Oh, como choviam esmeraldas voadoras! O céu incendiau-se de verde onde item era necessário — todas as fogueiras da costa tomaram essa cor, mesmo as que inchavam nos nossos coragdes. Álvaro Sabino O noivo aproximou-se-lhe da boca, a principio encon-trou os dentes, mas logo ela parou de rir e as línguas se tocaram diante do fotografo. Foi aí que o cortejo sofreu um estremecimento de gáudio e furor, como se qualquer desconfianca de que a Terra pudesse ter deixado de ser fe-cundada se desvanecesse. Já náo estavam junto de nenhum altar, mas no terraco do Stella Maris cujas janelas abriam ao índico. No terraco, obviamente, náo havia janelas, ape-nas piíares sobre os quais se estendia uma cobertura suave mas suficientemente protectora para se poder receber um cortejo daquela importáncia e quantidade. O fotógrafo su-biu a cadeiras e desceu até ao chao, de modo a ficar com-pletamente estendido para apanhar o beijo em todas as po-sicoes. Por isso, o noivo continuava com os olhos fechados, e ela só de vez em quando abria os seus, e o cortejo aplau-dia incessantemente como no final duma ária subtil que certamente náo se ouvirá jamais. Pressuroso, o fotógrafo pediu que o noivo tomasse a noiva nos seus bracos e a le-vantasse á altura do peito, junto da vedacao que impedia 9 que as pessoas, uma vez debrucadas, caíssem ao índico. Era majestoso. Ela obedeceu — encostou a cabeca ao om-bro do noivo, e o noivo olhou ternamente para o rosto dela. Descidos e languidos, os olhos dele tinham alguma coisa líquida de peixe quando abriam e fechavam, Ainda aí o cortejo batia palmas, e havia quem transpirasse e ti-vesse as mäos enrubescidas de tanto aplaudir. Aquele era um momento cheio de encanto. Entäo a noiva que tinha chegado apenas na noite anterior, mas a quem todos já chamavam simplesmente Evita, abriu os olhos, e mais do que a quantidade dos convida-dos, surpreendeu-se com o tamanho exemplár da mesa. As lagostas vermelhas e abertas ao meio estavam dispostas conforme um numeroso cardume. As papaias amarelas estavam cortadas em feitio de coroa de rei e coroavam a toa-lha inteira. Os ananases formavam uma pinha no centro, como se fosse o leque dum fantástico e emplumado peru. Ela aproximou-se desse peru, pondo o véu completamente para trás e rindo cada vez mais. Mas de facto, o local que Evita, docemente empurrada pelo noivo, deveria ocupar, näo era ao centro — disse o fotógrafo com um gesto amplo — antes na cabeceira, onde havia um bolo de sete andares, com um ramo armádo em forma de chůva. Um criado ex-traordinariamente negro, vestido de farda completamente branca, trouxe uma bandeja com uma espada. A espada era do noivo. Evita pegou na espada e fendeu o ämago do bolo até ä tábua. Quando a espada bateu na tábua, acorreu de entre as mulheres uma delas de vestido sem costas com duas espátulas de cozinha. O Comandante da Regiäo Aé-rea, que era marido da mulher das espátulas, avancou em primeiro lugar com o seu pratinho para receber uma tran-cha e aproveitou para estreitar a mäo do noivo. O noivo era só alferes e o longo abraco que se seguiu ao aperto de mäo, dado desse modo pelo Comandante da Regiäo Aérea, perturbou-o a ponto de estremecer sob a pressäo do punho do coronel, ali de passagem a caminho de Mueda. Nunca pela cabeca dum alferes miliciano tinha passado o sonho de que, no dia do seu casamento, houvesse um Coman- f: dante de Regiäo que o viesse abracar, e tudo isso foi cap- I tado pelo fotögrafo que tinha subido agora a uma mesa I ■■: de apoio com toalha, junto da vedacäo. Dai ate que che- I gasse a orquestra foi so um breve tilintar de copos. Um ]■'"■ chupar de tämaras. Os convidados de novo irromperam em j aplausos. E redobraram ainda as palmas quando a pequena or-i questra de instrumentos quase todos de sopro comecou a 1 soar, tocados por quatro brancos e um negro. O negro ao I tocar tinha as bochechas inchadas como se quisesse explo- I dir. Toda a rmisica era uma explosäo que rebentava na :[',,': tarde. O Comandante da Regiäo Aerea, de passagem para j: Mueda, abandonou a mulher das espätulas e tomou a j noiva, o noivo tomou a mulher das espätulas que havia { acompanhado o marido so para conhecer Six-Miles e re- gressar logo no aviäo da manhä, e seguiram-se os pares ro- dando ä volta da mesa imensa. Rodavam, rodavam os pares. Foi hä vinte anos, e ainda näo era häbito os pares dancarem desenlacados uns diante dos outros como outrora os espadachins. Pelo contrario, en-lacados e rodando, todo o espaco que sobejava da longa mesa foi ocupado com a trajectöria das ancas, embora sobejassem mulheres apoiadas na grade, porque näo se estava em tempo de paz completa. Ainda era de tarde, ainda o Sol estava bem amarelo e suspenso por cima do Indico, e a cidade da Beira, prostrada pelo calor ä borda dos cais, f.. era täo amarela quanto o ananäs e a papaia. A noiva suspi- j rou näo de cansaco ou de sono mas de deslumbramento, f e depois desse suspiro, o Comandante da Regiäo Aerea :f": comecou a falar bem alto, como se esperava que falasse. ;j «Äfrica e amarela, minha senhora» — disse o Coman- l ■: dante, apertando pelo carpo a mäo de Evita. «As pessoas I tem de Äfrica ideias loucas. As pessoas pensam, minha se- ■j nhora, que Äfrica e uma floresta virgem, impeneträvel, onde um leäo come um preto, um preto come um rato as-j sado, o rato come as colheitas verdes, e tudo e verde e j preto. Mas e falso, minha senhora, Äfrica, como terä opor- 10 11 permitia a todos manejar correctamente o ingles, näo só em termos de guerra. O proprio Comandante da Regiäo Aérea, que sabia distinguir os momentos de servico dos momentos de cognac, disse em voz muito alta, abafando toda a miisica — Please, get out from here tonight, na di-reccäo indiscutivel dos recém-casados. O fotógrafo aprovei-tou o riso cúmplice dos noivos. Era um homem sensível, o fotógrafo, e por isso agora já näo queria apanhar a mesa nem o bolo. Se apanhasse, o bolo apareceria na fotografia com o aspecto crenado dum coliseu romano em ruina. Os noivos, conduzidos pelo fotógrafo, só agora reparavam que havia ao lado dos ananases uma salva com um envelope, e para cima desse envelope, o capitäo atirou de longe um molho de chaves. Devia ser perfeito em basquete porque as chaves atingiram o meio do envelope. O cortejo percebeu que era o empréstimo do descapotá-vel branco que ia naquele molho de chaves e aplaudiu de novo, dizendo coisas pícaras de orelha a orelha. O noivo compreendeu completamente a orquestrazinha, o sussurro dos imensos convidados e a pressa do fotógrafo, querendo todos expulsá-los dali, muito antes de chegar a noite. Entornava-se de facto uma atmosféra amarela-clara da cor do whisky, quando foram postos na extremidade do terraco, por entre gargalhadas. «Achas que os enganamos?» — perguntou Evita no ele-vador que descia como uma flecha. «Perfeitamente» — disse o noivo, já no descapotável. «Ficaram a pensar que nos vamos deitar um com o outro pela primeira vez. Grandes pensadores!» — O descapotável partiu com um ronco. Era admirável tudo o que tinha acontecido naquele terraco, mas nada terminava ali. Tudo estava por comecar como no momento em que a tempes-tade inicia o primeiro sopro. E assim a noiva deitou a cabeca na cintura do noivo. Agora,. sem malas nem roupas compridas — tinham-nas deixado no pequeno quarto do Stella — sentiam-se íibertos pelas estradas da cidade da Beira que eram planas, como 14 se tracadas sobre a recta duma superfície palustre. Os man-gais pareciam vermelhos e cobriam todas as línguas de areia completamente por arrotear. O noivo estava ansioso de pla-nura e quis sentar-se num bar de pau e canico que sobracava o mangal. Quando apareceu um bando de aves voando rente ao lodo do mangal — e foi assim que se sentaram — o noivo quis que ela ficasse quieta, mas ele descalgou-se e entrou pelo bando de aves que eram cor de fogo, pernaltas, e pareciam deslocar-se ainda sob o instinto formidável do Genesis. Evita ficou a ver como de facto tudo era laranja e amarelo, mesmo o noivo. Á aproximacáo do noivo, nem todos os pás-saros levantaram voo. Com as patas imóveis, erectas, muitos ficaram com os pescocos compridos como alcas, dobrando--os e desdobrando-os por cima dos papos. Tinham os olhos postos nos pedacos de peixe do lodo, e náo se importavam com o noivo que lhes acenava com os sapatos, gritando imenso. Alguns pareciam haver perdido a arguta visáo de pássaro, e só se afastavam quando o noivo lhes queria tocar. Quando saiu do lodo, o noivo trazia as pernas suj as até acima dos joelhos e havia sido tornado por uma energia irra-zoável. Ele saltava entre o mar e a areia, com as calcas na máo, e a areia e o mangal, tanto quanto o mar, eram cor de scotch e cor de pruna. «Eh! blackl» — gritou imenso na direccao do bar. Como se estivesse á espera, um rapaz apareceu munido dum pano, rindo com formidáveis dentes. Aproximou-se, curvou-se e comecou a limpar as pernas do noivo cheias de areia e lodo. Esfregava, esfregava, mas as manchas resis-tiam e o noivo ria e entáo, voluntariamente, o black foi buscar um recipiente de água e acabou por lhe limpar os pés com um outro pano. O black ajoelhou-se no estrádo de pau para limpar um a um os dedos do noivo, e quando terminou, retirou-se de recuo, com o recipiente na máo, rindo intensamente e entornando a água. Tremendo e rindo, desapareceu na porta, fechou a porta. Os noivos olhavam-se cheios de ternura. Para alem deles náo estava ninguém no pequeno bar de canico, e como o fim do dia era de mais, podiam beijar-se só para eles mesmos, pela 15 tunidade de ver, é amarela. Amarela-clara, da cor do whisky!» Rodavam, rodavam sempre, ela de bracos muito aber-tos, estendidos, levantados, para alcangar o alto da farda onde deveria poisar de leve os dedos da mäo, em forma de vespa. Alias, a noiva, sempre de bracos abertos como antigamente, quando se fazia adeus a um transatläntico, dancou com um outro coronel, depois com dois majores, e em seguida com trés capitäes, rindo imenso. Quando teve pausa, nem se lembrava qual deles Ihe tinha dito: «Ainda é cedo para ter verificado, mas vera que esta é uma das poucas regiöes ideais do Globo! Admire a paisa-gem, e vera que para ser perfeita, so faltam uns quantos arranha-céus junto á costa. Temos tudo do século dezoito menos o hediondo fisiocratismo, tudo do século dezanove k excepcäo da libertacäo dos escravos, e tudo do século vinte á excepcäo do televisor, esse veneno em forma de écran. Com uns vinte arranha-céus, a costa seria perfeita!» Evita quereria lembrar-se de qual dos oficiais tinha feito a síntese, mas as fardas, para alem das riscas que en-volviam as mangas, eram extremamente parecidas. As vo-zes, sendo diferentes, igualavam-se no mesmo modo de in-tensificar as ultimas silabas como se falassem para serem ouvidos ä distäncia, na amplidäo aberta da parada. Quando sussurravam, era com os gestos que sussurravam, e dai que näo se lembrasse mais qual deles havia feito aquela admirável síntese. Quem teria sido? Evita näo pode perguntar-se mais do que durante um breve instante. Apro-ximava-se um par singular quando a mesa já comecava a perder a frescura iniciál por algumas cascas e muitos pratos retirados dos seus lugares simétricos. Evita tinha os olhos presos do par. Ä primeira vista, a singularidade do par provinha so-bretudo dela, pois ele apenas parecia transportar mais con-decoracöes do que seria de admitir num hörnern da sua idade. Grandalhäo. Ela, porém, destacava-se de tudo e de todos — dos objectos, da mésa, da fruta, da pinha dos ananases, de todas as coisas cortadas e perfeitas que ainda ali se encontravam. Destacava-se por ela mesma e pela ca-beleira que era constituida por uma especie de molho au-daz de caracois flutuantes que lhe caiam de todos os lados, como uma cascata cor de cenoura, enquanto os cabelos das outras mulheres, por contraste, eram dum castanho-escuro, sarraceno, ora passado a ferro pelas costas abaixo, ora em balao tufado do feitio duma moita, como entao se usava. Evita conseguiu perceber tambem que entre a cor das unhas e a cor do cabelo, apenas havia um torn intermedio. Isso quando ela estendeu a mao. Na mao havia um anel que brilhava intensamente. A singularidade dela nao se comparava com a dele. «Apresento-te um heroi» — disse o noivo, como se fi-nalmente tivesse chegado alguem por quem estava definiti-vamente a espera. «Que e isso? Gostei mas foi da forma como voces se beijaram ali, boca na boca. Quem beija assim nao e gago» — disse o capitao. Mas o capitao nao continuou porque se ouvia o Co-mandante da Regiao Aerea, sobracando uma garrafa, dizer para algumas mulheres de vestidos sem costas que o toma-vam — «Oh! Oh! A guerra! Se nao fosse a guerra, mesda-mes, ate a calmaria criaria pedra!» E como o comandante avancasse dizendo isso, o noivo e o capitao nao puderam trocar outra palavra. Pena! Ainda era muito cedo para se fechar a tarde, ainda era muito cedo para se falar de guerra, que alias nao era guerra, mas apenas uma rebeliao de selvagens. Ainda era muito cedo para se falar de selvagens — eles nao ti-nham inventado a roda, nem a escrita, nem o calculo, nem a narrativa historica, e agora tinham-lhes dado umas ar-mas para fazerem uma rebeliao... Era muito cedo para se falar do Imperio, e a orquestra comecou a tocar de novo, embora suave, e a voz grave dum branco sem instrumento de sopro cantou, imitando a voz dum negro — Please, please, please, get out from here tonight... O frequente con-tacto entre os oficiais Portugueses e os da Africa do Sul 12 13 boca e pelas orelhas, impelidos sem düvida pelo instinto de nidificacäo que suspirava do mundo. «Voltamos?» — disse ele ä beira de desmaiar. «Claro» — disse ela. Comecava a fazer escuro total, ä excepcäo duma barra vermelha. Nessa altura, ja perto do Stella Maris, haviam comecado grandes correrias de ne-gros, e o barulho dos pes contra a terra atingia o terraco. As luzes intensas do hotel, naquela noite, näo se espetha-vam no Indico so porque a mare estava vazando e a areia secava enquanto uma onda ia e vinha, e o cortejo estava ainda todo dancando e comendo e bebendo, quando se co-mecaram a ouvir correrias pela avenida e gritos do lado do Chiveve, o braco de mar. Mas por isso näo valia a pena suspender absolutamente nada do que se estava a fazer e que era dancar e rir intensamente. «O que e?» — perguntou um convidado, olhando o escuro. «Possivelmente e ja o grito da noiva» — respondeu urn major, rindo imenso com imensos dentes amarelos, urn deles sustido por uma anilha de oiro. E continuou a dancar com o par. Mas Evita e o noivo encontravam-se na zona oposta da costa e regressavam pelas ruas de träs ao pe-queno quarto onde a müsica do terraco chegava perfeita-mente. Enovelaram-se um no outro. O noivo disse — «Chiu! Separa-nos do outro quarto de dormir apenas urn tabique». Foram entäo para o quarto de banho que era enorme. Atapetaram o chäo da amplissima casa de banho com toalhas retiradas do toalheiro. «E duro, o chäo?» — perguntou o alferes. «Näo, que ideia, apenas liso mas como a superficie dum lago!» «Que subitamente tem uma onda». «Varias ondas...» De repente ouviu-se outro grito, embora fosse o pri-meiro que os noivos ouviam. «Näo tenhas medo» — disse o noivo, saindo de dentro da noiva e espreitando pela aber-tura da janela. «E apenas o rate dum carro». Conünua-ram estendidos na superficie atoalhada da casa de banho enorme, o noivo como se fosse de plästico, aderente, mol-dado ä noiva. Eies näo podiam saber, nem Ihes convinha saber, o que entretanto era conhecido no terraco. Ai, a atencäo centrava-se naquelas correrias que ora recrudes-ciam ora ficavam engolidas pelo barulho persistente do mar. «Deixä-Ios correr» — disse um tenente que ja se tinha desfardado e estava agora em camisa com o peito desco-berto. «Säo os senas e os changanes esfaqueando-se. Que se esfaqueiem. Säo menos uns quantos que näo väo ter a tentacäo de fazer aqui o que os macondes estäo a fazer em Mueda. Felizmente que se odeiam mais uns aos outros do que a nös mesmos. Ah! Ah!...» O tenente ainda era um jovem e ria imenso, pensando nos changanes e nos senas äs catanadas, os pretos uns contra os outros. O preto do quinteto näo tinha problema porque näo era nem changane nem sena. Era um mineiro que tinha sido encontrado a va-guear pelo Cabo, e por isso mesmo näo sabia uma palavra de portugues, nem de changane, nem de sena. Estava ino-cente, e so dizia bem, secundando o branco — Please, get out from here tonight. Todos dancavam e riam descontrai-damente no alto do terraco. Agora jä tinham descoberto o descapotävel parqueado em baixo e imaginavam os noivos estendidos no pequeno quarto, ali täo perto. Mas imaginavam mal. Ninguem podia suspeitar que para fugirem da proximidade do tabique, se tivessem refugiado nos frescos mosaicos onde ela, Evita, via e sentia um lago agitado por vagas. Evita julgou que cafa uma tempestade e que o soalho que representava o lago, em principio liso e frio como urn mosaico, sofria a ondulacäo dum mar. Era um sono leve, era um sono transpirado que sem saberem como, acontecia quando a orquestra, esgotada havia muito, tinha deixado de fazer estremecer a messe e a manhä ameacava romper a Oriente. «Büfalos?» — perguntou Evita erguendo-se dos turcos, tomada pela sensacäo absoluta de que estava em Africa. «Näo, meu amor, criancas» — disse o noivo espreitando pela porta. De facto, pelo corredor, varias criancas 16 17 passavam correndo em camisa de dormir. Atrás, duas mu-lheres em robes brancos e descalcas a caminho do elevador que conduzia ao terraco. As mulheres corriam com os chi-nelos de quarto nas mäos. Os chinelos éram enfeitados com penugem de ganso. «Está toda a gente no terraco!» — disse urna das mulheres em robe, virando o rosto esfuziado. Apesar da luz frouxa do corredor, reconheciam-se nos rostos duas das pessoas do cortejo, e nos chinelos que agitavam, a penugem de ganso. Era impossível näo ser envolvido. Os noivos também vestiram robes leves, e muito enlacados, subiram ao terraco. A noiva ia pensando, enquanto o elevador rapi-damente partia, como séria bom se houvesse um dirigível cortando o céu. O noivo tapou-lhe a boca com os dedos — sonhar sim, mas näo tanto. O elevador abriu. A meio do terraco ainda estava a mesa a que tinha sido retirado o banquete e a toalha, mas permanecia o resguardo, e além da mesa, encostado ao gradeamento, existia o cortejo, ä ex-cepcäo do Comandante da Regiäo Aérea e da mulher com espátulas. Estavam todos em trajes menores, assemeíhan-do-se nisso extremamente á mesa. «0 que será?» — perguntou o noivo. «Seja o que for, esta é urna noite secreta e memorável». Aproximaram-se do cortejo. Já tinha evaporado a in-certa luz da madrugada, já era manhä, o cortejo olhava para a barra e havia alguns pares de binóculos que passavam de mäo em mäo. Mas näo era para a barra que estavam a olhar e sim para o Chiveve, o braco de mar que ali defronte fazia uma profunda poca, para onde, durante a noite, a água tinha arrastado corpos de gente afogada. Imensos, incontáveis afogados. Mas de que barco? Näo se sabia, nem se dava conta de ter havido tempestade que jus-tificasse essa calamidade. Éram inúmeros os afogados. Dois grandes dumpers de lixo tinham vindo, antes de o Sol nascer, varrer a tragédia da vista da cidade, e várias carro-carias abertas näo tinham sido suficientes para carregar tanto afogado. Nenhum dos presentes — e éram quase tan- tos quantos no cortejo da tarde anterior — havia prese'n-ciado o movimento, mas evocava-se a cor branca das plan-tas dos pes dos negros, sobressaindo dos dumpers que os levavam. Sabia-se também que muitos eram estivadores, homens de potentes músculos, bons nadadores, que facil-mente teriam enfrentado as ondas alterosas no caso de as ter havido, e como o mar näo estava raso mas apenas se movia com mediana vaga, a situacäo parecia absurda. Fosse como fosse, o porto corria o risco de ficar parádo. «Por mim, mataram-se ä catanada e foram-se atirando ao mař. Só quem desconhece as matancas sazonais, näo aventa essa hipótese como a mais provavel» — disse o major. «Pode ser». Assim, pelo menos, tudo ficaría explicado. O leito do que parecia ser um rio sem o ser — porque o fluxo da água girava ao contrario dum rio — estava cínzento e bačo como costuma ficar a água do mar quando pára, mas a mulher dum capitäo piloto-aviador dizia distinguir dali uma nitida coloracäo escarlate. Ela passava os binóculos e pedia que olhassem na direccäo duns barracöes enegreci-dos que se desmantelavam na margem. Outras, pelo contrario, estavam a ver um lastro enorme, näo propriamente vermelho, mas cor de ferrugem, a cor que o sangue torna diluído na água do sabäo. «Parece que além, ás portas do cabaré, ainda estäo pi-lhas deles. Ora enxerguem...» — disse um oficial em robe de seda, fumando cachimbo. Ele indicou a direccäo apon-tando a bola do fornilho e todos viram. Näo era preciso utilizar binóculos para se enxergar o Moulin Rouge alve-jando as pás, lancadas na claridade da manhä. Contudo, nada mais se distinguia entre os telhados e as varandas. De facto, entre um pouco de ramaria e as casas, parecia distinguir-se um amontoado de gente tombada. As cinco velas do moinhozinho eram cinco dedos espetados. «Numa noite desias devíamos ter ficado acordados. Nunca mais vamos experimentar a emocäo que podería-mos ter tido!» — A mulher do capitäo piloto-aviador tinha 18 19 os binóculos do marido colados aos olhos e mexia conti-nuamente no regulador. Ela estava ansiosa por que as ho-ras passassem para ver se o mainato que a servia nao seria uma das vitimas levadas pelos dumpers. Alias, todos aguardavam essa hora, cada qual pelo seu mainato que já imaginavam de pes hirtos, olhos fechados para sempře, dentro dum terrível carro de transportar lixo. Mas ainda só se trabalhava com suposicoes, porque a razáo verda-deira, essa ainda ninguém sabia. «Por mim, nao tenho dúvidas!» O major de denies amarelos, também mim belo robe de seda, mas com um dragao pintado nas costas, nao tinha dúvidas, e lembrava que os povos vencidos por vezes se sui-cidam colectivamente. E referiu o que tinha acontecido ao Império Inca, nos Andes, depois da morte de Atahualpa Yupanki. Ora no fundo, toda a gente sabia que se estava a convergir para Mueda e qual o significado disso. Porque nao admitir que os povos autóctones daquela terra nao se quisessem suicidar? E nao seria um gesto nobre? Suicida-rem-se colectivamente como as baleias, ao saberem que nunca seriam autónomos e independentes? Nunca, nunca, até ao fim da Terra e da bomba nuclear? O major abriu os bracos e o dragao desenrugou a potěncia da sua lingua vermelha, pintada. «01hem alem, como recolhem um deles, estendidob) — gitou dramaticamente junto ao gradeamento, quase caindo sobre a praia do fndico, uma mulher de alferes em liseuse. Todos olhavam á vista desarmada para a correria dum dumper que evoluía na margem. Afinal, durante a noite, haviam pressentido algo de deslumbrante, mas exaustos do cortejo, tinham mergulhado num sono estúpido sem darem importáncia ás corridas que passavam sob as janelas do hotel Stella Maris, Tinha sido pena! Alias, por que razáo haviam sido tao céleres em recolher os corpos? Essa era uma pergunta colectiva mas que só alguns formulavam. «Deviam té-los deixado expostos e apodrecidos á luz do dia, para que se pudesse compreender a nossa causa, a nossa presenca, a nossa determinacao» — disse um pára- -quedista em pijama de risca que na altura coxeava bas-tante. «Sim, se ninguém fotografou nem escreveu, o que acon-teceu durante a noite acabou com a madrugada — näo chegou a existir. A rádio provincial nem um som sobre o assunto» — disse outro pára-quedista, esse já completa-mente fardado de numero dois. Dava pequenas palmadas no receptor, ainda na esperanca de que fosse a máquina que estivesse a funcionar mal. Vários dos circunstantes tinham-se virado para o rouco som da rádio. «Deviamos comprar o jornal» — disse o que coxeava. «O jornal? O Hinterlands — Uma mulher de alferes näo conseguia deixar de ser cinica, ainda que näo tencio-nasse ser, rindo para cima da mesa quase desnuda do ban-quete. «Oh, esse jornal, esquece, esquece! É quase uma crueldade falar nesse jornal!» E nisto um dos dumpers desapareceu ao longe. As rapa-rigas em chinelo, com penugem de ganso em forma de pompom, estavam prestes a tombar á praia de tanto procurarem seguir um dos carros que viam e entreviam correndo entre os cruzamentos das ruas. O major dos denies amarelos e anilha doirada segurou em ambas com toda a ternura de que os seus bracos eram capazes. Como se depreende, a ternura e o entendimento eram o contraponto daquele arrebatador espectáculo, cujo auge, acontecido durante a noite, era pre-ciso imaginär. A imaginacäo despertava a ternura. Ternura? Sim, e amor, e excitacäo. Os noivos, por exem-plo, sentiram que näo estavam ali a fazer nada em compa-racäo com o que poderiam fazer se recolhessem ao pe-queno quarto. Afinal, o noivo era um dos que dentro de escassos dias sairia para Mueda. O prenúncio de vitória que chegava daquela forma täo evidente na noite do seu proprio casamento, impelia-o para o amor como as semen-tes para a terra. O noivo receou que o seu robe se abrisse e se descompusesse. A sua espingarda de came irrompesse no terraco como um ramo que se solta. Comprimia-a, mas enquanto os outros enxergavam com binóculo, ele pressen- 20 21 tia as coisas sem as olhar e metia as mäos como duas cen-topeias pelo decote da noiva ate se apoderar dos dois mon-ticulos de Evita. Alias, ali mesmo, no terraco, podiam am-bos soltar pequenos gemidos sem que ninguem desse por isso, uma vez que todos soltavam os seus, ainda que apa-rentemente por outros motivos. Quando o major dos den-tes amarelos se voltou, segurando as duas raparigas de alfe-res que evitava que caissem ä praia, viu os noivos colados contra a mesa. Ai a noiva achou de mais. «Vamos?» — disse Evita. «O. K.» — disse o noivo com imensa dificuldade em pronunciar palavras completas. Deviam voltar ao local donde todos aqueles ruidos os haviam arrancado. Volta-ram, e mal transpuseram a porta, tiveram o cuidado de descer as janelas para simularem, pelo dia fora, a conti-nuacäo implacävel da noite, Porque de facto, no exterior, de repente a luz do dia inundava tudo com uma claridade cruel, e urn dumper continuava a correr de cä para lä, näo sendo portanto o afogamento apenas um fenömeno nocturno. Era o mo-mento mais emocionante porque tinha chegado o instante de se descer ao hall para esperar os mainatos. Alguns co-mensais passavam rapidamente pelos quartos, e vestiam-se adequadamente ate com sapatos e cinto, mas a maior parte desceu como estava, em leves trajes de noite, e foi assim, no hall do Stella Maris, repleto de luz e convulsionado, que os mainatos foram contados e faltavam quatro. Näo com-pareciam quatro! Onde estariam esses quatro? Teriam ido de olhos fechados uns sobre os outros a caminho da vala comum? — «Mas porque, porque?» A resposta foi dada por um hörnern que vinha a chegar de täxi por haver emprestado o descapotavel aos noivos. Ele sabia porque. Quando bateu a porta do täxi e pös o pe no primeiro degrau da portaria, soube-se que ele saberia explicar o caso. Como näo haveria de saber? Tinha a ca-misa de algodäo aberta, ja transpirado äquele hora, e via--se-lhe sob a camisa uma profunda cicatriz que se Ihe abria no peito ä altura da quinta costela, envolvia todo o flanco e desaparecia no meio das costas com um remate de carne do feitio dum punho espalmado. Era o capitäo das imensas condecoracôes, o que possuía a tal mulher de cabelo ruivo em cachäo. «Näo temos nada a ver com esta cegada» — disse ele. «E para j á tudo o que devemos fazer é manter-nos ä dištancia^ «Mas porqué?» «Porque ai esses gajos, os blacks, descobriram no porto um carregamento de viňte bidons de álcool metílico que iam a caminho duma tinturaria, e pensaram que era vinho branco, e descarregaram-nos ontem de tarde, e abriram os bidons, e beberam todos, e distribuíram pelos bairros de canico, e agora uns estäo lerpando e outros väo cegar. Os que a maré trouxe foram só os que o mar encontrou, reco-iheu ä beira e deitou. As praias väo mas é ficar coalhadas deles quando chegar a noite. Voces väo ver. Os blucksl Vé--se mesmo que säo ideias de blacks\» «Verdade?» A explicacäo do capitäo Jaime Eorza Leal, com a camisa aberta sobre a nesga da cicatriz, era inesperada, mas ao mesmo tempo täo reveladora que várias pessoas do cortejo se sentiram a principio chocadas pela estupidez, depois sentiram ódio pela estupidez e a seguir indiferenca pela estupidez. Näo se conseguia ter solidariedade com quem morria por estupidez como aqueles blacks. Entreolharam--se estupefactos. Já näo importava quantos mainatos näo tinham regressado ao seu subtil emprego. Já näo importava — e mulher de oficial que vertesse um lágrima, furtiva que fosse, por qualquer mainato desaparecido durante aquela noite, deveria ser considerada estúpida. De repente, as rou-pas de dormir em que a maioria se encontrava no hall ro-cagaram duma outra maneira. Tudo pareceu distinto do que tinha sido imaginado, ficando de súbito aquela madru-gada sem piedade e sem beleza, já que bavia um caso de estupidez atrás. Esse molho acre, e sudoroso, a estupidez. Como era possivel? 22 23 Sim, muito possível. Era uma colónia de cafres aquela que estavam a defender de si mesma. O major dos dentes amarelos nao tinha dúvida e arrependia-se de ter deixado que pela cabega Ihe tivesse passado a ideia dum acto he-roico análogo ao do povo de Atahualpa Yupanki, em seme-lhante colónia. Mas deveriam abandoná-la? Ele deu uma passada na direccao do busto de Jaime Forza Leal onde resplandecia a cicatriz de guerra. Era pena que o Coman-dante da Regiao Aérea andasse a mostrar Six-Miles á mu-lher, pois de outra forma aproveitariam para o encostar á parede e fazé-lo dizer, ali mesmo no hall, o que pensava. O capitáo Forza Leal sorria. Alias, aquilo era domingo, o tempo era amplo como sempře compete ao domingo, pode-riam regressar todos ao terrago, pedir ao Gerente que man-dasse servir lá em cima o almoco, e se possível o jantar, para nao perderem a cena de barbárie que estava afinal ocorrendo entre o Chiveve e o mar. Subiram entao de novo até ao ultimo piso, agora em rou-pas normais para aquele excessivo Verao, a fim de poderem observar a estupidez sob a forma de mortos cor de azeite. Como o conhecimento tinha dado origem á frieza e ao dis-tanciamento, aquela parecia-lhes ser uma cena de caca, Ora muito bem — mas como resolver a situacao da colónia? Da-quela colónia dramática do feitio dum coracao alongado? O major dos dentes amarelos suspirou, já sem robe. «Oh, isso agora é para quem tiver esperteza!» E quem tinha? Tinha-a felizmente o General. O major havia colocado o seu binóculo sobre a mesa, emborcado como um funil precioso que acariciava rindo, mostrando aquele arozinho doirado. O General? Mas era conhecida a opiniao do General sobre a travagem demográfica que de-veria ser planificada contra a explosáo dos cafres. Nisso os bóeres estavam a ser uns cretinos de sussurro bíblico e bi-blicamente haveriam de se arrepender. Como é que os bóeres nao aplicavam métodos de contensáo demográfica contra os cafres? A cafraria estava a avancar sobre os bóeres como a sombra duma pesada nuvem. E no entanto conhe-ciam os métodos. «Mas que metodos?» — perguntou uma mulher de te-nente de longo cabelo passado a ferro. «Por favor, minha senhora! Nunca ouviu falar de este-rilizacäo compulsiva? E de esterilizacäo pérsuasiva? Nunca ouviu falar da oferta dum rádio, dum simples rádio a troco da castracäo voluntária? Nunca ouviu? Por mim, minha senhora, estou com o nosso General — bastaria apenas anular os servicos de assepsia, para a natalidade inflectir como uma linha que se some!» O capitäo piloto-aviador ria. Havia descrenca no seu lábio de piloto rindo. «0 black näo vai nisso! Nem pense, meu major. O black adora propalar a espécie porque sabe que é preciso fazer muitos e rápidos para ficar com uns quantos! O black pensa assim. O black pensaria que se passasse lá na floresta com um rádio dando música americana, a troco da castracäo, até os animais saberiam que ali estava um black que näo colaboraria mais com a propalacäo da espécie. O black teria vergonha de passar diante dos pombos e das galinhas do mato com todos aqueles ovos. Ele näo distingue objecto de sujeito e julgaria que os pombos arru-lhavam dai em diante contra a sua coisa inerte...» — falava o capitäo piloto-aviador, que sobrevoava tudo e tinha as-tuta vista de pássaro sobre os efeitos. A um piloto näo se podem dizer certas fantasias porque ele conhece a Terra. E agora já estavam a tomar o digestivo do almoco, o proprio Forza Leal tinha ido a casa buscar a mulher, e co-miam todos olhando de vez em quando para aquela barra e aquele mar donde partiam dumpers com gente. A clari-dade do dia era coisa preciosa. Com a ajuda dos binócu-los, até se distinguiam os pedais do dumper. «E os noivos?» — perguntou alguém que se tinha de-brucado sobre o gradeamento e havia visto o descapotável ainda no mesmo local, arrumado entre os outros carros. «Ora ora, os noivos — deixá-los dormir e sonhar!» De facto, enquanto tudo isso se passava, os noivos, dei-tados sobre os turcos depostos, acordavam e dormiam, 24 25 acordavam e dormiam. O sono e a rebentacäo iam e vi-nham como as vagas. Estavam estendidos no chäo Largo que separava a banheira da sanita e a sanita do bidé, e como já se disse, dormiam e acordavam abracados, e para que a ilusäo de líquido fosse perfeita, as toaihas onde se estendiam eram cinzentas da cor das vagas. O noivo fechou completamente os olhos. «Este é o dia de mais elevado produto da minha vida» — disse ele. Evita näo se mexeu, surpreendida. «Produto? Mas tu disseste produto? Ah, meu amor, que bom, ve-se bem que ainda és um estudante de Matemätica!» — Ela abracou-o efusivamente. Ele prendeu-lhe o pulso. «Eu, um estudante de Matemätica? Nunca mais!» Para que Evita näo falasse, ele tapou-lhe a boca com a boca quando ela ia pronunciar de novo o M de Matemätica. E assim estiveram, até que se fez tarde e os noivos decidiram voltar ao terraco, gozar agora um pouco do cair do dia, reparar na barra e nos guindastes, pois por certo já näo havia mais mortos pelas praias — pensaram in-genuamente os noivos. Os noivos subiram para a tarde, emagrecidos, e só havia passado um dia. «Ja um dia?» — disse ele. De facto, o Sol tinha feito o seu giro e estava na posi-cäo em que de véspera o tinham encontrado, quando ha-viam subido ao terraco seguidos pelo cortejo. A mesa do banquete, que havia sido feita pela juncäo das várias que salpicavam agora o recinto inteiro, era só uma Iembranca, mas Evita disse ao noivo que a memoria näo tinha fim, e que enquanto fosse viva haveria de ver a mesa intacta ocupando o terraco — era apenas uma questäo de se consi-derar a realidade subjectiva como a mais concreta. Näo tinha pena nenhuma. Alias, pelas parcelas da mesa as pes-soas estavam sentadas, conversando e olhando para o fluido do céu e do mar como se estivessem na esplanada dum aeroporto marítimo, e pelos tampos ainda havia co-mida sobejada do dia anterior. Pedacos do enorme bolo enfeitado em forma de chůva andavam agora espremidos nas maos das criancas. Esfarelados pelo chao onde as criancas faziam patim. Triste? Nao! «Tudo esta em tudo» — disse a noiva. Por exemplo — nao havia musica mas era como se houvesse. Infelizmente as mesas, dispostas pelo terraco em esquadria quase perfeita, proibiam que se voltasse a dancar. Proibiriam mesmo? Nao se poderia girar entre os intervaios delas desde que os pares se enlacassem, parecendo apenas uma figura como nas sombras? Ou era a ausencia de musica real que impedia? «Nada nos impedes — disse Evita. O noivo nao precisou ouvir mais nada e logo captou o corpo da noiva para o interior dos seus bracos, e ela mer-gulhou o nariz no seu peito pouco peludo, aninhada, de olhos fechados como se ainda estivesse nos turcos, e se sen-tisse ser levada e caida. O noivo vigiava-lhe a nuca com os olhos semicerrados como janelas descidas sobre toda a paisagem que nao fosse a nuca, e ambos irromperam, sem outra musica aparente que nao fosse o tantam da agua e o marulhar das vozes, pelo terraco fora. Nao era preciso mais. O exemplo dos noivos rapidamente contagiou o te-nente da camisa aberta, o major dos dentes amarelos, o pi-loto realista e muitos mais, todos vestidos a paisana, antes de saberem o momento exacto de uns partirem para Mueda e outros para o Chai. Pegavam nas mulheres, e desviando--se habilmente das mesas em quadricula, tal como os noivos, rodopiavam impelidos pela lembranca do dia anterior. Tornando-se aquele dia muito mais vivo e brilhante do que o dia anterior, pois agora havia tempo para esmiucar outro instante alem do presente. O irrequieto e voraz presente. E foi assim — mesmo o capitao Forza Leal, tao austero com a sua mulher ruiva, rodopiou com ela e chegou ao ponto de Ihe colocar a mao no meio das nadegas que ela tinha bem feitas como duas metades de ameixa, embora as usasse cingidas, e quase nao as movimentasse acima das pernas nuas. O cabelo mais comprido da mulher do capitao, esticado pelos possantes dedos dele, deveria che-gar ao sitio onde se separavam as duas metades da drupa. A tarde desaparecia quente e clara como um bafo so ima- 26 27 ginado. O Sol no tröpico de Capricörnio girava na calote contraria do ceu. «Onde estamos, meu Deus?» — pergun-tou Evita. «A caminho do ultimo cälculo» — disse o noivo. «Depois diz que näo, que mmca mais queres voltar ä Mat...» — A felicidade dela era tanta que humedecia a ca-misa dele sem o desejar. A felicidade dos outros, dan-cando, tambem era identica. «Ainda haverä mortos, pela praia?» — perguntou Evita que näo queria levantar a cabeca da camisa. «Amainou» — disse o noivo sem se desembaracar da noiva, mas levando os binöculos aos olhos. O capitäo fazia o mesmo gesto em simultäneo. Quem sabe se a mulher dele nao teria colocado uma pergunta identica? Tambem a ruiva do cabelo cheio de lacadas parecia ter adormecido nos bra-cos de Forza Leal. Mas nem todos tinham saüde ou idade para aguentarem a forca da imaginacäo exigida pela alma, para se atingir a volüpia da danca slow slow sem nenhuma orquestra real. O pära-quedista lesionado, por exemplo, näo podia manter-se em pe por mais tempo, tendo de segu-rar a mulher e a muleta em simultäneo. Comecou a falar. Alias, näo incomodava nada ouvir falar, era ate uma espe-cie de fundo que desdramatizava a intensidade da müsica interna. «Äfrica Austral? Que Africa Austral? Mocambique estä para a Africa Austral como a Peninsula Iberica estä para a Europa — estäo ambas como a bainha estä para as calcas». «E a culpa? E a culpa?» — perguntou o major tambem jd sentado, mostrando aqueles risonhos dentes sobre a mesa. «Deles, da qualidade dos blacks que nos calharam em sorte!» — disse o pära-quedista lesionado. «Se tivessemos Udo uns blacks fortes, tesos, aguerridos, nös, os coloniza-dores, terfamos saido da nossa fraqueza. Eies e que säo os culpados, e se lhes parecemos fortes e porque eles mesmos säo extremamente fracos. So temos de os recriminar...» Um par encalhou numa mesa, mas nada escorregou nem partiu, apenas estremeceu.