JL / 16 a 29 de maio de 2012 • jornaldeletras.pt TEMA 5 fr 1P I fei m b ^1 ü Um brinde ao cinema "Bebo demasiado, fumo demasiado, comovo-me demasiado", dizia Fernando Lopes de si proprio. O 'fundador' do cinema novo, o autor de Belarmino e Abelha na Cuva, o boemio, o amigo de todos os cineastas e cinefllos, morreu, no passado dia 2 de maio, aos 76 anos, em Lisboa, vitima de cancro. Ainda este ano tinha estreado o seu filme Cämara Lenta (ver JL de 20 de marco). O JL dedica-lhe as pröximas päginas, com textos de Antonio Mega Ferreira, Guilherme d'Oliveira Martins e Jorge Silva Melo. E traca o perfil de uma vida cheia de histörias, com depoimentos de Maria Joäo Seixas, Bruno de Almeida, Antonio Cunha Teles e Pedro Lopes Manuel Halpern Corria o ano de 1974 e Portugal ainda era uma ditadura, já nao dominada por Salazar, mas por Marcello Caetano. Em casa de Fernando Lopes (fl), o realizador e o seu amigo major Vítor Alves estavam á conversa e á bebida. Como era mais ou menos costume abusaram do whisky e, o militar, das palavras. Invino Veritas, o álcool liberta os espíritos e revela segredos. E no meio dabebedeira, inconfldSncia das inconfidencias, o militar revelou que estava a ser preparado um "golpe" contra o regime. "Eu flquei boquiaberta, nem sabia se havia de acreditar", diz, ao JL, Maria Joao Seixas (mjs), que estava, sobriamente, sentada no sofa. A verdade e que o golpe aconteceu. Primeiro o falhado, das Caldas, a 16 de marco, e depois o de 25 de Abril. "Quando soube que os tanques estavam na rua, flquei apreensiva, pois de im'cio nao se sabia se era os militares 'bons' ou 'maus', por isso telefonei para casa do Vitor Alves e perguntei a mulher: 'O Vitor estabem?'. Ela respondeu: 'Esta muito bem' Fiquei assim a saber de que lado era a revolucao", lembra mjs, que apos a revolu?ao trabalharia diretamente com Vitor Alves, um dos seus principals dirigentes e ministra sem pasta de dois governos. O episódio, sério e caricato, diz muito sobre Fernando Lopes. Universalmente descrito como afável e atento aos outros, era um conversador nato, mas um 'confidente' e ouvinte ainda melhor. Tanto para um cineasta a revelar o enredo do proximo filme como para um militar a revelar a preparacao de um golpe de Estado. O Lopes, como era conhecido no meio do cinema, andava sempre de copo na máo e cigarro na boca. Era uma forma de estar. Boémio, queria retirar o melhor da vida, e sabia retirar o melhor dos outros. "Ele nao se levava muito a sério, nem levava a vida muito a sério", testemunha ainda Maria Joao, sua mulher durante cere a de 40 anos, atualmente diretora da Cinemateca. Mas faz questao de sublinhar: "O cinema e as pessoas, isso sim, levava muito a serio". Essa noite de copos, com o major Vitor Alves, dava um filme, ou pelo menos uma cena. Nada que estivesse fora do espirito de Fernando Lopes que, como nenhum outro realizador portugues, confundiu habilmente o cinema com a vida. Esta hist6ria nao foi adaptada ao cinema, nem Lopes abordou diretamente o 25 de Abril em nenhuma das suas pelfculas. Contudo, esteve quase para acontecer. Um dos seus projetos, que nao chegou a concretizar, era uma adaptagao muito especial d'O Cerejal, de Anton Tchekhov, entre o documentario e a ficcao. "Chegou a mandar vir material no estrangeiro", revela-nos MJS. A ideia era ir para a casa de Sousa e Castro, um dos capitaes (hoje coronel) de Abril, na Beira, que tinha cerejeiras no quintal. Filmava um almoco, ao ar livre, em que os capitaes lembrassem e refletissem sobre a revolucao. Entretanto, alguns atores iam lendo passagens da obra de Tchekhov. "Nao me perguntem como é que tudo isto se iria juntar", acrescenta Maria Joao. Depois da morte de Vitor Alves, em 2011, Fernando Lopes pós o projeto de parte. Bruno de Almeida, que o tratava carinhosamente por "avó Lopes", e a quem ele se referia como "o sexto filho", mantinha com ele longas conversa sobre cinema. "As ideias para filmes estavam sempre a surgir, algumas para ele. Também diseutia as ideias dos outros. Alias, era um privilégio diseutir com Fernando Lopes", diz ao JL. Tal terá 6 * TEMA :ERNANDO LOPES jomaldeletras.pt • 16 a 29 de maio de 2012 JL acontecido com Love Birds, a longa de Bruno, em que Fernando Lopes participa como ator, no papel de treinador de boxe, numa citacao cineflla de Belarmino. "Quando lhe contei a ideia ele discutiu imenso comigo e fez-me ver uma sdrie de filmes como as comddias italianas doDinoRisi". Esta nao foi a sua unica participacao no cinema como ator. Mais recentemente entrou no fllme de Goncalo Galvao Teles e foi 0 protagonista d'Afelicidade, uma curta de Jorge Silva Melo (ver texto), que MJS ve como um primeiro prenuncio da sua morte. A curta 6 uma viagem de carro, na companhia do neto, a caminho do hospital. O segundo prenuncio tera sido Em CamaraLenta, umfilme com tracos de despedida, que Maria Joao ainda nao teve coragem de ver. "Apresentei-o na Cinemateca, mas depois sal da sala", conta. GANHAMOS, ETELVINA! Fernando Marques Lopes nasceu a 28 de Dezembro, de 1935, na Varzea, freguesia de Macas de Dona Maria, em Alvaiazere, naquele que ainda hoje 6 um dos concelhos mais conservadores do pais, com votac,ao recorde no psd. Foi ali que fllmou Nospor Cd Todos Bern. Depois da sua morte, os filhos reuniram-se ali, em casa dos av6s Elvira e Eugenio, cumprindo uma ultima viagem que Fernando Lopes nao teve tempo de fazer. Em entrevista a Rodrigues da Silva, no JL de 13 de setembro de 2006, dizia:"HguejjiaaBada. furiosa quando ele, o cunhado e Joao César Monteiro partiram a cama nas celebra£6es de um dos golos de Portugal. Por essa altura, chegou mesmo a ter um projeto de um filme sobre a bola, com Artur Semedo. Chamava-se Garihámos, Etelvina!, título retirado da frase que o presidente do Benfica disse á mulher depois de vencerem a Taca dos Campeoes Europeus. O desporto sempře foi uma paixao e, ás vezeš, uma obsessao. Ainda jovem, teriauns 20 anos, poupou furiosamente dinheiro para comprar uma bicicleta. O seu objetivo era fazer a Volta a Portugal. Mas, adquirido o velocipéde, o ciclista apaixonado apanhou uma grande desilusao quando se apercebeu que nao podia participar na prova assim, sozinho, sem equipa nem patrocínio. Era também um apaixonado pelo boxe. Assistia aos combates no Parque Mayer. "Quando era miúdo lembro-me do meupai me fazer luvas", diz, ao JL, Pedro Lopes, o mais velho dos seus cinco filhos, que foi o rosto do anúncio da Sumol realizado pelo pai. Foi dessa paixao pelo pugilismo, claro está, que nasceu Belarmino, o seu primeiro e mais emblemático filme de longa duracáo. Durante algum tempo trabalhou numa fábrica de gravatas, na baixa lisboeta. Foi aí que conheceu Maria Otília, a sua primeira mulher, da qual teve quatro filhos. Sempře foiboémio. Algumas das maiores pándegas, na altura, eram com Projetos por realizar ii Depois de um hörnern morrer apresentam-se várias viúvas e a partir daí desenvolve-se uma história cheia de peripécias. De Corpo Presente é como se cháma um dos filmes que Fernando Lopes deixou por fazer. Escreveu a sinopse numa toalha de papel. Já a tinha referido como um proximo filme, aoJL, numa entrevista a Rodrigues da Silva, depois de 98 Octanas. "É uma comédia negra baseada na história de um amigo dele", diz Maria Joäo Seixas, que ofereceu o texto a Bruno de Almeida: "Julgo que é quem ele gostaria que flzesse o filme". Contactado pelo JL, o autor de Love Birds descreve o sinopse como uma folha de poucas linhas: "É muito divertido e pode ser que mais ä frente dé para fazer um filme". Esta era uma das muitas ideias que Fernando Lopes tinha para filmes. Bruno de Almeida comenta que, na sua ultima conversa, falaram da hipótese de fazer um filme sobre a sua experiéncia hospitalar. Um projeto mais concreto era um biodocu-mentário sobre Assun^äo ele tinha a secretaria do lado esquerdo, nao seria o bmqo direito, mas o bracjo esquerdo do Figueira", diz o realizador e produtor ao JL. Cunha Telles tinha acabado de regressar de Paris, onde estudara cinema, e Fernando Lopes quis saber tudo sobre a sua experiencia e as bolsas. Acabou por fazer um percurso semelhante, s6 que na London Film School. Anos depois, a rtp apresentou a sua primeira curta-metragem, As Pedras e 0 Tempo, que fazia parte de umprograma 'turfstico' que passava a seguir ao jornal, em que se percorriam varias zonas do pais. Fernando Lopes filmou Evora. "Uma curta genial, nunca tinha visto nada assim, uma pedrada no charco", afirmaACT. A afinidade estava la e, de forma mais ou menos natural, juntaram-se com outros realizadores que estavam descontentes com o panorama balofo do cinema portugues dos anos 60. "Fechavam-nos todas as portas, lembro-me de ter sido recusado at6 para estagiario", diz ACT. Reuniam-se no Vi-VA, na Avenida dos Estados Unidos, por conveniencia geografica -Paulo Rocha morava no predio do cafe\ Fernando Lopes no bairro e Fonseca e Costa tinha escritorio mesmo em frente. O grupo fundador do Cinema Novo cabia nos dedos de uma so mao: Cunha Teles, Paulo Rocha, Fonseca e Costa, Antonio Macedo e Fernando Lopes. S6 mais Fsniísíscio lopes (no s^ittid© éos poiiteiros do ralógio) Erin Love Birds, de Bruno de Almeida; com Maria Joäo Seixas; na rodagem de 98 Ocatanas; e numa entrevista ao JL Depots da sua morte, os tilhos reuniram-se ali, em casa dos avós Elvira e Eugénio, cumprindo uma ultima viagem que Fernando Lopes näo teve tempo de fazer. Em entrevista a Rodrigues da Silva, no JL de 13 de setembro de 2006, dizia: "Fiquei marcado por aquela pequena aldeia em que tudo era corpo. Sei muito bem o que é apanhar azeitonas no inverno gelado. Sei muito bem o que é cavar terra (...) Umaparte disso flcou em mim e tenho sempře a tendencia para voltar ä ideia que a terra, se por um lado nos haverá de acolher quando desaparecermos, por outro é uma espécie de sangue que nos corre nas veias". As suas origens säo humildes. Na Autobiografia que escreveu para o JL, em 2007, dizia: "Cheguei a Lisboa em 39. Tempo de guerra. A minha tia Maria levou-me ao Grandella (o do Pat Tirano) e vestiu-me de marinheiro". Depois a tia levou-o para Ourém e voltou para Lisboa, aos 10 anos. Teve trabalhos variados, desde ascensorista a paquete. Trabalhava enquanto estudava, tirando um curso técnico. Também jogou futebol, como avancado do Palmense, umpequeno clube de bairro, na Calcada da Palma, perto do Hospital de Santa Maria. Mais tarde chegou a organizar um jogo de futebol entre o Centra Portugués de Cinema e a Tobis. Perderam por 10-1. O único golo da sua equipa, foi um penalti mal assinalado, só para que o seu filho, Pedro, pudesse fazer o gosto ao pé. Benfiquista ferrenho, mesmo no final da vida barafustava com o treinador e lamentava a perda do campeonato. Durante o mundial de 66, a sua mulher terá flcado Durante algum tempo trabalhou numa fabrica de gravatas, na baixa lisboeta. Foi ai que conheceu Maria Otilia, a sua primeira mulher, da qual teve quatro filhos. Sempre foi boemio. Algumas das maiores pandegas, na altura, eram com o seu cunhado Antenio. Faziam um giro pelas cervejarias e Todos os realizadores Portugueses forani influenciado por Fernando Lopes" acabavam a noite nos cabarets do Parque Mayer. "Teriam historias fantasticas que nunca iremos saber, porque ambos ja morreram", diz Pedro. "Nunca as quiseram revelar, por pudor", acrescenta. Mas e sabido que, certa vez, quando o cunhado Antonio chegou de Angola, alugaram um carro e viajaram pela Europa fora, numa farra memoravel, digna de um fllme de Dino Risi. UM SOCO NO CINEMA "Todos os realizadores Portugueses da nova geracäo foram influenciados por Fernando Lopes", afirma, categoricamente, Bruno de Almeida, que o considera um mentor. E esse facto deve-se fundamentalmente a Belarmino, obra que, juntamente com Verdes Anos, de Paulo Rocha, abriu Almeida comenta que, na sua ultima conversa, falaram da hipotese de fazer um fllme sobre a sua experiencia hospitalar. Um projeto mais concrete era um biodocu-ment&rio sobre Assuncao Esteves, a atual presidente da Assembleia da Reptiblica, seria algo semelhante ao que fez em O meu amigo Mike ao trabalho (sobre o pintor Michael Biberstein). "Ele tinha uma admiraqao imensa por ela e eu propria cheguei a contar-lhe que o Fernando tinha essa ideia. Ela ficou muito contente", diz-nos Maria Joao Seixas. Na gaveta, tinha hi. algum tempo uma adaptagao sui generis de O Cerejal, entre o documentary e a ficcao, em que misturava a. obra de Tchekhov com um al-mogo dos capitaes de Abril. E, emvarias entrevistas, revelou a intencao de adaptar livros de Nuno Braganca: A JVoite e 0 Riso (de que e personagem) e Square Tolstoi. "Quando fo-mos a Paris, ele quis ir a essa praca". Mas olhando para Fernando Lopes, sabemos que o prdximo fllme seria, muito provavelmente, sobre algo que a vida lhe revelasse. .»1, novos horizontes para o cinema portugués. Antonio Cunha Telies (act) conheceu Fernando Lopes na RTP, nos anos 50. Na altura ele trabalhava como datilógrafo, no gabinete de Manuel Figueira, responsável pelo Telejornal. "Lembro-me perfeitamente, bairro e Fonseca e Costa tinha escrilório mesmo em frente. O grupo fundador do Cinema Novo cabía nos dedos de uma só mäo: Cunha Teles, Paulo Rocha, Fonseca e Costa, Antonio Macedo e Fernando Lopes. So mais tarde se juntaram outros, como Alberto Seixas Santos, Antonio-Pedro Vasconcelos e Joäo César Monteiro. Era um grupo de jovens cineastas que tinha em comum a aprendizagem no estrangeiro e a vontade de renovar o cinema nacionál. Tinham o compromisso de se entreajudar. Numa altura em que todos os apoios eramprivados, a primeira aventura foi Verdes Anos, de Paulo Rocha. "O que teve de mais extraordinary é que, ä excecäo de um chefe operador de cämara francés, foi o primeira fllme para todos os elementos da equipa", diz act. FL terá trabalhado na montagem, coisa que aconteceu, de resto, em muitissimos filmes Portugueses. "Era sempre o ultimo recurso, tinha uma sensibilidade incrlvel para a montagem, julgo que se tivesse seguido esse caminho seria o melhor montador a nível planetário", afirma act. O segundo fllme fundador do cinema novo foi Belarmino. A producäo foi de Cunha Teles. O contrato foi escrito numa tolha de papel do Vá-Vá. E valeu assim mesmo, semprecisar de selo azul. A produ§äo foi feita apenas com meia-duzia de elementos, mas com uma disponibilidade total. Tudo de forma muito livre, sem argumente nem piano. E com uma ligacäo muito direta ao fotógrafo Augusto Cabrita: "Ele era os olhos do proprio Fernando". "A autenticidade do fllme está Pomstilo hi elógío) Em Love Birds, de Bruno de Almeida; com Maria Joäo Seixas; na rodagem de 98 Ocatanas; e numa entrevista ao JL patente; 50 anos depois vé-se como se tivesse sido feito ontem". Para act, Belarmino foi fundamental para o movimento do Novo Cinema Portugués. "Verdes Anos poderia ter sido um acaso, a partir de Belarmino já näo havia volta a dar", afirma. Ainda se fez um terceiro fllme, Domingo ä Tarde, de Antonio de Macedo. Vtwwuinn <- «IL 16 a 29 de maio de 2012 • jornaldeletras.pt FERNANDO LOP TEMA • 7 ^^^^^^^^^^^^ Li. ■ *•*» ' "* • <""i Lopes sempre foi hörnern de multiplos oficios e um 'agitador' como lhe chama act. Foi diretor de programas do canal 2 da rtp, que atö flcou conhecido pelo Canal Lopes (1er texto de Antonio Mega Ferreira), onde fez questäo de dar espaco ao cinema portugueis, e dirigiu a spa. Näo menos importante, em 1973, fundou e dirigiu a revista Cin4fllo, que foi marcante para a sötima arte em Portugal, e o proprio caracterizou como "revista semanal de curta duracäoe longa influencia". Obom cinema para ele era uma causa. "NAO ME ARREPENDO" O cinema, a literatura e as artes em geral, apesar de nunca ter assumido a pose de intelectual, adaptando-se sempre bem aos diversos ambientes. Como diz Jorge Silva Melo (ler texto), tanto sabia estar com reis como Pescadores. A ele se devem algumas das melhores adaptacoes ao cinema de livros Portugueses. Depois da Abelha, de Carlos de Oliveira, fllmou, em 1984, CrdrdcadosBorisMalandros, a partir de Mario Zambujal, um filme com um estilo proximo da bd. Em 1993, Fio do Horizonte, o texto flcou ipsis verbis no filme. O mesmo aconteceu para a cena do discurso de agradecimento de Laura Soveral. Fernando e Maria Joáo conheceram-se nos anos 70 no Gambrinus. Na altura o restaurante albergava várias classes. Os mais endinheirados flcavam na sala Ele näo se levava a si nem ä vida muko a sério, mas sim as pessoas e ao cinema Maria Joáo Setxas grande, os 'marialvas' no balcao. A sala pequena flcava reservada para uma čerta elitě intelectual, sem dinheiro, e que por isso bebia tulipas em vez de whisky e, de quando em vez, petiscava qualquer coisa. Foi ali que Maria Joao, chegada de Mocambique, deu com Fernando Lopes. "O Belarmino foi o responsável. Tinha chegado de divorciaram-se em 2008, voltaram a juntar-se em 2009 e casaram-se de novo em outubro passado. A angustia da separac^o e da infldelidade está retratada, com humor, no seu penúltimo filme, OsSoirisosdoDestino. "Osseus Almes säo espelhos da vida, essa é uma das coisas mais bonitas. É possível conhecer o Fernando vendo-os todos. Mas os Almes ainda se tornam melhores quando se conhece o cineasta. Nesse aspeto ele era um verdadeiro autor e um poeta das imagens", diz Bruno de Almeida, que levou o «avô Lopes" pela ultima vez ao Gambrinus, pouco antes de morrer, e falaram de fazer um Alme sobre a sua experiéncia hospitalar. Nas suas duas últimas obras, o ator escolhido foi Rui Morrison, que disse ao JL: "Criou-se uma cumplicidade única, quase que näo erapreciso conversar". Funcionou mesmo como uma espécie de alter-ego do Fernando. Cämara Lenta, o seu derradeiro filme que estreou já este ano, está cheio de sinais de despedida, de um hörnern amargurado com a vida, que quer nadar até ao infinite. Isto entre garrafas de whisky e citacôes de Alexandre O'Neill. "Bebo whisky nos Almes do Fernando Lopes •fr O Só que os fundos vindos essencialmente da boa vontade e das famílias acabaram-se. E tiveram que se descobrir novos meios de financiamento. Foi com o apoio da Gulbenkian que se formou o Centro Portugués de Cinema. FL foi o seu primeiro diretor. E entäo inverteram-se os papéis. E foi o CNC que apoiou a segunda longa-metragem de António Cunha Telles, O Cerco. Dedicado aos filmes dos outros, FL ficou sete anos sem filmar. S6 em 1971 apresentou Uma Abelha na Chuva, a sua primeira longa-metragem de ficgao, a partir do romance hom6nimo de Carlos de Oliveira. Foi uma nova pedra no charco, pela liberdade experimental aplicada a ficcao. Apesar da sua vida ser o cinema, dc Carlos ele Oliveira, filmou, em 1984, Crdnica dos Bons Malandros, a partir de Mario Zambujal, um filme com um estilo pr6ximo da bd. Em 1993, Fio do Horizonte, a partir de Ant6nio Tabucchi, novamente produzido por Cunha Telles. Em 2002, ja em plena fase Paulo Branco, O Delflm, a mais aclamada das suas obras recentes, sobre o classico de Jose' Cardoso Pires. O ultimo filme, Camara Lenta, tambem foi adaptado de um romance, no caso de Pedro Reis, mas aqui o livro acaba por ser um mero pretexto. Pelo caminho, obras marcantes, como Nos por Cd Todos Bern e Matar Saudades. Este ultimo 6 a primeira colaboracao com Rogerio Samora, que passou a ser o seu ator de eleigao, assumindo o papel principal em O Delflm, Ld Fora e 98 Octanas. Na reportagem da rodagem de 98 Octanas, feitapor Ana Margarida de Carvalho para a VISAO, tal era o envolvimento que Rogerio Samora dizia: "Sabe que eu neste momento estou casado com Maria Joao Seixas". Na mesma reportagem, Rogerio Samora explicava: "O Fernando tern uma forma de falar e de dirigir como se recitasse um poema. Alias, ha temas e objetos recorrentes nos seus filmes. Mais do que uma filmografia € um poema que se estende. As minhas personagens sao pedacos do Fernando". E o realizador contrapunha: "A cumplicidade entre mim e o Rogerio 6 tanta que basta piscar um olho para ele perceber o que eu quero". MJS nao costumava acompanhar de perto a preparagao dos filmes nem as rodagens, mas teve uma participagao direta n'O Delflm. "Um dia ele telefonou-me da rodagem a dizer que precisava de um texto de uma conflssao para uma personagem. E como eu sou cat61ica queria que o escrevesse. E avisava: "Ja vai ai um senhor a caminho para trazer o texto" E quahcio era vejs, petiscava qualquer coisa. Foi ali que Maria Joao, chegada de Mozambique, deu com Fernando Lopes. "O Belarmino foi o responsavel. Tinha chegado de Africa quando o filme estreou e quis conhecer o seu realizador", aflrma. Apaixonaram-se e tiveram um fllho, Diogo. Casaram-se em 1971, slnals ae uespuuida, lIc uh\ AlGmcm amargurado com a vida, que quer nadar até ao infinito. Isto entre garrafas de whisky e citacöes de Alexandre O'Neill. "Bebo whisky nos Almes do Fernando Lopes desde O Deifim", afirma Morrison. Näo só quase todas as personagens o bebem como as trés atrizes se chamam Maria Joäo. "Mera WĚĚk ■HB i tylfityWQH kypřili m 8 • TEMA FERNANDO LOPES jornaldeletras.pt • 16 a 29 de maio de 2012 JL coincidencia", diz MJS - o que custaaacreditar... O ultimo filme foi um ultimo fölego, feito ja improvävel. "Ele ja estava muito debilitado quando foi äs filmagens do SenhorX, de Goncalo Galväo Teles, eu at6 lhe disse para näo ir. Quando viu aquilo flcou novamente com 0 bichinho das rodagens". E avancou para a adaptacäo de Cämara Lenta. Paulo Branco disponibilizou todos os meios para que a producäo fosse räpida e eflcaz e o filme foi concluido em tempo recorde. No final, ja doente, näo perdia o sentido de humor que o caracterizava. Lia os jornais, o Publico, o JL, e alguns estrangeiros, mas estava demasiado zangado com o mundo para discutir politica. Terä flcado contente com os premios de Miguel Gomes e Joäo Salaviza em Berlim e comentou: "Afinal tamböm vem coisas boas da Alemanha". Falava da morte muitas vezes. Nunca se sentiu com grande esperanca de vida. Em entrevista ao JL, de Rodrigues da Silva, dizia: "O Manoel de Oliveira 6 um hörnern primitivo, uma forca da natureza, nem sei mesmo se näo O mundo é feito de muita Jorge Silva Melo Ii Houve este desencontro, era Jean Renoir quem havia de ter fllmado o Fernando Lopes, o seu sorriso, os seus olhos sempre ä beira das lágrimas, a música misteriosa das suas mäos, a sua Mgurante presenca. Sim, nunca conheci ninguém que, com o mesmo ä vontade, pudesse entrar pelo Algonquin ( Nova Iorque) adentro, por uma Carlo fora, lä para com os seus botöes, jornal debaixo do braco, cabecabaixa, lesto, lesto. Sim, o Fernando gostava da imensa variedade de coisas de que o mundo e feito, passava bem por todas elas, via-as como ninguem e um relance bastava, estas miserias entretinham-no. Mas ele näo apreciava apenas as muitas qualidades dos seus inümeros amigos (que ele sabia tornar pröximos em poueos minutos), a intelig&ticia, a coragem, a as suas", " näo há meio de o convencer", as teimosias, era isso que ele perscrutava com a rapidez de foto-maton, essas teimosias que o faziam sorrir sempre que falava do contínuo desänimo do Alberto (Seixas Santos), do orientalismo do Paulo (Rocha), do desesperado cinismo do Vasco (Pulido Valente), da fragilidade do Manel (Mozos), da agudeza austera do Carlos (de Oliveira), do génio do Paulo (Branco), ou da obstinaeäo do Edgar (Péra), _ 1 *"* V iam os atores (os sete minutos passam-se todos numa viagem de carro), eu näo ouvia as conversas que ele ia tendo com o Pedro Gil, ator e meu muito querido amigo, via-os afalarsemflm embrenhados, amigos como se desde sempre, com o Fernando a falar, a contar, as mäos maravilhosamente gesticulando. Vi que se entendiam, vi que o Fernando já radioscopara o Pedro, já o chamara para o seu lado, já o abracara, vi o Pedro (rapaz inteligente e delicado) desviar-se para o lado do Fernando, já láestavamos dois, eramos dois täo luminosamente lindos. É este o encantamento (demoerático, hélas\) que costumamos associar a Jean Renoir, este amor pela imperfeicäo dos homens, este amor do instante, esta luz do presente. Claro que o mundo do Fernando era um mundo de homens, o touro ferido que é o Joäo Guedes andando de um lado para o outro, impotente, naquela sequéncia formidável da Abelha, febril. Ninguém como o Fernando fllmou esse hörnern castrado Fernando Lopes A Cinemateca Portuguesa está a preparar uma retrospetiva integral homempctadtllvo, wwm-forga da------------ natureza, nem sei mesmo se náo será imortal. E eu, com os copos que bebo, os cigarros que fumo e a vida boémia que vou fazendo pela cidade, náo chego aos 70 anos". Mas sempře foi um lutador e um sobrevivente, encontrando as for9as onde menos se esperava. Foi resistindo até ao passado dia 2. No velório, no Palácio Galveias, a maior coroa de flores, por trás do caixao, era do restaurante Gambrinus, nas Portas de Santo Antao, onde passava grande parte do seu tempo, sentado sempře no mesmo lugar, no extremo direito da barra, para que nao tivesse ninguém do lado direito e as conversas pudessem decorrer a dois. "O mínimo que espero do Gambrinus é que ponha ali uma placa com o seu nome...", diz MJS. Fernando Lopes era, alias, um homem de hábitos marcados, gostava da boémia e da vida de café. Náo escrevinhava, ficava apenas ali e falava com quem aparecesse. O Gambrinus era o seu pouso mais habitual. Mas também frequentava a Cervejaria Alga, onde se encontrava com Miguel Gomes, ou a Tasca do Careca. Como dizia no documentário realizado por Joáo Lopes, gostava de ouvir o barulho do gelo no copo de whisky. E era feliz assim. Seria possível tracar um percurso por Lisboa do Fernando Lopes. Alem de um grande realizador, era uma figura da cidade. E com a sua mořte, o cinema portugués empobreceu e a cidade ficou mais vazia. Como escreveu no finál da sua Autobiografia para o JL: "Bebi demais (nao me arrependo). Fumo demais (nao me arrependo). Comovo-me demais (nao me arrependo). Sou um erro sociológico. Estou onde nao devia estar, sou aquilo que nao estava previsto que eu fosse." .11. espelunca qualquer com o chäo cheio de cascas de tremocos, por palácios de Veneza ou de Benflca, gabinetes ministeriais ou precárias salaš de montagem, o Ribadouro ou Seteais e, como as personagens de Renoir, gostasse de flcar sentado horas a fio ä grande mesa das cozinhas, entre trabalho, cebolas, conversas e ditos matreiros, só Dalio (a quem Fernando tanto se parecia, maisbonito), ouGabin, esses caporals épinglés. Em todo o lado o Fernando entrava, parecia que era dali, parecia que nunca sairia, nunca haveríamos de saber de onde ele tinha vindo ou para onde iria, quando, sabe-se lá porqué, se levantava e desaparecia, homem que tantas vezeš vi afastar-se pelo escuro Monte ousadia, a invencäo, virtudes a que chamamos "nobres". Ao Fernando divertiam-no os defeitos de cada qual, as manias, as caturrices, "lá está ele com m m Ningiiém como o Fernando Hlínou esse hoinein castrado que v i mos mandar 110 Portugal dos anos 50 60, delflns, é claro, marialvas de cartilha a sartriana desconfiancja do Joao (Martins Pereira), todos estes homens (e os demais sobre quem nao teremos nunca falado) eram, para o Fernando, poqos de manias, coisas Id de cada um - e isso encantava-o, fazia-o ver o mundo como um pequeno carrossel de maniacos (nao havia qualquer coisa de Capra neste humanismo fora de tempo do Fernando, o Capra de O Mundo e um Manicomio?) Nos breves dias de rodagem da curta-metragem que com ele fiz - e cujo argumento o Fernando, luminoso e rapido criticou com aquele "passa Id por casa, tenho umas coisas a dizer-te sobre o argumento" - vivemos em encantamento. Cd de fora do autombvel onde t -. .^»wmMirivjguvBiatfGIEiuMIMHnNUHHBI Minimi i.SSL- lu-'IlK-ili «_-;isl 1 .uln que vimos mandar no Portugal dos anos 50-60, delfins, 6 claro, marialvas de cartilha. Mas logo no seu As Pedros e 0 Tempo (numa I sequencia que muito tenho usado nos meus filmes recentes sobre o Älvaro Lapa, o Bravo, o Palolo),vemos cömo ele fllma com I evidente entendimento aquele ! cafe Arcada em dia de feira de gado na Evora machista dos 60: I sö homens e com tempo inflnito d sua frente, nada mudando. E embora o Fernando fosse homem de muitas cumplicidades femininas (as tres filhas, as amigas da televisäo, as atrizes, escritoras, Pina Bausch) e a todas oferecesse com imensa espontaneidade a sua intimidade ferida, o seu cinema fllmou sempre a mesma mulher pldcida, rafaelita, clara como se a carnara nunca lhe conseguisse roubar o segredo. Da Laura Soveral d belfssima Ana Padräo, da esplendorosa Alexandra Lencastre d breve Maria Joäo Abreu, ou a Lia Gama de um momento, populäres ou elegantes, burguesas, aristocratas ou nem por isso, todas säo, no cinema de Fernando, um desconhecido planeta para que olha com ternura imensa, 6 pensarmos na mulher de Belarmino penteando-se por cima do Martim Moniz, ou d volta da qual, mosca atraida pela luz, o rapaz rodopia, predador ferido, como o Belarmino volteia, cherubino amoroso, d porta do Eden e ao ver a impdvida Julia Buisel. Seräo assim as mulheres no cinema do Fernando (havia quem lhe chamasse Fernando, quem lhe chamasse o Lopes, dependia das horas) o fio do horizonte, um destino? Um segredo. Exceto uma - e ai eu diria que houve um encontro täo luminoso, "■I tJL / 16 a 29 de maio de 2012 • jornaldeletraa.pt FERNANDO LOPES TEMA * 9 táo fulgurante tao frontal como a luz do sol ao meio dia na planicie e foi com a Zita Duarte que faz acenderem-se todos os pianos em que entra na Abelha, raposa ferida, animalzinho, pássaro sem eira nem beira e negros olhos que perfuram o mundo. Sim, embora seja fácil dizer que, á maneira de Roger Vailland, os muitos homens que povoam o cinema do Fernando, homens feridos, apagados, melancólicos, secretos, impotentes, cínicos e amargos sáo sempre figuracoes de si próprio (ah, Claude Brasseur, que maravilha) é esse fugaz entendimento que, durante breves pianos, vemos entre ele e a Zita Duarte (que haveria de interpretar a propria máe do Fernando em Nós Por Ctí todos bem) que nos ilumina o espelho, 0 fulgor. Raras vezeš uma atriz se prestou a tal encontro, só o Fernando conseguiu filmař -se a si mesmo no corpo febril de uma rapariga fugidia e assustada. E agora o Fernando foi-se embora. Á saida do Palácio Galveias, havia tourada no Campo Pequeno (eu gosto) e, áquela hora, ainda a banda taurina apregoava enos dilacerantes pasodobles das corridas. Fiquei sentado num banco, ao lado dos taxis, comegava a chover, e eu, estúpido, chorei. .1». Memórias do "Canal Lopes' Antonio Mega Ferreira <[ Vis to como cineasta, que e aquilo que ele, acima de tudo, foi, Fernando Lopes arrisca-se a ser esquecido como homem de televisao - que tambem foi. Esteve no arranque da RTP, no final dos anos 50, e, com intermitencias, por ali se manteve ate 1964; mas no final da d^cada de 70, chamado a diregao de Programas do 2s canal, Fernando Lopes foi capaz de, com meios reduzidissimos, ergueruma alternativa real e reconhecivel ao que o 12 canal transmitia. Durante um ano e meio, essa experiencia inovadora constituiu, como ele disse, a tentativa de criar "uma outra Televisao". A estrategia de Lopes passava, em primeiro lugar, por desenhar uma forte individualidade para aquilo que viria a ser a RTP2, assentando-a na qualidade e diversidade da Informagäo. Depois, a sua filosofia de programagäo tinha em vista atingir os públicos que a hegemónica, quase monopolista, RTPi näo satisfazia. Partia de premissas apertadas: a RTP2 só era vista em metade do território nacionál; os meios técnicos disponibilizados eram partilhados com o i* canal; as disponibilidades flnanceiras reduzidas e as instalacôes sofríveis, quando näo medíocres. O que o 2- canal fez pela televisao em Portugal é, como ele próprio reconheceria, poucos meses depois do arranque da nova programagäo, "quase milagroso". A partir de outubro de 1978, o Informacäo/2, emitido diariamente pelas 22 horas, tornou-se um formato realmente diferente do tipo de informagäo dominante na televisäo portuguesa; o semanário A Par e Passo foi a primeira grande revista de eventos, sobretudo políticos, apresentada pela RTP; o Fernando Lopes Um homem da televisäo 44 Aquele 2e canal foi marcado por ele com a elegancia com que atravesson a história do cinema portugués do ultimo meio século Directíssimo o primeiro talk-show informativo. A batalha do 2s canal comegou por ser ganha pela sua informagao, para a qual Lopes tinha ido buscar Hernáni Santos, que trazia consigo a experiencia da BBC, e á qual agregara, como cabega de cartaz, o incomparável Joaquim Letria. Mas a alternativa nao parava ai. Com a cumplicidade de Joao Soares Louro, presidente da RTP, que estimulava a concorréncia criativa entre os dois canais, XO * TEMA /FERNANDO LOPES jornaUeleti-as.pt • 16 a 29 de malo de 2012 / foi desencantar formatos e series que nunca se tinham visto na televisäo portuguesa, capazes de atrair outros públicos (inclusivamente, os mais jovens) até entäo indiferentes ä pasmaceira que era a rotina do canal dominante. Passou AH you need is love, uma série documental inteligente e dinämica sobre a primeira década e meia da música pop; A aventura da arte moderna, que rasgava horizontes (ainda que a preto e branco...) sobre as novas maneiras de ver; I, Claudius (com o grande paixao das ideias GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS Atnigo pcnsudo heguei até Fernando Lopes através dos meus bons amigos da geracäo de O Tempo e o Modo (que näo sendo minha, segui com estima muito especial, através de pessoas como Antonio Algada Baptista, ele mesmo um centro irradiante de «grandes amizades») nesse mis-1 to de intenogagäo, de dúvida e de otimismo Jk trágico, que foi marca indelével dessa maneira de pensar. Depois encontrei uma das suas ne tas, a Sofia, no Centro Nacional de Cultura, julgo que näo poderia ter havido sitio melhor, e isso foi motivo para falarmos várias vezes de sementeiras de futuro, de perplexidades e da necessidade de termos os olhos bem abertos e atentos, onde a indiferenga vai tendo tanta forga. Olhando a sua presenga, devo comegar quase pelo principio. O caso de Belarmino (1965) é muito especial. É um dos emblemas do chamado cinema novo, com um lugar unico, que vai muito para além da circunstäncia ou de um cänone. Lembre-se, alias, um memorável dossié de O Tempo e 0 Modo. Com exagero houve quem dissesse que esse foi o contributo de Fernando Lopes para a história do nosso cinema. Näo, houve muito mais. Ele amou profundamente a literatúra, o cinema e a televisäo, e sobretudo o mundo das pessoas - e deixou um testemunho vivo através de tudo o que fez, e do exemplo prático, indo ao cncontro da realidade e da vida. Por E o certo é que todas estas palavras säo ponderadas, uma vez que, passados os anos, Belarmino Fragoso continua na nossa memória näo como uma personagem, mas como auténtico símbolo de uma socie-dade em transigäo, do encerramento para a abertura. «Tiveste jeito, como qualquer de nós,/ e foste campeäo, como qualquer de nós. / Que é a poesia mais que o boxe, näo me dizes?/ Também na poesia näo se janta nada, / mas nem por isso somos infelizes. / Campeôes com jeito/ é nossa vocagäo, nosso trejeito. / Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, näo se levante/ - e a gente levanta-se, pois pudera, sempre. / Mas do miudame levámos cada soco! / Achas que foi pou-co?/ Belarmino:/ Quando ao tapete nos levar/ A mofina, / Tu ficarás sem murro, / Eu ficarei sem rima, / Pugilista e poeta, campeôes com jeito/ E amadores da má vida». Porém, Belarmino, referencia histórica insuperável, näo teve sucesso comercial, eveio, gragas a uma convergéncia de amizades, UmaAbelha na Chuva (1972), no dizer de Joäo Bénard da Costa «adaptagäo Uberrima de um romance de Carlos 01iveira», que «reviu o neorrealismo ä luz do romantismo e inovou tanto pelos lados da mise-en-scene quanto pelos da montagem». E a marca crítica e inovadora de Fernando Lopes ficou de novo evidenciada, como foi prenunciado no filme iniciál. Conhecemos o seu percurso e a sua vida. Os seus amigos tém-no recordado e sentimos que ele nos fez usufruir dos melhores resul- —i. j j. de ver; I, Claudius (com o grande Derek Jacobi), possivelmente a melhor série televisiva de sempre sobre o Império romano; Flash Gordon e o Homem-Aranha, que abriam perspetivas para o mundo da banda desenhada; as Cenas da vida conjugal, de Ingmar Bergman; a extraordinária série documental Holocausto, possivelmente o primeiro momento em que a barbárie nazi foi mostrada em toda a sua dimensäo na televisäo portuguesa. E passou Lulu, de Alban Berg, dirigida por Pierre Boulez, na lendária encenacäo de Patrice Chéreau para a Opera de Paris, assegurando a participac^o da RTP2 na coprodu$äo da versäo televisiva. Nesses 15 meses de atividade, Fernando Lopes fez imenso com muito pouco, possivelmente porque trazia do cinema a experiéncia da proverbial escassez de recursos. Tinha um entusiasmo por vezes quase juvenil por "fazer coisas" e exasperava-se com os atavismos e as resisténclas ronceiras dos acomodados ("esses cornetas", como ele dizia). Possuía, além disso, a intuicäo culta que lhe dava para escolher o que era de qualidade e ilustrava um certo gosto cosmopolita e moderno. Aquele 2- canal foi marcado por ele com a elegancia com que atravessou a história do cinema portugues do ultimo meio século. Ali, foi täo bom como nos seus melhores filmes. Quer dizer que é inesquecivel. «11. iiossre OTT cXT&mpo ďľfTvfnŕTíT. esse foi o contributo de Fernando Lopes para a história do nosso cinema. Näo, houve muito mais. Ele amou profundamente a literatúra, o cinema e a televisäo, e sobretudo o mundo das pessoas - e deixou um testemunho vivo através de tudo o que fez, e do exemplo prático, indo ao encontro da realidade e da vida. Por__ isso, Belarmino é um caso aparte. Paulo Rocha disse: «Enquanto Fernando Lopes for vivo ninguém vai conseguir parar o cinema portugues». E Alberto Seixas Santos liga-o indelevelmente a Verdes Anos, do proprio Paulo Rocha. É a matéria-prima da literatúra e da narrativa que está em causa. Estamos diante de um documento fideh'ssimo da circunstäncia que retrata, que nos leva a conhecer uma pessoa auténtica, de carne e osso, um lutador popular que passaria despercebido se näo tivesse chama-do a atencäo de Fernando Lopes, do seu ine-quívoco talento artístico e intuicäo humana. Que é um filme senäo um modo de prender o tempo? Alexandre O'Neill, no ano seguinte ä apresentacäo do filme, escreveu o poema «Amigospensados: Belarmino», emho-menagem aos vários encontros boémios no mundo da Lisboa dos anos 50 e 60. E pode dizer-se que foi O'Neill quem melhor captou o sentido desse filme, que recorda muito mais do que Rocco e os seus irmäos, uma vez que a estética e a concecäo de Fernando Lopes näo se podem resumir a um respeito de escola, qualquer que seja, mais ou menos neorrealista. Há abertura a novas perspetivas, e sobretudo a procura da vida que näo se encerra em cänones pré- deflnidos. _ Se näo fosse assim näo poderíamos dizer que é neste poema de Feira Cabisbaixa, ao lado dos exemplos de Tereno, Eulalia e Alice, que se procede a uma fidelíssima interpre-ta9äo do que verdadeiramente estava em causa nesse documentário inexcedível, que, em boa verdade, é muito mais do que isso, entre a fotografia de Augusto Cabrita, a música de Manuel Jorge Veloso, a entrevista de Baptista-Bastos, e o genial suceder de imagens, no aproveitamento belissimo de uma coreografla espléndida. Quando O'Neill viu o filme apaixonou-se logo por ele. Viu aí a profunda aten9äo aos dramas humanos e ao que na realidade nos conduz a ultrapassar o real, procurando compreendé-lo. Gerou-se entäo uma amizade entre Fernando e Alexandre, digna do que o poeta designou em sua casa, como «cabine dos irmäos Marx», espécie de refúgio para tantos e inusitados amigos pensados. * * Irl« f, Singular cineasta, que sobretudo aniava a vida e o incsperado dela. E era desses momeiitos bons que a vida dele se foi compondo, como nos dizia sempre o seu sorriso melancólico iXASC ( ÍO rbřňailllí.1110 W HlUVOLt Idl^O |jOl.-r.j ítl^lv^j Jd liliůd-^IL-o^nc >íh^.iiij ■ pelos da montagem». E a marca crltica e inovadora de Fernando Lopes ficou de novo evidenciada, como foi prenunciado no filme iniciál. Conhecemos o seu percurso e a sua vida. Os seus amigos tém-no recordado e sentimos que ele nos fez usufruir dos melhores resul- __ tados da criatividade, da arte e do talento - como na inesquecivel experiéncia da RTP-2, nos seus tempos mais gloriosos, que temos de continuar a lembrar, pelo espírito livre, aberto, inovador e desassossegado. Olhando o percurso vém-nos á mentě alguns flashes. A Crónica dos Bons Malandros (1984), sob o tema de Mario Zambujal (com quem recordei Fernando, como se ali estivesse, á porta das Galveias), ilustraumtemabizarro, passado a dois passos, na Gulbenkian, protagoniza-do por uma quadrilha cansada de vulgares assaltos. Mas mais do que isso: dá-nos conta de quem era este singular cineasta, que sobretudo amava a vida e o inesperado dela. Quantas vezes invocou esse desejo íntimo de se deixar atrair pela aventura em busca de um bom momento. E era desses momentos bons que a vida dele se foi compondo, como nos dizia sempre o seu sorriso melancólico. O Fio do Horizonte (1993), com base num texto de Antonio Tabucchi, foi o filme que Fernando Lopes mais terá gostado de fazer. Aí reencontramos, de novo, a procura da existéncia. Spino, anátomo-patologista da morgue de Lisboa, depara-se com o corpo de um jovem que o atrai estranhamente. Joao Bénard encontrou aí Borges e Pessoa, numa «história de duplos e de um vivo que _ encontra o morto que é ele». José Cardoso Pires deu, por outro lado, o enredo e a tensáo dramática de O Delflm (2002). É, de novo, o pais entre o fechamento e a abertura que está na ribalta - o tema da transk;ao surge apresen-tado com naturalidade e subtileza, como se houvesse dois registos: o do tempo que permanece e o dos constrangimentos que levam á mudanca. Este é o tema recorrente de Fernando Lopes, sempre ciente de que deveria dar testemunho crítico relativamente a uma sociedade que parecia náo mudar nos seus fundamentos e que sofreu um profundo abalo telúrico com repercussoes de largo prazo. Um incidente, como é regra nos romances de Cardoso Pires, é o revelador de tudo. «Tomás Manuel domina os caes compulso forte, tem-nos colados a ele. Tremem os trés, presos ao chao. Dois mastins e um homem que acende cigarros uns nos outros e que mostra as dunas um rosto devastado...». .11, Boraia Financeira, e entre 1979 e l, da cadeira de Moeda e Crédito, Iniversidade Católica do Porto. É la o presidente do Conselho Geral iniversidade de Coimbra. Em 1975 grou o VI Governo Provisório, como ptáno de Estado do Tesouro. Em 7/ 78 foi viee-governadoř do Banco Portugal. Teve um papel importante jria^áo da Funda?áo de Serralves, Iual o BPI foi um dos fundadores Incipais mecenas. ASS preside ao ííelho de Fundadores da Casa da s:ca, foi o primeiro comissáno da a r Santos Suva rto 2001, Capital Europeia da Cultura, c ue se demithi em colisäo com o Bio ministro Manuel Maria Carrilho. ús recentemente, presidiu ä comissäo je organizou as vastas Comemoracjöes Centenário da República. Alem SSO, o seuprestígio e experiéncia mo administrador financeiro, e o seu oahecimento dos negócios da propria iloenkian - é administrador da Partex I & Gas (Holdings) Corporation, apresa petrolífera inteiramente detida ■li! fundacäo - teráo tido um peso iportante na escolha do CA, cuja nova síribuicao de pelouros ainda näo é iijhecida. ji. linoel de Oliveira Etnbora com assinalável atraso, impor-referir a saída em Itália do livro Mano-de Oliveira - Cinema, parola, politico, da ttoria de Francesco Savero Nisio, prof. : Filosofia do Direito da Universidade 1 ?oggia e que tem públicado também iiias obras sobre cinema. Trata-se de t a obra com muita iriformacäo, análise ooiniáo, ao longo das suas 350 páginas, icluindo a filmografia completa ana-úza., bibliografia, etc. A chancela é da itora Le Mani, de Génova. ji. Eduardo Lourenco, em prémio e o acervo 1 om 25 anos de atraso, foi atribuído a Eduardo Louren$o (EL) o prémio que havia 1 a generalizada ideia de por direito lhe "pertencer": o Prémio Pessoa. Quero dizer: aquele que, atendendo a quem lhe dá o nome, ao lugar impar de EL na cultura e no pensamento Portugueses, em particular nos notabflissimos ensaios I dedicados ao poeta dos heterónimos, desde o início muitos pensavam ninguém . ' mais do que ele o merecer ; ou mesmo: a ninguém, mais do que ele, serjusto, se näo imperioso, atribuí-lo. O que logo no início nem erapossível porque o proprio Lourencjo pertencia ao júri: quem criou o prestigiado galardäo, o semanário Expresso com o apoio da Unisys, ou näo pensou nisso, ou entendeu que ele näo era um candidate natural ao prémio, que se destinaria a distinguir e 'incentivar' personalidades de menor notoriedade. E ä luz de hoje, face a todas as distü^öes que já recebeu, esta hipótese parecerá logica. Porém, a realidade do ano de 1987, em que o Pessoa foi dado pela primeira vez, era muito di-ferente: EL nunca tinha sido distinguido com nenhum galardäo, pelo menos de "nomeada", o que mais justificaria/ imporia a atribuicäo do Pessoa. De facto, só no ano seguinte, em 1988, ele ganhou o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon. E em Portugal continuou em branco... _ De tal forma me pareceu isso injustiflcado e injus- to, se näo absurdo, que em 1992 o JL criou o Prémio s s Antonio Sergio, nessa is edicäo desünado a galardoar quem mais se tivesse destacado a pensar Portugal e a ~~ ~~ Europa. Sem entäo o assumir, posso hoje confessar que a entäo inconfessada principal intengäo foi, na medida do possível, colmatar aquela incompreensível 'falha'. E, de facto, o júri (integrado por Luciana Stegagno Picchio, Jose Cardoso Pires, David Mouräo Ferreira, pelo representante da CEE e por mim proprio) por unanirnidade o atribuiu a Lourencjo, sendo-lhe depois entregue, em cerimónia publica, pelo Presidente da República, Mario Soares. Entretanto, por sua iniciativa, em 1993 EL deixou de pertencer ao júri do Pessoa - e fui sempre dos seus amigos que lhe diziam näo fazer sentido pertencer a juris _ de prémios que era a ele que deviam ser dados... Foram, no entanto, precisos mais 18 anos, para isso acontecer. Alegadamente, creio, só porque o galardäo se destinará menos a consagrar uma "carreira" do que a estimular quem já tendo feito muito ainda pode fazer mais ou muito mais. Sabe-se, no entanto, o que Lourencjo fez desde os seus 63 anos, em 1987, ou dos 69, em 1993, até hoje... E entretanto, de facto, recebeu numerosas e importantes distincöes, com destaque para a maior de lingua portuguesa, o Camöes, em 1996. Alias, circunstáncia signiflcativa e näo posta em destaque, Lourenco é o primeiro Prémio Camöes a quem é atribuído o Pessoa; e nunca, também, a inversa se verificou. Pode-se dizer, assim, que tudo isto só dá mais dimensäo e simbolismo ao ato de justina agora praticado, sublinhando o júri que a sua excecionalidade face a critérios antes seguidos (por exemplo, o prémio nunca distinguira alguém com mais de 70 anos), se deve aos problemas também excecionais que Portugal e a Europa (e o Mundo...) vivem: e ninguém como o autor de O Labirínto da Saudade terá refletido sobre eles e o que está na sua base, sobre o nosso pais e o continente em que nos situamos, o nosso passado, presente e futuro. Os nossos leitores sabem-no bem, por todas as razöes, mcluindo a de ser colaborador e amigo do JL desde on'i-e ininterruptamente, até hoje. Alem disso já dedicamos a sua obra, nos seus múltiplos aspetos, inúmeras matérias e várias capas. E se agora isso volta a acontecer tal näo se deve ä outorga do Prémio, nem ao facto de ter saído o torno I das sua Obras Completas (de que já falamos), mas as revelacjoes que podemos fazer sobre o conteúdo e a riqueza do seu acervo - a 'area' de Lourenco -, o trabalho que com ele está a ser desenvolvido, e a sua próxima edi?äo, em vários volumes, por temas, para o que contribui de forma decisiva o labor táo discrete como eficaz e devotado de Joäo Nuno ALjada. Um "terna" do maior interesse, que nos dá muito prazer e honra publicar, para ler do princípio ao fim - e que inclusive mostra que temos outros ensaístas, pouco 'badalados', da grande qualidade de Fernando Catroga. ARTUR SANTOS SILVA Tem que ficar para próxima oportunidade a referéncia mais detalha-da a uma muito boa notícia dos Ultimos dias (ler ao lado): a eleicäo de Artur Santos Silva (ASS) para presidente da Fundacäo Calouste Gulbenkian. Para lá do essencial, a grande competéncia e riqueza de experiéncia em todos os domímos fundamentals para o exercício do cargo - que tém a ver com a boa adininistra§äo, preserva§äo e rentabiliza9äo do património, de que lhe vém as receitas, e a acao nas areas das artes, das ciéncias, dabenemeréncia, da cidadania e internacional - ASS possui ainda uma série de caraterísticas e qualidades, bem patentes em múltíplas circunstancias, que o impöem como o hörnern certo no lugar certo. Alias, o seu per-curso e perfil tém imensas semelhan9as com os de Emflio Rui Vilar, a quem vai suceder, e que Lourenco é o primeiro Prémio Camöes a quem é atribuído o Pessoa; e nunca, também, a inversa se verificou foi, continua a ser, um excelente presidente. Voltarei ao assunto. jl 22 ARTES jornaideietras.pt • 7 a 20 de margo de 2012 Dois anos depois de Os Sorrisos do Destino, Fernando Lopes está de volta com Em Cämara Lenta, que se estreia em sala, hoje dia 7. Substituiu o coloquialismo semiprivado do filme anterior, por uma visäo poética da vida, em que Alexandre O'Neill é referencia. Continua a confundir o cinema com a vida. O JL viu o filme e falou com Rui Morrison, seu ator e cúmplice Manuel Halpern ~!VT frente ä sua estätua. "Sigamos o Cherne"... E o filme segue o eherne ate ao fim do mar. So que o mar e täo extenso que o filme acaba antes que o mar acabe. Mas fica a ideia de nadar sem fim, perda de uma personagem que sem encontrar o outro näo se encontra a si propria. E entäo fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca säo suflcientemente profundus, história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figúra altamente egocéntrica que chama para si as luzes e as cämaras, como se os dramas que o circundam näo tivessem peso. Santiago näo é uma figúra simpática, queima tudo ä sua volta e acaba por morrer queimado. Näo entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que Ihe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores Almes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Cämara Lenta, Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, näo é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidencia de todas as atrizes se chamarem Maria Joäo. A outra personagem masculina, Salvador (Joäo Reis), faz o contrabalan§o com Santiago, é a figúra tragicómica, mas igualmente deprimida. O de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida. Á excecäo da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignacäo e submissäo algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relacäo funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem piano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussôes educadas e elevadas, que até evidenciám cumplicidade. Constanca, a amante, submete-se a um destino que ela propria ditou e que a aprisiona. "Tu és o hörnern a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais ä frente a faz Há um hörnern que se pcľdeu no mar, c oni rf t que Na vespera da sua morte, Socrates compartilhava a cela com um tocador de lira. Pediu-lhe entao que lhe ensinasse a tocar aquele instrumento. O outro respondeu espantado: "Mas se ireis morrer amanha, porque quereis aprender a tocar lira?" Ele respondeu: "Tens razao, morrerei amanha, mas amanha saberei tocar lira". Este episddio que se conta da vida de S6crates, relatado no filme de Fernando Lopes, serve de exemplo para a insaciavel busca do conhecimento ou, como sintetiza o povo, a ideia de aprender at 6 morrer. Aplicada a Em CamaraLenta, mais do que o conhecimento em si, a cita?ao, que no filme tambem e um preniincio, pode ser entendida como a busca constante da arte e da poesia. Que e o que Fernando Lopes tern feito ao longo da sua obra, de forma mais ou menos assertiva. E que aqui chega a um dos seus esplendores poeticos. Cita-se Alexandre O'Neill a descarada, sobretudo as suas consideracoes sobre as mulheres, como que lhe dando um papel de inspirador marialva. De alguma forma, Em C&mara Lenta torna-se assim uma homenagem a O'Neill ou, pelo menos, uma manifestacao de afeto e cumplicidade. Isto e feito de modo claro e ate pouco subtil quando Santiago leva a sua amante ao Parque dos Poetas, em Oeiras, e cita O'Neill em acíiba an tes que o rxiEir ticsíiaií. Mas flea a ideia de nadar sem fim, num deserto de água, com uma pele marinha, nadar como quern foge e como quern se liberta. Nadar até ao nada. "Vou atrás de um peixe grande, e desta vez ou eu o apanho ou ele me apanha a mim". Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas náo é um filme sobre Pescadores, antes de mortos-vivos. Fala da säo suiicientemente profundos, porque ele proprio náo se consegue desprender do mar que o atravessa. Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, emresumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triängulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Náo é um filme em que conte a mas igu;ilmi"iiť <].|n iHiiii.i. c > bébedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si propria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotograf o que esereve um diário, e vive na esperanta ■ Sm Cómara Lenta Sigamos o eherne e outro que tenta encontrar o seu fantasma gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vinganca do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu designio, Santiago reina de forma desafetada e egoista, mas näo deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas näo vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusäo de Constancy. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposicäo ao avô de Constanca, que väo visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar. Visäo poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citacôes abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético proximo de Lá fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os näo lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo näo prevalece. Há uma poética do vazio e dos espacos sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Cámara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delflm. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si proprio, -n. «IL 7 a 20 de margo de 2012 • jornaideietras.pt cínem ARTES * 2^ • 'M m O ator de Fernando Lopes • Rui Morrison é o ator de Fernando Lopes desde O Delflm. De alguma forma serve-lhe de espelho, sobretudo nos Ultimos Almes, em que experiéncias pessoais do realizador toma-ram conta das personagens. Ä volta de uma chávena de café, o protagonista de Em Cámara Lenta conversou com o JL sobre a personagem, o cinema e a poesia de Fernando Lopes Tem sido o ator de Fernando Lopes assim como o Leonardo DiCaprio do Scorsese. Os papéis que tem iiiterpretado tem muito do realizador lá dentro? Näo é exatamente um alter-ego. Mas estes dois Ultimos filmes do Fernando tém uma componente pessoal muito forte. Säo temas diretamente ligados a situacöes da vida dele. N' Os Sorrisos do Destino parte de uma experiencia pessoal. E este Em Cámava Lrnta tem a ver com o seu universo, as suas preocupacôes e o seu olhar sobre a vida e sobre a morte. Há um sentido de despedida? Espero que näo. Tem uma ideia poetka, de nadar até ao ílm do miuido. Näo tem nada a ver com Os Sorrisos do Destino, que era um filme mais naturalista. Esle tem uma componente poética maior, a própria linguagem utilizada näo é colo-quial. Portanto, é um filme que ganha outra dimensäo para além do realismo, Quase todas as personagens bebemuĹsque. Isso é uma marca pessoal que Fernando Lopes pôe nos filmes. Eu f;i.ii í; •• •. "Bebo uísque nos filmes do Fernando Lopes desde O Delf im" bebo uísque nos seus filmes desde O Del/im. Há uma grande proximidade entre os dois? Desde o primeiro filme que flz com ele criou-se uma cumplicidade unica. Quase que näo é preciso con-versar. Compreendo-o muito bem. Conheco bem o seu cinema. A čerta altura, quando ele faz o piano, eu sei logo o que ele pretende. Os próprios temas dos filmes säo muito fáceis de entender, de entrar neles. Há uma grande compreensäo de parte a parte. Näo houve grandes conversas para deseobrir a personagem. Foi tudo muito fácil. Ele também me conhece muito bem, sabe o que eu posso dar. Esta personagem näo é simpática, apesar de, a determinada altura, sentirmos alguma compaixäo. Ele próprio acaba por se deitar na cama que fez, neste caso, no mar. É um indivíduo egoista, independen-temente do trauma principal forte que o marca. Além da culpabilidade, a perda do irmäo leva-o a näo se entregar. Näo é um egoísmo puro, é um medo de voltar a perder. Näo se entrega nem ä mulher, nem ä aman-te. Apesar de gostar dela, näo abdica de uma čerta dištancia, de um local de conforto, revelando até alguma covardia. O flinte tem poesia de forma expiicita, concretamente através de citacôes do Alexandre O'Neill. Claramente. Há all uma influôncia óbvia. O filme poderia ser dediea-do ao Alexandre O'Neill. A minha personagem é um admirador do O'Neill, tal como o Fernando. O poeta também é uma referencia para a personagem no que concerne ä sua relacäo com as mulheres. É assim queelesejustiflca. Neste caso o filme partiu de tun livro, adaptado pelo Rui Cardoso Martins. O guiäo está muito distante do original? Näo li o livro. Há alguns casos em que é importante ler o livro. Aqui, segundo o Rui Cardoso Martins me disse, é uma adap-tacäo bastante livre. Há uma distanciacäo e, por isso, näo me ia interessar muito o livro. Há outros casos em que ler o livro é importante, como O Delflm, cla-ro, ou A Mořte de Carlos Gardel, adaptado pela Solveig Nordlund. O livro é um livro e um filme é um filme. E um filme cheio de fantasmas, Sim, aquelas pessoas andam todas a deriva. É como um navio que anda ä deriva, com os fantasmas na borda. Alias, a Ma Vie é a única personagem positiva, que vai para a frente. Todos os outros säo aulodestrulivos. Como é que é trabalhar com o Fernando Lopes? Ele dá uma liberdade que muitos realizadores näo däo. Espera que os atores tragam coisas. Acontece várias vezeš eu dizer-lhe: "Pensei em fazer isto assim", Se ele näo gosta da ideia diz logo que näo funciona; caso contrario, deixa experimentar. Isso é muito estimulante para o ator. Sentimo-nos mais integra-dos no projeto. .11. manuelhalpern