou romance, muito mais do que o fundo...), säo abun-dantemente suficientes para demitirem, de urna vez por todas, a tendenciosa acusacäo de formalismo este-rilizador que pertinazmente tem sido feita aos presen-cistas. Pois näo vai Gaspar Simöes até ao ponto de tentar «reduzir» o valor exclusivo da forma, falando pejorativamente de «subjectivismo formal?»42 E näo considera também que um dos ingredientes da arte ro-manesca é o «total olvido de si proprio» de que o romancista deve ser capaz? E näo se opora este «olvido» ao täo decantado «subjectivismo»? Ainda no mesmo artigo, alude Joäo Gaspar Simöes, depreciativamente, a Flaubert, nos termos seguintes: «Se repararmos em Flaubert, encontrar-nos-emos com o mais perfeito exemplar dessa degradacäo. As suas obras säo verdadeiras arquitecturas em que o material construtivo é formado por um poderoso talento plás-tico, e em que a parte realmente humana é täo dimi-nuta e täo rigida que apenas alcanca comunicar-se-nos mercé dessa plasticidade e dessa rigidez estatuaria!» 43 Este texto tem um duplo interesse: por um lado, re-forga, de modo quase eloquentemente polémico, o ponto que temos vindo a expor; por outro, na medida em que frontalmente se opöe ä proclamada, fascinada e pertinaz admiracäo de Regio pela arte romanesca de Flaubert, mostra, de modo dramaticamente impressio-nante, que a presenqa esteve muito longe de ser a academia rigidamente monolítica que dela quiseram fazer alguns detractores primários. As ideias circulavam li-vremente e livremente se opunham, — até entre os seus dois principals directores... Se, por fim, sondarmos a este mesmo respeito, os textos de Adolfo Casais Monteiro, que veio a ser, com Regio e Simöes, director da presenqa, a partir de 1931, concluiremos que também näo é por aqui que se achará apoio para o apodo de formalismo que tem sis-tematicamente perseguido o grupo de Coimbra. No 34 35 n.° 17 da revista, de Dezembro de 1928 (altura em que era já colaborador, mas ainda näo director), Ca-sais Monteiro, num texto Söhre Ega de Oueiroz, faz esta afirmacäo de clareza meridiana, quanta äs suas intengôes: «Julgar urna obra. pelo critério de perfei-cäo — ao menos pelo critério de perf eigäo clássica a que estamos afeitos — equivale a condená-la; per f eigäo é urna palavra desqualificada, desde que se des-cobriu, no hörnern como na natureza, um perpétuo jogo de contrastes e de antiteses.»44 (O itálico é do proprio Casais Monteiro). E, adiante, acrescenta: «É por esta nova escala de valores usados nos Maias que Ega atinge, quanto a mim, a sua verdadeira medida. Antes pode ser tudo o que quiserem, menos humano; quer dizer, quanto a um módulo, o do ideal do romance realista, os seus primeiros romances säo quase perfeitos; quanto a um ideal, o verdadeiro ideal da arte antiformalista, os Maias é um livro extraordina-riamente mais belo» 45 (Os itálicos säo nossos). Cre-mos que, em termos de r ej eigäo de uma arte pura-mente formalista, dificilmente se poderia ser mais eloquente. .. até ao ponto de se cometer o indesculpável erro de avaliagäo crítica que é tomar Os Maias por um «verdadeiro ideal da arte antiformalista» (a fuga ao modelo do romance francés e a aceitagäo do modelo do «roman-fleuve» ingles näo fazem de Os Maias um romance formalmente imperfeito.) Por outro lado, também näo devemos, a partir daqui, precipitar-nos a concluir que os valores formais näo eram tidos em conta por Casais Monteiro ou por Gaspar Simöes: todo o exercício da actividade crítica destes dois im-portantes críticos é explícito testemunho do contrario (a coragem com que ousaram separar o trigo do joio, em termos de exigéncia estética, por alturas do advento do neo-realismo, é um exemplo entre mui- tos). Num livro publicado no Brasil, em 1961, Clareza e Mistério da Crítica, Casais Monteiro diz, por exemplo, em certo ponto: «Já se tem visto fazer um grande elogio duma obra, para no fim, em rápidas linhas, se reconhecerem as deficiéncias do seu estilo. Aprecia-se a verdade da análise, ou o valor social dum romance, para se acabar por confessar que está mal escrito, ou a intriga é frouxa, ou a construgäo desequilibrada. Ora, num tratado de psicologia ou de ciéncias sociais, seme-Ihantes deficiéncias podem ser perfeitamente secundá-rias, quando tais obras säo susceptíveis de as ter — pois que, por exemplo, näo há perigo de se acusar de ser falsa a intriga dum tratado de economia politica, e, emfoora isso sej a desagradável, a falta de estilo dum estudo psicanalitico näo afecta o seu valor intrin-seco.»46 (É, no entanto, este mesmo Casais Monteiro quem, ao citar os romances de maior nomeada do século XX, coloca, ao lado das indiscutiveis obras-pri-mas que säo A Montanha Mágica, A la recherche du temps perdu e Ulisses, o inepto, informe e mal estru-turado Jean Christophe, de Romain Rolland. Aqui parece-nos tratar-se menos de uma Mcida aceitagäo do «impuro» romanesco do que de um claudicar do sen-tido critico, de resto quase sempre täo agudo, no autor de O Romance e os seus Problemas...) Voltando por fim a Regio, näo gostariamos de dei-xar ipassar em claro uma carta sua dirigida ao seu camarada Joäo Gaspar Simöes, em 1927, e por este há pouco revelada. Nela, a propósito de uma leitura que andava, por essa altura, a fazer, de Dostoiewsky, comentava: «Tentando já falar como critico, O Idiota parece-me dos livros mais bárbaróš',' menos construi-dos, do Autor, mas talvez um pouco por isso mesmo dos mais completos, complexos e originais. Todo ele está cheio de alma e até da vida de Dostoiewsky...» 47 36 37 (O itálico, em «por isso mesmo», é nosso). Parece-nos que Régio, com toda a sua argúcia e finura críticas, se enganava singularmente ao articular a originalidade e complexidade do romance russo com a suspeita de desarrumo e «barbárie»... Dostoiewsky era um singular arquitecto do romance, que sabia pór o leitor em constante situacáo de perplexidade perante a escorre-gadia indefinicáo psicológica dos ipersonagens. Simples-mente, a opacidade e o aparente «mistério» destes sao-nos dados por intermédio de uma técnica muito clara, muito concertada, muito pensada e muito ar-guta — técnica que a Régio e aos outros críticos da presenga terá porventura esčapádo. Sej a como for, da-mos este texto como exemplo, apenas por ser sinto-mático da completa auséncia de fanatismo formalista entre os homens que, em 1927, apareciam a exigir, náo uma literatura formalmente «perfeita», mas sim, e muito decididamente, uma «literatura viva», surta de personalidades «de uma originalidade inevitável» 48, uma literatura que deveria propor-se como «grande meio de exprimir, expandir, comunicar o que em parte (...) parecia transcender a literatura.»49 Quem eram os homens que se juntaram á volta da presenga, que influéncias os dinamizavam, em que sub-solo mergulhavam as suas raízes culturais? Nascidos quase todos á volta de 1900 (Adolfo Casais Monteiro, mais novo, é de 1908 e Adolfo Rochá de 1907), eram, pelo menos, numa boa dezena de anos mais novos do que Fernando Pessoa (1888-1935). O periodo da sua estada em Coimbra cobre os anos que se seguiram imediatamente á I Guerra Mundial. Por essa altura, dominava os horizontes literários europeus o grupo da Nouvelle Revue Francaise, na qual brilha- vam os nomes de André Gide (o «contemporäneo capital*, de que falava um dos seus pares), Jacques Riviere, Paul Valéry, Jean Cocteau, Marcel Proust, Paul Claudel, Albert Thibaudet, conjunto que, náo sem per-fídia, era conhecido, nos meios artisticos parisienses, por «la bande ä Gide»... Num testemunho de que mais tarde fará anteceder as suas Oeuvres Completes, Roger Martin du Gard, um dos espíritos mais hones-tos, equilibrados e precisos de todo o grupo, referir--se-á assim ao agrupamento que veio a conhecer, em 1913, ano da publicagäo do seu romance ]ean Barois: «A f alange da N. R. F. oferecia-me, de repente, uma coisa muito diferente: uma acoľhedora família espiri-tual, cujas aspiragoes e pesquisas eram semelhantes äs minhas, e na qual eu podia ter lugar sem nada alienar da minha independéncia de espirito, — porque nada havia de menos doutrinário do que este livre agrupamento de amigos, muito especiosamente qualificado de «capela» por aqueles que os julgavam de fora» 50. Como a N. R. F., a presenga virá a ser também um «livre agrupamento» de amigos, sem nada de «doutri-nario»; como a N. R. F., virá a ser apelidada de «cape-linha fechada» por aqueles que a julgariam de «fora». A História repete-se. O grupo da N. R. F. nada tinha, realmente, de uma academia fechada e dogmática. Como mais tarde, a presenga, repetimos, o seu programa caracterizava-se pela auséncia de fronteiras. Näo era um grupo doutrinário; näo propunha uma «ideologia». Num texto que dedicava ä memoria do seu amigo Oscar Wilde, André Gide anotou uma observacäo que o dramaturgu irlan-dés um dia lhe fizera: «F£á duas espécies de artistas: uns trazem respostas, os outros fazem perguntas. Con-vém saber se se pertence aos que respondem ou aos que perguntam; porque aquele que pergunta, näo é 38 39 minca aquele que responde» 51. A gente da presenga, como a da N. R. F., era mais inclinada a perguntar, do que a responder. Para eles, a funcäo da arte era «por bem» um problema, mais do que resolve-lo. Em arte, observava Gide, näo há problemas de que a propria obra de arte näo seja a suficiente solucäo. Con-cluir, excedia o pelouro e a competéncia do artista: «O publico, hoje em dia», diria Gide prefaciando o seu romance, O Imomlista, «ja näo perdoa que o autor, depois de pintar a accäo, näo se manifeste a favor ou contra; mais ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se pronuncie franca-mente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Ofélia, por Fausto ou por Margarida, por Adäo ou por Jeová. Näo quero afirmar, é claro, que a neutralidade (ia dizer: a indecisao) seja a marca de um grande es-pírito; mas creio que a muitos dos grandes espíritos repugnou bastante... concluir — e que o facto de bem expor um problema näo pressupôe que ele já esteja resolvido» 52. Digamos, de modo resumido e brutal, que o artista, segundo o código libérrimo da presenga, näo aceitava mandates externos: acolhia apenas os que livremente escolhia por convirem ao seu génio proprio. Čada artista era pois livre de seleccionar as cadeias e as condicionantes que Ihe permitissem dar o melhor de si: nada mais oposto, num programa assim deli-neado, ao estreito e asfixiante espírito de escola. Por isso, os homens da presenga, ao recuperarem, divulgarem e promoverem os companheiros mais velhos do primeiro modernismo, faziam-no sem espírito de academia feohada ou de cenáculo reservado: «... nunca o autor» [Regio], observará um dia o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo, falando em seu nome, «nunca o autor abracou o Modernismo senäo como livre Academia de criacäo Uberrima. Nunca outra lei aceitou no Modernismo, nem nenhuma escola ou cor-rente modernista se lhe impôs crítica ou dogmatica-mente. Por criadores individuals teve sempre as grandes personalidades modernistas que o apaixonaram. Só por um Modernismo assim aberto lutou na presenga e tem continuado a lutar até hoje: pela liber-dade que pertence a cada artista original de forjar ele mesmo, e para si mesmo, as suas leis ou evasôes. Melhor: de se näo submeter senäo aos limites, regras, fugas, caracteres a que o submeta a sua propria natu-reza humano-artística. A substituigäo de uns dogmas estéticos por outros (e pouco importa que a uns chámem tradicionais e a outros modernos ou modernistas) näo lhe in t er es sa.» 53 (Este ultimo itálico é nosso). Esta submissäo do artista sobretudo äs leis do seu proprio génio, fora ja um dos dogmas de Flaubert que teve, pelo menos em Jose Regio, uma decisiva influéncia: «Ou plutôt ľ Art est tel qu'on peut le faire: nous ne sommes pas libres. Ghacun suit sa voie, en dépit de sa propre volonte», dizia o autor de Madame Bovary, em carta ä sua amiga George Sand54. Outro dos autores da presenga, um articukdo e profundo en-saísta e pensador aforistico injustamente esquecido, Jose Bacelar, repisará a mesma tecla: «Ora um dos seus [dos politicos] manejos aliciantes mais insisten-tes consiste justamente em chamar o artista — «ä vi-da». Vejamos porém com cuidado o significado que a isto se pode dar. (...) O artista só deve seguir um caminho: aquele que o seu génio interior lhe impöe. Acontece, porém, esta coisa «extraordinaria»: é que estes caminhos säo e seräo sempre de uma variedade infinita.» 55 O grupo da N. R. F. oferecia, pois, um leque de «sugestöes» exemplares: defesa da originalidade e do génio interior do artista, com o corolário da preserva- 41 cab da sua liberdade interior, sinceridade, com todas as harmonicas que a perturbam, tónica nos valores es-pecificos da arte (em arte as solucoes visadas sao solucSes estéticas e nao outras — o artista é humilde em relacao ás suas «competencias»), coragem muni-ciada numa hábil estratégia de avanco e recuo (a coragem é importante, mas «durar» nao o é menos...), curiosidade por culturas diversificadas e alheias (náo ter medo das «influencias» que reforcam os fortes e anulam os fracos) e, por fim, desejo de uma arte viva (Gide referir-se-ia ao mundo fechado e sufocante das academias simbolistas, acusando-as pela sua «falta de curiosidade e de élan, pelo seu pessimism© corrosivo e pela sua resignacáo»): uma arte alimentada por um tumulto interno sabiamente contido por uma disciplina eficaz. Vemos, por aqui, que nenhuma destas «sugestoes» passou despercebida aos homens da pre-senqa — vindo até a tornar-se os «leit-motivs» recor-rentes de um discurso estético1 singularmente articula-do, repetido, frequentemente clarificado e magnificado e, pelo que toca aos adversaries, distorcido, «reduzi-do», caricaturado e até'—aconteceu! —lido de per-nas para o ar... ^ ; O grupo de Régio, herdandb a «loucura» e o tumulto dos homens do Orpheu, entendeu, por outro lado, resistir e durar; á loucura e á fúria (componentes activas de uma maebethiana vida explosiva e sem orientacáo), iriam eles impor um algo que lhes resis-tisse e as domesticasse: uma disciplina, uma resistén-cia: «A. arte», dissera Gide, «está tao distante do 1 tumulto como da apatia» 56. Pelo menos, uma čerta arte. A um curto e devastador periodo de tumulto, pateada e arruaca, há que suceder um periodo de absorpeáo do vendaval. A disciplina exercida sobre o vazio nao é classicismo — é academia. Mas o siste- mático tumulto, sem nada que lhe resista, acaba tam-bém por nao encontrar ponto de apoio para as ener-gias que desencadeia — é o apocalipse sem herdeiros. A loucura torna-se feeunda quando segregar uma razäo que a contenha e «aproveite»: «Les choses les plus belles», dissera também Gide, «sont celles que souffle la folie et qu'ecrit la raison» 57. Por isso os homens da presenga aceitaráo algumas normas, algumas condicio-nantes: säo constrangimentos livremente recebidos, travöes conscientemente assumidos, disciplinas feeun-das e que eles fazem questäo de tornar estimulante-mente produtivas. Um obstáculo saudavelmente assu-mido pode transformar-se num desafio euforizante: «Le grand artisté est celui qu'exalte la gene, ä qui l'obstacle sert de tremplin» S8. Régio costumava dizer que acarinhava a ideia de eserever um ensaio intitulado «A cadeia da rima», com o qual pretenderia demons-trar que a rima ou qualquer outra condicionante apa-rentemente limitadora de liberdade tinham, no fundo, para o artista verdadeiramente eriador, o efeito contrario: ao tentar acomodar-se dentro dessas limitacöes •artificialmente impostas, o poeta acabaria por encontrar solucöes mais interessantes e feeundas do que aquelas que eventualmente acharia se trabalhasse em plena liberdade... A dificuldade acirra o engenho e refina a solucao. A rigidez do protocolo magnifica a perfeigáo do salto. A limitaeäo opressora liberta ener-gias insuspeitadas 59. Os eseritores da presenga näo esconderam nunca a dívida que ficaram a ter näo só para com o grupo da N. R. F., mas também para com alguns mestres do século xix, alias eriticamente valorizados por este ultimo grupo (entre eles, Dostoiewsky, de que André 42 43 Gide faria uma «leitura» profunda e subtil). Os pre-sencistas, na esteira de Gide, näo receavam as «in-fluencias». Nos verdadeiros criadores, a influencia nada cria, simplesmente desperta, dissera-o o mestre dos Prétextes: «Aqueles que receiam as influéncias e delas se esquivam, fazem a tácita confissäo da pobreza da sua alma. Nada de muito novo haverá neles a des-cobrir, visto que relutam iprestar a mäo ao quer que possa guiar-lhes a descoberta.» 60 Dotada de uma forte e decidida personalidade, a um tempo criadora e cri-tica, a presenga ia revelar-se ä altura de uma tarefa que o Orpheu iludira. O primeiro modernismo oscilou entre acirrar e ignorar o «chiadistico publico nacional» de que falava Eduardo Lourenco. Por outras palavras, o Orpheu näo mostrou possuir voeacäo pedagógica. Pessoa, Almada, Sá-Carneiro, atropelavam e fugiam, sorrindo em itálico. Os bardos órficos apossaram-se do publico como quem pratica um estupro chocarreiro. Veio a caber ao grupo coimbräo conquistar, através de uma meditada dialéctíca persuasiva, um publico, primeiro traumatizado, depois esquecido. O fogo de arti-ficio do Orpheu perdera-se, como já vimos, queimado na violéncia do proprio fulgor. Há na magia profunda desta gente, neste «guignol» desmedido, uma brutali-dade, uma brusquidäo, que se autoliquidam a curto prazo. Foi preciso chegarmos a uma geracäo que näo temia ser inteligente e cautelosa, para que os loucos de ontem se convertessem nos mestres de hoje: «A imaginacäo imita; é o espírito crítico que cria», insi-nuava o pérfido Wilde. Em termos de publico, o Orpheu foi uma invencáo da presenga: que o «construiu» e astutamente plebiscitou. «Assim, a geracäo da Presenga», resumirá Casais Monteiro, «coloca-se, desde o início, na esteira de uma «revelacäo» anterior e, em vez de reivindicar louros para si, pede-os, exige-os, para as grandes figuras que tinham criado, por altura da primeira guerra mundial, uma nova visäo da literatura, e aberto novos horizontes aos seus meios de expressäo. Este aparente «passo atrás», que é na rea-lidade um passo em frente, pois reintegra no seu de-vido lugar valores que tinham permanecido, por assim dizer ocultos, e sem eco, faz da presenga, dentro em pouco, o ponto de convergéncia de todas as tendéncias modernistas, que até entäo só tinham tido expressäo através de fugazes publicacóes — a comecar nos dois únicos números do famoso Orpheu —, ou através de outras, mais duradouras, mas de carácter literaria-mente ambíguo, como a Contemporánea, e sem que nenhuma delas exercesse acgáo crítica sistemática.»61 Tem-se por vezeš pretendido salientar, na presenga, com intuitos um tanto disfarcadamente pejorativos, a supremacia da faceta crítica sobre a faceta criadora. Cremos que já é tempo de se acabar com esta falsa antinomia, que visa opor dois tipos de discurso que na realidade se näo opôem. Sem irmos mais longe, re-cordaríamos Nietzsche, que chamou a nossa atencäo para o facto de que a obra de arte emerge, näo tanto do milagre de uma imaginacäo criadora, como do poder do julgamento que escolhe, ordena e tria os ele-mentos de que a obra se forma. A verdadeira crítica é um discurso vivo e criador sobre objectos também vivos que säo os livros — e nisso näo difere da poesia ou da narrativa. Dizer que a presenga foi mais crítica do que criadora só pode ter um sentido de ligeira dife-renciacäo, quase especiosa, mas, em todo o caso, sem componente pejorativa ou redutora. Textos de Bar-thes ou Steiner em nada ficam a dever, em termos de investimento criador, ao melhor dos textos sobre que tecem os seus discursos de tessitura musical (de aí que tanto autor lhes «resista»: eles instalam-se decidi- 44 45 damente no terreno do «criticado», envolvendo-os num discurso que os continua e magnifica) 52. Outras duas influéncias determinantes, pelo menos entre alguns elementos da presenqa, foram as de Freud e Bergson (sobretudo em Gašpar Simoes; Régio, em-bora de modo complexo, e apesar de sensível ao «fo-lhetim psicológico» de Proust — que muito admira-va — tendia a afastar-se da mágia do discurso bergsoniano, para se aproximar, sedento e seduzido, da «claridade» de António Sérgio: o autor de El-Rei Sebastiao considerava as objeccôes de Sérgio ä filosofia de Bergson como razäo suficiente para fazer do autor dos Ensaios urna glória internacionál, se näo fora o problema da lingua...) É, na realidade, Joäo Gašpar Simoes quem sobretudo justifica a afirmacäo* frequen-temente feita de que a -presenqa deu primazia ä intui-cäo sobre a razäo. É verdade, no que diz respeito ao crítico mais sistemático do movimento. Mas é'uma assercäo difícil de sustentar, se aplicada, por exemplo, a um José Régio, a um José Bacelar ou mesmo a um Adolfo Casais Monteiro, mas só até certo ponto no caso deste. Em Régio, sobretudo, — e cremos que foi ele o mais articulado teóríco do grupo — a capacidade de análise e de teorizacäo säo invulgares e näo só em criadores literários. Quem leu os textos ensaísticos do autor de Em torno da expressäo artistka (e, pelo que frequentemente se escreve, fica-se com a impressäo muito nítida de que poucos os leram de facto), quem conviveu com ele longamente, colheu a inesquecível impressäo que, por vezes, também dá Marcel Proust, de urna organizacäo intelectual perfeitamente compatí-vel com urna carreíra de cientista. A famosa cautela intelectual com que tanto se tem agredido o autor de Benilde, e que ele humildemente exibia, o receoso avancar de urna proposicäo mais generalizante, a reserva perante uma hipótese mais ousada, a sua täo peculiar estratégia de avanco e recuo, de prudéncia e expectativa, de receosa «aproximacäo», de consciéncia de um erro provável, tudo isto, que tanto tem chocado os nossos literatos destemidamente afirmativos e dog-matícamente «cientificos», säo, no fundo, ingredientes típicos de urna verdadeira metodológia científica de que os nossos «cientificos» vivem afinal täo distraí-dos. Embora qualquer livro elementar de introducäo ä ciéncia o possa também dizer, transcrevemos aqui, com gosto, e a propósito, este pequeno parágrafo de um texto célebre, de Bertrand Russell: «Embora isto possa parecer um paradoxo. toda a ciéncia exacta é dominada pela ideia de aproximacäo. Quando alguém nos disser que sabe a exacta verdade acerca de alguma coisa, po-demos com seguranga inferir que se trata de um horném inexacto. (...) É característico destas matérias nas quais algo se sabe com excepcional exactidäo, que, nelas, todo o observador admite, como provável, estar errado e sabe pouco mais ou menos quäo errado é provável que esteja.» 63 Por outro lado, continua o autor de The Anály sis o f Matter, «em matérias em que a verdade näo é averiguável, ninguém admite que haja a mais ligeira possibilidade que seja do mais ín-fimo erro nas suas opiniöes.» 64 Divertiu imenso a galéria a triste «boutade» de José Rodrigues Miguéis, ao dizer de Régio, um dia, que este era um dos mais prudentes autores da nossa literatura: como näo se referia, por certo, äs atitudes cívicas que Régio nunca hesitou em tomar, nem ä coragem de outra ordern exi-bida com a publicacäo de um romance como o Jogo da Cabra-Cega, nem ä coragem (e bem rara) que sempře ostentou em näo ter nem partido, nem exército 46 47 privado (o que o tornava fácil e corajosamente vulne-rável ao insulto de passagem— e, com ele, os seus camaradas da presenga), cremos que Rodrigues Miguéis se quereria referir, precisamente, ä lenta e caracterís-tica cautela com que Régio se movia nos seus textos crítico-ensaísticos. Se assim é, teríamos entäo que su-gerir a Miguéis que extrapolasse a «boutade» agressiva ao extremamente cauteloso Antonio Sergio (todo o verdadeiro ensaísmo se articula em termos de descon-fianga construtiva e toda a verdadeira ciéncia só se constrói em termos de deliberada «falsificagäo»65, isto é, de tentativa de demonstracäo acelerada da fal-sidade das próprias hipóteses que sucessivamente se väo avancando...) e a todos os textos dos verdadeiros ensaístas de todos os tempos. O espírito dogmático de muitos dos nossos literatos é realmente mais sonoro e de mais efeito, mas é nisso, precisamente, que o ensaísta José Régio foi um caso deveras singulár — e näo necessariamente para pior. Por outro lado, ao dizermos de Gaspar Simöes que era um crítico sobretudo intuitivo, também näo esta-mos a fazer um juízo sistematicamente redutor: pre-tendemos apenas caracterizar um tipo de mentalidade, com tudo quanto tem de positivo e de limitado. Nisto, de resto, creio estar G. Simöes na boa companhia de um dos mais penetrantes espíritos críticos modernos que sobretudo se distingue por um grande fulgor intuitivo: André Gide. Deles, dir-se-ia que possuem, em grau menos elevado, a faculdade de definir e de ana-lisar. Por outro lado, desde que um problema lhes capta a curiosidade intelectual, a ele se entregam com entusiasmo e, näo raro, com fulgor. Nesta medida, algumas das intuicöes do autor de O Mistério da Poe-sia marcaram data: referiria, por exemplo, algumas das suas páginas fulgurantes sobre Os Maias e sobre O Crime do Padre Amaro, no seu livro indiscutivel-mente importante dedicado a Ega de Queiroz66. Nestes textos perduráveis encontra-se, de modo vincado, a presenga invasora de Freud, com tudo quanto tem de estimulante, perigosamente engenhoso e, äs vezeš, es-corregadio. Os jovens que em 1927 se reuniram em volta da presenga andavam, em média, ä volta dos vinte e cinco anos e tinham, já antes, ensaiado o seu voo, com ou-tros empréěndiméntos. Entre 1923-1924 apareceram, em Coimbra, seis números da revista Bysancio, in-cluindo colaboracáo de José Régio (sonetos e textos de -prosa narrativa), Alexandre de Aragáo, Vitorino Nemésio, Antonio de Sousa, Alberto Martins de Car-valho, Joäo ďAlmeida, Fausto José dos Santos, Vasco de Santa Rita, etc. Conforme sublinha Fernando Gui-maräes 67, sente-se ainda muito forte, nesta revista, a influéncia do simbolismo, apesar de se ler num artigo de apresentacäo, da autoria de um dos dirigentes: «Bysancio näo significa de nenhum modo a sistemá-tica exclusäo da paisagem natural e formas nacionais pelo inármore dos cenários recompostos e nostalgia de poentes demorados e doentios. É mais um símbolo estético de uniäo do que é uma resultante comum. Mais um emblema, espécie de divisa heráldioa, que nos abstém da poluigäo mas näo restringe.» \- Quase pela mesma altura (1924-1925) aparece uma i outra revista, também em Coimbra: Triptico, dirigida \ por um grupo beterogéneo, do qual faziam parte j Afonso Duarte, Antonio de Sousa, Branquinho da j Fonseca, Campos de Figueiredo, Guilherme Filipe, Joäo Gaspar Simöes, Alberto Van Hoertre de Teles Machado, Angelo César e Vitorino Nemésio. Alem 48 49 destes, nela colaboraram ainda Teixeira de Pascoais, Luis Guedes de Oliveira, Jose Regio (que nela fez in-serir o trecho em prosa Maria de Magdala, capítulo de um romance de extraccäo flaubertiana), Aquilino Ribeiro, etc. Um dos seus directores, o entäo juvenil Gaspar Simöes, notará mais tarde, fazendo a bistória desses tempos literários, que «é nas suas páginas [de Triptico] que outra pléiade de gente coimbrä, alguma dela já madura — esse o caso de Afonso Duarte—, movida pela paixäo de dois jovens, revela, por urn lado, velhos sonhos, e, pelo outro, uma imatura voca-cäo literária. Nove números vém a lume dessa revista que tira o seu nome das seis páginas em que é im-pressa na disposicao gráfica de tríptico. Arte, poesia, crítica é o tríplice programa da publicacäo. Nela se acolhiam consagrados de facciosa ideologia e de exclu-sivismo erudito. Como puderam conciliar em täo aper-tado espaco gentes de täo oposta natureza é um enigma a que facilmente responde a extrema juventude dos seus dois principals esteios, um com dezanove anos — Branquinho da Fonseca—, o outro com vinte e um — o autor destas linhas [G. Simöes]» 6S. Foi a partir das personalidades reunidas em torno destas duas revistas que veio a sair, em 1927, o principal núcleo de colaboradores e os trés primeiros directores da revista presenqa, cujo primeiro numero veria a luz, como já dissemos, em 10 de Marco de 1927 (nesta data, Joäo Gaspar Simöes, um dos elementos fundadores, co-director e um dos mais activos e in-fluentes colaboradores ao longo de toda a vida da revista, estava fora de Coimbra — na Figueira da Foz — e só regressaria ä cidade universitária em Outubro desse mesmo ano). Parece näo restarem dúvidas, através de vários de-poimentos de camaradas de tertúlia, ter sido Jose Re- gio, já nessa altura, a personalidade mais destacada do grupo e a que sem dúvida maior influéncia exerceu na orientagäo da revista. O proprio Gaspar Simöes lisa-mente o reconhece: «Mais velho dois anos do que eu e quatro do que Branquinho da Fonseca, o autor dos Poemas de Dens e do Diabo, que vinha de imprimir, nos prelos de Vila do Conde, sob o seu proprio nome — Jose Maria dos Reis Pereira — uma famosa disser-tacäo de licenciatura, disfrutava sobre nos o ascen-dente da idade e da bagagem que recebera nos seus estudos da Faculdade de Letras. É certo que a certas positivas vantagens de ordern cultural ou escolar s'e associavam excepcionais qualidades de inteligéncia e uma precocidade particularmente revelada nas lides da crítica. I Jose Regio, alem da personalidade evidenciada nos seus versos, afirmava uma aptidäo intelectual tanto mais extraordinária quanto era certo encontrar-se de acordo com manifestacöes de arte e literatura menos-prezadas pelos espiritos com quem nós, jovens, tinha-mos até aí mais intimamente privado. De facto, enquanto Vitorino Nemésio, meu condiscipulo algum tempo na Faculdade de Direito, permanecia voltado para Anatole France e Aquilino Ribeiro (...),)o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo vivia no culto cle Dos-toiewsky, de André Gide, de Marcel Proust, de Apollinaire, considerando a geracäo do Orpheu por essa altura söbrevivente nas páginas da Athena, \ima gera-?äo de verdadeiros mestres.» 69 E acrescenta: «O meu encontro com Jose Regio foi decisivo para a minha vida literária. Se em mim havia a percepcäo dos valo-res artísticos que viriam a ser a base estética da nova geracäo, o certo é que os meus poucos anos, a minha nula precocidade, o isolamento a que estivera votado durante o tempo em que sondara a profissäo comer-cial (...) e a infeliz matrícula num curso cuja materia 50 51 me repugnava näo tinham sido favoráveis a uma cons-ciencializacäo de gostos e preferéncias latentes no meu subsolo intelectual, A aproximacäo com Jose Regio tornou-se-me, por conseguinte, capital. Embora já me tivesse passado pelas mäos o Crime e Castigo, de Dostoievsky, e Óscar Wilde, D'Annunzio, Nietzsche, Ibsen, figurassem na minha pequena biblioteca, auto-res que Regio considerava, o certo é que nem Proust, nem Gide, nem Apollinaire, nem Max Jacob, nem Jean Cocteau, mestres das novas tendéncias literárias, lá tinham ainda o seu lugar. A pin tura moderna já nós — Branquinho da Fonseca e eu —a admirávamos. Tríptico escandalizara Coimbra com os seus desenhos «modernistas». A verdade, porém, é que em literatura, eu, pelo menos, ainda näo descobrira os autores mo-dernos.» 70 E conclui, numa inequivoca homenagem de gratidäo ao exceptional companheiro e argonauta de aventuras estéticas e outras: «Foi com Regio que comecei a admirar os mestres que vieram a ser os nos-sos deuses tutelares.»71 [Note-se, entre paréntesis, que a posicäo de Jose Regio, em relacäo ä obra e ä personalidade de Gide, ir-se-á tornando gradativa-mente mais reticente e até... desconfiada. Enquanto a sua admiracäo por Marcel Proust se mantém intacta ou vai até aumentando, com Gide dá-se um evidente arrefecimento: Régio reconhecer-lhe-á sempře a finura crítica, a argúcia intelectual, a sedugäo da escrita; mas verá nele, menos e menos, um exemplo de verdadeiro criadór profundo e fecundo. ] A presenqa vai trazer uma outra contribuicäo: em yez de falar sobretudo e especificamente de literatura, 'ítratarä,'de modo^imáis geral e mais totalitário, de arte: «De facto», sublinha ainda Gašpar Simöes, «é por entäo que se tornám mais íntimas as relacôes que tacitamente sempře haviam existido, de resto, entre as artes plästicas e as artes literärias] Um filosofo como Alain, escrevendo o Systeme des Beaux Arts, consa-grava essas segundas nupcias da arte e da literatura, desavindas em grande parte do realismo para ca.» 72 E acrescenta, no mesmo trecho: «E e assim que o hörnern, com toda a sua complexa trama de razäo e instinto, de alma diurna e alma nocturna, entra na expressäo artistica — literatura, pintura, escultura, müsica, teatro, cinema, este, entäo em pleno ritmo ascencional no piano do silencio, o seu mais legftimo piano—, com a soma global das suas virtualidades visiveis e invisiveis, naturais e sobrenaturais, conscien-tes e inconscientes.» ra_j? A revista inclui, de facto, um vasto espectro de preocupacöes e realizagöes, anunciadas, de resto, pelo toque de clarim do primeiro artigo programätico de Jose Regio: alem de poesia, publica pecas de teatro (Branquinho da Fonseca, Jose Regio, Almada Negrei-ros, Raul Leal), contos ou excertos de romance, arti-gos sobre cinema (da autoria de Jose Regio e de Manuel de Oliveira), artes plästicas (Jose Regio, Diogo de Macedo e Antonio de Navarro), müsica (Fernando Lopes Graca: «Com ele entra o gosto melömano nos arraiais da geragäo»74), literatura, filosofia e ensaio (Delfim Santos, Jose Marinho, Raul Leal, Mario Saa, Jose Bacelar, Jose Regio, Joäo Gaspar Simöes, Adolfo Casais Monteiro, Albano Nogueira, Guilherme de Cas-tilho, etc.).1A partir do n.° 4, comeca a publicar, nas suas päginäs, textos dos futuristas: Raul Leal, Mario Saa, desenhos de Almada Nogueiros, poesias de Fernando Pessoa, Älvaro de Campos, Mario de Sä-Car-neiro: «Aos jovens de Coimbra juntavam-se os mestres de Lisboa. A coesäo estava feita»,75 notava Gaspar Simöes, logo acrescentando: «Agora restava proceder ao trabalho mais importante — a revisäo de valores 52 53 que fixaria, de uma vez para sempře, a posicäo crítica da folha e, consequentemente, da geracäo, no quadro das categorias literárias nacionais».76 i Durante o periodo, extraordinariamente longo, de treze anos (longo para uma revista com as caracterís-ticas que tinha a presenga), o grupo^ícoimbráo vai pór no.seu activo um impressionante leqíae^de realizagöes: reššusfcita, impöe e consolida a geracäo do primeiro modernisms; metamorfoseando os seus componentes de «clowns» em'mestres (num «arrazoado lirico» de 1928, Regio atira ao leitor, provavelmente perplexo, esta amostra de apologia do futurismo^dando-a como «excitante a que [ele] pense [...1 e julgue [...]»: j«Ö Futurismo ěxige a liberdade das palavras! proclama a pintura simultänea! magnifica o lirismo da forca, da saude brutal, da alegria animal, da velocidade, do sol! O cubismo descobre novas harmonias de cores, novas arquitecturas de linhas, novos jogos de volume—refaz o mundo pela cabeca dos cubistas! O expressionismo desencadeia sobre a natureza todos os sonhos, febres, änsias e tormentas do hörnern interior. O Dadaísmo declara desprezar a Arte, reduzindo-a ä revelacäo espontänea do hörnern primjtivo. O ultra-realismo afasta toda a realidade realistalMas teorias sucedem-se, combatem-se, negam-se, arriqailam-se, satirizam-se— nascem num dia, morrem num més... Todas as cons-trucöes dogmáticas, todas as afirmacöes generaliza-doras ruem.» 77); um pouco na esteira do Julien'Benda, da Trahison des clercs, luta com uma coragem que os seus principais colaboradores manteräo pela vida fora, contra todas as formas de servilismo intelectual, contra o «compadrio de partido» 78 ou «de capela» 79, que infestava as letras nacionais («Cada facgäo poli-tica e cada capela jornalistica dispunha dos seus padroeiros, tinha os seus devotos», dirá mais tarde Joäo Gašpar Simôes80.); propöe e consagra um nucleo de poetas, romancistas, contistas, dramaturgos, que renovam o cenário das letras nacionais, através de uma «curiosidade» viva pelo hörnern (e näo só psicológica...): Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Irene Lisboa, Jose Marmelo e Silva, Vitorino Nemésio, Edmundo de Bettencourt, Antonio de Navarro, Olavo d'Eca Leal, Pedro Hörnern de Melo, Saul Dias, Francisco Bugalho, Carlos Queirós, Fausto Jose, Alexandre de Aragäo, Antonio Botto, Alberto de Serpa...; cria as «edicöes presenga», para as quais o autor entrava com o dinheiro e a revista com o prestígio gradativa-mente crescente e cobicado (exemplos de edi?5es presenga: Posigäo de Guerra, de Branquinho da Fonseca, Biografia, de Jose Regio, Temas de Joäo Caspar Simöes, ...mais e mais, de Saul Dias, Amores Infe-lizes, de Joäo Caspar Simöes); mostra um Interesse vivo e crítico pelo cinema, como arte, desde o primeiro numero: «Foi ela», nota Gašpar Simôes, «a primeira revista de artes e letras que em Portugal concedeu ao cinema honras de verdadeira arte».81 (Logo no primeiro numero da revista, Regio afirma convicta-mente: «Hoje o Cinematógrafo já é Arte. Já cita Obras-Primas. Já tem artistas habilidosos, talentosos ou geniais. Já é lícito, pois, tentar definir a Arte dum Mosjoukine como se tenta definir a dum Poeta ou dum Pintor.» 82); comeca a publicar uma série de Tá-buas Bibliográficas dedicadas aos corifeus do moder-nismo (Sá-Carneiro, Pessoa , Raul Leal, Mario Saa, Antonio Botto, Almada Negreiros); a propósito de uma homenagem oficial prestada em Coimbra ao poeta menor Antonio Correia de Oliveira, a revista publica um comentário áspero e inquisitivo, sobretudo por se ter a Universidade associado äs elebracöes, decretando feriado83; publica Cartas Inéditas de Antonio N obre, 54 55 os Indícios de Oiro de Sá-Garneiro, estabelece, gragas aos bons ofícios de Casais Monteiro, uma efectiva e náo oficiosa aproximacao com escritores brasileiros de vulto, que se tornám colaboradores da presenga; agride com coragem e coeréncia, em relacáo á sua filo-sofia estética de sempře, a política de dirigismo cultural do Estado Novo; abre-se a colaboradores que, num futuro proximo, mudarao de campo, passando a defender valores de arte menos compatíveis com o alegado «individualismo» e «formalismo» presencista: Joáo José Cochofel, Mario Dionísio, Fernando Namora... Organiza exposigóes de pintura, concertos e conferén-cias literárias.84 Polemica com O Diabo, vé crescer o seu prestígio na razáo directa, ora de uma hostili-dade simplesmente mesquinha, ora de uma inevitável oposicao estético-ideológica que os tempos também jpromovem e, em parte, justificam: «Colaborar na Presenga era a suprema honra para cada jovem que surgia na Lusa Atenas...», dirá Antonio Ramos de Almeida, um dos críticos do neo-realismo.85 O prestígio tem o seu preco: á volta da presenga comecava a rondar o inevitável cortejo composite de malícias, invejas, calúnias e, também, de um genuíno desejo de emancipacáo e evolucáo. Comeca-se a falar em academia, em anquilosamento, em reaccáo... Estamós em 1935. Já cinco anos antes se dera uma cisáo interna dentro do -grupo presencista: numa carta de 16 de Junho de 1930, Adolfo Rochá (Miguel Torga), Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca invocam um pretexto nebuloso e afastam-se da revista. O pretexto dado era ridículo e mal articulado: a «perspectiva dum tipo único de liberdade» que os signatários imputavam como destino inevitável de quem continuasse amarrado ao grupo, é facilmente desmentível pelos actos e pelos textos. O incidente tem, em si, pouca importancia, em termos de história da literatura, ao contrario do que pensa Gaspar Simoes 86 (que, de resto, o analisa em termos de miu-dezas psicológícas de comportamento humano); mas é significativo como indicacäo, em escala menor e interna, do que irá dar-se, em escala maior e mais visí-vel, näo muito tempo depois. A «emancipagäo» de Torga, Branquinho e Bettencourt, a nível de história de «mestres e discipulos», é pura «petite histoire» sem grandeza e sem verdade; mas, a nível de urna genuina inquietacäo de quem visa respirar outros ares e abrir-se a outras preocupacôes, é um sintoma omi-noso e um sinal que convém «1er» com atencäo e sim-patia. Em 1935, os «sinais» säo mais abundantes e mais evidentes. Regio reage: «É natural que no decor-rer de nove anos a presenga tenha variado um pouco os seus pontos de ataque, os seus campos de guerra, os seus estilos de luta, as suas preocupagöes de porme-nor. Ou sereis vós, prezados camaradas, vós os dina-mitistas, vós os avangados, vós os desempoeirados de espirito, (pois com outros defuntos näo gasto eu cera...) que a um tempo acusareis a presenga de estar paráda e de näo ter parado?! Näo, decerto. Inconse-quencias e limites desses, tém-nos aqueles espiritos retrógrados contra os quais todos nós vimos lutando... Para quem der ä presenga o indispensável mínimo "de simpatia e compreensäo, aparecerá natural que ela tenha evolucionado um pouco durante os seus nove anos de existencia, sem deixar de essencialmente con-tinuar sendo o que sempře foi. E aparecerá natural que, por vezes, os seus numeros sejam desiguais, uns melhores outros piores, uns com mais versos outros com mais pancada, uns com mais prosa artistka outros com mais prosa crítica, uns com colaboragäo de A e B outros já sem a colaboragäo de A e B... Säo vicissitu- 56 57 des da vida de qualquer revista, sem atravessar as quais nenhuma revista vive: mormente uma revista portuguesa deste genero. Dai-vos ao trabalho de con-frontar os primeiros nümeros da presenga com os mais proximos: Se nada vos cega, tereis de verificar que näo evolucionou para pior. Agora, que a presenga näo e o que poderia ser?, que tem muitas deficiencias?, que näo atinge o ideal? Oh! plenissimamente de acordo! Quer isso dizer que seja um cadaver? Näo... ninguem se incomoda com as doengas de um cadaver. Quer dizer que se pode fazer melhor? Quer. Pois bem: fazei vos aparecer uma revista superior ä presenga. Dai-lhe uma expansäo como a presenga nunca teve. Descobri-lhe colaboradores que a presenga nunca descobriu. Abri-lhe horizontes que a presenga nunca sonhou. AUmentai-a com sacrificios que a presenga nunca nos mereceu. Erguei-a a um piano de' sonho e combate que a presenga nunca indicou. Assegurai-lhe uma existencia a par da qual nada seräo os trabalhados nove anos da presenga... (Vos tendes razäo! O que e a presenga para o que hä a fazer? Fazei, prezados camaradas! fazei!) E depois de ter algado a sua taga a esse triunfante rival, presenga morrerä contente. Ora ate lä näo deveis esbanjar energias que vos viräo a ser necessärias: näo deveis incomodar-vos com a presenga da nossa presenga. Dai-nos licenga de humilde e provisoriamente existir.» 87 A reacgäo de Regio era firme, articulada, maliciosa sem baixeza, — e constituia um desafio construtivo. Era ja o famoso e saudävel: «Demolissez-moÜ' [Et faites-mieux!]» que anos depois Antonio Sergio atira-ria ä face de Antonio Jose Saraiva e do seu grupo... A verdade, porem, e que a sua lucidez pressentia que um vento de inquietagäo e renovagäo gradativamente mais forte comegava a soprar. Em carta a Joäo Gaspar Simöes, de 21 de Margo de 1936, Regio observa: «Uma geragäo comega a mexer-se contra nós, é certo — mas contra o que em nós é melhor só pode mexer-se pelo que nela é pior. O resto... säo defeitos dela e nossos. O resto é o inevitável fluxo e refluxo das geragôes, o jogo das paixöes melhor ou pior disfar-gadas, a luta dos interesses e o struggle for life, a história de sempře — o movimento cruel e fecundo. Erguer-se-äo vários contra nós, como nós nos ergue-mos e ergueremos contra vários... Mas vá cada um de nós f azendo o mais e o melhor que pode, vá cada um de nós procurando atingir o seu instante de eter-nidade, que acima do movimento temporário há qual-quer coisa de eterno.» 8á Denunciando embora o que haveria de mesquinho ou demasiado humano em certos ataques, Régio era forgado a reconhecer no horizonte o «inevitável fluxo e refluxo das geragôes» e, maís do que isso, «o movimento cruel e fecundo»... Os primeiros ataques partiräo simultaneamente do sema-nário lisboeta O Ľiabo e da revista portuense Sol Nascente. Nem todos säo articulados cle modo con-vincente. Até muito mais tarde, čerta crítica neo--realista (näo toda, felizmente) continuará a mastigar chavôes esvaziados de conteúdo, aludirá a «imobili-[zagäo] num intelectualismo sem saida» (näo se sabe bem o que isto seja), a «principios caducos» (quais?), a «uma literatura confinada em si propria» (quando defendeu a presenga tal coisa?), a «analises minucio-sas sem outro objectivo além dum esteticismo esteril», a um «individualismo estetizante»... Mas, para além deste estrebuchar linguístico e desta gaguez filoso-fante, algo de genuino e forte e voluntarioso comegava a emergir. Alguns dos melhores e mais articulados representantes da corrente neo-realista reconhe-ceräo o servigo prestado pela presenga, «útil pela 58 59 agitacäo provocada, pelo seu esforco de arejamento, pela hostilidade a um intelectualismo amorfo» 89, mas notaräo que o horizonte respiratório dela «näo podia já corresponder äs realidades instantes de um mundo que acabava de ser experimentado na guerra de Espa-nha para mergulhar numa outra guerra ainda mais reveladora da urgencia de certos problemas e do quanto todo o homem neles participaya.» wfA pressäo envotvente acabaria por ter repefčussoes internas. Reagmdo embora, o grupo, geograficamente dividido, enervado por razôes múltiplas (de que o apocalipse internacionál pendente e, em Espanha, já ensaiado, näo devia ser pequeno, factor), i^ado e teň¥óv"pox treze anos de resisténčiá ao dé^aste;/Mänceiro e ä usura que a independéncia ineyitavelmente segŕégä, désapbiäďo dos partidos e exércitos paíticuláres^ a que aludia Sainte-Beuve e portanto vuTneráyel ao «insulto de passagem»,—ja presenqa estava ä mercé do pri-meiro incidente interno que a viesse definitivamente desagregar. O incidente surgiu sob a forma da publi-cagäo, no ultimo numero da revista,„ _de „um texto de Gašpar Simôes, Diálogos inúteis. Casais'Monteiro, co-director da revista, desde 19317 após a «dissidén-cia», considera-os «reaccionários» e escreve urna res-posta que Régio se recusa a publicar na revista, do mesmo passo que mostra, em relacäo ao seu camarada, uma atitude mais conciHatoría do que aquela que desejaria Gašpar Simôes. A cisäo estava consumada. Francisco Bugalho, dedicado amigo do grupo, tenta salvar a revista. Mas Régio sentia-se cansado e atrajdo por outro tipo de tentagôes, a menor das quaís näo era a sua obra pessoal. Um grupo de autores aderen-tes do movimento rival e ascendente — neo-rea-lismo — ainda dirige aos trés directores da presenqa uma nobre carta de incitamento a que se näo deixe morrer uma revista que sempře tinham visto «defen-der pela pena de cada um dos seus directores a serie-dade e sinceridade artisticas acima dos conflitos pessoais e das escolas hterarias».91 Tentativa identica fez um grupo de escritores mais ligados ä presenqa: Guilherme de Castilho, Jose Marmelo e Silva e Joäo Campos, que amargamente comenta: «Um ideal comum de beleza, lucidez, amplificaqao, cultura näo fconseguiu vehcer, parece, os desencontros pessoais e conflitos particulares de todos ou de alguns dos seus directores.»92 Era verdade; mas näo era toda a verdade. Havia também uma história de cansaco e de usura nervosa. E näo se podia dizer que a in-fluéncia da presenqa cessära com o desaparecimento fisico da revista. Noutros lados, Regio, Casais, Gaspar Simoes, Castilho, Nogueira (Albano), Bacelar, iriam fazer sentir a influéncia do seu magistério de independéncia crítica. Agora, ainda mais desarmados. Muitas vezeš, legitimamente vulhéravels." E, sobre-tudo, a obra criadora de alguns iria deixar uma marca perdurávér na superfície visíyel de história literária portuguesa: uma obra de audaciäs dominadas, de aven-tura,rque uma ordern yigjlantementé pqlicia, de pru-déňcías' meticulosamenté' subvéftidaš, '<3e' superficies que, äs vezeš, tranquilamente escondem a fundura dos abismos. > <'■< 60 61