1 7° Encontro Nacional da APP: Saber Ouvir/ Saber Falar A contríbuigäo do estudo dos sons para a aprendizagem da lingua Resumo O estudo da fonética e da fonologia interessou desde muito cedo os linguistas, tanto nos seus aspectos gerais como na sua concretizacäo numa lingua particular. A partirdo estruturalismo, a linguística moderna estendeu as suas análises por outros domínios como a morfológia e a sintaxe, tendo as análises sintácticas captado as atencöes dos estudiosos nomeadamente com a emergéncia da linguística generativa. Nas ultimas décadas, o estudo dos sons conheceu urn desenvolvimento especifico com a atencäo dada ä prosódia na relacäo que possui com outros domínios da lingua, e com a interrelacäo do nivel dos segmentos com o nível suprasegmental. Nesta conferéncia procurarei apontar os aspectos mais relevantes da fonética e da fonologia do portugués quer para a aprendizagem da ortografia (que, no caso do portugués, é de natureza fonológica), quer para a produgäo e compreensäo da lingua oral (o conhecimento, mesmo inconsciente, do sistema fonológico permite urna antecipacäo do significado na relacäo de comunicacäo), quer para a utilizacäo da prosódia adequada ä leitura em voz alta ou apropriada äs diversas circunstäncias do discurso oral. As aplicacöes destas perspectivas teräo em conta a aprendizagem da lingua portuguesa como materna e como näo materna. 1. Introdugäo Um Congresso Nacional de Professores de Portugués que tem como terna central o oral - Saber Ouvir, Saber Falar - näo pódia deixar de dar um lugar de relevo ao estudo dos sons. Coube-me a agradável tarefa de vos falar dos sons da fala e dos sons da lingua, ou seja, da fonética e da fonologia. É com muito prazer que tentarei apresentar alguns argumentos em favor da contribuicäo destas areas da linguística para a aprendizagem do portugués. Quero iniciar esta conferéncia com a referencia a um aspecto da história da linguística que mostra como o estudo dos sons ocupou, de modo quase exclusivo, os primeiros trabalhos considerados científicos nesta area do saber. É habitual considerar que foi na primeira década do século XIX que a linguística adquiriu carácter científico. A preocupacäo de estabelecer a origem das línguas e a relacäo genealógica entre elas fez com que a comunicacäo de William Jones, apresentada em 1786, sobre o parentesco entre o sänscrito e as línguas grega e latina, e a proposta de existencia de urna origem comum para essas trés línguas e para outras línguas europeias, fosse recebida com 2 entusiasmo e desse nascimento ao conceito de línguas indo-europeias. Alguns estudiosos europeus, nomeadamente alemäes, iniciaram um estudo comparado de várias línguas que poderiam provir de um mesmo tronco. Florescia entäo o método comparatista em áreas das ciéncias naturais mais avancadas. Os linguistas aplicaram esse método ao seu proprio campo de análise e assim nasceu a linguística comparativa. A pouco e pouco, a análise comparada das línguas foi abrindo caminho para o estabelecimento da relacäo genealógica entre elas. Também essa perspectiva se sintonizou com os métodos científicos contemporäneos criando a linguística histórica. E o que se comparava entre as línguas? Basicamente, comparavam-se as vogais e consoantes existentes nos text os das várias línguas consideradas indo-europeias (algumas delas já desaparecidas) e procurava-se propor um sistema fonético do indo-europeu. O Padre Nosso foi um dos principais textos que permitiu a comparacäo entre 55 variedades do indo-europeu como o Céltico, 0 Germänico, o Itálico, o Albanés, o Grego, o Báltico, o Eslávico, o Arménio, o Iraniano, o Indo-Ariano. As leis fonéticas éram consideradas responsáveis pela mudanca das línguas. Lembre-se a lei de Grimm que mostrou, entre outras relacóes fonéticas, a relacäo regulär entre palavras comecadas por
] em Latim e de optimo.
Em todos estes casos o lexico ortografico pode ser util pois a ortografia das palavras exige a sua memorizacao.
3.6. Um som pode serrepresentado por diferentes grafias
A nao correspondencia biunivoca entre letra e som permite que o mesmo som seja representado de diferentes maneiras. Um dos problemas que surge com frequencia na aprendizagem da ortografia e o da representacao das vogais nasais. Em Portugues, a nasalidade das vogais representa-se com um til ou com uma consoante nasal a seguir a vogal. Veja-se o quadro abaixo:
p] em Inglés (como em freis e three), concretizando a passagem de urna comparacäo entre as línguas para a história das línguas. Assim, a árvore genealógica das línguas indo-europeias foi construída a partir dos vários sistemas fonéticos dessas línguas e dos paradigmas morfológicos determinados pela alternäncia de vogais e consoantes.
Mas até agora, no que disse, apenas estiveram em causa as letras, näo os sons a que elas correspondiam, visto tratar-se, na sua quase totalidade, de línguas mortas, desaparecidas ou estudadas através da escrita. A par dos trabalhos desses linguistas a que fiz referencia, a criacäo dos instrumentos que visavam o estudo do som tornaram possível realizar análises fonéticas do ponto de vista articulatório (e em alguns aspectos, acústico) e permitiram que se estudassem e comparassem os sons utilizados num vasto leque de línguas. Nas primeiras décadas do século XX, os linguistas russos que criaram o Círculo Linguístico de
1 Neste texto as letras säo representadas entre ángulos (< >), os fonemas entre barras oblíquas (/ /), e os sons entre colchetes ([ ]).
3
Praga (Trubetzkoi, Jakobson, Karcevski) e que tinham um extenso conhecimento de línguas eslavas e caucásicas, desenvolveram estudos comparativos dos sistemas fonéticos dessas línguas, distinguindo entre os elementos do sistema, ou fonemas, e os sons que se diferenciam por mera variacäo fonética: os fones ou variantes. No primeiro caso, o dos fonemas, trata-se de diferencas entre duas ou mais vogais ou consoantes que, ao alternarem, provocam uma alteracäo de significado, como sucede em portugués com /t/ de tom e /d/ de dorn; no segundo caso, o dos fones, trata-se de uma variacäo fonética na realizacäo de vogais ou consoantes que, ao alternarem numa palavra, näo levam ä alteracäo do seu significado, como sucede em portugués com a pronúncia de um /t/ quer seja aspirado, [th], ou näo aspirado, [t]. Esta diferenca, apresentada nas obras dos linguistas do Círculo de Praga, transportou para a area dos sons a dicotomia fundamental estabelecida por Saussure entre lingua e fala e criou a distincäo que ainda hoje perdura entre fonologia e fonética. Em suma, a fonética descreve os aspectos articulatórios e as propriedades físicas de todos os sons que ocorrem na producäo linguística e a fonologia estuda os sons que tém uma funcäo na lingua e que permitem aos falantes distinguir significados.
O estudo da lingua falada foi precedido, na Europa ocidental, pela descoberta da importäncia que tém os dialectos para o conhecimento da variacäo linguística sincrónica e diacrónica. A dialectologies, também designada nos primeiros tempos como "geografia Linguística", comecou a desenvolver-se nos Ultimos anos do século XIX. Através dos estudos dialectais e, sobretudo, pela atencäo especial que mereceram as variacöes fonéticas, muito se pode conhecer do contacto entre comunidades linguísticas, sendo possível esclarecer, em a Ig uns casos, aspectos obscuros da respectiva história. Um exemplo do portugués é o conhecido s be/rao, o [§] ápico-alveolar de
certas regiöes beiräs e transmontanas, herdeiro directo da sibilante latina que tinha essa pronúncia, diferente da consoante dental [s] que é a única usada hoje no centro e sul de Portugal. Essa consoante dialectal mantém-se, portanto, como um vestígio da colonizaeäo latina e uma marca do carácter conservador da regiäo.
4
Até este momento apontei apenas, de modo muito sumário o interesse com que a linguística tem olhado para o estudo dos sons e a forma como a sua análise pode iluminar certos aspectos da história e do funcionamento interno das línguas. Chegou a ocasiao de cumprir o prometido no título da conferéncia: em que medida o estudo desta area fundamental da lingua pode contribuir para o ensino do portugués (o mesmo é dizer, de qualquer lingua falada e ensinada).
2. A aprendizagem da cidadania tolerante
Antes de tudo convém chamar a atencao para o facto de que o estudo da fonética e da fonologia de uma lingua é a descoberta do funcionamento da sua face exposta, daquele nível a que primeiro temos acesso quando ouvimos alguém falar. Muitas observacóes feitas por pessoas desconhecedoras da linguística incidem no domínio dos sons e constituem juízos de valor. Para a maioria dos falantes/ouvintes, as línguas, mesmo desconhecidas, sao mais ou menos "agradáveis", algumas sao mais "cantadas", outras mais "ásperas".
Por outro lado, também convém lembrar que, sempře que se trata de uma comparacao entre dialectos, sociolectos ou variedades nacionais de uma única lingua, os ouvintes diferenciam os falantes por possuírem este ou aquele "sotaque" e exercem muitas vezeš julgamentos de valor: certas pronúncias sao desprestigiadas, outras risíveis, há quern considere que aqui se fala "bem" ou "correctamentě" e que ali a lingua é "deformada" ou "incorrecta".
Nenhuma destas opinióes tem fundamento linguístico (veja-se o que foi dito sobre a pronúncia latina do chamado s be/rao). Essas opinióes tem como origem o confronto com os sons a que os nossos ouvidos estao habituados ou baseiam-se em julgamentos de carácter social. Alias, nao há línguas melhores do que outras, ou mais aptas a transmitir certas nocóes ou conceitos. Já há muitos anos que pesquisas realizadas em sociolinguística mostraram que tanto as variedades dialectais quanto as variedades sociais ou nacionais possuem idénticas capacidades, em termos linguísticos, para expressar totalmente o que pretendem comunicar os falantes da respectiva variedade. A norma que se adopta em relacáo a uma determinada lingua tem apenas, a seu favor, o prestígio social que Ihe advém da utilizacáo na escola, nos meios de
5
comunicacäo social, no ensino como lingua estrangeira. É deste ponto de vista que deve ser valorizada a sua aprendizagem, e näo de outros pontos de vista exclusivamente linguísticos. Este é um trabalho que compete ao professor educador.
Näo podemos, por outro lado, esquecer que actualmente os alunos, em Portugal, näo manifestom apenas variacôes linguísticas dialectais ou sociais. Se na escola portuguesa se falam hoje cerca de 100 línguas diferentes, e se os meninos que näo tém o portugués como lingua materna recebem influéncia das respectivas línguas maternas na pronúncia da lingua portuguesa essa variacäo näo pode ser ridicularizada ou desprestigiada. Quando um aluno cabo-verdiano näo distingue fonologicamente entre o /r/ de pára e o /r/ de
parra, séria bom que o professor chamasse a atencäo para a existencia de diferentes sistemas fonológicos, e mostrasse que os alunos Portugueses podem ter, igualmente, dificuldades em pronunciar alguns dos sons que funcionam em outras línguas, como por exemplo, o /u/ palatalizado, do Frances ou o /x/
retroflexo do Inglés. Näo nos competirá neste domínio passar a mensagem de urna cidadania tolerante?
3. A Fonética e a Ortografia
3. J. Sistemas de escríta. Variagäo fonética e unificagäo ortográfica
Vejamos agora a contribuicäo da fonética e da fonologia para a aprendizagem de um aspecto da lingua escrita, a ortografia, que adquiriu um valor social importante e por isso tem um lugar específico na aprendizagem de urna lingua.
Como sabemos, nem todos os sistemas de escrita säo alfabéticos - ou seja, nem todos se baseiam nos sons mínimos da fala utilizando, para os representor, símbolos que constituem o alfabeto, isto é, as letras2. Existem outros sistemas de escrita como os ideográficos ou logográficos (de que é exemplo o chinés) que torna m por base o morféma ou a palavra e, em consequéncia, necessitam de possuir um numero muito elevado de caracteres visto que, no limite, cada palavra exige um carácter diferente - embora seja possível, como se compreende, combinar vários caracteres. Os sistemas
2 Além do alfabeto latino usado pelas línguas romänicas ou germánicas, existem outros alfabetos como o cirílico, o grego, o árabe ou o hebraico.
6
alfabéticos säo, contudo, mais económicos e maleáveis já que o numero de símbolos necessário para representor as palavras torna-se muito mais reduzido do que nas escritas baseadas na palavra. Por esta razäo - e por outras de carácter sócio-cultural - os sistemas alfabéticos säo actualmente utilizados por um grande numero de línguas. No entanto, estes sistemas obrigam a um esforco de abstraccäo para distinguir os sons mínimos que constituem uma palavra e que säo representados na escrita pelas letras, visto que esses sons ocorrem no contínuo sonoro da fala sem divisäo entre eles. Na verdade, quem foi alfabetizado no início da escolaridade nunca tomou consciéncia dessa dificuldade quando aprendeu a escrever.
Além deste aspecto, a aprendizagem da escrita ainda inclui urna outra dificuldade que decorre do facto de cada palavra apresentar, na fala, urna variacäo de formas, ao passo que na escrita apenas pode ter urna forma gráfica, aquela que se ensina na escola e que é socialmente aceite: a sua ortografia.
O conceito de ortografia näo é natural mas convencional, tendo dado lugar, desde há muito, a vivas discussôes que pôem em confronto perspectivas conservadoras e inovadoras. Pertence a estas ultimas a chamada 'ortografia fonéticď - urna ortografia que pretende aproximar-se tanto quanto possível da oralidade. Os defensores da ortografia fonética - que teve relevo, em Portugal, na segunda metade do século XIX - produziram textos com títulos como Escrítura repentina. Nova tentativa de revolugäo orthographical (J.A. de Sousa, 1853); Escrípta sem letras ou novo systema ďescrípta syllabica (Francisco Xavier Calheiros, 1866) e advogavam urna normalizacäo absoluta da escrita com base no sistema 'um som - urna grafici'. Porém, esta tentativa näo vingou, e o conceito de ortografia manteve-se conservador e unificador em relacäo ä variacäo fonética.
A forma ortográfica única representa as diversas pronúncias da palavra: dialectais, sociais ou de registo formal ou informal. Vejam-se as diferentes pronúncias da palavra escrever exemplificadas e analisadas por Luis Filipe Barbeiro (nesta transcricäo fonética usa-se o AFI):
ortografia ) ou aspectos lexicais ligados ao percurso histórico das palavras {passo com dois