Depois da Aboligäo Ainda náo: a cartaz feito por uma companhia de tecidos em agosto de 1888 para celebrar a assinatura da Lei Aurea revela uma situacáo existente apenas no imaginário. Alei sucinta e direta que a princesa Isabel assinou em 13 dc maio de 1888 näo cor_-ccdia indenizacäo alguma aos senhores de escravos. De qualquer forma, ao long: dos 17 anos que se estenderam da Lei do Ventre Livre ä abolicäo efetiva, os escr:-vocratas tinham encontrado muitas formulas para ressarcir-se de supostas perdas, entrť elas o tráBco interprovincial de escravos, as fraudes ao Fundo de Emancipacäo e ä Lei d: Ventre Livre. Mas, se os escravocratas näo atingiram um dc seus objetivos, o fracasso d abolicionistas foi maior e mais amargo. Afinal, homens como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Antonio Reboucas, Luis Gama, Antonio Bento e Rui Barbosa compartilhavam — apesar de suas divergéncias ideo-lógicas -— da certeza de que a abolicäo era apenas a medida mais urgente de um program: que só se cumpriria plenamente com uma reforma agraria, uma "democracia rural" (a ex-pressäo é de Reboucas) e a entrada dos ex-escravos c dos trabalhadores em geral num sis-tema de oportunidade plena e concorrěncia. Para eles, como expos o crítico Alfredo Bosi "o desafio social e ético que a sociedade brasileira teria de enfrentar era o de redimir urr. passado de abjecäo, fazer justica aos negros, dar-lhes liberdade a curto prazo e integrá-los numa democracia moderna". Nada disso se concretizou. Os libertos — quase 800 mil — foram jogados na mais ter-rível miséria. O Brasil imperial — e, logo a seguir, o jovem Brasil republicano —r negou- A Aboligáo 229 m Da senzala ás favelas: após a abol i 530 da escravatura, milhares de escravos foram deixados no mais completo abandono, trocando as senzalas tao lado) pelas favelas ipigina anterior). lhes a posse de qualquer peda^o de terra para viver ou cultivar, de escolas, de assistén-cia social, de hospitals. Deu-lhes, só e sobejamente, discriminacäo e repressäo. Embora, de acordo com o historiador Hélio Viana, a maioria dos ex-escravos tenha continuado "a residir nas fazendas, passando a receber salários reguläres", o fato é que, alem de esses "salários" sérem baixíssimos, alguns milhares de libertos acabaram por se dirigir äs grandes cidades — especialmente Rio de Janeiro e Salvador. Lá, ergueram os chamados bairros africanos, origem das favelas modernas. Trocaram a senzala pelos casebres. Apesar da impossibilidade de plantar, acharam ali um meio social menos hostil, mesmo que ainda miserável. O governo brasileiro näo pagou indenizacäo alguma aos senhores de escravos ("Indenizacäo mostruosa, já que uma grande parte deles eram africanos ilegalmente escravizados, pois haviam aportado ao Brasil depois da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831", como disse, em discurso na Cámara, Joaquim Nabuco). Porém, o preco para que tal indenizacäo absurda näo fosse paga foi enorme. Afinal, teda sido justamente para evitar que qualquer peticäo pudesse ser feita pelos escravocratas que Rui ßarbosa, ministra das Financas do primeiro governo republicano, assinou o despacho de 14 de dezembro de 1890, determinando que todos os livros e documentos referentes ä escravidäo existentes no Ministério das Financas fossem recolhidos e queimados na sala das caldeiras da Alfändega do Rio de Janeiro. Seis dias mais tarde, em 20 de dezembro, a decisäo foi aprovada com a seguinte mo^äo: "O Congresso Nacionál felicita o Governo Provisório por ter ordenado a eliminacäo nos arquivos nacionais dos vestigios da escravatura no Brasil". Em 20 de Janeiro de 1891, Rui Barbosa deixou de ser ministro das Finances, mas a destruicäo dos documentos prosseguiu. De acordo com o historiador Américo Lacombe, "uma placa de bronze, existente nas oficinas do Loyde brasileiro, contém, de fato, esta inscriijäo assaz lacönica: '13 de maio de 1891. Aqui foram incendiados os Ultimos documentos da escravidäo no Brasil'". Foi, por-tanto, com essa espécie de auto-de-fé abolicionísta que o Brasil comemorou os trěs anos da mais tardia emancipac^io de escravos no hemisfério ocidental. Embora pragmática — e muito mais verossímil do que a versäo oficialesca de que os documentos foram queimados para "apagar qualquer lembranca do triste periodo escravocrata" — a medida foi torpe. E ajudou a fazer com que, passados mais de cem anos da libertacäo dos escravos, o Brasil ainda näo tenha acertado as contas com seu negro passado.