se respondiam nela a noite da minba ira e a noite e furia do mundo. For isso a escrevi, sent discussao, surdo de angustia, durante urn mis seguido. Forem, agora que a releio, urn pouco me surpreendo, ao ver que era isto que eu tinha afinal para contar. Nada mats tenho a dizer. Lembrarei ainda, todavia, que se a minba narrativa divergirnum ponto ou noutro do livro atrds referido, sou eu, como e dbvio, quern estd na razao. A. Lopes I Tomei o comboio na estacao de Castanheira, depois que o Calhau deixou de me abracar. Foi ele que me trouxe no carro de bois de D. Estefania, em cuja casa, como se sabe, me talharam o destine Minha mae veio ainda a igreja, pela madrugada, ver-me partir; mas sentindo-me tao distante como se eu fosse preso, como se eu ja pertencesse a um mundo que nao era o seu — mal me falou. Por seu lado, D. Estefania, defendendo a gravidade ate ao ultimo instante, olhando a minha mae do alto das conveniencias, disse-me brevemente que fosse na paz de Deus — e desapareceu. Sozinhos no carro, Calhau abismava-se no grande silencio da manha. Apenas de vez em quando, emergindo da solidao, mas fixo ainda na radiacao de tudo, dizia coisas naturais da terra e das sementes, ou perguntava de novo a que horas era o comboio. — As nove — respondia eu. — Chegamos a tempo. E outra vez se calava, de capote as ofelhas, sentado na borda do carro, com as pernas suspensas. 10 11 Mas logo depois murmurava de novo: — Tens sorte. Olha eu que nunca pus os pes num comboio. Já o vi trés vezes com esta. Mas nunca lá pus os pes. Tens sorte. A névoa da madrugada desprendia-se dos campos, ia envolvendo a montanha. Dobrado de frio, o queixo nos joelhos, a saca da roupa ao lado, eu sentia-me quase feliz, mas de uma estranha felicidade inquietante. Perturbavam-me de prazer a trepidacao da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio. Fechado nestas quimeras, eu calava-me também, como se com o siléncio me deféndesse de tudo o que era ameaca á minha roda. Porque tudo para mim era estranho e ameacador, desde a montanha imóvel na enorme manha circular até ao espectro do Calhau e dos bois, táo insó-litos na sua placidez iniciál, como se viessem carregando o carro, submissamente, através de longos séculos... Afinal chegámos meia hora antes do comboio. De modo que, aproveitando esse bonus de espera, Calhau e eu pusemo-nos a estudar as linhas, os vagoes nos desvios, a engrenagem das agulhas. Como achava tudo aquilo maravilhoso, estranhei que o Calhau só trés vezes tivesse visto o comboio. — Há pior — disse-me ele, sossegado. — Conheces a Felicia? Pois é mais velha do que eu e nunca o viu. — E aqui tao perto! — admirei-me eu, condoido. Mas Calhau nao se perturbou, convencido, decerto, de que isso de ver comboios nao era assim muito impor-tante para a vida... Um homem fardado veio á plataforma dar avisos de corneta, uma inquietacao nova centrou a atencao de todos. E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim como um rancor subterráneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, nao tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tao grande para mim, que era partir. E entáo desejei ardentemente, profunda-mente, ficar. Mas era tarde: tudo quanto eu tinha feito desde há meses, tudo quanto fizera D. Estefania, con-duzia justamente áquilo mesmo — partir. Por isso, apertado de amargura, ameacado de lágrimas, fui-me deixando abracar em siléncio pelo Calhau. Até que, por entre um furor de fardos e cabazes, lá rompi, de saca as costas, para a carruagem de terceira. Fechei a porta, apanhei ainda o ultimo adeus do Calhau e sentei-me entao para chorar quanto quisesse. Em ver-dade, eu nao gostaria de chorar. Mas, espoliado abrupta-mente da minha infáncia, aturdido de solidáo, sentia-me quase bem dentro do choro. Inesperadamente, por entre a minha dor, eu descobria em mim o aceno de um passado. Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor per-dido, a flor original de uma alegria morta. E entao voltei para lá a minha face molhada, e tudo em mim disse adeus longamente. 12 13 — Logo encontras colegas — declarara D. Estefania ao meu alarme. E, realmente, pouco depois, eu reparei que na cat-ruagem já vinham dois fatos pretos. Batidos pelos olhos de toda a gente do comboio, logo nos unimos em def esa e tentámos confraternizar. Isso animou-me bastante. Mas quanto me custava suportar o olhar filado, os sorrisos malignos da matula da terceira, que se me cravavam nos flancos como den tes carniceiros. Até que um malandro, que vinha de púrria com seis magalas, decidiu morder de frente. E disse alto: — Padreca! Ó padreca! Sofri. Olhámo-nos os trés, congregando a coragem, mas logo vimos que näo tínhamos que chegasse. E entáo odiei. Pela primeira vez na vida me cerrei dentro do meu ódio impotente e infeliz, e aprendi o sentido do desespero e da morte. Pela primeira vez eu medi a minha dištancia do mundo que me havia de ficar para sempře distante. Calados, destruídos de peste, para ali ficámos, sufocados de vergonha, pedindo paz com sorrisos corados para a matula carnívora, detestando--nos surdamente uns aos outros, como se cada um de nós fosse afinal o culpado... Com a secreta esperanca de que nas paragens do comboio nos surgissem reforcos, eu ia pelas janelas esquadrinhar o movimento das estacôes. De facto, näo me enganei. Em dada altura, por entre a barafunda de uma estacäo agitada, lá cacei um fa to preto. — Prä qui! — berrei. — Pra qui! Mais um. Como era ja aluno adiantado, trouxe-nos o conforto da sua experiencia. Dissemos os nossos nomes, näo perguntämos o dele, submissos e radiantes. Logo depois, num apeadeiro solitärio, mais outro fato preto. — Prä qui! — clamei de novo, mais forte. Cinco. Ja näo era mau. Mas eu näo desistia de engrossar as nossas hostes e, de janela em janela, la recrutei mais sete. Pude enfim descansar. Fitei, desas-sombrado, os galuchos, e pareceu-me entäo que eles cediam terreno por falarem ja so com os olhos. Nem por isso, todavia, sosseguei inteiramente. O de-safio dos meus olhos era o medo de todo o meu corpo alerta, de um terror recurvo ä escuta. (Falo agora ä memoria destes Ultimos vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida alem desse pavor, que outra voz mensageira lhe clamou ao futuro alem da voz de uma noite sem fim.) No grupo, o seminarista mais velho esmagava agora os caloiros com o terrorismo da sua experiencia: — Voces väo ver o Senhor Padre Lino a Latim. Cada erro nas declinaqöes, quatro palmatoadas. — Que säo declinagöes?—perguntei. — Voce logo aprende. So casos säo seis. — Que säo casos} — Voce logo ve. Nominativo, genitivo, e por ai fora. Logo sabe o que e bom. Apesar de tudo, com a seguranca daquele moco a cobrir-nos de proteccäo, eu sentia-me quase bem. Esque-cera a minha aldeia, a serra, o adeus do Calhau. Abri 14 o farnel e comi. Nunca mais na minha vida eu comi * com tanto gosto, como se naquele desdobrar de notícias e paisagens novas tudo em mim estivesse comendo comigo. O meu corpo colava-se avidamente ao mundo novo, injectado de sangue ardente ä minima sensacäo. E assim, era como se eu estivesse nascendo outra vez... A čerta altura, porém, quando já näo pensava em reforcos para as nossas hostes, entrou um destaca-mento de mais quatro fatos pre tos. Todos crescidos. Um vendaval de clamores varreu a carruagem de lés ( a lés. Olhei os magalas e vi-os, já conformados, falando no limite da sua curta importáncia, apontando com o dedo ocasionais curiosidades da paisagem que rolava. Definitivamente, sentámo-nos para dominar. A minha roda, cada um dos seminaristas tentava provař o inte- i resse das suas férias. Passámos ä identificacäo indi- l vidual, para nos sentirmos, de uma vez para sempře, camaradas. — E voce, como se cháma?—perguntaram-me. — Antonio dos Santos Lopes. [ Um bafo maligno de vergonha subiu-me logo do f ventre, no estúpido receio de que todos percebessem que este nome, só usado nas cerimónias da lei, me ficava largo como um fa to de esmola. Mas eis que um seminarista dos mais antigos meteu subitamente um dedo ä memoria e varejou qualquer recordacäo esque-cida: — Antonio Lopes? — Antonio dos Santos Lopes. Ergueu os bracos triunfantes: — Entao e o Borralho! Era. Era o Borralho. Näo quis saber como e que a minha sorte me viera apanhar ao comboio, e sofri em silencio. Durante os primeiros meses de seminärio, a lei do meu nome clamou ainda contra a injuria. Inütil. A lei acabou por se dar por vencida e nas conversas clandestinas, quando me queriam ofender, fiquei Borralho por forca. Decerto, esse nome näo e de modo algum ofensivo, ate porque e vulgar. Mas ofendia-me a mim, como döi a toda a gente o nome que lhe näo pertence — como doeria a imposicäo de uma pessoa que se näo e. Porque o nome tambem e a nossa pessoa. Reparei entäo que um dos quatro da ultima leva mal abrira ainda a boca. Taciturno, como se remoesse o projecto de um crime, com dois chapeus na cabeca — o velho encaixado no novo para o poupar —, ele olhava duramente e fixamente a ideia do seu rancor. De tez coriäcea de um filho da gleba, as mäos grossas nos joelhos, rude, possante, pensava tenazmente, per-dido de nös. Porque näo falava? — Ö Gama, tu näo falas?—perguntou um dos mais velhos, pensando comigo. O Gama. Nunca mais o esqueceria desde essa manhä de 7 de Outubro, äs dez horas, sexta-feira. E pela vida fora, sempre que penso no Seminärio, ou sonho com ele (porque sonho muitas vezes), e a imagem do Gama que me enche o sonho e o pensar, para lhes dar algum sen-tido. — Perdeste a fala? — insistia o outro. 16 17 Gama näo falava. Direito no encosto, tinha só aquela mascara valente de urna vinganca reflectida. Por terem chegado a qualquer conclusäo, habituados, decerto, a entenderem-se por sombras, alguns semina-ristas entreolharam-se sabidamente, apertando os lábios na suspeita de qualquer mal irremediável. Quando chegámos ä Guarda, estava toda a plata-forma retinta de fatos pretos — e foi uma invasäo. Perdido naquela turba, senti-me outra vez só. Alguns do nosso grupo partiram para outros grupos; e os que ficaram, submetidos, como eu, ä importáncia recente, näo falavam. Pude entäo encontrar-me de novo com o meu sentir verdadeiro. Mal tive tempo, porém, de me dar ä minha tristeza, que a paisagem, agora monó-tona, já näo dispersava; porque, vingando-se da propria desgraca numa desgraca maior, alguns colegas mais velhos comecaram a massacrar-me: — Ó caloiro! Levante-se lá o caloiro! Um sujeito alto, com a cor típica do jovem forte, quebrantado pelo vício solitário, jogou a sua importáncia, adiantando-se aos outros: — Donde é o caloiro? Fixei do grandalhäo a cara e o nome, que só mais tarde, alias, decorei definitivamente, quando veio li-gar-se ä minha história: o Peres. — Sou de Castanheira — disse eu. Quando fui para Lisboa, eu dizia que era da Beira, como diria que era de Portugal ou da Európa, se fosse para a Franca ou para a America, auxiliando assim a visäo dos outros ä medida que o mapa se afastava. Peres quis mais informes; e o Gama, cortando abusos, declarou, com espanto meu, que eu era seu protegido. Ainda altercaram os dois, mas por f im separaram-se. — Obrigado — agradeci. — É um figuräo — declarou-me o Gama. E calou-se. Este termo benigno de «figuräo», proprio da suavidade eclesiástica, haveria eu de saber que podia carregar-se, como toda a palavra mágica, do ve-neno que se quisesse. A viagem estava no fim. Na estacäo da Covilhä entraram os Ultimos reforcos. Mas já ninguém se alvo-rocou. Aniquilados, tensos de expectativa, a sombra do Seminário chegava já até ali, pesava densamente sobre todos. E pela tarde, ao escurecer, chegámos final-mente ä estacäo da Torre Branca. Uma torrente negra de seminaristas inundou tudo. Dois carros de bois carregaram as sacas, sob as ordens chicoteadas do P.e Tomáš, e a um bater de palmas arrastámo-nos em massa estráda fora. Atravessámos, soťurnos, as ruas escusas da vila, como fugidos a urn qualquer crime obscuro, murmurando, furtivamente, uma conversa re-zada, olhando de lado, com hostilidade, o mundo que näo era nosso. Submerso na noite, perdido na confusäo dos fatos pretos, que iam agora correndo ao longo dos campos ermos, eu suava de cansaco e de ansiedade. Näo conhecia ninguém. Ninguém me conhecia. Os pró-prios companheiros de viagem tinham procurado o conforto dos amigos. Zoava em torno de mim um fervor anónimo de conversas; mas parecia-me que era por baixo das palavras que a nossa sorte comum apertava 18 19 fortemente as maos. Em dada altura, porém, e subita-mente, o murmúrio das conversas baixou mais, quase tocando o důro siléncio dos coracöes. Suspenso e aflito, olhei atrás, aos lados, adiante. Mas sempře e só me cobria a noite plácida do mundo. Foi quando, ao ven-cermos uma rampa da estráda, mudo das sombras de uma espera, comecou a erguer-se, terrivelmente, desde os äbismos da terra, o vulto grande do Seminário. — Cá estamos — murmuraram em redor. Quieto um momento, no longo pavor da noite, olhei do fundo da minha solidäo a mole enorme do edifício e arranquei para a minha aldeia distante um grito de dor táo profundo que só eu o ouvi. II Lentamente, o casarao foi rodando com a curva da estráda, espiando-nos do alto da sua quietude lobrega pelos cem olhos das janelas. Até que, chegados á larga boča do portao, nos tragou a todos imediata-mente, cerrando as mandíbulas logo atrás. Enrolado na multidáo silenciosa, fui subindo a larga escadaria em cujo topo um padre quieto, de maos escondidas nas mangas do viatório, ia separando as divisoes para as respectivas camaratas. Mudos e quedos, ao pé dos mu-ros, apareceram-me ainda, ao longo do corredor, vários padres de sentinela. E na pura ameaga do seu olhar de sombra eu sentia, mais escura, a grandeza ilimitada de um pavor abstracto. Fiquei na 3 .a Divisao, entre os mais miúdos, com lugar na camarata logo ao fundo do corredor. Doeu-me um tanto separarem-me do Gama, que, de voz entroncada e trés anos de estudo, tinha já de ficar na 2.a Divisao. Em todo o caso, como a. sua camarata pegava com a minha, podia vé-lo de perto atravessar de coragem o nosso espanto e alarme, ao passar para o dormitório, na retaguarda da forma. Foi assim, como 20 21 depois contarei, que durante os recreios nos pudemos cruzar-nos nos corredores desertos e eu me fortaleci na raiva pura que ele tinha. f Marcada a cama de cada um, voltamos ä sala de espera para recolher a bagagem. Tivemos de ceder a primazia aos mais velhos, porque so eles tinham pulso \ e experiencia para decifrar aquela barafunda. Fui dos : Ultimos a avancar. Rolada a pontapes e puxöes, suja, com um rasgäo ä boca, la achei a minha saca, escon- -dida atras de um banco. Tomei-a äs costas e levei-a, angustiado de um subito amor pela sua voz fraterna desde quando? Sei que depois ainda fomos ä Capela \ e nos despimos, com urn cerimonial esquisko, antes \ de dormirmos. Mas nessa altura, pesado de sofrimento, urn grande apelo final de silencio e desistencia subia para mim desde as raizes da noite. E fechei os olhos. % E adormeci. Aberta de liberdade, a minha aldeia reverdecia, na 1 forca da Primavera, pelos giestais da montanha, quando o gralhar ferino da sineta me acordou. — Benedicamus domino — clamou o P.e Tomas para o sono do saläo. — Deo gratias — concordaram os mais velhos, ja resignados pelo habito. Abri os olhos para o enorme dormitörio, ilumi-nado ja, implacavelmente, a bicos de acetilene. Ä pressa, todos os seminaristas enfiavam as calcas, com pudor, dentro da cama. Custou-me a atinar com os canos, e acabei por vestir as calcas ao contrario. Pelo que, ä segunda tentativa, deitei fora a perna direita, para acertar o trabalho. Mas logo o P.e Tomas, surpreen-dendo o pecado do meu pé nu, me esmagou de respeito: — Menino! Sej a decente! Toda a camarata me saltou em cima com a sua troca. Alguns seminaristas tapavam com a mäo o riso na boca. Outros mordiam-se, estourando de gozo. Fui o ultimo a lavar-me. Inexoravelmente, os mais velhos, a coices de cotovelo, iam-me passando adiante. Por isso tomei o meu lugar na forma ä frente, atando ainda a gravata no colarinho largo, quando já todos esperavam por mim. A urn breve bater de palmas, toda a bicha se arras-tou para a Capela. Ai, cortadas äs parcelas, as duas filas foram-se alinhando aos lados, nos intervalos dos bancos sem encosto. Um toque de campainha dobrou-nos pelos joelhos. E foi assim, vencido, cortado pelo meio, que eu fiquei a recordar-me para a minha vida inteira... Fatigado das rezas com que um seminarista mais velho nos ia remoendo a paciéncia, dorido nos joelhos, do chäo duro de tábuas, eu escapei, através da janela, um olhar desocupado pelos castanheiros da cerca, a fila de retretes, em frente, acocoradas sobre urn rego de água. Mas, imediatamente, segurando-me tenaz-mente por uma orelha, alguém me repuxou a cabeca várias vezes, e devagar, para a diréita e para a esquerda, até ma deixar, por f im, na posigáo correcta. Mas o que mais me aterrorizou foi aquela subita presenca invisível do Prefeito, vinda do f undo da noite, imensa, 22 23 ilimitada, sem a materializacäo de um corpo, de um breve rufdo de pes. Pelos anos fora, eu ha via de encon-trä-los, a esses medos, pelo escuro dos corredores, das escadarias, calados, imöveis, rondando-nos de sombra e de ameaca... Acabadas, enfim, as Oracöes da Manhä. Ordens de campainha para nos pormos de pe. Novas ordens para nos sentarmos. Para o topo da Capela veio entäo um padre ler-nos a Meditacäo. Tipo baixo, louro, de voz pequena, mordida entre os dentes, com duas pontas azuis por deträs de vidros grossos. Era este, enfim, como soube depois, o funesto P.e Lino. Alcou os öculos para a testa, disse: Da vocaqao sacerdotal. Primeiro ponto da Meditagao: muitos sao os chamados, poucos os escolhidos. E longo tempo, na manhä que abria, P.e Lino foi varrendo da lembranca de todos os Ultimos restos de ferias com a vassoura äspera dos designios de Deus. Concluida a leitura, logo todos encravaram a mäo direita no sovaco esquerdo, e descansaram, na mao livre, a fronte carregada. Um olhar pasmado para aquilo — e fiz o mesmo. Pus-me entäo a olhar, nos joelhos sujos, o vinco desfeito das minhas calcas novas, olhei as botas ainda com graxa, e esperei, conformado, o mais que viesse. Silencio de catarros. Digerido o primeiro ponto da Meditacäo, P.e Lino serviu-nos o segundo. Näo sei quanto aquilo durou. Sei apenas que tive tempo de percorrer a minha aldeia, de repetir, desde o abraco do Calhau, a minha viagem täo longa. Finalmente, a Meditacäo acabou. P.e Lino desceu entäo a coxia, dis- parando, para um lado e para outro, olhares curtos como bicadas. Ate que a sua voz loura can tou lá para o f undo da Capela: — Senhor Fiel: de que tratou o primeiro ponto da Meditacäo? Céus! Mas o primeiro ponto e os outros dois tinham tratado apenas da minha aldeia, do Calhau, da minha vida infeliz. Em todo o caso, o Fiel, numa voz de olhos baixos, disse coisas incríveis sobre a secreta vontade do Altíssimo. Segundo ele, antes de eu escabrear pelos montes, muito antes de meu pai ter partido a perná na pedreira, j á Deus dera despacho ao Deere to que me chamava ao Seu servigo. Isto aereditava o Fiel, sem que, infelizmente, soubesse dizer porqué. Fora das nossas vistas e da nossa razäo, a Divina Providéncia manipulara-nos o destino como muito bem en tender a. P." Lino pareceu concordar com isso, porque näo repontou. Depois de dar ordens ao Fiel para se sentar, ouvi-o, mais perto de mim, perguntar a ouťro seminarista: — Senhor Amarante: o segundo ponto da Meditacäo? O terceiro saiu a um seminarista dos grandes. Res-pirei fundo e aguardei o que viesse. Veio a missa, duzen-tas comunhôes para toda a gente e finalmente o café. Eu estava morto de fome. 24 25