A Vocagäo Historka de Portugal i Portugal hoje — um pais sonämbulo Portugal é hoje um pais sonämbulo. Quase um milhäo de desempregados no momento em que este texto foí revisto, 2 milhôes de pobres, outros tantos em risco de o ficarem se os apoios do Estado se esvaírem, 4 milhôes de analfabetos fun-cionais, 85% de pequenas empresas instáveis com menos de 10 trabalhadores, urna escala etária em acelerado processo de inversäo e urna taxa demográfica de regeneragäo a rasar o nulo, maior numero de divórcios do que de casamentos, urna oligarquia político-económica constituída por 10 a 20 000 burocratas impiedosos (a maioria ligada ao Partido Socialista e ao Partido Social Democrata) que se apoderou ferreamente da totalidade das estruturas administrativas do Poder e cujo nível cultural sobre a história de Portugal e comocäo sentimental face ä pobreza säo praticamente inexistentes, um sector imo-biliário envelhecido de casas apertadíssimas de duas e trés assoalhadas, urna política que se apoderou de todos os espacos públicos patrimoniais, exigindo subidos pagamentos para a sua frequéncia, esperas de 4 horas em servicos médicos de urgencia e de meses e por vezes anos para urna simples opera-cäo äs cataratas, 3 a 4 meses para urna operacäo de urgencia a um cancro. Subúrbios miseráveis próprios do terceiro-mundo, um relativismo ético entre os cidadäos que imita a corrupcäo nos negócios do Estado e a total falta de ética presente na vida de figuras políticas popularmente conhecidas, cujo exemplo 97 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRlCA de PORTUGAL (i)moral reside no oportunismo partidário, na ocupagäo desen-freada e terrorista de fungôes públicas sacando do Estado o máximo possível em honorários e regalias sob a complacéncia e o aproveitamento oportunista da restante classe política: uma auténtica mancha podre que infecta a totalidade da vida nacionál e corrói a dignidade de qualquer cidadäo eticamente nobre. Com tal elite imoral, que se assenhoreou dos postos governati-vos e dos lugares do Parlamente, meras cabecas de rebanho, totalmente desprovidas de cultura histórica, Portugal näo tem outro destino que seguir as solugóes formatadas que fizeram da Franca, da Itália e da Inglaterra países hoje historicamente decadentes, alvos da pena e do riso da comunidade internacionál asiática e do Brasil. E o portugués nada faz, reverencia santamente um presidente da república que se encontra no poder há 25 anos, res-ponsável por erradas opcôes políticas desenvolvimentistas e de apoio ao consumo que tornaram Portugal um dos países socialmente mais desequilibrados da Európa... e Portugal nada faz para contrariar esta situagäo a näo ser as clássicas e esgota-díssimas manifestacôes trimestrais da CGTP. Um classe média instável e urna classe alta constituída por menos de 500 0000 Portugueses fazem a economia portuguesa girar, trocam de carro de trés em trés anos, viajam em auto--estrada, enchem as lojas dos centros comerciais, fazem férias no estrangeiro, vivem no literal, consomem (poucos) jornais, livros, revistas e espectáculos, inundam as lojas "gourmet" e näo frequentam os hipermercados populares, abarrotados com os dois milhôes de pequeno-burgueses que habitam os bairros suburbanos do Cacém, do Seixal e do Valongo, consumindo barato e de fraca qualidade. Meio milhäo de Portugueses (classe média alta e classe alta) constitui o roste do nosso subdesen-volvimento, proporcionalmente semelhante ao Brasil (10 milhôes de muito ricos para urna populagäo de cerca de 200 milhôes), Argentína (um milhäo de ricos para cerca de 10 milhôes de habitantes) e da índia (menos de 100 milhôes de ricos para um biliäo e 200 milhôes de habitantes). Este, também, o resultado das políticas portuguesas dos Ultimos 30 anos, assentes mais na construgäo e no consumo e menos na formagäo e produgäo. Contraria ä nossa, que näo ultrapassa os 15% (contando a totalidade da classe média), a classe média de um pais atinge, na Europa, a proporgäo de 60% da populagäo, permitindo, sob e sobre o descalabro e o decadentismo politico, uma vida socialmente normal e um cidadäo ilustrado e activo. A progressiva e aceleradíssima informatizagäo electrónica da sociedade por via de urna ideológia sem rosto nem perso-nalidade, assente exclusivamente no controle e na seguranga, a funda queda demográfica anunciada para meados deste século e a escassez de casamentos tradicionais provám a existencia de urna profundíssima descristianizagäo de Portugal, de efeitos absolutamente imprevisíveis na criagäo de urna sociedade futura desprovida de éticas espirituais assentes em valores humanis-tas, porventura obediente a um totalitarismo tecnocrático e informático, pelo qual os Portugueses vindouros abdicaräo da liberdade em nome da seguranga e da abastanga. Desde a década de 1990, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da sociedade - a economia -, desprezando fundo os valores morais e espirituais próprios da cultura portuguesa, tem gerado na mente dos Portugueses uma represen-tagäo parcial de si próprios, que, incapaz de se elevar ä unidade de urna ideológia estruturada e consolidada, se caracteriza pela passividade cívica, compensada por urna hipervalorizagäo do individualismo, assente na formula amoral do "salve-se quem púder". Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto politico portugués carac-teriza-se hoje, nos comegos do século XXI, pela exaltagäo uni-dimensional do hörnern técnico, o homem-eficiente, o homem--contabilista, o homem-robótico, desprovido de consciéncia histórica global, funcionando exclusivamente segundo o duplo 98 99 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL horizonte de raciocínios técnicos quantitativos e consequentes objectivos. Náo säo políticos os nossos governantes de hoje, mas economistas (os falsos profetas do século XXI), técnicos, robots substituíveis uns pelos outros, possuindo o mesmo voca-bulário, aplicando invariavelmente o argumentário da eficiéncia de custos e proveitos, totalmente desacompanhados de uma dimensäo cultural e espiritual para a sociedade. Com efeito, o rasto ideológico que o pensamento por tu -gués tem deixado no campo das categorias culturais e das estruturas sociais tem sido contaminado pelos pecados da violéncia, do exclusivismo e do unicitarismo, numa palavra, do absolutismo. Čada corrente, cada tese, cada autor, porven-tura por efeito de cristalizacäo estrutural de uma mentalidade religiosa dominante em Portugal até aos finais do século XVIII, postulam-se como encontro soberano entre Verdade e Absoluta, deduzindo do seu estatuto magnificente a exclusäo de correntes, teses e autores contrários. Desde a segunda metade do século XYI, porventura desde a substituicäo dos mestres bordaleses pelos sacerdotes jesuítas no Colégio das Artes, em Coimbra, quebrando o tímido afä humanista de D. Joäo III, a cultura portuguesa tem vivido em estado de permanente cani-balismo cultural. Com raras excepcöes, temos sido senhores de um só pensamento e de um só objectivo. O pensamento por-tugués, por muitos nomes que tenha tido consoante os sécu-los, as influéncias e os modos, tem-se identificado com a forma estrutural de um pensamento do Absoluto, cheio, solido, con-vergente, feito de uma só pega, de base e cume exclusivistas, desconhecendo, senäo como efeitos retóricos, a angústia do inacabado, da incompletude, a existencialidade visceral e irra-cional do concreto, o rosto do outro como limite do proprio. Com efeito, do rosto do outro temos apenas querido saber do que nele se encontra de espelho iluminante do nosso. Caniba-lismo cultural significa, pois, esta sentida necessidade de apos-trofar a forma diferente, o pensamento alheio, as teses diver- gentes, as teorias destoantes, condenando-as ä negridäo do desrazoado, do desjuizado, do caótico, näo raro expressäo do mal, figura humana do demónio ou do irracional (proibicäo de livros do Index, da Real Mesa Censória e da Comissäo de Cen-sura do Estado Novo, devassa do Tribunal da Inquisicäo, auto--de-fé, combate contra os hereges, expulsäo pombalina dos jesuítas, expulsäo das ordens religiosas no liberalismo, expro-priaeäo de templos e espacos sagrados, perseguicäo carbonária, jacobina e republicana contra os jesuítas e a Igreja, conluio entre a Igreja e o Estado Novo na perseguigäo e prisäo de repu-blicanos, socialistas, "evangelistas" e comunistas). Com o pensamento assim purgado, o objectivo só pode ser um: a purifi-cacäo de Portugal e a reconversäo do outro, quando näo a sua anulacäo. Assim, se quiséssemos definir o tempo moderno e con-temporäneo do pensamento portugués entre 1580 - data da perda da independencia - e 1980 - data do acordo de pré-ade-säo ä Comunidade Económica Europeia -, passando simboli-camente pelo ano de 1890 - data do Ultimatum britänico a Portugal -, atravessando 400 anos de história patria, defini-lo--íamos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devo-rando uns aos outros, cada nova doutrina emergente des-truindo e esmagando a (s) anterior (es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peconhas a fazer desaparecer. Romanos ou eras-mitas, papistas ou hereges, dominicanos ou cristäos-novos, jesuítas ou "pombalinos", casticos ou estrangeirados, eclesiás-ticos ou macónicos, tradicionalistas ou modernistas, espiritua-listas ou racionalistas, cada corrente só se entendia como sólida e independente quando via o seu reflexo "puro" nos olhos aterrorizados e impuros do adversário, quando o desa-possava de bens, lhe subtraía o recurso para a sobrevivéncia e, em ultimo inštancia, quando o exilava, prendia ou matava, por 100 101 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA de PORTUGAL vezeš mesmo "matando-o" depois de este estar morto, como acontecia com a queima das ossadas em auto-de-fé (a exemplo dos restos mortais de Garcia da Horta, em Goa). Bom governo seria hoje aquele que, por múltiplos meios, apostasse em fazer de cada portugués, näo um robot técnico de fato cinzento, camisa azul e gravata verde ou amarela (actual fato-macaco do cidadäo técnico, que é sempře um cidadäo inconscientemente instrumento de cruéis estruturas económi-cas), mas um hörnern culto, consciente do seu lugar na socie-dade e na história. Portugal precisa menos de um choque tec-nológico (experimentado pelo pombalismo, pelo fontismo e pelo cavaquismo, cujas consequéncias em nada mudaram o nosso ser, limitando-se a uma mera actualizacäo de instru-mentos técnicos ao servico da sociedade civil e do aparelho de Estado) e mais de um choque cultural, elevando cada cidadäo a um exigente patamar de conhecimento humanista e cívico que, por arrasto, geraria inevitavelmente o desejado choque tecnológico. Primeiro, a cultura, o espírito, o sentido da transcendencia; depois, por inevitável arrasto de exigéncia cívica, o progresso tecnológico. A brutal inversäo destes valores pelos actuais governantes evidencia tanto a sua pobreza de espírito quanto o projecto pombalino desumanamente tecnocrático em que se encontram empenhados. Diferentemente, as medidas tec-nicistas, sem sentido moralmente transcendente, resumem-se a acentuar a vertente individualista e instrumental da educagäo e da sociedade, gerando cidadäos unidimensionais, submetidos exclusivamente ä omnipoténcia do dinheiro e ao prestígio narci-sista do poder, acentuando fortemente, desde a idade pré-escolar, os valores ligados ä tecnocracia: a inveja, a cobiga, a ambicäo egotista, a manha, a dissensäo. É um novo Portugal que está nascendo, sem sublimidade, sem espiritualidade, sem projecto superior äs suas forcas e ä sua dimensäo, o Portugal dos burocratas, dos técnicos, o Portugal dos engenheiros e dos economistas, o Portugal dos pequeninos, fun- dado no racionalismo tecnocrático, assente na omnipoténcia do mercado e do dinheiro, activando ideias exclusivamente utilitárias (com estes homens, no século XV, nem a Madeira teríamos desco-berto, nem Ceuta teríamos conquistado - os custos eram entáo, de longe, superiores aos benefícios imediatos, desconhecendo-se total-mente os benefícios futuros, a existirem), divulgando propostas soberanamente individualistas, um Portugal que - desossado de dignidade institucional, cata-vento que segue impulsos americanos (aprovagáo entusiasmada da Guerra do Iraque) ou chineses (recusa de recepcáo institucional ao Dalai Lama) - se submete a ventos internacionais dominantes, seguindo modas estrangeiras, incapaz de criar a sua propria personalidade. Um governo que se recuse dar privilégio institucional a um prémio Nobel da Paz como o Dalai Lama é um governo sem espirito, sem dignidade, que submete as suas decisóes á pressáo e ao arranjismo da conjuntura e náo a valores permanentes e uni-versais. Submete-se a modas (quadros interactivos na sala de aula), á omnipoténcia do dinheiro (encerramento de materni-dades, recusa de ceder um remédio a um doente canceroso devido ao seu custo), á circunstancialidade do momento (exemplo da náo recepcáo institucional de sua santidade o Dalai Lama): é um governo que separa a alma do corpo e entrega-se hedonística e disciplinadamente, com fervor neófito, ao engran-decimento do corpo. Breve, o corpo esbelto do governo, edu-cado em ginásios de classe média amorfa, bebedora de revistas de moda, se transfigurará em corpo robótico, informatizado, suprema sentinela do Estado na vigilancia ao cidadáo desen-carreirado. Sem valores a defender, tanto fará que seja um ministro com ou sem barba a falar na televisáo - será apenas uma máquina-humana a debitar um texto programado inter-nacionalmente pelos interesses económicos maioritários do planeta. Tudo o que nele fazia valer a dignidade humana, desapareceu. Desde os princípios děste século, tem-se procedido igual-mente a uma brutal alteracáo na natureza do Estado. Se este, 102 103 Miguel Real desde o 25 de Abril de 1974, representava e exprimia os inte-resses gerais da populagäo, concretizados num conjunto de direitos significantes do Bern Comum, com os recentes gover-nos, o Estado, alimentado por centenas de técnicos näo eleitos, nomeados por gabinetes ministeriais, vive para si proprio, subordinando o interesse geral do cidadäo ao interesse geral do orgamento do Estado. O Estado subsiste por si proprio, mutilando o cidadäo. Mutatis mutandis, regressou-se formalmente ao tempo de Pombal e de Salazar, politicos para os quais governar era menos atender aos desejos e necessidades da populagäo e mais aos interesses do Erário Regio ou do Orgamento de Estado. Em momentos de intensa e complexa ruptura social, a activi-dade política atrai para si os melhores de nos (Mario Soares, Sá Carneiro, Freiras do Amaral, Amaro da Costa, Pinto Balsemäo, Álvaro Cunhal, Antonio de Spínola, Ramalho Eanes, e todos aqueles que sacrificaram a sua vida pessoal, a sua profissäo e, näo raro, a sua fortuna äs necessidades da luta política, fun-dando o regime democrático em Portugal). Em momentos de normalidade, a actividade política atrai apenas os piores de nos (como no periodo do Rotativismo), habitualmente conscién-cias sociais mediocres que visam com o exercício politico, näo o Bern Comum, mas a exposicäo publica, a influéncia nos negó-cios, o narcisismo do retrato na via publica, mesmo que, por coagäo política, sejam forgados a praticar o mal social. O mal social consiste em diminuir o areo de amplitude da liberdade, em retirar direitos normais adquiridos expressos na lei e em subordinar a actividade civil aos interesses de uma ideia de Estado. Em Portugal, hoje, o Estado, prosseguindo a sua antiga vocagäo histórica, voltou-se de novo contra o cidadäo, rico ou pobre: o rico sugado maximamente pela máquina fiscal; o pobre, sacrificado numa vida que desespera de melhorar; todos, tra-balhando para alimentär a gigantesca máquina buroerática do A Vocacäo Histórica de Portugal Estado que tanto mais consome quanto menos favorece o cidadäo. Mais do que viver do passado religioso e marinheiro, como o Estado Novo o fez ao longo de 48 anos, Portugal ali-menta-se do futur o desde o 25 de Abril de 1974; primeiro do futuro socialista, terra sem mal e exemplo paradigmático para a Európa em 1975, e, depois, desde 1980, ano do acordo de pré-adesäo de Portugal ä Comunidade Económica Europeia, da ambicäo de sermos exelusivamente Európa, täo normais quanto qualquer outro cidadäo europeu - isto é, "técnicos" assépticos, inodoros, incolores e, de preferencia, sem opiniäo que näo a do chefe. Porém, como Eduardo Lourengo teorizou desde a década de 1980, tornámo-nos europeus no exacto momento em que este continente se abandonou a um piano inclinado decaden-tista, expressor de uma mortalidade anunciada a prazo, para o qual o federalismo mais sabe a urna necessidade de garantia de sobrevivencia de povos fracos comandados por chefes j ano tas e espertotes do que a uma refundagäo do antigo poder imperial. Em recente livro (Portugal. Ensaio contra a Autojlagdacäo, 2011), Boaventura de Sousa Santos explicita o quadro histó-rico e sociológico do desencontro entre Portugal e a Európa na passagem do século XX para o século XXI, evidenciando as contradigôes e disparidades históricas. Recentemente, o Estado portugués, imitando a Európa durante escassos trinta anos, garantia saúde, educagäo, reforma e esforgo de empregabilidade aos portugueses pobres. Sabem--se agora os portugueses conhecedores de urna outra Európa, a hidra decadentista que ľhes corta maternidades e escolas e lhes suga a reforma. Esta é hoje a real ideia de Európa na mente dos portugueses, com excepgäo da elite de 10 a 20 000 diri-gentes do Estado, que continuam a visionar a Európa como a terra do our o e do mel, ambicionando fazer carreira numa das mordomias europeias. 104 105 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÖRICA de PORTUGAL O actual Estado portugués constitui-se como a expressäo ideológica e económica desta nova Europa que os Portugueses pobres desconheciam, na qual o Estado, mais do que garantia de direitos civicos, exige do cidadäo o estrito cumprimento de deveres técnicos - a sua democracia, mais do que formal, goza de um estatuto meramente aparente, confundindo-se o grau de liberdade do cidadäo com o nível em que se instala na hierar-quia financeira. Näo existe democracia quando näo existe uma "consciencia e uma moral comuns", isto é, valores comunitá-rios de partilha e solidariedade como ämago da vivéncia social. Diferentemente, a nossa actual democracia é composta por jogos de interesses oligárquicos, de grupos, de baronatos, de pressöes políticas e financeiras, orientados por técnicos arran-jistas que costuram leis fragmentárias tendo em conta, näo o Bern Comum, mas o resultado do conflito institucional entre o interesse financeiro do Estado e os interesses grupais emer-gentes. Os ministros da Financas näo säo ministros, antes arran-jistas de orgamentos servidores dos exclusivos interesses do Estado, parceiro menor, por sua vez, de interesses económicos internacionais. Se, desde o 25 de Abril de 1974, o Estado esteve, melhor ou pior, ao servico do cidadäo, a partir de finais do século pas-sado evidencia-se que, por necessidades financeiras do proprio, o processo foi invertido: o cidadäo encontra-se agora ao servigo dos interesses do Estado. No justo momento em que Portugal é de direito e de facto europeu, 250 anos após o esforgo pombalino para se tornar económica e politicamente europeu, a Europa, o continente da liberdade, da democracia, da riqueza e do humanismo, como fora idealizada pelos grandes mestres pensadores a partir do Renascimento, chega igualmente ao seu fim enquanto territó-rio poderoso, transfigurando-se, face aos ingentes problemas ambientais do futuro, ä escassez de recursos naturais e ä acele- rada diminuigáo demográfica, num continente periférico domi-nado por uma tecnocracia política, mais interessada em garan-tir o acesso a água potável e á rede mundial de distribuigáo de energia do que em votos civicos a favor do clássico humanismo europeu. Portugal apanhou o comboio europeu quando este náo só desacelerava do seu antigo crescente poderio politico e cultural como, inclusivamente, já burocraticamente travava a sua velocidade de inovagáo, de criatividade, de crescimento de riqueza e influéncia internacional, totalmente dependente do poderio americano, que imita como um macaco de circo, como o provou a Cimeira dos Agores. O portugues, um povo que na sua longa história nunca conhecera direitos de monta, logo que os alcangou, a seguir ao 25 de Abril de 1974, simulando-se parceiro definitivo de uma genuína consciencia social europeia, logo lhes foram furtados em nome do rigor de um orgamento de Estado que sempře tem sido madrasto para as populagóes pobres, antes a maioria do pais, hoje cerca de dois milhóes de Portugueses. Tem sido exemplar a resposta da populagáo á tecnocracia militante que nos governa desde a década de 90: socorrendo-se de um fenó-meno recorrente na nossa sociedade, cerca de 100 000 Portugueses emigram por ano. Um milháo de portugueses emigrou em 10 anos. Espantoso! Hoje, nos comegos do século XXI, cumpriu-se o desígnio pessoano, que visionava o Portugal actual como uma sociedade profundamente provinciana, isto é, complexada: "o nosso provincianismo consiste em estar, em viver, numa civilizagáo, sem verdadeiramente fazer parte dela e do seu desenvolvimento". Foi azar, apanhámos o comboio certo (a Europa) no tempo errado. O Portugal que as geragóes nascidas até á década de 1960 conheceram encontra-se em vias de desaparecimento, transli-gurado em mais uma das inúmeras regióes da Europa,. go ver-nado por técnicos medíocres que, lentamente, em nome da 106 107 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA de PORTUGAL seguranga internacionál, da caréncia de reairsos naturais, on de outra justificagäo, preparam uma futura ditadura tecnocrá-tica. No futuro, porventura no virar deste para o proximo século, Portugal transformar-se-á em mais uma das inumeras regiôes singulares da Európa, culturalmente täo importante e exotica como a Alsácia ou a Andalúzia, guardando dentro de si, nos seus museus regionais ou nacionais, o retrato de uma velha cultura de 800 anos morta äs mäos de um grupo de engenheiros e economistas sem espírito histórico, de uma tec-nocracia sem rosto nem alma, para quem conta só, primeiro, a contabilidade das estatísticas, e, segundo, o sentido europeu das estatísticas. A História, a Cultura, a Identidade, o Espírito, o sentido individual e colectivo da Transcendencia, a educagäo para a partilha e a espiritualidade, säo encarados, por esta mentali-dade técnica, como meras cócegas da alma, jarrôes da China sempře agradáveis de ostentar no hall de entrada da vivenda suburbana. No dia em que o portugués for igual a qualquer europeu na educagäo, no trabalho, nas férias, nas conversas, nos divertimentos, o arcaico Portugal que ainda conhecemos, mais supersti-cioso (Fatima) e menos devoto, mais generoso e menos interes-seiro, mais altruista e menos egoista, mais emotivo e menos racionalista, mais comunitário e menos calculista, mais sau-doso e menos modernista, mais lírico e menos cientificista, este Portugal - dizíamos - terá findado, dando origem a urn novo Portugal onde os Bancos e as Companhias de Seguros substituiräo as Misericórdias - e o Estado, mais do que garan-tia da existencia livre do cidadäo, ter-se-á tornado no superior controlador da existencia individual. Se quiséssemos resumir o que tem sido o novo pensa-mento portugués desde a entrada de Portugal na Európa, podíamos sintetizá-lo neste dois títulos - pragmatismo e pers-pectivismo, ambos animados popularmente pela mentalidade retórica e dialéctica dos meios de comunicagäo. Neste sentido, nada de original nasceu em Portugal nos Ultimos trinta anos que se evidenciasse como sendo o contribute nacionál para a cultura europeia - na poesia somos euro-peus; no romance, somos europeus; na ciéncia, somos europeus; na técnica, somos europeus; na religiäo, somos europeus; na filosofia, pragmáticos e perspeetřvistas, somos europeus. Trinta anos depois, os portugueses sentem essa impotén-cia de näo sérem outra coisa que os seus amigos e vizinhos säo, sentem um vazio ontológico, um cogito negro que pensa por eles, um fogo e um gelo que queima as entranhas de Portugal, limitando-o. Os políticos portugueses e muitos intelec-tuais, já plenamente europeus, desprezam este sentimento popular de impoténcia, tendo dele uma vaga intuigäo, que os forga a recusar terminantemente uma consulta popular sobre o papel de Portugal nas instäncias comunitárias europeias. A mentalidade europeia encontrou fracas resisténcias para se impor em Portugal nos Ultimos trinta anos, tal era o desejo popular de superar a pobreza e o analfabetismo a que Portugal parecia historicamente condenado. A Europa era vista, näo como o armazém de secos e molhados, segundo Agostinho da Silva, mas como um hipermercado de luxo, riqueza, abundän-cia, individualismo e ostentagäo. Com uma guerra de 13 anos äs costas, um Império anaeró-nico e uma política autoritária ao longo de cinquenta anos, sen-tíamo-nos mal com o nosso proprio corpo. A Europa constituiu a materializagäo do sonho adolescente de Portugal. Virámos as costas ao Império e oferecemo-nos a uma jovem demoeracia, acreditando na riqueza material como panaceia da felicidade. Povo rural e comerciante, quisemo-nos, mais do que industria-lizados, informatizados; povo pré-moderno, quisemo-nos pós--modernos; povo comunitário, acolhemos sorridentes o individualismo, o narcisismo e o egoísmo como fins de vida; povo solidário, vimos instalar-se entre nós uma abissal diferenga entre pobres e ricos; povo que era conhecido na Europa pelos 108 109 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL bigodes das concierges parisienses, passámos a ser conhecidos pelo povo de um miúdo da Madeira de pés täo cheios de mala-barismo quanto de mente väzia e de um treinador täo megaló-mano que a si proprio se intitula "Special One". Trinta anos demorámos a perceber que o sonho da Europa näo passa disso mesmo, um sonho que estava em nós e näo na Europa. Nós "víamos" a Europa que sonhámos para Portugal. A Europa da riqueza, a Terra sem Mal, a Terra do Rio de Améndoas e Mel esfuma-se todos os dias na farsa bailada entre politicos janotas como Berlusconi, Sarkozy e Blair, que da orga-nizacäo do viver colectivo possuem apenas um senso econó-mico. Hoje, já percebemos que o sonho europeu foi um falso sonho: - Em 25 de Abril de 1974, éramos o pais menos indus-trializado da Europa, hoje continuamos a sé-lo; - Éramos um dos países mais iletrados da Europa, hoje continuamos a sé-lo - menor índice de frequéncia de espectá-culos, de consumo de jornais, de compra de livros... - Em contrapartida, éramos dos países com maiores está-dios da Europa, hoje continuamos a sé-lo; - Éramos dos países mais pobres da Europa, hoje continuamos a sé-lo; - Éramos dos países com maior nível diferenciál de salá-rios, hoje continuamos a sé-lo; - Etc, etc. Näo há dúvida - a culpa näo é da Europa, que nos forcou a sermos democratas e a aceitarmos a tolerancia e os direitos humanos como vector ético e existencial de vida. Culpadas säo, sem dúvida, as elites portuguesas, que nos Ultimos trinta anos promoveram uma auténtica razia dos valores tradicionais Portugueses: a solidariedade substituída pelo individualismo; a cooperacäo substituída pela competicäo como valor econó- mico absoluto; os valores da honestidade, da amizade, da leal-dade, substituídos pela omnipoténcia do dinheiro; os valores espirituais substituídos pelos valores económicos; a pessoa humana igualada ä peca de uma máquina. O saldo europeu hoje, se bem medido, para além do valor da democracia e da tolerancia, já interiorizados pelas novas geracôes, mede-se menos em sabedoria, humanismo, conhe-cimento e felicidade, e mais em betäo, alcaträo, cimento e desemprego - eis a heranca cavaquista. Porém, mesmo a expan-säo acelerada do consumo, santo-e-senha da mentalidade euro-peia, se está esfumando aos primeiros sinais de uma crise eco-nómica internacionál. Ao mesmo tempo que, de um ponto de vista manifesto, a mentalidade europeia submergia todas as nossas iniciativas, iamos inconscientemente fazendo um penoso trabalho de luto - luto pela perda do Império; luto pela perda de um Portugal rural, lento, sereno, humilde, honesto na palavra, supersti-cioso, um Portugal dos valores absolutos, dos imperativos éti-cos, um Portugal aberto ä totalidade do mundo, o Portugal solidário do interior das famlhas, o Portugal da palavra dada aos amigos, do dar a camisa aos amigos, o Portugal perma-nente de Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva. Hoje, näo nos procuramos já na Európa, temos conscién-cia de que o sonho ingénuo europeu acabou. Percebemos que, sem desculpa, só nos podemos encontrar em nós próprios, retomando as nossas tradicóes, näo sentindo vergonha por nada que no passado tivéssemos feito. Se é verdade que o sonho europeu se está esfumando, ele ainda näo se apagou (nem se deve apagar), já que constitui o sentido politico do Estado portugués. Porém, existe hoje, em Portugal, uma alternatíva ä Európa sem que desta nos tenhamos necessariamente de desvincular, uma alternatíva de futuro aos actuais valores europeus (que, verdadeiramente, já säo mais os valores ameri-canos que europeus) sem o corte radical com a Európa - o 110 111 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRlCA DE PORTUGAL retorno á antiga comunidade de lingua portuguesa: a lusofo-nia. De facto, existe uma nova geragáo que, desejando um futuro diferente para Portugal, assume sem complexos neo--colonialistas a existéncia passada do Império, projectando-o no futuro da lingua comum. O que tem esta nova geragáo para dar? Nada, a náo ser a vontade e o entusiasmo de transformar o passado comum num futuro comum assente numa lingua comum e num espirito comum. Que esta nova geracáo náo tenha medo, náo sinta medo, abrindo um novo horizonte a Portugal, o primeiro grande horizonte ético aberto a Portugal no século XXI. Assim, teorizadas por Teixeira de Pascoaes, Francisco da Cunha Leáo, Eduardo Lourenco, Antonio José Saraiva, Agosti-nho da Silva, Guilherme d'Oliveira Martins e sintetizadas por Jorge Dias, as características classicamente atribuidas aos Portugueses, corroboradas por autores estrangeiros de passagem pelo nosso pais, como a lentidáo, a generosidade sem limites, um espirito emotivo anti-racionalista, um povo voltado para o sonho e o passado, alimentando-se espiritualmente da saudade, imprevisível nas suas acgóes, desprovido de calculismo tácito, "desenrascado", capaz de fazer a ponte ("capatazia") entre gru-pos dirigentes e populacoes rudes, um portugués eternamente vocacionado para a emigracáo, desenvolvendo um rijo "com-plexo de ilhéu" (Vitorino Nemésio, Antonio José Saraiva) -todas estas características, a que deveriamos acrescentar um lirismo espiritual congenita (Joáo Gaspar Simóes, Jacinto do Prado Coelho), encontram-se em vias de desaparecimento, esma-gadas por uma apressada e selvagem integracáo pombalina e cavaquista na Europa, náo sensata, filtrando desta o que gra-dualmente se podia aclimatar ao nosso ser, mas, intempestiva, comandada por uma nova geragáo de engenheiros e economis-tas totalmente desprovida de espirito histórico, fazendo desabar sobre a cabeca de cada portugués uma catadupa de costumes exóticos descristianizados e desumanizados, revolucionando o papel do Estado no interior da sociedade, desguarnecendo de garantias de futura qualidade de vida os mais de dois milhôes de Portugueses pobres. O Marqués de Pombal, há 250 anos, prosseguindo a poli-tica régia de D. Joáo V, tudo concentrou no Estado - povo, pais, colónias, nagäo viviam para o Estado, recebendo deste a derrama de uma felicidade sempre anunciada e nunca cum-prida; as elites politicas portuguesas do século XXI, engenheiros e economistas ignorantes da história de Portugal, obede-cendo reflexa e mecanicamente a modas internacionais, como se o Portugal de hoje fosse a Alemanha ou a Suécia de hoje, prolongam a politica pombalina, acusando o povo - um povo com 800 anos de existéncia - de arcaico, incapaz, estúpido, "piegas", envergonhando-se da nagäo genuina que comandam, estatuindo-a como supremo instrumente de entrave ao desen-volvimento do pais, esquecendo-se (por ignorancia cultural, por modismo europeu, por mimetismo americano - enfim, por infantilidade historka) do importantissimo papel do Estado na salvaguarda do futuro das populagôes do interior e dos mais de dois milhôes de carenciados. O endeusamento da mäo invi-sivel do mercado por engenheiros e economistas que dominám actualmente o Estado portugués - técnicos sem rosto - possui valor metafísico idéntico ä antiga crenga portuguesa na mäo invisível e milagreira de Deus, crenga que sustentou Portugal cerca de 250 anos, gerando a singular recepgäo colectiva das "aparigôes" de Fatima. No termo desta experiéncia portuguesa (mimetizada a papel químico do estrangeiro, desprovida de originalidade -como sempre tém funcionado as elites portuguesas), Portugal, na sua posigäo relativa face aos países mais ricos da Europa, permanecerá como se encontra desde o reinado de D. Joáo III: na base da tabela; entretanto, era nome da saúde do Estado, em nome de um orgamento metafísico e de urna canina imita- 112 113 Miguel Real gäo do pior da Európa, teräo sido eliminados os curtos direitos ganhos pelas populagóes desde o 25 de Abril de 1974 (ter escola na sua terra, ter maternidade na sua terra, ter assisténcia hospitalar na sua terra, ter suficiente dinheiro para ir ao dentista, ter reforma garantida). É um Portugal solto, desregrado, cheirando alarvemente a dinheiro, os ricos por o terem, os pobres por o desejarem, todos por nas "índias" o espreitarem, isto é, na mirífica Európa. É o Portugal de D. Joäo III (menos de 30 anos depois da morte de D. Joäo III tínhamos sido con-denados ä inexisténcia por Castela), o Portugal do "Nada para que caminhamos" da Marquesa de Alorna, um Portugal mere-cedor de um Gil Vicente, que infelizmente näo há. É a orgia báquica dos técnicos cinzentos e dos políticos janotas antes da grande derrocada, como aconteceu na segunda metade do século XVI e na passagem entre os séculos XVIII e XIX. Portugal hoje é uma sociedade profundamente dividida: as famílias ricas, mais ricas ficam a cada dia que passa, e os pobres, mais pobres väo ficando, sem esperanca social de futuro, sem possibilidade de aforrar urna poupanca que os liberte da pobreza. As classes média, média-alta e alta vivem mergulhadas num elemento hedonístico - a fruicäo do prazer imediato e da especulagäo em terrenos, casas e depósitos ban-cários constitui o seu único objectivo de vida. Para tanto, contribuem os ginásios para a manutengäo de um corpo belo, musculatoriamente proporcionado, auxiliados por cirurgias esté-ticas, férias no estrangeiro, nos trópicos no Veräo e na neve no Inverno, duplo, triplo cartäo de crédito, mudanga de carro novo de tres em trés anos, abundantes canais de televisäo de mero entretenimento, enriquecimento fácil através de artimanhas ban-cárias, cujo peso, em ultima análise, recai sobre o consumidor, prática de desportos finos... Do outro lado, as classes baixas, no seu todo mais de 70% da populagäo, vivem em estado de pauperizagäo estóica, de pobreza ou quase-pobreza (com a A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL perda de emprego, cai-se de imediato na pobreza). Para estas, carne de porco (a mais barata) e conservas enlatadas com abun-däncia constituem a alimentagäo diária, suada por uma hora e meia para lá, outra para cá, de transportes entre os bairros suburbanos e o trabalho. Urna sociedade täo profundamente desequilibrada deveria conduzir a revoltas sociais aceradas. De um lado, hedonistas, com a classe política no posto de comando; do outro, estóicos ä forga, suportando esforgos väos e sacrifícios inúteis, já que nunca conduziräo a um relativo enriquecimento ("chapa ganha; chapa gasta"). Näo parece haver lugar em Portugal para urna "ética da sensatizagäo", defendida na década de 70 pelo Padre Manuel Antunes, urna ética de proporgóes equilibradas, onde todos ganhassem proporcio-nalmente ao seu saber e ao seu mérito. Entre estes extremos sociais, pulula o oportunismo (a inscrigäo no Partido Socialista ou no Partido Social Democrata, näo por convicgäo, mas para subir na vida), o compadrio (a cunha do pai ao amigo para empregar o filho), a esperteza saloia (a ocupagäo de cargos económicos pelos políticos; a abertura de concursos públicos ä medida de um concorrente), o chico-espertismo (o servilismo perante o superior; os negócios por baixo da mesa). Socialmente, em Portugal tudo se encontra desequilibrado, as classes baixas consomem os produtos de baixa qualidade das lojas dos chineses, reproduzindo para os filhos um gosto esté-tico de duvidosa qualidade, os ricos (näo os muito ricos) evi-denciam-se culturalmente como auténticos burgessos. Em nome do "mercado", Portugal vive hoje, desde que Cavaco Silva chegou ao poder, o mais feroz dos individualis-mos da sua história, gerando, em contrapartida, um confor-mismo sonämbulo em que cada um se culpa a si proprio por näo ser "vencedor", por näo ter sido capaz de se arrancar da pobreza dos pais e do bairro. Todos pensam "cada um que se arranje", todas as vias oportunistas, mesmo as ilegais, säo legi-timadas desde que näo se seja "apanhado", já que todos väo 114 115 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRlCA DE PORTUGAL ganhando consciéncia de que "ninguém enriquece a traba-lhar". Todos väo tendo um minimo para sobreviver, urn acon-tecimento catastrófico (como o desemprego) é amparado pela família, pela horta familiar, pelo cabrito ou o porco que o pai ou o avô guarda na aldeia. Jovens, negros e brancos, dos bair-ros suburbanos, lancados no mercado de trabalho aos 15 anos, logo constatam que, auferindo o ordenado minimo, precisaräo de trabalhar 50 anos para juntar dinheiro suficiente para com-prarem um carro e formám gangues, praticam o carjacking, assaltam estacöes de servico, mini-mercados, langam o terror em praias e comboios, reúnem-se em guetos (Bela Vista, Cova da Moura, Buraca, Mira Sintra, Rio de Mouro, Cova da Pie-dade...). Todas estas situacöes horrorizantes säo devolvidas ä populacao no telejornal diário, acendendo-lhe o medo, tran-cam-se portas, gradeiam-se janelas, acciona-se o alarme do carro. Uns resignam-se, vivem em estado de permanente medo (as mulheres sempre com duas mäos na mala de alcas quando passeiam nas ruas), outros - os melhores de nós - emigram: 100 000 Portugueses desistem de Portugal em cada ano, emi-grando para a Europa, o Canada, a Austrália, as ex-colonias. Os que cá ficam, caminham para a näo-existéncia, o "nada" portugués de que falava a Marquesa de Alorna, urna existencia sem outro sentido que trabalhar para comer e comer para trabalhar, o futebolzito ao domingo para acordar os nervos e sentir-se vivo, sonämbulo mas vivo. A entrada na Comunidade Europeia acelerou a formagäo da classe média, que se pretendia vasta na década de 80 e, ano a ano, tem vindo a decrescer quantitativamente, assentando hoje, de um modo muito instável, em cerca dos 15%, dos quais 5% se encontra sobreendividada e outros 5% com emprego instável, possuindo segundo emprego (um "biscate"), com o qual paga as despesas da frequéncia universitária do filho. Metade da actual classe média náo suportaria dois filhos simultaneamente a frequentarem a universidade, sobretudo se um estudar fora da cidade de residéncia, vendo-se obrigada a vender património (um terreno herdado dos avós). Nos livros de economia, escritos por filhos da classe média universitária, desponta o orgulho estatístico do que Portugal fez nos Ultimos trinta anos - taxas de escolaridade, taxas de diminuigäo de mortalidade infantil, taxa média de esperanga de vida... Porém, falhos de memoria, os mesmos economistas esquecem, por um lado, que os feitos de Portugal nos Ultimos 30 anos náo se devem exclusivamente a Portugal, talvez mesmo näo se devám em absoluto a Portugal, mas ás leis, ideias, empresas, fundos e instituigöes europeias, que a tal nos forga-ram. Abandonados aos nossos governantes, aos nossos empre-sários, aos nossos recursos e ä nossa competéncia, as estatísti-cas continuariam a apontar para urn pais do terceiro-mundo, reforgando a disparidade social de 500 000 ricos para 10 milhöes de pobres. Neste sentido, se Portugal deve agradecer as bén-gäos recebidas no pós-25 de Abril de 1974, deve agradecé-lo ä contribuigäo europeia e aos políticos fundadores da democra-cia, presentes na Assembleia Constituinte de 1975, e nunca ä patética e ignorante classe política que nos governa desde a década de 80, que trocou voluntariamente a aposta na competéncia técnica e cultural de cada portugués por mäos cheias de milhöes de escudos e euros doados ao cimento, ao betäo e ä construgäo. Por outro lado, a nossa situagäo ante-25 de Abril era socialmente täo intolerável e insustentável em termos europeus, que qualquer melhoria introduzida, por minúscula que fosse, figurava-se logo como um salto gigantesco. Para urn pais imóvel meio século, um pequeníssimo movimento sugere uma velocidade aceleradíssima. Face ao esgotamento da 1 República e ä mediocridade dos chefes dos principais partidos políticos, Basílio Teles, Antonio Sérgio e outros republicanos defenderam a existencia de uma ditadura provisória no sentido de repor a esperanga popular numa remuneragäo decente, o direito a alugar uma casa, a 116 117 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL comida na mesa e escola para os seus filhos (o analfabetismo atingia 75% da populacäo). Näo é este hoje um caminho a trilhar. A democracia e a liberdade constituem-se como fundamentos indiscutíveis e ina-peläveis da cidadania, impossiveis de substituicäo por arreme-dos civicos controlados pelo Estado. A liberdade identifica-se com a raiz vital da inovacäo social e a democracia com o espaco publico de cruzamento de todas as actividades e par-ticipacöes do cidadäo. Säo princípios e fundamentos näo nego-ciáveis. Porém, face ä degradacäo permanente da sua situacäo e ä impossibilidade de um principio de visäo de esperanga no futuro, um povo sonämbulo, estado de existéncia em que o actual povo portugués vive, pode aceitar passivamente trocar a liberdade pela seguranca e pelo bem-estar. Näo temos dúvidas sobre a vocagäo1 histórica actual de Portugal. Com efeito, integrado na Europa desde 1980, a vocacäo de Portugal identifica-se com a vocagäo da Europa, e esta encontra-se tragada, desde a Revolucäo Francesa de 1789 e a Revolugäo Industrial inglesa do século XIX, por um aceleradís-simo e bem visível processo de descristianizagäo dos costumes e da ética: a gradual permissividade com a filosofia da eutaná-sia, apresentando-a como uma realidade necessäria face a novas doengas incuráveis, ao desfalecimento e ä corrupgäo do corpo motivados pela crescente aumento da taxa de esperanga de vida; a extingäo de feriados religiosos em nome da compe-titividade económica; abertura do grande comércio ao domingo; sacralizagäo das leis do mercado económico, näo como parte integrante da vida da comunidade, mas como reitoras desta; rebaixamento dos valores da cidadania, substituindo a pessoa ética pelo individuo mercantilizado; substituigäo de Cristo, 1 "Vocagäo" significa, aqui, fortissima inclinacäo condicionada pela con-juntura histórica maioritária. Recusamos usar o termo "destino historko", usado por Jorge Borges de Macedo, por näo aceitarmos qualquer tipo de determinismo historko. Filho de Deus, por Cristo icone de santidade e exemplo de homem bom, amontoando a sua imagem e a sua adoragao no friso indistinto de inumeros homens bons, de Ghandi e John Lennon a santa Teresa de Calcuta e Martin Luther King; corte dos vinculos entre a comunidade e o individuo: os interesses individuals (pollticos, empresarios) ou grupais (partidos poli-ticos, grandes empresas) sobrepoem-se e dominam o bem comum comunitario, levando a que as instituigoes intermedia-rias - familia, escola, trabalho, Igreja, Estado - nao funcionem como mediadoras culturais, sociais e morais; o privilegio atri-buido ao sentimento oceanico das massas (comicios, manifes-tagoes, futebol, espectaculos televisivos, grandes concertos juvenis); o abuso demagogico da democracia, amortecendo, quase inutilizando, o poder da critica e do livre pensamento, uma visao do mundo fundada na opiniao vulgar, popularucha, sem bases racionais fundamentadas (a nao ser a propagan-deada pelo Estado ou pela televisao) cujo desfecho, a prazo de 200 a 300 anos, caso nada seja feito, conduzira a Igreja crista ao papel de uma seita classica exotica, minoritaria, substituida por novas formas sociais e individuals de exploragao da espi-ritualidade humana, algumas das quais de caracter electronico e bio-farmacopeico. Apos o colossal falhango historico do mar-xismo, anteve-se para a Europa decadente a emergencia de urn super-Cristo num prazo nao muito dilatado, um Cristo com parabolas informaticas e solugoes biogeneticas, apontando para uma transcendencia menos expiativa e sacrificial e mais hedo-nista, espiritualizando as energias libidinais humanas. De mae da cultura ocidental, seja pela enformagao dos valores da Biblia Velha no tecido social, seja pela afirmagao politica, social e espiritual do Novo Testamento, resgatando para o seu seio, como vimos no primeiro capitulo, tragos mar-cantes da cultura greco-latina, o cristianismo tern vindo len-tamente a ser assassinado, ao longo dos seculos XIX e XX, nao pelo antigo jacobinismo carbonario e magonico, mas tan to 118 119 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL pela indiferenca geral dos cidadäos quanto pelo reapareci-mento dos elementos sociais e culturais que ao longo da sua existencia foi negando e recalcando - o espirito do paganismo, o espirito da democracia grega e o espirito da república romana. Paganismo, democracia e república - os trés elementos culturais da génese da civilizagäo ocidental assassinados impiedo-samente pela igreja crista - que, como espectros do passado histórico, reintroduzidos mutatis mutandis na sociedade euro-peia contemporänea, tém vindo, por sua vez, a assassinar em lume brando o cristianismo. Näo conhecemos melhor expressäo cultural para subsumir este fenómeno histórico que o termo vinganca do recalcado, da autoria de Eduardo Lourenco. De facto, o racionalismo cristäo ocidental esmagou todas as tendéncias culturais marginais, ape-lidando-as de bruxaria e heresia, mágia, fundadas na supersticäo popular, a merecer garrote e fogueira. Ou seja, desde os primei-ros concílios romanos que toda a cultura ocidental (Igreja, Estado e intelectualidade racionalista) se moveu num esforgo de aniquilamento do que a Igreja considerava ser o conjunto de crendices populäres, de mitologias idólatras, de superstigôes gentias e pagäs e de barbarismos heréticos (mitos étnicos escan-dinavos, folclore irlandes e celta, esoterismo alquímico, caba-lismo judaico, gnose alexandrina, hermetismo egípcio e asiático, astrológia suméria, paganismo africano e ameríndio, ...), consi-derando o conjunto destes saberes como pertinente a urna fase infantil, pré-lógica e deveras ultrapassada da humanidade contemporänea onde brilharia, espléndida, a luz branca da razäo clara. Desde o século XIX que se recupera para o campo dos costumes esta vasta produgäo cultural, considerada marginal äs instituigöes eclesiásticas, políticas e universitárias euro-peias: a mágia, o esoterismo, o hermetismo, o templarismo, a feitigaria, o milenarismo, o paganismo, o misticismo individual, o espiritismo, acrescentando-lhe, ou melhor, envolvendo-a em trés elementos contemporäneos singulares: a) a panóplia de mitos tecno-urbanos dos finais do século XX (droga, rock, esquizofrenia social, hippismo e hup-pismo), integrando-os num esquema espiritual escatoló-gico "NewWave"; b) a redugäo de toda a tradigäo axiológica da civilizagäo ocidental (celta, hebraica, egipcia, crista, gnóstica, filosofia grega, asiatismos interpretados ä europeia) a um sincre-tismo espiritualista de tom individualmente messiänico e de carácter esotérico ou ocultista (alquimia, feitigaria, demonologia, vampirismo, angeologia, hagiografia) que, parece-nos, só um brasileiro, cruzamento das culturas europeia e americana do norte, mas destas exterior, seria capaz de fazer; c) de um modo liberal, seguindo a mentalidade da década de 90 do passado século e da primeira do nosso século, concentragäo da espiritualidade e do sincretismo numa visäo eminentemente individual e optimista de vida ("dar a volta por cima", como dizem os brasileiros), uma men-sagem extra-cultural dirigida, näo a eleitos, mas "ä gente comum", despindo o ocultismo do secretismo e secta-rismo que sempře lhe tinham sido inerentes e fazendo cada um sentir-se responsável pelo seu proprio destino individual. 120 121 Mořte e ressurreigáo de Portugal Face á avalanche de costumes europeus e ao domínio destes sob a forma mentis actual de Portugal, espelhando em perfeigáo a mentalidade actual da Europa (individualismo, relativismo ético, hedonismo moral), só a lingua e a cultura tradicional por-tuguesas, como verdadeiras plataformas nacionais, nos separam em absoluto da Europa. No futuro, porém, o cosmopolitismo urbano europeu, espelhado na predomináncia da lingua inglesa, vencerá sem dificuldade o nacionalismo das línguas, como no passado o latim venceu as línguas e os dialectos nativos, como o inglés věnce hoje sem dificuldade as línguas autóctones da índia, unificando o pais sob e sobre a diversidade de crencas religiosas e a multiplicidade de culturas, como o portugués, enquanto lingua de Estado, antiga lingua do colonizador, uni-fica hoje os novos países lusófonos. A pretensáo de cada lingua nacionál se elevar a lingua ofi-cial das instituicoes políticas e económicas europeias, gerando uma sobrecarga burocrática e financeira, constitui um expresso provincianismo, manifestagáo das categorias de uma mentalidade nacionalista. Esperamos - num futuro ainda longínquo -o aparecimento de uma nova geragáo de políticos europeus liberta do legado nacionalista romantico europeu, táo respei-tadora da tradigáo quanto interprete das novas necessidades continentais, que finde definitivamente com os nacionalismos castigos e conservadores, reduzindo-os a novos regionalismos: o que fora nagao, converter-se-á em regiáo, dotada de gover- 123 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL nos e parlamentos regionais, animada por uma cultura regional, uma lingua regional, ensinada nas escolas como testemu-nho da memoria histórica dos anteriores mil anos da Europa. Como nos países africanos e asiáticos que usam a antiga lingua do colonizador europeu, a unificacäo do sistema económico e do sistema politico continental exige uma lingua única, bem como a criacäo de uma nova cultura, verdadeiramente euro-peia, assente nas novas realidades cientificas da biotecnologia, das ciěncias electrónicas e informáticas, na nova postura ética sobre o ambiente e na integral defesa dos Direitos Humanos ao nível planetário. Uma nova cultura europeia que reintegre os valores criados pela história conflituosa da Europa ao longo dos 3 000 anos anteriores, sobretudo os valores presentes no permanente (embora circunstancial a cada momento da sua história) humanismo europeu (humanismo grego, humanismo romano, humanismo medieval, humanismo renascentista, humanismo protestante, humanismo cientifico, industrial e tecnocrá-tico e humanismo liberal). Para esta novissima cultura, cujo anúncio mais se adivi-nha que se entrevé, Portugal contribuirä, näo com uma face científica ou tecnológica, antes com o permanente suplemento de transcendéncia, de espiritualidade e de lirismo que tem ani-mado a sua cultura, evidenciando tanto a ética estóica do seu povo quanto um novo grito h'rico e urn pensamento proble-mático, evidenciado pelas obras de Fernando Pessoa, Fernando Gil, Boaventura de Sousa Santos, Eduardo Lourenco e Viriato Soromenho-Marques. O Portugal morto, nacionalista e imperial, identificar-se-á com Luis de Camöes e o epicismo glorioso d'Os Lusiadas como o Portugal ressurrecto brilhará com nova luz a partir da obra de Fernando Pessoa, o verdadeiro "supra-Camöes" por si anun-ciado, e a tematizagäo filosófica, cultural, social e ambiental a partir das obras, de cunho universal, dos pensadores acima referidos. Continente sempře incompleto, sempre espiritual e social-mente inacabado, como o designa Borges de Macedo, a Európa só pode ressuscitar incorporando: 1. uma nova ética, fundada nos resultados da ciéncia; 2. uma nova moral, fundada na transcendéncia do valor do homem e da humanidade, substituta da moral crista, fundada na sacralizagäo da transcendéncia religiosa; 3. uma nova axiologia, fundada no respeito pela Natureza e por todos os animais sensientes. Assim, o futuro europeu unificado apontar-nos-á uma nova visäo global do mundo e uma nova crenga socialmente popular assente em trés realidades sacralizadas: 1. o valor das novas ciěncias pós-descoberta do átomo e do neurónio (biológia, neurológia, genética, química, robótica, ciěncias informáticas...), cujos resultados criaräo uma nova visäo do homem, relativista mas austera, sábia mas espartana, lúcida mas estóica, salvando o homem das suas actuais tenta-gôes diabólicas (o consumismo, o desrespeito pelos equilíbrios da Natureza, a manipulagäo de multidôes através de informa-gäo tendenciosa, a diferenciagäo social, a fome, a miséria eco-nómica, o fanatismo religioso, a imbecilidade das massas); 2. o valor do Homem e da Humanidade como valores uni-versais, evidentes por si, transcendentes, inconsúteis e inamo-víveis, que nenhuma propaganda política poderá desrespeitar, gerando a sacralizagäo dos Direitos Humanos, substituindo o antigo "Decálogo" cristäo, apresentados como os "Dez Man-damentos" da nova fase da humanidade, e a Európa o conti-nente-modelo da nova ética; 3. o valor da Natureza como nova Transcendéncia, a aceitagäo axiológica da sua superioridade e excelencia, näo no sentido de uma reveréncia litúrgica, uma idolatria orientali-zante com base na adoragäo das suas forgas e mistérios, mas 124 125 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL no sentido de um respeito sublime - da ordem do sagrado -pelos seus ciclos e resultados. Em menos de duzentos anos, as nacôes, obstáculos con-servadores a esta nova mentalidade continental, a esta nova ética, a esta nova axiologia e ä propria criacäo de ciencia, excessivamente cara para ser suportada por urna só instituicäo ou pais, morreräo, metamorfoseando-se em zonas, regiôes, províncias, territórios de um continente único. A necessidade de sobrevivéncia económica europeia face aos Países Emer-gentes (China, India, Brasil), a vontade de ultrapassar o actual ciclo de decadéncia, a pavorosa diminuicäo da natalidade, a necessidade de acolher quantidades superiores de imigrantes, a forca moral de novos dirigentes (os actuais, täo medíocres, nem constaräo de uma nota de rodapé dos manuais de história) forcaräo a Európa a superar-se ou a morrer, a auto-ruptu-ralizar-se ou a resignar-se a uma decadéncia de milhares de anos, como Hegel dizia da China que dormia há 3 000 anos. Para ser completa, a Európa necessitará da Russia, o verda-deiro obstáculo ä sua completa unificacäo e ä unificacäo integral das suas instituigôes continentais. Para Portugal, pais historicamente esgotadíssimo, que nada de bom abona a seu povo, castigando-o com sofrimento e trabalho sem uma remuneracäo decente, a sua morte como nacäo só pode ser motivo de alegria, já que, por via da lingua e cultura, "mor-rendo" dissolvido na Európa, a sua vocacäo cultural universal ressuscitará nos países lusófonos. Näo há que chorar e lamentar. Portugal é um pais esgotado, nada de novo cria no mundo, nenhuma síngularidade o demarca desde há trezentos anos a náo ser um rol de elementos negativos, caracterizando-se pela medio-cridade a que o seu povo éforcado a viver desde o século XVII. Povos da Európa - tudo neles é semelhante: rituais de nascimento, casamento e morte (os trés momentos antropoló-gicos constitutivos de uma mesma civilizacäo), a que acrescem os sistemas de educacäo e saúde, os sistemas de comunicagäo, os trajes e os desportos, os sistemas de abastecimento e con-sumo, o sistema militar e os sistemas energéticos. Apenas o império da lingua nacionál - como rochedo politico, velho Adamastor emergido das profundezas da história - os separa. Em breve, o bilinguismo será comum ä totalidade da Europa, näo afectando nem violentando o espirito comunitärio de uma nacäo, a consciéncia da sua identidade cultural e o respeito pelo património herdado. Diferentemente, ajudará a solidificá-los sem os encerrar numa cristalizagäo identitária conservadora, presumida fixa, imutável e eterna, abrindo-os a novas e complexas figuracôes culturais, cosmopolitas, ecléticas e pragmáticas, que as relativizam de elementos futurísticos. Borges de Macedo escreveu que näo existem nagöes cir-cunstanciais (Portugal. Um Destino Histórico, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1999, p. 18). Pelo contrario, tudo o que é humano e histórico nasce de arranjos circunstanciais que a forga do tempo e o hábito social transformaram em necessá-rio. O que com sucesso a conjuntura social criou como novo por justaposigäo e cruzamento de constrangimentos humanos, a história solidifica e cristaliza como necessidade. Neste sentido, se Portugal existe há 800 anos como pais independente, nenhum determinismo providencial ou histórico forgou que assim tivesse sido por absoluta necessidade, apenas a vontade férrea das elites guerreiras de entäo face a Castela impuseram uma independéncia, que, a ter-se gorado, nos teria tornado espanhóis desde há 800 anos. O mapa geográfico da Europa constitui a prova mais provada de que as nagöes (comunidades convergentes que, por forga de necessidades conjuntas de caräcter militar, económico, cultural, social, atravessam agre-gadas o tempo histórico) näo säo eternas nem se criam a partir de decretos divinos. As nagöes criam-se a partir de necessidades comuns e de vontades comuns de afirmagäo e expansäo 126 127 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL das suas elites, justificadas em crengas religiosas e ideolögicas e limitadas pela acgäo e reacgäo de elites de comunidades vizi-nhas e, ate, consanguineas. Assim, animando e orientando cada nagäo, encontra-se a poderosa vontade da sua elite. Se esta vontade näo existe, a nagäo fica entregue a elementos avulsos oportunistas, que a substituem por interesses de afirmagäo propria, como se constata pela galeria de politicos mediocres que tern gover-nado Portugal nos Ultimos trinta anos. A vontade de Portugal esgotou-se porque a vontade das suas elites e ser menos Portugal e metis Europa, a sua vontade (a sua afirmagäo econömica, cientifica, estetica, cultural), como a vontade da maioria das elites nacionais europeias, e hoje ser mais Europa, isto e, com-prometer-se na construgäo de uma Europa unida. E, de facto, historicamente, a Europa ja se encontra unida na arte, na eco-nomia, nos sistemas desportivos, na comunicagäo, na ciencia, na universidade..., falta apenas destruir o conservadorismo nacionalista dos actuais dirigentes politicos. Dificilmente podemos imaginär hoje a forga politica de uma Europa ünica e unida, sob um governo ünico, urn parla-mento e urn senado representatives, um exercito ünico de defesa e promogäo da paz, advogando pelo mundo (como no tempo da I e II Expansäo Ultramarinas) a bandeira dos Direi-tos Humanos, do Ambiente e de uma etica social equilibrada näo-consumista nem hedonista. Porventura, apenas um choque econömico (carencia inespe-rada de recursos alimentäres, energeticos, uma catastrofe ambien-tal, uma crise financeira...) provocarä a urgente necessidade de uma verdadeira unificagäo europeia. A este primeiro choque seguir-se-a urn choque cultural, que, mais do que uma uniäo, provocarä uma verdadeira unificagäo de comportamentos e mentalidades, criando a nova mitologia identitäria europeia. Porem, o aspecto gravissimo do futuro da Europa residira na sua condugäo politica. A democracia tornou-se uma segunda pele para a Europa. A classe média que hoje conduz os destinos europeus, assente num. estatuto social de conforto e qualidade de vida, näo oferece suficiente seguranga cultural para defender a democracia. Os regimes politicos säo arranjos conjunturais de formas de representagäo e administragäo adequados aos tempos históricos. A sociedades demograficamente escassas correspon-dem sociedades fortemente hierárquicas (monarquias absolu-tistas); a sociedades de massas, propiciadas pela Revolugäo Industrial, correspondem regimes de representagäo proporcio-nal (demoeracias, republicanas ou monárquicas) e a futuras sociedades demograficamente desequilibradas, com a pirämide etária invertida ou excesso de populagäo face aos recursos dis-poníveis, corresponderäo sociedades tecnocráticas, de profundo vinculo administrativo impositivo (as obrigagöes estipuladas pormenorizadamente na lei). É justamente este o grande desafio da Europa futura: encontrar um equilíbrio entre o comando politico demoerático e a administragäo teenoerätica, conti-nuando a privilegiar a vontade maioritária do cidadäo. A Europa é o lugar natural de Portugal e Portugal deve esgotar ao limite a sua europeidade, acompanhando a evolugäo decadentista deste continente até ao proximo e decisivo passo da reinvengäo da Europa sem as nagöes. Porém, se a Europa é o lugar natural de Portugal, o seu lugar histórico é, hoje, a lusofonia. Isto é, os países lusófonos ou as ex-colónias constituíram no passado como constituiräo no futuro o lugar histórico de Portugal. No passado, porque nas-ceram do eruzamento violento entre o corpo e o sangue de Portugal e o corpo e o sangue dos habitantes desses territórios, transformados pela história em países, conquistando uma uni-dade territorial e uma unidade linguística inexistentes sem a expansäo portuguesa. Por via da acgäo de Portugal, em nome da razäo europeia e, sem dúvida, de um modo violentíssimo, cruel, arbitrário (eseravatura, exploragäo dos recursos natu-rais, humilhagäo cultural), aqueles povos transitaram acelera- 128 129 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA de PORTUGAL damente da pré-história para a modernidade portuguesa (näo a modernidade europeia). Pai tiränico e cruel, sem dúvida, mas em todo o caso pai histórico, gerador de novos países, novos Estados e, através da lingua comum, novas culturas, Portugal näo possuiria singularidade no concerto politico internacionál caso a sua accäo histórica näo tivesse sido excepcionalmente marcante, sobrepondo-se ao seu lugar geográfico e natural. Neste sentido, näo se trata apenas de urna questäo de paternidade histórica, trata-se, igualmente, de uma questäo substancialmente relacionada com a propria identidade nacionál de Portugal. Sem as ex-colónias, sem o tempo passado vin-culado aos Descobrimentos, Portugal näo possuiria a sua identidade histórica, nada seríamos senäo uma Galiza maior, ponto de emigracäo para a America Latina e Europa. Os Descobrimentos fizeram-nos, constituíram o nosso tempo de adultos históricos, selaram a nossa identidade nacionál. No passado, sem os Descobrimentos, näo teríamos sido outra coisa senäo uma Galiza que alcangou a independéncia, porventura para mais rapidamente se empobrecer. Neste sentido, devemos sempře juntar ao nosso lugar natural (a Europa) o nosso lugar histórico (a lusofonia), este actualmente mais impor-tante do que aquele, porque conquistado e realizado com sucesso. E a medida do sucesso, mais do que aquilatar-se em ouro furtado do Brasil, café e diamantes de Angola, escravos de toda a costa ocidental e oriental de Africa, realiza-se hoje, com inesperado sucesso, na revolugäo linguística e cultural que os escritores dos países lusófonos tém operado na construgäo sintáctica e na difusäo internacionál da lingua portuguesa. Ler os livros de Luandino Vieira, Ondjaki, Mia Couto, Joäo Paulo Borges Coelho, Conceigäo Lima, Ana Paula Tavares, Pepetela, Jose Eduardo Agualusa, Germano Almeida e a miríade de escritores brasileiros é provař de um sucesso que, mais do que estritamente cultural, se afirma de um modo propriamente civilizacional, como se a lingua portuguesa se encontrasse em estado de perfeito rejuvenescimento, preparada para explodir em infinitas solugöes culturais e estéticas. Só em comunhäo lusófona sabemos quem somos e só em comunhäo lusófona nos realizaremos como Portugueses do século XXI. Estaräo os políticos Portugueses actuais prepara-dos para esta responsabilidade? Devido ao seu fraquissimo nível de conhecimento histórico e cultural, torna-se algo de absolutamente evidente: - Näo, näo estäo! (um exemplo: Carlos Reis pergunta no Jornal de Letras de 14 de Dezembro de 2011: "o que fez o Governo portugués nos dois anos - de 2008 a 2010 - em que Portugal ocupou a presidéncia da CPLP? E para onde foi o täo propagandeado, na época, Fundo da Lingua Portuguesa, dotado com 30 milhöes de euros? Quem souher responder, faga favor"). Näo existe de facto outra solugäo para Portugal que, con-tinuando na Europa e abandonando a necessidade de protago-nismo saloio nas instäncias internacionais, dedicar-se por inteiro ä revitalizagäo dos antigos lagos com as suas ex-colónias, pro-tagonizando, em pé de absoluta igualdade, näo uma ressurrei-gäo do Império, antes uma explícita vocagäo histórica que optimize as relagöes entre todos os países lusófonos, cons-truindo gradualmente patamares de entendimento mais dura-douros e benéficos para todos. Com a Europa, näo nas suas costas, mas aos seus ombros, levanta-se a lusofonia ä frente de Portugal, até hoje encarada, näo como instituigäo internacio-nal com total realizagäo, mas apenas como divertimento histórico e aproveitamento económico. Se, para Portugal, entre 1975 e 2010, a Europa esteve sempře primeiro, é hora de nos centrarmos nas infinitas possi-bilidades virtuais presentes na Lusofonia, tanto do ponto de vista económico como diplomatico, como, sobretudo, do ponto de vista cultural e tecnológico, criando entre os seus países constituintes uma comunidade semelhante ä Europeia. 130 131 3 Ofuturo da Lusofonia A Lusofonia corresponde a um campo geográfico-histórico e cultural abrangido por todas as nagôes, países, povos e comu-nidades falantes da lingua portuguesa ou de um dialecto desta directamente derivado, A Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa (CPLP) corresponde a uma instituicäo eminente-mente política organizada em torno de oito países pertencen-tes a esta mais vasta comunidade. Neste sentido, mais difícil é falar do futuro da CPLP, dependente da vontade política for-temente instável e imprevisível dos países a ela agregados, do que da Lusofonia, anseio histórico inscrito nos genes sociais e culturais daqueles povos. Com efeito, desde a queda do Império em 1975, a des-confianca e o ressentimento entre as classes politicas dirigen-tes dos diversos países e comunidades de lingua portuguesa tém travado a realizacäo prática da Lusofonia. Dito de outro modo, näo a História com maiúscula, essa toda favorece a Lusofonia, mas a história com minúscula, isto é, o jogo politico conjuntural, tem de facto frustrado o anseio de Lusofonia. De facto, consultando a bibliografia sobre este terna, tudo já foi dito. Só falta fazer a Lusofonia. Assim, enredada no labirinto politico circunstancial, coman-dada por políticos de vistas curtas, a CPLP tanto pode avancar maj estaticamente como estagnar nos próximos dez anos. Neste sentido, a Lusofonia näo corresponde nem a urna ilusäo cultural, criada politicamente de um modo artificial, nem a interesses nacionais ou políticos conjunturais. 133 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL Diferentemente, a Lusofonia corresponde a um genuíno programa civilizacional de fundo, unindo num vinculo único povos que a História fez encontrar e desencontrar. A Lusofonia näo é uma ilusäo política porque se fundamenta na história dos encontros/desencontros dos seus povos constituintes uni-dos actualmente por um falar comum. Porém, mais do que na vontade política de elites igno-rantes, desencontradas com o espírito do tempo, palco permanente de conflitos e divergéncias, de tratados de amizade e de violagöes dos mesmos segundo interesses nacionalistas, deve assentar-se na Lingua, materialidade audível e gráfica do pen-samento e do espírito, a fundamentacäo, a retaguarda e a van-guarda da Lusofonia. A História constitui o invólucro por que a lingua e o seu espírito se materializam no tempo, gerando progressivamente urna memoria comum e um desejo comum - a memoria dos encontros/desencontros entre os povos constituintes da lusofonia e o anseio, ora visível, expresso em retórica e eloquéncia, ora virtual, carregado de urna explosäo de potencialidades futurísticas, seja do ponto de vista económico, seja do ponto de vista cultural Neste sentido, a história política do processo e resultado da epopeia conjunta (positiva e negatíva) de cerca de meio milénio de anos, dominada, indubitavelmente, até ao actual periodo, pela potencia colonial europeia (Portugal), com excepcäo dos Ultimos duzentos anos para o Brasil, näo deve ser esquecida. Porventura comandará ela o que Eduardo Lou-rengo designa, muito correctamente, como "política do res-sentimento" por parte dos Estados e povos colonizados por Portugal até 1975, que ora legitimamente desconfiam do afä lusófono. Assim, assentar a Lusofonia no passado de urna história conjunta significa, näo raro, elevar esta a um jogo de melin-dres e interesses conjunturais onde, mais do que o futuro por construir, se jóga a recriminagäo do Outro como pega saliente. Neste sentido, é absolutamente necessário substituir o debate sobre a História conjunta pelo espírito unificador e englobali-zador da Lingua como vinculo substancial comum, criador de uma razäo comum, assente num desejo de partilha de unidade comum e no anseio de criagäo de um futuro o mais comum possivel, como irmäos de uma mesma causa e habitantes de uma mesma casa. Pela nossa experiéncia pessoal, conhecedor com algum pormenor de países como a Guiné-Bissau, Säo Tomé, Cabo Verde, Macau, Goa e vastas imensidöes do Brasil, mais do que eira comunitária, lugar de encontro de trabalho e de prazer, a história política é hoje espago de afrontamento, de divisäo, de razöes e contra-razóes, isto é, de uma auténtica seara de fortalezas ideológicas encasteladas, que, levadas a sério, poderäo condenar o progresso e o espírito lusófonos durante longo tempo. É assim fundamental substituir, neste momento, o espírito da história política, divisório e até incriminatório, pelo espírito da Lingua, unificador e comunitarizador. Entreguemos por ora a história política ao Diabo, que divide, e deixemos a mäo de Deus, que une, pousar sobre a Lusofonia. O espírito da Lusofonia reside hoje na lingua comum - e porque a lingua frutifica em cultura, o espírito da Lusofonia é hoje eminentemente cultural. O que significa ser o espírito da Lusofonia eminentemente cultural? Significa que, com base no passado e na unidade de uma imensa variedade de pulsöes históricas, a Lusofonia se propöe criar urn novo rosto cultural no mundo. Se a Lusofonia se restar num patamar de regulagäo de interesses económicos ou de concertagäo conjuntural, periodo a periodo, de interesses políticos e militares, pouco valerá a pena. Ter-se-á tornado mais uma comunidade international entre tantas outras existentes, perfeitamente substituíveis por tratados bilaterais entre Estados. 134 135 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÖRICA de PORTUGAL Se a Lusofonia se restar aninhada numa visäo estritamente politica, criando no seu interior grupos de paises contra outros grupos de paises, pouco valerä a pena a sua edificacäo. A Lusofonia näo pode repetir a histöria, renovando os vicios dos diferentes desencontros histöricos havidos seculos passados. A Lusofonia näo pode ser um Mercosul intercontinental, muito menos uma Comunidade Europeia geograficamente mais extensa. A Lusofonia näo pode ser, igualmente, uma ONU neutra em ponto pequeno, sujeita äs flutuacöes dos interesses dos Estados membros e aos vetos dos paises mais ricos ou demo-graficamente mais poderosos. Todas estas instituicöes säo internacionalmente välidas e historicamente legitimas, mas da Lusofonia deve-se esperar mais, exemplarmente mais. A Lusofonia deve criar uma paisagem politica nova. Näo forum de alianga de interesses contra outros interesses, nem plataforma de servigo para povos extra-europeus acederem a beneficios europeus. Para esse fim existem tratados multilate-rais, que podem e devem continuar a ser assinados entre os membros da Lusofonia. Tal como historicamente a Lingua Portuguesa foi exemplar no modo de plasmagäo cultural com os novos povos, replicando a sua gramätica racional e o seu espirito civiliza-cional, desdobrando-se e descentralizando-se na criagäo de novas culturas regionais, assim a Lusofonia deve ser original no seu modo de implantagäo entre todos os povos e comuni-dades falantes da lingua. Ou a Lusofonia assim procede ou, perdoe-se a expressäo, porventura excessivamente brutal, a Lusofonia näo terä outro futuro que a repetigäo do passado, porventura animada hoje de um superävite de boa vontade. Deste modo, existem dois futuros para a Lusofonia: 1. reside no mais do mesmo, na repetigäo do passado, normalizando este, e cada pais tenderä a ser täo dominador quanto a sua real forga econömica, Angola liderarä os paises africanos e o Brasil tenderä a imperar, e a Guine-Bissau serä por muito tempo o pais pobrezinho a que os restantes facul-tam algumas migalhas, etc., etc.; 2. reside na criagäo de um futuro novo (desculpe-se-nos a redundäncia), uma especie de choque cultural para o mundo, que figura na Lusofonia uma comunidade eticamente exemplar. Face ä situagäo actual profundamente desequilibrada entre os continentes, esvaziadora da esperanga; face ao alto grau de conflitualidade politica e religiosa existente; face ao continuo esgotamento de inümeros recursos naturais e ä atitude ecolo-gicamente rapinadora dos paises do Hemisferio Norte; face ä divisäo social ostensiva entre paises ricos, poucos, e paises pobres, muitos; face a um sistema econömico mundial assente na exploragäo intensa das grandes massas e na especulagäo financeira, a novel comunidade lusöfona, a existir como vcr-dadeira comunidade, deverä provocar uma especie de choque cultural radicalmente subversor dos valores dominantes 110 mundo contemporäneo. Se o mundo politico actual de Lingua Portuguesa se guia pelo interesse das nagöes, guiar-se-ä doravante pelo anscio de Lusofonia, isto e: 1. pela solidariedade activa e fraterna entre os scus membros, companheiros comuns da odisseia evolutiva da liisloria; solidariedade activa fraterna tambem significa, enquanlo expressäo do choque cultural propiciado pela organizagäo inlcrna ä comunidade lusöfona, que um manto de justiga se estmcla por todas as nagöes e povos da lusofonia, forgando, em consonän-cia, que os paises de rendimento superior, por efeito de uma compaixäo activa, suporte da justiga comum, näo como inani-festagäo de piedade ou de caridade, auxiliem os que menos 136 137 Miguel Real A VOCACÄO HlSTÓRICA DE PORTUGAL tém, assumindo cada membro a responsabilidade da elevagäo para patamares médios de dignidade social e económica todos restantes palses membros; 2. pela aceitagäo inequivoca da pluralidade de raizes e diversidade de manifestagöes culturais, todas publicitadas e evidenciadas; 3. pela absoluta paridade entre todos os membros como directa expressäo de igualdade que entre todos deve reinar, independentemente de indices demográficos e económicos, nenhum sendo abafado, nenhum sendo exaltado. Neste sentido, vincula-se a Lusofonia a constituir-se como espago de harmonia entre pessoas, povos e comunidades e, portanto, a dar crescentes passos para a unificagäo de sistemas de saúde e de ensino, obviando inclusivamente ä existencia de um passaporte lusófono, substituto do bilhete de identidade em território comunitário que näo o nativo, sem receio de uma invasäo pacífica de uma comunidade por outra, operando uma forte miscigenagäo, bem-vinda a prazo de um ou dois séculos. Se dentro de duzentos, trezentos anos, o Portugal europeu näo for predominantemente mulato, como o é actualmente o Brasil, a Lusofonia falhou, tendo-se tornado uma instituigäo relativa-mente inócua (isto é, que pode ser substituída sem prejuízo do seu normal funcionamento por acordos bi- ou multilaterais), dominada por políticos medíocres como os actuais políticos Portugueses. Deste modo, o máximo de recursos possíveis dos países lusófonos deve ser vazado na educagäo e na cultura, pondo a tecnologia ao servigo destas e näo o contrario, como a Europa tem feito, desenraizando de valores comunitários o actual hörnern europeu, um hörnern tecnoburocrata. Näo a tecnologia no posto de comando, näo a política no posto de comando, mas a educagäo e a cultura em todas as suas variedades, o que significa um permanente aperfeigoa- mento corporal e espiritual integral de cada hörnern, signifi-cando igualmente urn cuidadoso tratamento do corpo e, portanto, urn cuidadoso tratamento da saúde. Finalmente, a comunidade lusófona deve constituir um espago de paz absoluta sob tripla garantia: a da inexisténcia de guerra entre os seus membros; a da inexisténcia de guerra no interior do território de cada membro e a da defesa comum caso um dos seus membros seja atacado. Neste sentido, o regime democrático, por mais imperfeito que seja, deve ser considerado a configuragäo política constitucional do Estado entre todos os membros da comunidade, obstando ä substitui-gäo do poder por via militar. Azenhas do Mar, Sintra, 31 de Dezembro de 2011 138 139 PORTUGAL Avivo no teu rosto o rosto que me děste, E torno mais real o rosto que te dou. Mostro aos olhos que náo te desfigura Quem te desfigurou. Criatura da tua criatura, Serás sempře o que sou. E eu sou a liberdade dum perfil Desenhado no mar. Ondulo e permanego. Cavo, remo, imagino, E descubro na bruma o meu destino Que de antemáo conhego: Teimoso aventureiro da ilusáo, Surdo ás razoes do tempo e da fortuna, Achar sem nunca achar o que pro euro, Exilado Na gávea do futuro, Mais alta ainda do que no passado. Miguel Torga Bibliografia de Referencia AA. W., Portugal e a Europa - Séculos XVII a XX, Lisboa, ed. Comissäo Portuguesa da História Militär, 1992 ALMEIDA, Onésimo Teotónio, "«Filosofia Portuguesa». 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