Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva BD Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Cena I Prado com casaria no fim. Saem D. Clóris, D. Nise e Sevadilha com os rostos cobertos; e D. Fuas, D. Gilvaz e Semicúpio, seguindo-as. D. GILVAZ (para D. Clóris) – Diana destes bosques, cessem os acelerados desvios desse rigor, pois quando rémora me suspendeis, sois íman, que me atraís. D. FUAS (para D. Nise) – Flora destes prados, suspendei a fatigada porfia do vosso desdém, que essa discorde fuga, com que me desenganais, é harmoniosa atracção de meus carinhos; pois nos passos desses retiros forma compassos o meu amor. SEMICÚPIO (para Sevadilha) – E tu, que vens atrás, serás a Siringa destas brenhas; e, para o seres com mais propriedade, deixa-te ficar mais atrás, pois apesar dos esguichos de teu rigor, hei-de ser conglutinado rabo-leva das tuas costas. D. CLÓRIS (para D. Gilvaz) – Cavalheiro, se é que o sois, peço-vos, me não sigais, que mal sabeis o perigo a que me expõe a vossa porfia. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 2 pág. de 126 PARTE I © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Galhardo impossível, em cujas nubladas esferas ardem ocultos dois sóis e se abrasa patente um coração, permiti, que esta vez seja fineza a desobediência: porque seria agravo de vossos reflexos negar-lhe o inteiro culto da visualidade desse esplendor; porque assim, formosa ninfa, ou hei-de ver-vos ou seguir-vos, por que conheça, já que não o sol desse oriente, ao menos o oriente desse sol. D. CLÓRlS (aparte) – Que será de mim, se este homem me seguir? D. NISE – Já parece teima essa porfia! Vede, Senhor, que se me seguis, me impossibilitais o meio para ver-me outra vez. D. FUAS – Para que são, belíssimo encanto, esses avaros melindres de repúdio? Se já comecei a querer-vos, como posso deixar de seguir-vos? Pois até não saber, ou quem sois, ou onde habitais, serei eterno girassol de vossas luzes. SEVADILHA (para Semicúpio) – Ora basta já de porfia; senão vou revirando. SEMICÚPIO – Tem mão, sarjeta encantadora, que com embiocadas denguices, feita papão das almas, encobres olho e meio, para matares gente de meio olho; são escusados esses esconderelos, pois pela unha desse melindre conheço o leão dessa cara. D. CLÓRIS – Isso já parece teima. D. GILVAZ – Isto é querer-vos. D. NISE – Isso é porfia. D. FUAS – É adorar-vos. SEVADILHA – Isso é empurração. SEMICÚPIO – Agora! Isto é bichancrear, pouco mais ou menos! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 3 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Senhoras, para que nos cansamos? Ainda que pareça grosseria não obedecer, entendei que a nossa curiosidade e amor não permitirá que vos ausenteis, sem ao menos com a certeza de vos tornarmos a ver, dando-nos também o seguro de onde morais, para que possa o nosso amor multiplicar os votos na peregrinação desses animados templos da formosura. D. FUAS – Eis ali, Senhora, o que queremos. SEVADILHA – Em termos sem tirar nem pôr. D. CLÓRIS – Pois, Senhor, se só por isso esperais, bastará, que esse criado nos siga; porque de outra sorte destruís o mesmo que edificais. D. GILVAZ – E admitireis a minha fineza? D. CLÓRIS – Sendo verdadeira, porque não? D. FUAS – Admitireis os repetidos sacrifícios do meu amor? D. NISE – Sim, se for amor constante. D. GILVAZ e D. FUAS – Quem essa dita me abona? D. NISE (para D. Fuas) – Este ramo de manjerona. D. FUAS – Na minha alma o disporei, para que sempre em virentes pompas se ostente troféu da Primavera. D. GILVAZ – Mereça eu igual favor para segurança da vossa palavra. D. CLÓRIS – Este ramo de alecrim, que tem as raízes no meu coração, seja o fiador que me abone. D. GILVAZ – Por único na minha estimação será este alecrim o Fénix das plantas, que, abrasando-se nos incêndios de meu peito, se eternizará no seu mesmo ardor. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 4 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Isso é bom, segurar o barco; mas a tácita hipoteca não me cheira muito, digam o que quiserem os jardineiros. D. CLÓRIS – Cada uma de nós estima tanto qualquer dessas plantas, que mais fácil será perder a vida, do que elas percam o crédito de verdadeiras. SEMICÚPIO – Ai! Basta, basta! Já aqui não está quem falou. Vossas mercês perdoem, que eu não sabia que eram do rancho do alecrim e manjerona: resta-me também, que tu, cozinheirazinha, vivas arranchada com alguma ervinha que me dês por prenda, pois também me quero segurar. SEVADILHA – Eis aí tem esse malmequer, que este é o meu rancho: estime-o bem, não o deixe murchar. SEMICÚPIO – Ditoso seria eu, se o teu malmequer se mur- chasse. D. CLÓRIS – Pois, Senhor, como estais satisfeito, desejarei estimásseis esse ramo, não tanto como prenda minha, mas por ser de alecrim. D. NISE – O mesmo vos recomendo da manjerona. D. CLÓRIS – Advertindo, que aquele, que mais extremos fizer a nosso respeito, coroará de triunfos a manjerona, ou alecrim, para que se veja qual destas duas plantas tem mais poderosos influxos para vencer impossíveis. D. NISE – Desejaria que triunfasse a manjerona. (Vai-se.) D. CLÓRIS – E eu o alecrim. (Vai-se.) SEVADILHA – Cuidado no malmequer! (Vai-se.) SEMICÚPIO – Cuidado no bem-me-quer! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 5 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Ó Semicúpio, vai-as seguindo, para sabermos onde moram. Anda; não as percas de vista. SEMICÚPIO – Elas já lá vão a perder de vista; mas eu pelo faro as encontrarei, que sou lindo perdigueiro para estas caçadas. (Vai-se.) D. FUAS – Quem serão, amigo D. Gilvaz, essas duas mulheres? D. GILVAZ – Essa pergunta não tem resposta, pois bem vistes o cuidado com que vendaram o rosto, para ferir os corações como Cupido; mas, pelo bom tratamento e asseio, indicam ser gente abastada. D. FUAS – Oxalá que assim fora, porque, em tal caso, admitindo os meus carinhos, poderei com a fortuna de esposo ser meeiro no cabedal. D. GILVAZ – Ai, amigo D. Fuas, que direi eu, que ando pingando, pois já não morro de fome, por não ter sobre que cair morto? D. FUAS – Elas foram aturdidas com palanfrórios. D. GILVAZ – Já que do mais somos famintos, ao menos sejamos fartos de palavras. Entra Semicúpio SEMICÚPIO – Já fica assinalada na carta de marear toda a costa, de leste a oeste, com seus cachopos e baixios! D. GILVAZ – Onde moram? SEMICÚPIO – São as nossas vizinhas, sobrinhas de D. Lancerote, aquele mineiro velho que veio das minas o ano passado. D. FUAS – Basta que são essas! Por isso elas cobriram o rosto! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 6 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Isso têm elas, que não são descaradas; antes são tão sisudas, que nunca encararam para ninguém. D. GILVAZ – Uma delas sei eu que se chama D. Clóris. SEMICÚPIO – E a outra D. Nise. Isso sabia eu há muito tempo. D. FUAS – E como saberei eu qual delas é a da manjerona? SEMICÚPIO – Isso é fácil! Em sabendo-se qual é a do alecrim, logo se sabe qual é a manjerona! D. FUAS – Grande subtileza! Vamos, D. Gil. SEMICÚPIO – Já que se vão, advirtam de caminho que, segundo as notícias que tenho, bem podem desistir da empresa; porque o velho é tão cioso das sobrinhas, como do dinheiro. A casa é um recolhimento; as portas, de bronze; as janelas, de encerado; as frestas são óculos de ver ao longe, que nem ao perto se vêem; as trapeiras são zimbórios tão altos, que nem as nuvens lhes passam por alto; as paredes do jardim são mestras e as chaves das portas discípulas, porque ainda não sabem abrir; mas só um bem há, e é que, tendo tudo tão forte, só o telhado é de vidro. Com quê, Senhores meus, outro ofício: contentem-se com cheirar a sua manjerona e o seu alecrim, que amor que entra pelo nariz não é bem que chegue ao coração. D. GILVAZ – Semicúpio, não temo impossíveis, temo da minha parte a tua indústria, que espero de ti apures toda a força de teu engenho para os combates dessa muralha. SEMICÚPIO – Ah, Senhor D. Gilvaz, o meu aríete já se acha mui cansado com tanto vaivém, pois nem todo o artifício de minhas máquinas pode abrir brecha nessa bolsa, que tão cerrada se dificulta aos meus merecimentos. D. GILVAZ – Semicúpio amigo, tem ânimo, que se montamos a burra de D. Lancerote, saltaremos de contentes. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 7 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Tal é a minha desgraça e a sua miséria, que ainda com essa burra me dará dois coices. D. GILVAZ – D. Fuas, ficai-vos embora, que me vou armar de esperanças, para que nos combates de amor triunfe o alecrim. D. FUAS – D. Gilvaz, vamos a forro e a partido, pois que Semicúpio é tão destro na matéria. D. GILVAZ – Por ora não pode ainda ser; deixai-me primeiro tentar o vau, que vós também navegareis no mar de Cupido. D. FUAS – Isso não merece a nossa amizade. D. GILVAZ – Se vós sois do rancho da manjerona, já me podereis conhecer por inimigo declarado, seguindo eu a parcialidade do alecrim; e, como nas guerras destas plantas havemos os dois ser contrários, mal poderei socorrer-vos; e assim, ficai-vos embora, D. Fuas, e viva o alecrim. (Vai-se) SEMICÚPIO – E viva o malmequer. (Vai-se) D. FUAS – Viverá a manjerona, apesar do mais intensivo ardor de opostos planetas. Aparece Fagundes com manto e capelo FAGUNDES – É bom sumiço! Aonde estarão estas meninas, que há mais de quatro horas que foram à missa, e ainda não há fumo delas? Meu Senhor, vossa mercê acaso veria por aqui duas mulheres com uma criada? D. FUAS – Que sinais tinham? FAGUNDES – Tinha uma delas uns sinais pretos no rosto, e a outra uns sinais de bexigas. D. FUAS – E que mais? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 8 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Uma delas tem os olhos verdes, cor de pimentão que está maduro, e a outra olhos pardos, como raiz de oliveira; uma tem cova na barba, e a outra barba na cova; uma tem a espinhela caída, e a outra um leicenço num braço. D. FUAS – Com esses sinais, nunca vi mulher nesta vida. FAGUNDES – Meu Senhor, uma delas trazia um ramo de alecrim no peito, e a outra de manjerona. D. FUAS – Vi muito bem que são as sobrinhas de D. Lancerote. FAGUNDES – Essas mesmas são! Ora diga-me: onde as viu? D. FUAS – Promete vossa mercê fazer-me quanto lhe eu pedir? FAGUNDES – Ai, que coisa me pedirá vossa mercê que lhe não faça, dizendo-me onde estão as minhas meninas? D. FUAS – Pois descanse, que elas aqui estiveram, e agora foram para casa. FAGUNDES – Ai, boas novas tenho! D. FUAS – Ora pois, em alvíssaras desta boa nova, quero me diga como se chama… FAGUNDES – Eu? Ambrósia Fagundes, para servir a vossa mercê. D. FUAS – Diga como se chama a que trazia a manjerona no peito. FAGUNDES – Chama-se D. Nise. D. FUAS – Pois, Senhora Ambrósia Fagundes, saiba que eu adoro tão excessivamente a D. Nise, que em prémio do meu extremo me franqueou este ramo de manjerona. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 9 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – É verdade que pelo cheiro o conheço, que é o mesmo. D. FUAS – E, como me dizem os impossíveis que há de a poder comunicar, quisera dever-lhe a galantaria de ser minha protectora nesta amorosa pretensão; e fie de mim, que o prémio há-de ser igual ao meu desejo. FAGUNDES – Meu Senhor, difícil empresa toma vossa mercê; porque além da excessiva cautela do tio, que nisso não se fala, uma delas está para casar com um primo, que hoje se espera de fora da terra; e a outra qualquer dia vai a ser freira; com quê, meu Senhor, desengane-se, que ali não há que arranhar. D. FUAS – E qual delas é a que casa? FAGUNDES – Ainda se não sabe; porque o noivo vem à escolha daquela que lhe mais agradar. D. FUAS – Como o vencer impossíveis é próprio de um verdadeiro amante, nós havemos intentar esta empresa, saia o que sair; que a diligência é mãe de boa ventura. Favoreça-me vossa mercê, Senhora Fagundes, com o seu voto, que eu terei bom despacho no tribunal de Cupido: tenho dinheiro e resolução e, tendo a vossa mercê da minha parte, certo tenho o triunfo da manjerona. FAGUNDES – Pois por mim não se desmanche a festa, que eu não sou desmancha-prazeres. Esta noite o espero debaixo da janela da cozinha. Sabe aonde é? D. FUAS – Bem sei. FAGUNDES – Pois espere-me aí, que eu lhe direi o que há na matéria. D. FUAS – Deixe-me beijar-lhe os pés, ó insigne Fagundes, feliz corretora de Cupido! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 10 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Ai! Levante-se, Senhor; não me beije os pés, que os tenho agora mui suados, e um tanto fétidos. Descanse, Senhor, que D. Nise há-de ser sua, apesar das cautelas do tio e das carícias do noivo. D. FUAS – Se tal consigo, não tenho mais que desejar. Canta D. Fuas a seguinte Ária Se chego a vencer de Nise o rigor, de gosto morrer você me verá. Porém, se um favor alenta o viver, quem morre de amor mais vida terá. (Vai-se) FAGUNDES – Estes homens, tanto que são amantes, logo são músicos; e eu neste entendo terei boa melgueira; e mais eu, que sou abelha-mestra que hei-de chupar o mel da manjerona e do alecrim! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 11 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Cena II Câmara. Entram D. Nise, D. Clóris e Sevadilha. SEVADILHA – Ai, senhora, que ainda não creio que estamos em casa, pois se vimos mais tarde, não nos acha o senhor velho! D. CLÓRIS – Em boa nos metemos! D. NISE – Nunca tal nos sucedeu: que te parece, D. Clóris, a porfia daqueles homens em nos querer conhecer? SEVADILHA – Sim, senhora, como se nós fôssemos suas conhe- cidas. D. CLÓRIS – E a facilidade com que se namoram logo estes homens é o que mais me admira! SEVADILHA – Pois o maldito do criado que tanto se meteu comigo como piolho por costura! D. CLÓRIS – Que te veio dizendo? SEVADILHA – Mil despropósitos misturados com várias finezas esfarrapadas. FAGUNDES (entrando com manto apanhado no braço) – Ainda esses alecrins e manjeronas hão-de dar nos narizes a muita gente. D. NISE – Que diz, Fagundes? FAGUNDES – Digo que bem escusados eram estes sustos. Ora digam-me, senhoras, se seu tio viesse e as não achasse em casa, que seria de mim? D. CLÓRIS – Não falemos nisso, que ainda estou a tremer. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 12 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Apostemos que isso foram conselhos desta Senhora que aqui está? SEVADILHA – Apelo eu, que testemunho! Olha o diabo da mulher! Parece que me tem tomado à sua conta! FAGUNDES – Coitada! Como se desconjura! SEVADILHA – Ainda por amor dela me hei-de ir desta casa. Entra D. Lancerote D. LANCEROTE (entrando) – Fagundes, depressa, vá deitar mais um ovo nos espinafres, que aí vem meu sobrinho D. Tibúrcio, já que sou tão desgraçado, que por mais meia hora não chega depois de jantar! FAGUNDES – Eu vou, meu Senhor; mas cuido que o noivo a estas horas comerá novilho. (Vai-se.) D. LANCEROTE – Agora, minhas senhoras, é chegado o vosso esposo; não tenho que encomendar-vos o modo com que o haveis de tratar. D. CLÓRIS (aparte) – Já vem tarde. D. NISE (aparte) – Veremos a cara a este noivo. SEVADILHA (aparte) – Pois dizem que é um galante lapuz. Entra D. Tibúrcio com botas, vestido ridiculamente D. LANCEROTE – Amado sobrinho, dá-me os braços. É possível que vejo a um filho de meu irmão! D. TIBÚRCIO – Sim, Senhor; mas primeiro mande vossa mercê ter cuidado naquelas chouriças que vêm no alforge, não as dizime o arrieiro, que tem em cada mão cinco águias rapantes. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 13 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Isso me parece bem, seres poupado. Eu vou a isso. (Vai-se.) D. CLÓRIS – Que te parece, Nise, a discrição do noivo? D. NISE – Muito bom princípio leva. SEVADILHA (aparte) – Parece que o seu génio mais se casa com o alforge. D. TIBÚRCIO (aparte) – As primas não são más; porém a moça me toa mais. D. LANCEROTE (entrando) – Sossegai, sobrinho, que já tudo está arrecadado. D. TIBÚRCIO – Agora sim; amado tio meu, por cujos humanos aquedutos circula em nacarados licores o sangue de meu progenitor. Permiti que os meus sequiosos lábios osculem esses pés, dedo por dedo. D. LANCEROTE – Levantai-vos; sois discreto, meu sobrinho. Pois vosso pai era um pedaço de asno. Deus lhe perdoe. D. TIBÚRCIO – Não está mais na minha mão; em abrindo a boca, me chovem os conceitos aos borbotões. D. LANCEROTE – Falai a vossas primas, e minhas sobrinhas, D. Nise e D. Clóris. D. TIBÚRCIO – Eu vou a isso. SONETO Primas, que na guitarra da constância Tão iguais retinis no contraponto, Que não há contraprima nesse ponto, Nem nos porpontos noto dissonância: Oh, falsas não sejais nesta jactância; Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 14 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Pois quando atento os números vos conto, Nessa beleza harmónica remonto Ao plectro da febina consonância: Já que primas me sois, sede terceiras De meu amor, por mais que vos agaste Ouvir de um cavalete as frioleiras; Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste De dar à escaravelha em tais asneiras, Que enfim isto de amor é um lindo traste. D. LANCEROTE – Também sois poeta, meu sobrinho? D. TIBÚRCIO – Também temos nosso entusiasmo, Senhor tio; isto cá é veia capilar e natural. D. LANCEROTE – Oh, quanto me pesa que sejais poeta, pois por força haveis de ser pobre! D. TIBÚRCIO – Agora, Senhor! Eu sou um rico poeta. Pois, primas, que dizeis da minha eloquência? Não me respondeis? D. CLóRIS – Os anjos lhe respondam. D. NISE – Aí não há mais que dizer. D. TIBÚRCIO – Ah, Senhor tio, esta rapariga é cá da obrigação de casa? D. LANCEROTE – É moça da almofada. D. TIBÚRCIO – Não é mal estreada. E que olhos que tem! Benza-te Deus! SEVADILHA – Quer Deus que trago um corninho, por amor do quebranto. D. LANCEROTE – Eu cuido, sobrinho, que mais vos agrada a criada do que a noiva. D. TIBÚRCIO – Tudo o que é desta casa me agrada muito. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 15 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Agora vamos ao intento. Sabeis, minhas sobrinhas, que vosso primo D. Tibúrcio, filho de meu irmão D. Trifónio e de Dona Pantaleoa Reboldã, o qual também era irmão de vosso pai, e meu irmão D. Blianis, vem a eleger uma de vós outras para esposa, pela mercê que me faz; que, a ser possível casar com ambas, o fizera sem cerimónia, que para mais é o seu primor. D. TIBÚRCIO – Por certo que sim; e não só com ambas, mas até com a criada; pois, como digo, desejo manter no coração tudo o que for desta casa. D. LANCEROTE – Eu o creio, meu sobrinho; nisso saís a vosso pai. D. CLÓRIS – Não vi maior asno! (Aparte) D. NISE – Nem eu maior simples! (Aparte) Diz fora Semicúpio SEMICÚPIO – Quem merca o alecrim? D. CLÓRIS – Ó Sevadilha, chama a esse homem, do alecrim; anda depressa. SEVADILHA – Entrou no fadário! (Aparte) D. LANCEROTE – Sobrinho, não estranheis este excesso de minha sobrinha, porque haveis de saber que há nesta terra dois ranchos, um do alecrim, outro da manjerona; e fazem tais excessos por estas ditas plantas, que se matarão umas às outras. D. TIBÚRCIO – E vossa mercê consente que minhas primas sigam essas parcialidades? D. LANCEROTE – Não vedes que é moda e, como não custa dinheiro, bem se pode permitir? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 16 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Bem sei que isso são verduras da mocidade; mas contudo não aprovo. D. LANCEROTE – E a razão? D. TIBÚRCIO – Não sei. D. CLÓRIS – Vossa mercê, como vem, com os abusos do monte, por isso estranha os estilos da corte. D. NISE – Calai-vos, mana, que ele há-de ser o maior apaixonado que há-de ter o alecrim e a manjerona. D. TIBÚRCIO – Se eu enlouquecer, não duvido. Entra Semicúpio com um molho de alecrim ao ombro SEMICÚPIO – Quem quer o alecrim? D. CLÓRIS – Anda para cá! Tem mão; não o ponhas no chão. SEMICÚPIO – Pois onde o hei-de pôr? D. CLÓRIS – Aqui no meu colo. Ai, no chão o meu alecrim? Isso não! SEMICÚPIO – Pois não só o ponha no colo, mas no pescoço. D. CLÓRIS – A quanto é o molho? SEMICÚPIO – A real e meio, por ser para vossa mercê. D. CLÓRIS – Põe aí cinquenta molhos. SEMICÚPIO – Pelo que vejo, esta é D. Clóris. (Aparte) Eis aí tem todos os molhos; reparta lá com a senhora, que suponho também quererá o seu raminho. D. NISE – Ai, tira-te para lá, homem, com esse mau cheiro! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 17 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Já sei que esta é a da manjerona de D. Fuas. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Bem haja, minha prima, que não é destas invenções. D. LANCEROTE – Porque é da manjerona, por isso aborrece o alecrim. D. TIBÚRCIO – Resta-me que vossa mercê também tenha algum rancho. D. LANCEROTE – Olhai vós! Não deixo cá de mim para mim de ter minha parcialidade. SEMICÚPIO – Ora demos princípio à tramóia. (Aparte) Ai, Senhores! Quem me acode? D. LANCEROTE – Que tens, homem? SEMICÚPIO – Ai, ai, confissão! Semicúpio estrebucha, fingindo um acidente D. CLÓRIS – Coitado do homem! Que tens? Que te deu? D. NISE – Tão venenoso é o teu alecrim, que mata a quem o traz? D. LANCEROTE – Olá! Tragam água! Entram Fagundes e Sevadilha com uma quarta SEVADILHA – Ai, Senhores, que isto é acidente de gota-coral! SEMICÚPIO – O coral de teus lábios que acidentes não fará? (Aparte) D. LANCEROTE – A unha de grão besta é boa para isto. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 18 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Puxem-lhe pelos dedos, que também é bom remédio. D. Lancerote, D. Tibúrcio, Sevadilha e Fagundes pegam em Semicúpio, e este com o estrebuchamento fará cair a todos D.LANCEROTE – Mostra cá o dedo. SEMICÚPIO – Agradeço o anel. (Aparte) D. TIBÚRCIO – E a força que tem o salvage! SEVADILHA – Eu não posso com ele. SEMICÚPIO – Lá vai o dedo polegar cos diabos! Eu estou capaz de tornar a mim, antes que me deixem despedaçado. D. LANCEROTE – Borrifa-o, Fagundes. FACUNDES – Ora deixem-mo comigo. (Borrifa-o) SEMICÚPIO – Poh, diabo! E o que fedem os borrifos da velha! A maldita parece que tem postema no bofe! D. NISE – Não se cansem, que ele não torna a si tão cedo. SEMICÚPIO – Essa e a verdade. FAGUNDES – Mas pelo sim, pelo não, eu lhe vazo esta quarta; que, quando Deus quer, água fria é mezinha. SEMICÚPIO – Valha-te o Diabo, que me deitaste água na fervura! Eu não tenho mais remédio que aquietar-me; senão, virá como remédio algum pau-santo sobre mim! (Aparte) FAGUNDES – Senhores, ele está mais sossegado depois da água; venham jantar, que a mesa está posta. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 19 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Vai buscar o meu capote, e cobre-o, que está tremendo o miserável. SEMICÚPIO – É maravilha que um miserável cubra outro. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Aquilo são convulsões; mas bom é cobri-lo, por amor do ar. Entra Fagundes com um capote FAGUNDES – Eis aí o capote; se ele o babar, babado ficará. SEMICÚPIO – Anda, tola, que não me babo. (Aparte) D. LANCEROTE – Tu, Sevadilha, tem sentido neste homem, enquanto jantamos. Vinde, sobrinho. (Vai-se) D. TIBÚRCIO – Vamos, que tenho uma fome horrenda. (Vai-se) D. NISE – É galante figura o tal meu primo! (Vai-se) D. CLÓRIS – Fagundes, agasalha esse alecrim. FAGUNDES – Tanto me importa; se fora manjerona, ainda, ainda. (Vai-se) SEVADILHA – Só isto me faltava: ficar eu guardando a este defunto! SEMICÚPIO – Vejamos quem é esta Sevadilha, que ficou por minha enfermeira. Ai, que suponho que é a menina malmequer, que lá traz um no cabelo! Vamo-nos erguendo, por ver se nos quer bem. (Vai-se erguendo) SEVADILHA – Deite-se, deite-se! Ai, que o homem tem frenesis! Acudam cá! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 20 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Cal-te, Sevadilha; não perturbes esta primeira ocasião de meu amor. SEVADILHA – Deixe-se estar coberto. SEMICÚPIO – Bem sei que o calafrio de meu amor é tão grande, que se pode cobrir diante de El-Rei; mas confesso-te que já não posso aturar o gravâmen deste capote. SEVADILHA – Ai, que o homem está louco e furioso! SEMICÚPIO – A fúria com que te ausentas me faz enlouquecer. Não fujas, Sevadilha, que eu sou aquele sujeito do malmequer, e tão sujeito aos teus impérios, que sou um criado de vossa mercê. SEVADILHA – Eu te arrenego, maldito homem! Tu és o desta manhã? SEMICÚPIO – Cuidavas que não havia saber buscar modo para ver-te? SEVADILHA – Queres que vá chamar a D. Clóris, ou D. Nise? SEMICÚPIO – Logo irás chamar a D. Clóris; mas primeiro atende à chama de meu amor; que, se o fogo tem línguas e as paredes têm ouvidos, bem pode a dura parede de teu rigor escutar a levareda em que me abraso. Muita coisinha te poderia eu dizer; porém a ocasião não é para isso. SEVADILHA – Nem eu estou para essoutro. SEMICÚPIO – Eu o dissera, que o teu malmequer não é para menos. SEVADILHA – Nem a tua pessoa é para mais. SEMICÚPIO – Pois isso é deveras? Olha que desconfio. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 21 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Bem aviada estou eu! Bom amante tenho! Bonito eras tu para aturar vinte anos de desprezos, como há muitos que aturam, levando com as janelas nos narizes, dormindo pelas escadas, aturando calmas, sofrendo geadas, apurando-se em romances, dando descantes 1, feitos estátuas de amor no templo de Vénus; e, contudo, estão mui contentes da sua vida. E assim, para que me buscas? SEMICÚPIO – Para que me desenganes se me queres, ou não. SEVADILHA – Pergunta-o ao malmequer, que ele to dirá. SEMICÚPIO – Se eu o tivera aqui, fizera essa experiência. SEVADILHA – E onde está o que eu te dei? SEMICÚPIO – Lá o tenho empapelado, que cuido que o ar mo leva. SEVADILHA – Assim te leve o Diabo! SEMICÚPIO – Levará, que é muito capaz disso. Pois em que ficamos? Bem me queres, ou mal me queres? SEVADILHA – Apanha aquele malmequer que está junto àquela porta, e pergunta-lho, que to dirá. SEMICÚPIO – Pois acaso nas folhas do malmequer estão escritos os teus amores, ou os teus desdém? SEVADILHA – Da mesma sorte que a buena dicha na palma da mão. SEMICÚPIO – Eu vou apanhar o dito malmequer. (Vai-se) SEVADILHA – Quem me dera que ficasse em mal me quer, para o fazer andar à prática! Volta Semicúpio com um malmequer Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 22 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Eis aqui o malmequer! Ora vamos a isso; que, se há flores que são desengano da vida, esta o será do amor. Sevadilha, toma sentido; vê se fica no bem me quer. SEVADILHA – Isto é como uma sorte. SEMICÚPIO – Queira Deus não se converta o malmequer em azar. Tem sentido, Sevadilha: amor, se sai a coisa como eu quero, eu te prometo um arco de pipa e uma venda nos Romulares, em que ganhes muito dinheiro. Canta Semicúpio a seguinte Ária Oráculo do amor, propício me responde nas ânsias deste ardor: bem me queres, mal me queres; bem me queres, mal me queres. Mal me queres, disse a flor. Ai de mim, que me quer mal teu ingrato malmequer! Acabou-se o meu cuidado. Que mais tenho que esperar? Vou-me agora a regalar, levar boa vida, comer e beber. Entra D. Clóris D. CLÓRIS – Oh, quanto folgo que já estejais bom! SEMICÚPIO – E tão bom, que parece que nunca tive nada. D. CLÓRIS – Com que saraste? SEMICÚPIO – Com o mesmo mal; porque também há males que vêm por bem. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 23 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Que dizes, que te não entendo? Estás louco? SEMICÚPIO – Meu amo ainda o está mais do que eu, desde que te viu assim por maior, esta manhã; e assim, para significar- te a tremendíssima eficácia de seu amor, aqui me manda a teus pés... minto... aos teus átomos, para que com os disfarces do alecrim possa merecer os teus agrados. D. CLÓRIS – Sevadilha, põe-te a espreitar; não venha alguém. SEVADILHA – Sim, Senhora. Arre lá com o ardil do homem! (Vai- se) D. CLóRIS – E quem é esse teu amo, que tanto me adora? SEMICÚPIO – É o Senhor D. Gilvaz, cavaleiro de tão lindas prendas, como verbi gratia Londres e Paris. D. CLÓRIS – Que ofício tem? SEMICÚPIO – Há-de ter um de defuntos, quando morrer. D. CLÓRIS – E enquanto vivo, em que se ocupa? SEMICÚPIO – Em morrer por vossa mercê. D. CLÓRIS – Fala a propósito. SEMICÚPIO – Senhora, meu amo não necessita de ofícios para manter os seus estados, porque tem várias propriedades consigo, muito boas; além disso, tem uma quinta na semana, que fica entre a quarta e a sexta, tão grande, que é necessário vinte e quatro horas para se correr toda. D. CLÓRIS – Quanto fará toda, de renda? SEMICÚPIO – Não se pode saber ao certo; sei que tem várias rendas em Flandres e outras em Peniche e estas bem grossas; também tem um foro de fidalgo e um juro de nobreza. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 24 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Basta que é fidalgo! SEMICÚPIO – Como as estrelas, que as vê ao meio-dia, e a estas horas não vê outra cousa; e certamente lhe posso dizer que é tão antiga a sua descendência, que diz muita gente que descende de Adão. D. CLÓRIS – Se isso é assim, talvez que me incline a querê-lo para meu esposo. SEMICÚPIO – Venha a resposta, Senhora, que meu amo está esperando com língua de palmo. D. CLÓRIS – Pois ouve o que lhe hás-de dizer. Canta D. Clóris a seguinte Ária Dirás ao meu bem que não desconfie, que adore, que espere, que não desespere, que à sua firmeza constante serei. Que firme eu também a tanta fineza amante, constante extremos farei. (Vai-se.) SEMICÚPIO – Vencido está o negócio, mas o capote do velho cá não há-de ficar, por vida de Semicúpio; que, se a ocasião faz o ladrão, hei-de sê-lo, por não perder a ocasião. (Vai-se com o capote) Sai Sevadilha SEVADILHA – Espera, homem! Onde levas o capote? E foi-se como um cesto roto! Ai, mofina, desgraçada! Que há-de ser de mim, se meu amo não achar o seu rico capote? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 25 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Entra D. Lancerote D. LANCEROTE – Já sarou o homem, Sevadilha? SEVADILHA – Sim, Senhor. D. LANCEROTE – Já se foi? SEVADILHA – Sim, Senhor. D. LANCEROTE – Guardaste o capote? SEVADILHA – Aí é ela! (Aparte) D.LANCEROTE – Não ouves? Guardaste o capote? SEVADILHA – Qual capote? D. LANCEROTE – O meu. SEVADILHA – Qual meu? D. LANCEROTE – O meu, de saragoça. SEVADILHA – Ah, sim! O capote do homem do alecrim. D. LANCEROTE – Qual homem? SEVADILHA – O do acidente. D. LANCEROTE – Tu zombas? SEVADILHA – Zombaria fora! O homem levou o capote. D. LANCEROTE – O meu capote? SEVADILHA – Eu não sei se ele era de vossa mercê; o que sei é que o homem do alecrim levou um capote com que estava coberto. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 26 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – E como o levou? SEVADILHA – Nos ombros. D. LANCEROTE – O meu capote furtado?! SEVADILHA – Pois nunca se viu furtar um capote? D. LANCEROTE – Não, bribantona, que era um capote aquele, que nunca ninguém o furtou. Oh, dia infeliz, dia aziago, dia indigno de que o Sol te visite com os seus raios! SEVADILHA – Santa Bárbara! D. LANCEROTE – Tu, descuidada, hás-de pôr para ali o meu capote, ou do corpo to hei-de tirar. SEVADILHA – Como mo há-de tirar do corpo, se eu o não tenho? D. LANCEROTE – Desta sorte. Cantam D. Lancerote e Sevadilha a seguinte Ária a duo D. LANCEROTE – Moça tonta, descuidada! SEVADILHA – Há mulher mais desgraçada neste mundo? Não, não há. D. LANCEROTE – Se não dás o meu capote, tua capa hei-de rasgar. SEVADILHA – Não me rasgue a minha capa. D. LANCEROTE – Dá-me, moça, o meu capote. SEVADILHA – Minha capa. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 27 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Meu capote. AMBOS – Trata logo de o pagar. D. LANCEROTE – Meu capote assim furtado! SEVADILHA – Meu adorno assim rasgado! AMBOS – Que desgraça! D. LANCEROTE – Contra a moça SEVADILHA – Contra o velho AMBOS – A justiça hei-de chamar! Meu capote donde está? (Vão-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 28 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA III Praça. No fim, haverá uma janela. Aparece D. Gil, embuçado D. GILVAZ – Disse a Semicúpio que aqui o esperava; mas tarda tanto, que entendo o apanharam na empresa. Mas se será aquele que ali vem! Não é Semicúpio, que ele não tem capote. Quem será? Aparece Semicúpio embuçado em um capote SEMICÚPIO – Lá está um vulto embuçado no meio do caminho; queira Deus não me cheguem ao vulto! Não sei se torne para trás, mas pior é mostrar cobardia; eu faço das tripas coração; vou chegando, mas sempre de longe. D. GILVAZ – Ele se vem chegando, e eu confesso que não estou todo trigo. SEMICÚPIO – Este homem não está aqui para bom fim! Eu finjo-me valente! Afaste-se lá, deixe-me passar; aliás, o passarei. D. GILVAZ – Vossa mercê pode passar. SEMICÚPIO – Ai, que é D. Gil! Pois agora farei com que me tenha por valeroso. Quem está aí? Fale! Quando não, despeça-se desta vida, que o mando para a outra. D. GILVAZ – Primeiro perderá a sua quem me intenta reconhe- cer. SEMICÚPIO – Tenha mão, Senhor D. Gilvaz, que sou Semicú- pio. D. GILVAZ – Se não falas, talvez que a graça te saísse cara. SEMICÚPIO – Igual vossa mercê, que, se o não conheço pela voz, sem dúvida, Senhor D. Gilvaz, lhe prego com o seu nome na cara. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 29 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Deixemos isso; dá-me novas de D. Clóris. Diz, pudeste dar-lhe o recado? SEMICÚPIO – Não sabe que sou o César dos alcoviteiros? Fui, vi e venci. D. GILVAZ – Dá-me um abraço, meu Semicúpio. SEMICÚPIO – Não quero abraços; venham as alvísseras! Senão, emudeci como oráculo. D. GILVAZ – Em casa tas darei. Conta-me primeiro: que fazia D. Clóris? SEMICÚPIO – Isso são contos largos! Estava toda rodeada de braseiros de alecrim, com um grande molho dele no peito, cheirando a Rainha de Hungria, mascando alecrim como quem masca tabaco de fumo; e, como acabava de jantar, vinha palitando com um palito de alecrim, e finalmente, Senhor, com o alecrim anda toda tão verde, como se tivera tirícia. D. GILVAZ – E do mais que passaste? SEMICÚPIO – Isso é para mais devagar! Basta que saiba, por ora, que, apenas lancei o anzol no mar da simplicidade de D. Clóris, picando logo na minhoca do engano, ficou engasgalhada com o engodo de mil patranhas que lhe encaixei à mão tente. D. GILVAZ – Incríveis são as tuas habilidades! E que capote é esse? SEMICÚPIO – Este é o despojo do meu triunfo: joguei com o velho os centos e ganhei-lhe este capote. E, se vossa mercê soubera a virtude que ele tem, pasmaria. D. GILVAZ – Que virtude tem? SEMICÚPIO – É um grande remédio para sarar acidentes de gota-coral. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 30 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Conta-me isso. Entra D. Fuas embuçado SEMICÚPlO – Falemos de manso, que aí vem um homem. D. FUAS – Esta é a janela da cozinha de D. Nise, que da escuridade da noite a conhece o meu instinto pelos eflúvios odoríferos que exala a Pancaia daquela Fénix. D. GILVAZ – Semicúpio, um homem ao pé da janela de D. Clóris? Isto não me cheira bem. SEMICÚPIO – Como lhe há-de cheirar bem, se isto aqui é um monturo? Aparece Fagundes à janela FAGUNDES – Cé! É vossa mercê mesmo? D. FUAS – Sou eu mesmo, e não outro, que impaciente espero novas de meu bem. D. GILVAZ – Não ouviste aquilo, Semicúpio? SEMICÚPIO – Aquilo, é que não cheira bem, senhor D. Gilvaz. FAGUNDES – Não basta que vossa mercê diga que é mesmo; é necessário a senha e a contra-senha. D. FUAS – Pois atenda. Canta D. Fuas o seguinte Minuete Já que a fortuna hoje me abona, a manjerona quero exaltar. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 31 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA No seu triunfo, que a fama entoa, palma e coroa há-de levar. Há-de por certo, que a sua rama na voz da fama sempre andará. D. GILVAZ – Este é D. Fuas, pela senha da manjerona. Que te parece, Semicúpio, o quanto tem adiantado o seu amor? SEMICÚPIO – Quidquid sit, o primeiro milho é dos pássaros; o segundo é cá para os melros. FAGUNDES – Suba por essa escada. (Lança a escada) D. FUAS – Segure bem. (Sobe) SEMICÚPIO – Senhor D. Gil, agora é tempo de subir também, pois estamos em era de atrepar; não perca a ocasião. D. GILVAZ – Vem tu também. (Sobe) SEMICÚPIO – Eu também vou, a render, à escala vista, esse castelo de Cupido. FAGUNDES – Tenha mão, senhor! Que é o que quer? D. GILVAZ – Manjerona. FAGUNDES – Vossa mercê, meu fidalgo, quem procura? SEMICÚPIO – Também manjerona, em lugar de Sevadilha, que tudo faz bom tabaco. FAGUNDES – Isto cá está por estanque; não entra quem quer. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 32 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Se não entra quem quer, entrará quem não quer. FAGUNDES – Vá-se daí, que não conheço Framengos à meia- -noite. SEMICÚPIO – Tem mão; não me empurres. FAGUNDES – Não há-de entrar. SEMICÚPIO – Ó mulher, não me precipites, que sou capaz de te escalar. FAGUNDES – Vá-se cos diabos, seja quem for! Empurra a escada, e esta cai com Semicúpio, SEMICÚPIO – Ai, que me derreaste, bruxa infernal! Tu me pagarás o semicúpio que me fizeste tomar. Estes são os ossos do ofício; mas, para que tudo não sejam ossos, vamos levando esta escada, que sempre valerá alguma coisa. Ao menos, se não morri da queda, vou para casa em uma escada. Vai-se Semicúpio e leva a escada Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 33 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA IV Gabinete. Entra Fagundes trazendo pela mão a D. Fuas e detrás virá D. Gil embuçado FAGUNDES – Pise de mansinho, que, se acorda, será para nos enforcar. D. FUAS – Recontou a D. Nise os extremos com que a idolatro? FAGUNDES – Não me ficou nada no tinteiro! Meu Senhor, nessa matéria tenho tanta elegância, que sou outra Marca Túlia Cicerona. D. FUAS – Ai, Fagundes, se casará D. Nise com o primo! Mas quem está aqui atrás de nós? D. GILVAZ – Não quero dar-me a conhecer a D. Fuas, por ver se com os zelos desiste da empresa, para que só triunfe o alecrim. (Aparte) D. FUAS – Cavalheiro, vós daqui não haveis de passar, ou ambos ficaremos aqui mortos, sem dizer-me primeiro o que buscais nesta casa! D. GILVAZ – O mesmo que vós buscais. D. FUAS – O que eu busco não vos pode pertencer. D. GILVAZ – Nem o que me pertence podeis vós buscar. FAGUNDES – Senhores meus, acomodem-se, que pode acordar o senhor D. Lancerote e o dano será de todos. D. FUAS – Queres que me cale à vista dos meus zelos? Sai D. Nise Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 34 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. NISE – Que ruído é este, Fagundes? D. FUAS – Sinto, senhora D. Nise, que a primeira vez que me facilitais esta fortuna, me hospedeis com zelos. D. NISE – Não sei que motivo haja para os haver. D. FUAS – Este senhor embuçado que aqui me vem seguindo e diz que procura o mesmo que eu busco. D. NISE – Sabe ele porventura o que vós procurais? D. FUAS – Ele diz que sim, certo é que o sabe. D. NISE – Senhor, vós acaso vindes aqui a meu respeito? (Para D. Gil) D. GILVAZ – Nada hei-de responder. (Aparte) D. FUAS – Quem cala consente. Não averiguemos mais, senhora D. Nise; só sinto que a sua manjerona admita enxertos de outras plantas. D. NISE – Esse é o pago que me dais, de admitir vossa correspondência, de obrar este excesso a vosso respeito, e de me expor a este perigo por vossa causa? D. FUAS – Melhor fora desenganar-me, que essa era a melhor fineza que vos podia merecer. D. NISE – Pois eu digo-vos que estou inocente, que não conheço este homem; e me parece que basta dizê-lo para me acreditardes. D. FUAS – E bastava ver eu o contrário, para não acreditar essas desculpas. D. NISE – Pois, visto isso, fiquemos como dantes. D. FUAS – De que sorte? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 35 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. NISE – Desta sorte. Canta D. Nise a seguinte Ária Suponha, Senhor, que nunca me viu e que é o seu amor assim como a flor, que, apenas nasceu, e logo murchou. Pois tanto me dá de seu pretender, que firme suponho seria algum sonho, que pouco durou. (Vai-se) D. FUAS – Nise cruel, isso ainda é maior tirania; escuta-me. (Vai-se) FAGUNDES – Vá lá dar-lhe satisfações, que ela é bonita para essas graças. E vossa mercê, senhor rebuçado, a que fim quis profanar o sagrado desta casa? D. GILVAZ – A ver o bem que adoro. FAGUNDES – Vossa mercê está zombando? Aqui não há quem possa ser amante de vossa mercê; pois bem vê o recato e honra desta casa. D. GILVAZ – Eu bem vejo o recato e honra desta casa. Quê? Aquilo de subir um homem por uma janela e ir-se para dentro atrás de uma mulher não é nada? FAGUNDES – Aquele homem é primo carnal da Senhora D. Nise. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 36 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Pois eu também quero ser muito conjunto da Senhora D. Clóris. Ora faça-me o favor de a ir chamar. FAGUNDES – Que diz? A Senhora D. Clóris? Olha tu lá, D. Clóris, não te enganes; sim, a outra, que anda coberta de cilícios, jejuando a pão e água. Tire daí o sentido, meu Senhor. D. GILVAZ – Se a não fores chamar, a irei eu buscar. FAGUNDES – Ai, Senhor! Vossa mercê tem alguma legião de diabos no corpo? E que remédio tenho senão chamá-la, antes que o homem faça alguma asneira, que ele tem cara de arremeter. (Vai- -se) D. GILVAZ – Venha logo; que eu não posso esperar muito tempo. A velha queria corretage! Basta que lha dê D. Fuas. Entra D. Clóris D. CLÓRIS – Senhor, vossa mercê que pretende com tantos excessos? A quem procura? D. GILVAZ – Eu, Senhora D. Clóris, sou D. Gilvaz, aquele impaciente amante que, atropelando impossíveis, vem, qual salamandra de amor, a abrasar-me nas chamas do seu alecrim, como vítima da mesma chama. D. CLÓRIS – Senhor D. Gilvaz, como entendo o seu amor só se encaminha ao lícito fim de ser meu esposo, por isso lhe facilito os meus agrados; mas não tão francamente, que primeiro não haja de experimentar no crisol da constância os raios do seu amor. D. GILVAZ – Mui pouco conceito fazeis da vossa beleza; pois, se antes de admirar essa formosura em ocultas simpatias, soubestes atrair todos os meus afectos, como depois de admirar o maior portento de perfeição, poderia haver em mim outro cuidado mais que o de adorar-vos com tão imóvel constância, que primeiro se moverão as estrelas fixas, que sejam errantes as minhas adorações? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 37 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Isso é deveras, Senhor D. Gil? D. GILVAZ – Se eu morro deveras, como hei-de falar zom- bando? Soneto Tanto te quero, ó Clori, tanto, tanto; e tenho neste tanto tanto tento, que em cuidar que te perco, me espavento; e em cuidar que me deixas, me ataranto. Se não sabes (ai, Clóri!) o quanto, o quanto te idolatra rendido o pensamento, digam-to os meus suspiros cento a cento; soletra-o nos meus olhos pranto a pranto. Oh, quem pudera agora encarecer-te os esquisitos modos de adorar-te que amor soube inventar para querer-te! Ouve, Clóri; mas não, que hei-de assustar-te; porque é tal o meu incêndio, que ao dizer-te ficarás no perigo de abrasar-te. D. CLÓRIS – Senhor D. Gil, as suas finezas, por encarecidas, perdem a estimação de verdadeiras; que quem tem a língua tão solta para os encarecimentos terá presa a vontade para os extremos. D. GILVAZ – Como há-de haver experiências na minha constância, serão os sucessos de minhas finezas os cronistas de meu amor. Canta D. Gil a seguinte Ária Viste, ó Clóri, a flor gigante, que procura firme, amante, seguir sempre a luz do Sol? Dessa sorte, sem desmaios, sol que gira são teus raios, e meu peito girassol. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 38 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Mas ai, Clóri, que a luz pura de teus raios mais se apura de meu peito no crisol. D. CLÓRIS – Cessa, meu bem, de encarecer-me o teu amor; já sei que são verdadeiras as tuas expressões. Oh, se eu tivera a fortuna que essas vozes as não levasse o vento, para aumentar com elas a força de sua inconstância! Entra Sevadilha SEVADILHA – É bem feito! É bem empregado! D. CLÓRIS – O quê, Sevadilha? SEVADILHA – O Senhor, que está acordado! D. CLóRIS – Não pode ser, a estas horas; não te creio, que és uma medrosa. SEVADILHA – Falo verdade e não minto. Canta Sevadilha a seguinte Ária Senhora, que o velho se quer levantar! Mofina de mim, que ouvi escarrar, falar e tossir! Senhor, vá-se embora! (para D. Gil) Vá já para fora; senão, o papão nos há-de engolir. FAGUNDES – Ui, Senhores! Isto é coisa de brinco? O Senhor seu tio está com tamanho olho aberto, que parece um leão que está dormindo; deite fora esse homem e venha-se agasalhar, que já vem amanhecendo. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 39 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Pois deitem fora a D. Gil! Meu bem, estimarei que as suas obras correspondam às suas palavras. (Vai-se) Entram D. Nise e D. Fuas D. NISE – Fagundes, encaminha a D. Fuas, que meu tio está acordado. D. FUAS – Ainda o embuçado aqui está? É para ver! Ah, cruel! (Aparte) D. NISE – Anda, Fagundes. FAGUNDES – Senhora, que não há escada para descerem. D. NISE – E aquela por onde subiu aonde está? FAGUNDES – Empurrei-a com um homem que também queria subir. D. GILVAZ – Devia ser Semicúpio. (Aparte) D. FUAS – Pois como há-de ser? SEVADILHA – Não há mais remédio que saltar pela janela. FAGUNDES – Mas vejam não caiam no alfuje. D. GILVAZ – Em boa estou metido! (Aparte) D. FUAS – Aonde está a chave da porta? SEVADILHA – A chave tem guardas e está agasalhada no travesseiro do velho, por não dormir numa porta. D. LANCEROTE – Fagundes, venha abrir esta janela, que já vem amanhecendo. (Dentro) FAGUNDES – Eis aqui vossas mercês o que quiseram! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 40 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Fagundes, que faz, que não vem? (Dentro) FAGUNDES – Estou enxotando o gato da vizinha. Sape, gato! Senhores, escondam-se aonde for. D. NISE – Ai que desgraça! D.LANCEROTE – Sevadilha, que é isso lá? (Dentro) SEVADILHA – É o gato da vizinha. Sape, gato! (Dentro) SEMICÚPIO – Abram a porta, que se queima a casal Fogo! Fogo! (Dentro) FAGUNDES – Ai, que há fogo na casa! São Marçal! D. NISE – Eu estou morta! D. CLÓRIS – Ai, que se queima a casa! Que desgraça! D. FUAS – Pior é esta! (Sai) D. GILVAZ – Há horas minguadas! SEMICÚPIO – Abram a porta, que há fogo. Fogo! (Dentro) SEVADILHA – Mofina de mim, que lá vão os meus tarecos! SEMICÚPIO – Não ouvem? Pois lá vai a porta pela porta fora. (Dentro) Entra Semicúpio com uma quarta às costas e ao mesmo tempo entra D. Lancerote em fralda de camisa e D. Tibúrcio embrulhado em um lençol, com uma candeia de garavato na mão SEMICÚPIO – Fogo, fogo! FAGUNDES – Adonde é, meu Senhor? D. TIBÚRCIO – Que é isto cá? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 41 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Fogo aonde, se eu não vejo fumo? SEMICÚPIO – Como há-de ver o fumo, se o fumo faz não ver? D. TIBÚRCIO – Aqui me cheira a alecrim queimado. D. LANCEROTE – Dizes bem. Clóris, acendeste algum ale- crim? D. CLÓRIS – Eu, Senhor, não... Foi... porque sempre... D. LANCEROTE – Cala-te, que eu porei o alecrim com dono. Há mais mofino homem! Lá vai o suor de tantos anos! D. TIBÚRCIO – Com ele podia vossa mercê apagar este fogo. D. GILVAZ – Estou admirado de ver a traça de Semicúpio! (Aparte) D. TIBÚRCIO – Senhores, acudamos a isto, que se acaba a tor- cida. D. LANCEROTE – Vede, sobrinho, ainda assim não se entorne o azeite. D. NISE – Ai, os meus craveiros de manjerona! D. CLÓRIS – Ai, os meus olhos de alecrim! FAGUNDES – Ai, a minha canastra! SEVADILHA – Ai, os meus tarequinhos! D. LANCEROTE – Ai, a minha burra! D. TIBÚRCIO – Ai, o meu alforge! SEMICÚPIO – Ai, com tanto ai! Senhores, aonde é o fogo? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 42 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Vejam vossas mercês bem por essas casas aonde será. SEMICÚPIO – Entremos, Senhores, antes que se ateie o incên- dio. D. GILVAZ e D. FUAS – Vamos. Saem Semicúpio, D. Fuas e D. Gil, e logo tornam a entrar D. LANCEROTE – Vereis vós, tramposinha, que fim leva o ale- crim. D. CLÓRIS – O alecrim não tem fim, que nunca murcha. Entram os três D. GILVAZ – Não se assustem, que não é nada. D. FUAS – Já se apagou, Deus louvado! D. LANCEROTE – Aonde foi? SEMICÚPIO – Foi no almofariz, que estava ao pé da isca. SEVADILHA – Pois eu não fui a que petisquei. FAGUNDES – Pois eu nem no ferrolho. SEMICÚPIO – Pois ainda estou em jejum. D. LANCEROTE – Ora, meus senhores, vossas mercês me vivam muitos anos, pela honra que me fizeram. D. GILVAZ – Sempre buscarei ocasiões de servir a esta casa. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 43 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS – E eu não menos. (Vai-se) SEMICÚPIO – Agradeça-nos a boa vontade, não mais. FAGUNDES – Se não houvessem boas almas, já o mundo estava acabado. D. CLÓRIS – Eu estou pasmada do sucesso! (Aparte) D. NISE – E eu não estou em mim! (Aparte) D. TIBÚRCIO – Ora com licença, meus Senhores, que me vou pôr em fresco. (Vai-se) D. LANCEROTE – Eu todavia ainda não estou sossegado. Viu vossa mercê bem na chaminé? SEMICÚPIO – Para que vossa mercê descanse de todo, vazarei esta quarta nos narizes daquela velha, que são duas chaminés. FAGUNDES – Ai, que me ensopou! Senhor, que mal lhe fiz? SEMICÚPIO – É dar-lhe a molhadura de certa obra. D. LANCEROTE – Que fez vossa mercê? SEMICÚPIO – Deixe, Senhor; isto é para que se lembre, e tenha cuidado no fogo, que facilmente se pode atear por um aci- dente. FAGUNDES – Vou mudar de camisa. (Vai-se) D. NISE – Tomara aproveitar os cacos para a minha manje- rona. D. LANCEROTE – Esta advertência merece esta moça, que é uma descuidada que por seus desmazelos me deixou furtar o capote. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 44 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Cantam D. Lancerote, Sevadilha, Semicúpio, D. Clóris e D. Nise a seguinte Ária D. LANCEROTE Tu moça, tu tonta, sentido no fogo; senão, tu verás. SEVADILHA Debalde é o seu rogo, que fogo sem fumo não é bom sinal. SEMICÚPIO Que linda pilhage num fogo salvage, que lambe voraz! D. CLÓRIS Não sente quem ama. D. NISE Não temo essa chama. AMBAS Que é fogo de amor. D. LANCEROTE Cuidado no fogo. SEVADILHA Debalde o seu rogo. D. LANCEROTE e SEVADILHA Que fogo sem fumo não é bom sinal. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 45 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE Sentido, cuidado. SEMICÚPIO Que fogo salvage. TODOS excepto D. LANCEROTE Que é fogo de amor. TODOS Cuidado, pois, cuidado, que algum furor vendado fulmina tanto ardor. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 46 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA I Praça. Entram D. Gil e Semicúpio D. GILVAZ – Ainda não sei cabalmente aplaudir a tua indústria, ó insigne Semicúpio. SEMICÚPIO – Nem aplaudir, nem agradecer, Senhor D. Gilvaz. D. GILVAZ – As tuas ideias são tão impossíveis de aplaudir, como de agradecer; pois todo o prémio é diminuto e todo o louvor limitado. SEMICÚPIO – Visto isso, eu mesmo tenho a culpa de não ser premiado; porque, se eu não servira tão bem, estaria mais bem servido. Senhor meu, eu nunca fui amigo de palanfrórios. Mais obras, e menos palavras! Eu quero que me ajuste a minha conta. D. GILVAZ – Para quê? SEMICÚPlO – Para pôr-me no olho da rua, que serei mais bem-visto. D. GILVAZ – Semicúpio, nem sempre o Diabo há-de estar atrás da porta. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 47 pág. de 126 PARTE II © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Sim, porque entrará para dentro de casa. D. GILVAZ – Cal-te que, se consigo a D. Clóris com o seu dote e arras, eu te prometo que andes numa boleia. SEMICÚPIO – Senhor, não me ande com a cabeça à roda com essas promessas. Era melhor que os prémios andassem a rodo. Entra Fagundes FAGUNDES – Lá deixo a D. Fuas metido numa caixa, para o introduzir com D. Nise em casa sem sustos, como da outra vez. Tomara achar um, homem que ma carregasse. D. GILVAZ – Lá vem a velha, criada de D. Clóris. SEMICÚPIO – Retire-se vossa mercê e deixe-me com ela. D. GILVAZ – Pois eu aqui te espero. (Vai-se) FAGUNDES – Ó filho, por vida vossa quereis levar-me uma caixa? SEMICÚPIO – Com quê, achou-me vossa mercê com ombros de mariola! FAGUNDES – Pois perdoe-me, que cuidei que era homem de ganhar. SEMICÚPIO – Todos nesta vida somos homens de ganhar; porém o modo é que desautoriza. FAGUNDES – Isto não era mais que levar uma caixa às costas. SEMICÚPIO – Pois, se não é mais do que isso, entendo que não estará mal à minha pessoa. FAGUNDES – Qual mal? Antes lhe estará muito bem. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 48 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Mas advirta que isto em mim não é ofício; é uma mera curiosidade. FAGUNDES – Ora Deus lhe dê saúde. Olhe, ela pesa pouco e vem aqui para casa de D. Lancerote. SEMICÚPIO – E de quem é a caixa? FAGUNDES – É minha, que a que eu tinha toda se desfaz em caruncho. SEMICÚPIO – Pois esta não se livrará da traça que intento usar com ela (Aparte). Vamos, Senhora. (Vai-se) FAGUNDES – Ande, meu filho. (Vai-se) Entra D. Gil D. GILVAZ – Aonde irá Semicúpio com a velha? O maldito não perde ocasião. Com semelhante jardineiro não murchará o alecrim de D. Clóris; porém ele lá vem com a caixa às costas. Aparece Semicúpio com uma caixa às costas e logo a põe no chão SEMICÚPIO – Desencontrei-me da velha, que andará tonta por mim. D. GILVAZ – Que é isto, Semicúpio? SEMICÚPIO – Não lhe importe; vá-se enrolando, que se há-de meter aqui dentro e hei-de levar esse corpinho a casa de D. Clóris. D. GILVAZ – Isso é quimera. Como posso eu caber aí? SEMICÚPIO – Isso não me importa a mim; abata as presunções, que logo caberá em toda a parte. D. GILVAZ – E como havemos de abri-la, que está fechada? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 49 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Não sabe que a irmã gazua sempre me acompanha? Eu a abro. (Abre) D. GILVAZ – Esta tramóia é mui arriscada. Que tem dentro? SEMICÚPIO – Eu vejo uns trapos estendidos. Ande, ande, que nos importa a nós. D. GILVAZ – Ora vamos a isso! Ai Clóris, quanto me custas! Mete-se D. Gil na caixa, e a fecha Semicúpio e logo a põe às costas e dentro também virá D. Fuas SEMICÚPIO – Não há-de ser má esta encaixação. Arre, o que pesa a criança! D. FUAS – Ai, que me esmagam os narizes! D. GILVAZ – Quem está aqui? Espera! Vejamos o que é. SEMICÚPIO – O que for lá se achará. D. GILVAZ – Espera, que isto é traição. D. FUAS – Homem dos diabos, não me esborraches. D. GILVAZ – Aque-d'el-rei! Não há quem me acuda? SEMICÚPIO – Cale-se, tamanhão, que para boa casa vai. (Vão-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 50 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA II Sala. Entram D. Tibúrcio e Sevadilha D. TIBÚRCIO – Sevadilha, agora que estamos sós, quero-te pedir um conselho. SEVADILHA – Se vossa mercê acha que lhos posso dar, proponha, que eu resolverei. D. TIBÚRCIO – Tu bem sabes que eu vim para casar com uma destas primas minhas. Ambas são belas, ao que entendo; só me resta saber as manhas de cada uma, para que escolha do mal o menos. SEVADILHA – Senhor, ambas são mui bastantes moças. A Senhora D. Clóris é mui perfeita; sabe fazer os ovos-moles muito bem. A Senhora D. Nise tem melhor juízo; muito assento, quando não está de levante; grande capacidade e tanto, que, sendo tão rapariga, já lhe nasceu o dente do siso; porém na condição é uma víbora assanhada. D. TIBÚRCIO – Não sei, Sevadilha, o que faça neste caso. SEVADILHA – Não casar com nenhuma. D. TIBÚRCIO – Pois eu vim cá por besta de pau? SEVADILHA – Eu digo o que entendo em minha consciência. D. TIBÚRCIO – Oh, se pudera eu casar contigo, Sevadilha, porque tu me caíste em graça! SEVADILHA – Ai que graça! Diga-me isso outra vez. D. TIBÚRCIO – Não zombo, que não estou fora de fazer eu uma parvoíce. SEVADILHA – Não será a primeira. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 51 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Queres tu que fujamos? Olha que estou com minhas tentações de te fazer dona da minha casa. SEVADILHA – Diga-me dessas, que gosto disso. D. TlBÚRCIO – Sevadilha, não percas esta fortuna. SEVADILHA – Quem é a fortuna? D. TIBÚRCIO – Sou eu, que te quero. SEVADILHA – Se é fortuna, será inconstante. D. TIBÚRCIO – Ai, que a moça me fala por equívocos! És discreta. SEVADILHA – Ora vá-se com a fortuna. Entra Semicúpio com a caixa às costas SEMICÚPIO – Quem toma conta deste arcaz? D. TIBÚRCIO – Quem o manda? SEMICÚPIO – Uma mulher já de dias grandes, porque era bastante velha. D. TIBÚRCIO – A mim me melem, se isto não é já alguma preparação para o casamento! SEMICÚPIO – Vossa mercê parece que adivinha, pois para casamento é, segundo ouvi dizer a um terceiro. D. TIBÚRCIO – Sabes o que virá aí dentro? SEMICÚPIO – Cuido que é um vestido. D. TIBÚRCIO – E que tal? SEMICÚPIO – Belo na verdade, bordado com uns vivos brancos, e de cores tão vivas, que estão saltando. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 52 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – É de mulher, ou de homem? SEMICÚPIO – Tudo o que aqui vem é para mulher. D. TIBÚRCIO – Cuidei que era para mim. SEVADILHA – Aquele é Semicúpio. Ele, que carrega a caixa, não é sem causa. (Aparte) SEMICÚPIO – Sevadilha lá me está deitando uns olhos, que vão os meus trás deles. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Já te pagaram? SEMICÚPIO – Não, Senhor; mas eu esperarei pela velha. D. TIBÚRCIO – Pois, Sevadilha, em que ficamos? Ajustamos o negócio? SEVADILHA – É boa esta, ouvindo-me Semicúpio! (Aparte) D. TIBÚRCIO – Olha, Sevadilha, eu te quero tanto, que fecharei os olhos a tudo, só por casar contigo. SEMICÚPIO – Tome-se lá, o que estavam ajustando os dois! Eu lho estorvarei. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Que dizes, rapariga? SEMICÚPIO – Ah, Senhor, pague-me o carreto da caixa. D. TIBÚRCIO – Espera, que logo vem a velha. SEMICÚPIO – Sim, pois a moça logo vai. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Tu ainda és menina; não sabes o que te con- vém. SEVADILHA – Eu não necessito de tutores. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 53 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Olha que eu sou morgado na minha terra, e terás tantos e quantos. SEMICÚPIO – Senhor, pague-me o carreto da caixa, que não posso esperar. D. TIBÚRCIO – Logo, espera! Ora, Sevadilha, isso há-de-ser; dá-me um abraço. SEMICÚPIO – Venha o carreto da caixa; é boa essa! SEVADILHA – É boa teima! D. TIBÚRCIO – Pois dá-me ao menos esse malmequer por prenda tua. SEMICÚPIO – Ora venha já esse carreto; senão, tudo vai cos diabos! D. TIBÚRCIO – Espera, homem; ouve, mulher. SEVADILHA – Vá-se daí, malcriado, aleivoso maligno! É o que me faltava! Canta Sevadilha a seguinte Ária Que tonto jarreta, que um néscio pateta me fale em amor ou é para rir, ou para chorar. Não cuide em amores, que nesses ardores se pode fregir, se pode brasar. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 54 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Regalou-me esta ária. Vou dizer a Sevadilha: – «Diga a D. Clóris que ali está meu amo!» e finjo que me vou. Senhor, adeus. Eu virei noutra ocasião. (Vai-se) Entra D. Lancerote com um castiçal e vela acesa e a porá em cima da caixa, donde ao depois se assentarão D. LANCEROTE – Sobrinho, vós bem sabeis que um hóspede, passados os três dias, logo fede como cavalo morto. Isto não é dizer que fedeis, mas vos afirmo que me não cheira bem essa vossa irresolução, vendo que indeciso ainda não elegestes qual de vossas primas há-de ser vossa consorte. D. TIBÚRCIO – Senhor, as perfeições de cada uma são tão peregrinas, que vacila a vontade na eleição dos sujeitos; pois, quando me vejo entre Clóris e Nise, me parece que estou entre Cila e Caríbdis. D. LANCEROTE – Pois, sobrinho, resolver; resolve logo, e já. D. TIBÚRCIO – Pois, Senhor, se a um enforcado se dão três dias, eu, que no casar noto a mesma propriedade, pois bem se enforca quem mal se casa, peço três dias também para me resolver. D. LANCEROTE – Três dias peremptórios concedo; e, para que não hajam dúvidas no dote, assentai-vos, e sabereis o que haveis de levar. (Assentam-se) D. TIBÚRCIO – Isso é santo e bom, para que não seja a noiva de contado, e o dote de prometido. D. LANCEROTE – Eu, meu sobrinho, suposto tenha corrido muito mundo, contudo me acho alcançado. D. TIBÚRCIO – Isso é bonito! D. LANCEROTE – Primeiramente, cada uma de minhas sobrinhas tem muito boa limpeza. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 55 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Sim, Senhor; são muito asseadas; nisso não há dúvida. D. LANCEROTE – Além disso... Estai atento, meu sobrinho; não deis salabancos com a caixa, que isso é manha de bestas. (Bole a caixa) D. TlBÚRCIO – Eu estou com os cinco sentidos bem quietos. D. LANCEROTE – Como digo, sabereis que todo o meu cabedal anda sobre as ondas do mar. Não estareis quieto? (Bole a caixa) D. TIBÚRCIO – Não sou eu, por vida minha. D. LANCEROTE – Não vedes a caixa a saltar? D. TIBÚRCIO – É verdade; será de contente. Cai a caixa com os dois D. LANCEROTE – Isto agora é mais comprido. D. TIBÚRCIO – E isto é mais estirado. D. LANCEROTE – Ai! Quem me acode com uma luz? Entram D. Clóris, D. Nise, Fagundes e Sevadilha com luz TODOS – Que sucedeu? D. TIBÚRCIO – O maior caso que viram as idades. D. LANCEROTE – Eu, que na maior idade vi o maior caso.. D. NISE – Pois que foi? D. CLÓRIS – Que sucedeu, Senhores? SEVADILHA – Que é isto? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 56 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Que foi? Que sucedeu? Que é isto? D. TIBÚRCIO – Esta caixa... D. LANCEROTE – Esta arca... D. TlBÚRCIO – Que em torcicolos... D. LANCEROTE – Que em bamboleios... D. TIBÚRCIO – Com pulos... D. LANCEROTE – Com saltos... D. TIBÚRCIO – Deitou-me no chão. D. LANCEROTE – No chão me estendeu. D. NISE – É raro caso! D. CLÓRIS – É caso raro! SEVADILHA – É, não há dúvida! Ai, que ela torna a bulir! Fujamos, Senhores. FAGUNDES – Valha-te o Diabo, D. Fuas, que tão inquieto és! (Aparte) D. LANCEROTE – Esta caixa tem algum encanto; abramo-la. D. TIBÚRCIO – Diz bem; abra-se a caixa. D. NISE – Ai de mim! Que será de D. Fuas? (Aparte) D. CLÓRIS – Que será de D. Gil? (Aparte) D. TIBÚRCIO – Vá o tampo dentro. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 57 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Tenham mão, que pode vir dentro algum diamante, que nos mate aqui a todos. FAGUNDES – Ai, santo breve da marca! D. NISE – Senhor, se se abre a caixa, desmaiamos todos aqui. D. LANCEROTE – Vamo-nos, que a prudência é melhor que o valor. (Vai-se) D. TIBÚRCIO – Pois, só, não quero ser valente. (Vai-se e leva a luz) SEVADILHA – Ai! Não sei que pés me hão-de levar! Ande, Senhora! D. CLÓRIS – Fazes bem em disfarçar até ao depois. (Vai-se) FAGUNDES – A caixa parece que tocou a recolher. D. NISE – E não foi o pior o ficarmos às escuras, que assim terão todos medo de vir aqui. Ora abre a caixa e diz a D. Fuas que saia. FAGUNDES – Ai, a caixa está aberta! Seria com os salabancos. Saia, meu Senhor, e perdoe o descómodo. Abre a caixa e sai D. Gil D. GILVAZ – Ó tu, nocturna deidade, que no caliginoso bosque destas sombras brilhas, carbúnculo da formosura, aqui tens segunda vez no teatro de tua beleza representante a minha constância na tragicomédia de meu amor. FAGUNDES – Senhora, quem às escuras é tão discreto, que fará às claras? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 58 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. NISE – Já vou acreditando, meu bem, as tuas finezas; porém... Sai D. Fuas da caixa D. FUAS – Porém o teu engano, falsa, inimiga, segunda vez se repete para meu desengano e tua afronta. D. NISE – Que é isto, Fagundes? Que tramóias são estas? FAGUNDES – Eu estou besta, pois só a D. Fuas meti na caixa! D. NISE – Pois como há aqui outro, fora D. Fuas? FAGUNDES – Eu não sei, em minha consciência, que não é má. D. FUAS – Senhora D. Nise, para que são esses fingimentos? Peleje agora com Fagundes, para se mostrar inocente. D. GILVAZ – Esta é D. Nise; eu me recolho ao vestuário, até que venha D. Clóris. Mete-se D. Gil na caixa D. NISE – Já disse, Senhor D. Fuas, que a minha constância vive isenta dessas calúnias. D. FUAS – Aque-d'el-rei, Senhora! Quereis que dê com a cabeça por essas paredes? É possível que ainda intentais negar o que tão repetidas vezes tenho experimentado? D. NISE – Senhor, é pouca fortuna de minha firmeza encontrar sempre com acidentes de falsidade. FAGUNDES – Senhor D. Fuas, não cuide vossa mercê que somos cá nenhumas mulheres de cacaracá! Mas ali vem gente. D. NISE – Recolha-se outra vez, que eu entanto aqui me retiro. Anda, Fagundes. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 59 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Senhor, nós já tornamos. (Vai-se) D. FUAS – Mais à minha conservação, que ao teu respeito, obe- deço. Esconde-se D. Fuas na caixa e entra D. Clóris D. CLÓRIS – Que se expusesse D. Gil ao perigo de vir em uma caixa a meu respeito! Ora o certo é que não há mais extremoso amante; porém, os fumos de alecrim têm a mesma virtude que o incenso nos pombos, que os faz tornar ao pombal. Mas adonde estará aqui a caixa? Esta suponho que é. Já, meu bem, podes sair sem susto. Sai D. Fuas da caixa D. FUAS – Sim, tirana, pois já me não assustam as tuas falsi- dades! D. CLÓRIS – Que falsidades? Que dizes? Enlouqueceste, ou ignoras com quem falas? D. FUAS – Contigo falo, que com outro amante duas vezes infiel te encontrou a minha infelicidade. D. CLÓRIS – Cuido que não são tantos os encontros que temos tido. D. GILVAZ – Aquela voz é de D. Clóris! Estou ardendo com zelos! (Aparte) D. FUAS – Já estou desenganado da tua falsidade. Já sei que estoutro amante que vive encerrado nessa caixa é o que só merece os teus agrados. D. GILVAZ – E como que o merece, pois só ele é digno desse favor; e a quem o impedir lhe meterei esta espada até as guarni- ções. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 60 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS – Vês, ingrata, se é certa a minha suspeita? D. CLÓRIS – Eu estou confusa e não sei a quem satisfaça! D. GILVAZ – Ainda continua, insolente? Não sabe que esta dama é coisa minha? D. FUAS – Já agora, por capricho, apesar das suas aleivosias, hei-de dar a vida por mi dama. D. CLÓRIS – Senhores, que desgraça! D. GILVAZ – Se não estivera às escuras, tu serias o alvo de minhas iras. D. FUAS – Pois, se não fora a escuridade, eu te fizera ver o meu brio; mas, ainda assim, eu vou dando, dê donde der. D. CLÓRIS – Senhores, dêem de manso; não os ouça meu tio. Cantam D. Fuas, D. Gil e D. Clóris a seguinte Ária D. GILVAZ Se não fora por não sei quê, te matara mesmo aqui. D. FUAS Se não fora o velho ali, te fizera um não sei quê. D. CLÓRIS De mansinho, pouca bulha! Cal-te, gralha; cal-te, grulha, porque o velho há-de acordar. D. GILVAZ Pois aqui mui mansamente matarei este insolente. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 61 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS Também eu, pela calada, meterei a minha espada. D. CLÓRIS Devagar; não dêem de rijo, porque o velho há-de acordar. TODOS Quem pudera em tanta luta sua dor desabafar! D. FUAS e D. GILVAZ Se não grito neste caso, sou capaz de rebentar. D. CLÓRIS Mais que estalem ou arrebentem, não se há-de aqui falar. TODOS Não se pode isto aturar! (Vão-se) Entra Semicúpio pela mão de Sevadilha SEMICÚPIO – Donde me levas, Sevadilha? SEVADILHA – Ande; não me faça perguntas. SEMICÚPl0 – Não há uma candeia nesta casa, que se meta na mão, que estou morrendo por te ver? SEVADILHA – Melhor fineza é amar por fé. SEMICÚPIO – Como, se eu não dou fé de ti? SEVADILHA – Ande, que o amor se pinta cego. SEMICÚPIO – Muito vai do vivo ao pintado. SEVADILHA – Assim estamos mais à nossa vontade. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 62 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Andar! Suponho que tenho o meu amor na Noruega! Mas, ainda assim, isto de estar às escuras não é grande coisa para um homem dizer à sua dama quatro hipérboles; se não vejo, como poderei dizer-te que és estátua de alabastro sobre plintos de jaspe, neve vivente e racional sorvete, mas só carapinhada, pois negra te considero nesta Etiópia? Oh, negregada ocasião, em que por falta de uma candeia, não sai à luz a tua formosura! SEVADILHA – Pois o fogo de teu amor não basta para alumiar esta casa? SEMICÚPIO – Se a luz excessiva faz cegar, também a minha chama, por excessiva, não alumia; mas com tudo isto, não nos metamos no escuro. Falemos claro: como estamos nós daquilo que chamamos amor? SEVADILHA – E como estamos nós do malmequer, que esse é o ponto? SEMICÚPIO – Cada vez está mais viçoso com a copiosa inundação de meu pranto. SEVADILHA – E teu amo com o alecrim? SEMICÚPIO – Isso são contos largos! O homem anda doido; tudo quanto vê lhe parece que é alecrim. Estoutro dia, estava teimoso em que havia de cear selada de alecrim, mais que o levasse o Diabo. Olha! Para contar-te as loucuras que faz, assentemo-nos, que isto se não pode levar de pé. Assenta-se Semicúpio na caixa, que estará com o tampo levantado, e cai dentro da caixa, que se fechará com a dita queda. SEMICÚPIO – Mas ai, Sevadilha, que caí num poço sem fundo! SEVADILHA – Aonde estás, Semicúpio? SEMICÚPIO – Não sei aonde estou; só sei que estou aqui. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 63 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Aonde é aqui? SEMICÚPIO – É aqui. SEVADILHA – Aqui, aonde? SEMICÚPIO – É boa pergunta! Eu sei cá donde são os aquis na casa alheia? Sei que estou aqui num fole, como criança que nasce implicada, mas sem ventura. SEVADILHA – Pois sai daí e anda para aqui. SEMICÚPIO – Isso é se eu soubera ir daqui para aí! SEVADILHA – Quem te impede? SEMICÚPIO – Estou entupido. SEVADILHA – Dá dois espirros. SEMICÚPIO – Falta-me a Sevadilha, que a não acho, por mais que ando ao cheiro dela. Ora, filha, tira-me daqui. Tu não ouves? SEVADILHA – Eu bem ouço; porém não vejo aonde estás. SEMICÚPIO – Busca-me fora de mim, porque não estou dentro em mim metido nesta sepultura, donde só campa por infeliz a minha desventura. SEVADILHA – Cal-te, Semicúpio, que aí vem gente com luzes. Adeus, até logo. (Vai-se) SEMICÚPIO – Estou no mais apertado lance que ninguém se viu! Entram D. Lancerote, com uma luz, e D. Tibúrcio D. LANCEROTE – Apuremos este encanto. Sobrinho, nós havemos ver o que se encerra nesta caixa, ainda que o cabelo se arrepie. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 64 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Se for coisa desta vida, ficará sem ela; e se for da outra, a mandarei para o outro mundo. D. LANCEROTE – Pois, sobrinho, abri essa caixa com intrépido valor. D. TIBÚRCIO – Abra vossa mercê, que é mais velho, e em tudo tem o primeiro lugar. D. LANCEROTE – Deixai cumprimentos, que a ocasião não é para cerimónias. D. TIBÚRCIO – Por nenhum modo! Não tem que se cansar, que lhe não quero tirar a glória desta empresa. D. LANCEROTE – O magano contralogrou-me. Pois eu confesso que estou tremendo de medo. (Aparte) D. TIBÚRCIO – Queria arrumar-me o gigante? É bem esperto. (Aparte) D. LANCEROTE – Ora pois! Hei-de ir eu, ou haveis de ir vós? D. TlBÚRCIO – Vá; não haja cumprimentos, que eu sou de casa. D. LANCEROTE – Não há mais remédio que ir eu em corpo e alma, a ver esta alma sem corpo, ou este corpo sem alma! Deus vá comigo; anjo da minha guarda e todo o Flos Sanctorum me defenda! D. TlBÚRCIO – Ande, tio; não tenha medo, que eu estou aqui. D. LANCEROTE – Pois, se não fora isso, já eu deitava a correr. (Aparte) SEMICÚPIO – Ai, que sem dúvida estou na caixa em que trouxe a D. Gil, e segundo o que aqui ouço dizer, me intentam reconhecer! Eu lhes tocarei a caixa! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 65 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Chega-se D. Lancerote à caixa e, tanto que a abre, deita Semicúpio a cabeça de fora e dá um assopro na vela. D. LANCEROTE – Ó tu, quem quer que és, que estás nesta caixa!... Mas ai, que me apagaram a vela com um assopro! D. TlBÚRCIO – Assopra! SEMICÚPIO – Mui fraca era aquela luz, pois de um assopro a derribei. D. LANCEROTE – Sobrinho, vós estais aí? D. TIBÚRCIO – Como se não estivera. D. LANCEROTE – Quem seria o cruel, que tão aleivosamente matou uma inocente luz, a assopros frios? SEMICÚPIO – Deus lhe perdoe, que era uma luz a todas as luzes boa; mas eu quero safar-me daqui, e temo marrar de narizes com alguém. Mas que remédio? D. LANCEROTE – Agora vos chegais para mim, cobarde sobrinho? Ide, que por vossa culpa não acabei de desencantar este encanto. D. TIBÚRCIO – Veja vossa mercê como chama cobarde! D. LANCEROTE – Calai-vos, abóbora, que degenerais de quem sois. D. TIBÚRCIO – A mim abóbora? SEMICÚPIO – Agora é boa ocasião de ir-me; porque, ainda que encontre com algum, cuidarão que são murros. Lá vai o primeiro! (Dá) D. LANCEROTE – Ó mal ensinado, pondes mãos violentas em vosso tio? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 66 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Eu abrirei caminho desta sorte, dando a trouxe-mouxe. (Dá) D. TIBÚRCIO – É boa essa, Senhor tio! Assim se dá num bar- bado? D. LANCEROTE – Calai-vos, maganão, que não haveis de casar! Mas ai, que me destes uma bofetada com a mão aberta! Aque-d'el-rei sobre este magano de meu sobrinho! (Vai-se) D. TIBÚRCIO – Aque-d'el-rei sobre este caduco de meu tio! (Vai-se) SEMICÚPIO – Aque-d'el-rei, que já me deixaram! (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 67 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA III Câmara. Entram D. Gil e D. Nise D. GILVAZ – Senhora D. Nise, se acaso em vossa piedade pode achar amparo um desgraçado, peço-vos que me oculteis; pois já a rubicunda Aurora em risonhas vozes nos avisa da chegada do Sol, assim a vossa manjerona se veja coroada de louro no capitólio do amor. D. NISE – Já o alecrim pede favores à manjerona? D. GILVAZ – Se D. Clóris não aparece, que quereis que faça? D. NISE – Pois escondei-vos nessa alcova, enquanto a vou cha- mar. Esconde-se D. Gil e entra D. Fuas D. FUAS – Aonde vás, tirana? Procuras acaso o teu amante? Oh, murcha seja a tua manjerona, que como planta venenosa me tem morto! D. NISE – Homem do demónio ou quem quer que és, que em negra hora te vi e amei, que desconfianças são essas? Que amante é esse, com quem me andas aqui apurando a paciência, e sem quê, nem para quê, descompondo a minha manjerona? D. FUAS – Pois quem era aquele que saiu da caixa a dizer-te mil colóquios? D. NISE – Que sei eu quem era? Salvo fosse... Mas retira-te, que aí vem gente. D. FUAS – Esconder-me-ei aonde for. Quer esconder-se onde está D. Gil Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 68 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. NISE – Não te escondas aí. Ai de mim, que, se D. Fuas vê a D. Gil, fará o seu ciúme verdadeiro! (Aparte) D. FUAS – Não queres que me esconda aí? Agora, por isso mesmo. D. NISE – Tem mão; adverte... D. FUAS – Qual adverte? Tens aí acaso escondido o teu amante? D. NISE – Não, D. Fuas, porque só tu… D. FUAS – Que é isso? Mudas de cor? D. NISE – Se a cor é acidente, estou para desmaiar, vendo a sem-razão com que me criminas. Entra D. Clóris D. CLÓRIS – Nise, que alarido é esse? Queres que venha o tio e ache aqui este estafermo? D. NISE – São loucuras de um zeloso, sem causa. D. FUAS – São zelos de uma causa sem loucura. E, senão, diga-me, Senhora D. Clóris, por vida do senhor seu alecrim: não é para ter zelos ver repetidas vezes a um sujeito procurar a D. Nise com tão repetidos extremos que uma coisa é vê-to, e outra dizê-lo; e suponho o tem agora escondido naquela alcova de donde me desvia para esconder-me? D. CLÓRIS – Isso verei eu, que também me importa essa averi- guação. D. NISE – Clóris, não te canses, que hás-de ver quem aí está. Estou perdida! (Aparte) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 69 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS – É para que veja, Senhora, a razão que tenho. Ah, tirana! D. CLÓRIS – Já agora, por capricho, hei-de ver quem aí está. Vossa mercê é, Senhor D. Gilvaz? Que é isso? Quer enxertar o meu alecrim com a manjerona de D. Nise! D. GILVAZ – Há caso semelhante! D. FUAS – Falso, traidor amigo! Como, sabendo que eu pretendo a D. Nise, te expões a embaraçar o meu emprego? D. GILVAZ – D. Clóris, D. Fuas, para que são esses extremos, quando a Senhora D. Nise nem a vós vos ofende, nem a mim me corresponde ? D. FUAS – Ninguém se esconde sem delito. D. CLÓRIS – Ninguém se oculta sem motivo. D. NISE – Ora agora não quero dar satisfações, nem a uma louca, nem a um temerário. É muita verdade: escondi a D. Gil, porque lhe quero bem. Pois que temos? D. FUAS – Que isto sofra a minha paciência! Ah, ingrata! D. CLÓRIS – Que isto tolerem os meus zelos! Ah, falso amante! D. GILVAZ – A Senhora D. Nise está zombando e aquilo nela é galantaria. D. NISE – Não é senão realidade, e tenho dito. (Vai-se) D. FUAS – Não se viu mais descarado rigor! Espera, cruel, e verás com os teus olhos os ultrajes que faço à tua manjerona. (Vai-se) D. CLÓRIS – Senhor D. Gil, venha depressa o meu alecrim. D. GILVAZ – O teu alecrim é inseparável de meu peito. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 70 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Deixemos graças, que não zombo. D. GILVAZ – Pois entendes que D. Nise fala deveras? D. CLÓRIS – Quer falasse deveras, quer não, venha, venha o meu alecrim. D. GILVAZ – De que sorte queres que te satisfaça? Ignoras acaso as firmezas de meu amor? Canta D. Gil a seguinte Ária Borboleta namorada, que nas luzes abrasada, quando expira nos incêndios solicita o mesmo ardor, tal, ó Clóri, me imagino, pois parece que o destino quer, por mais que tu me mates, que apeteça o teu rigor. Entram Semicúpio e Sevadilha SEMICÚPIO – Senhor D. Gilvaz, nunca Semicúpio se viu em calças mais pardas. D. GILVAZ – Porquê ? SEVADILHA – Porque o velho já aí vem caminhando como uma centopeia. D. CLÓRIS – Anda, D. Gil, para dentro, até que haja ocasião para saíres. D. GILVAZ – Vais ainda com escrúpulos na minha constância? D. CLÓRIS – Cá dentro apuraremos essas finezas. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 71 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Ó Semicúpio, vê como havemos sair daqui, que bem sabes que tenho de escrever hoje para o correio. (Vai-se) SEMICÚPIO – Tomara que o fizessem em postas e o levasse Barzabu às vinte. SEVADILHA – E, se lhes não dizemos que vinha o velho, ainda se não iam. SEMICÚPIO – E ia-se a história sem nós fazermos nosso papel de alfazema por causa do alecrim. SEVADILHA – Não me dirás, Semicúpio, em que há-de parar toda esta barafunda? SEMICÚPIO – Em algum casamento. Isso já se sabe. Tomara eu também que me dissesses em que havemos nós parar. SEVADILHA – Em correr; que, se paramos aqui, talvez que nos envidem o resto. SEMICÚPIO – Não embaralhes o sentido em que te falo. Ai, Sevadilha, que não só me chegaste ao coração, mas também aos narizes! E assim, não ponhas por estanque os teus favores; antes, afável, dá-me alguma amostrinha de tua inclinação. SEVADILHA – Quem te meteu esses fumos na cabeça? SEMICÚPIO – O dó que tenho de te ver tão matadora. SEVADILHA – Vai-te daí, que tenho nojo de chegar-me a ti. SEMICÚPIO – Eu não te mereço que me descomponhas o carinho com que te trato. Ai, Sevadilha, que sinto assar-me nos espetos quentes de teus olhos, aonde os repetidos espirros de meu incên- dio... SEVADILHA – Se me disseras isso em dois dedos de papel, ainda te crera. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 72 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Não só em dois dedos, mas em toda a mão da solfa, donde verás de teu Semicúpio as finas cláusulas de suas semicopadas. Canta Semicúpio, espirrando no fim de cada verso, a seguinte Ária Não posso, ó Sevadi ... dizer-te o que pade..., que o meu amor trave.... chegando-me aos nari..., num moto contínuo me faz espirrar. Mas, se é tafularia este vício de querer-te, toda inteira hei-de sorver-te, por mais que me veja morrer e estalar. (Vai-se) SEVADILHA – Ora Deus o ajude com tanto espirrar. Entram D. Lancerote e D. Tibúrcio D. LANCEROTE – Basta, sobrinho, que não fostes vós o que me derreaste? D. TlBÚRCIO – Pois acha vossa mercê que havia pôr as mãos violentas nas reverendas barbas de vossa mercê? Igual eu me podia com mais razão queixar de vossa mercê, que me fez em estilhas. D.LANCEROTE – Eu, sobrinho?! Isso é engano. Eu havia erguer a mão para vós, quando só as devo levantar ao Céu para dar-lhe graças, por dar-me para uma de minhas sobrinhas um noivo tão gentil-homem? D. TIBÚRCIO – Não vai a dar quebranto. SEVADILHA – E ele, que é mui belo! (Aparte) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 73 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Pois, se nenhum de nós reciprocamente deu um no outro, quem seria? D. LANCEROTE – Eu também não posso atinar! O que sei é que a caixa para nós foi de guerra. SEVADILHA – E para o noivo, de tartaruga do Alentejo. (Aparte) D. LANCEROTE – Sevadilha, anda cá, não o negues. Quem andará nesta casa? Há um par de noites que sinto grande rebuliço. SEVADILHA – Senhor, eu tenho para mim que esta casa às escuras é assombrada. D. LANCEROTE – Tens visto alguma coisa? SEVADILHA – Ai, Senhor! Tenho visto tantas coisas, que não me atrevo a dizê-las. D. LANCEROTE – Diz, rapariga. SEVADILHA – Só em cuidar no que vi, estou para me des- maiar. D. LANCEROTE – Era coisa do outro mundo? SEVADILHA – Qual do outro mundo, se eu a vi neste? D. LANCEROTE – Era fantasma? SEVADILHA – O que é fantasma? D. LANCEROTE – É uma coisa branca, que põe os olhos em alvo. SEVADILHA – Senhor, eu não sei o que é; sei somente que vi sair de uma caixa uma coisa como furacão de vento, que me deu muita pancada. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 74 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Vedes, sobrinho? É o mesmo que nos sucede em carne. D. TIBÚRCIO – Na carne aliás. D. LANCEROTE – Aqui não há outro remédio mais que safardes logo, e já, e levardes vossa mulher convosco, que eu ponho escritos nas casas e mudo-me às carreiras. D. TIBÚRCIO – Isso é o verdadeiro. D. LANCEROTE – Sevadilha, vai chamar as raparigas, que venham cá depressa. SEVADILHA – Genro e sogro são os mais bestas! (Aparte; vai-se) D. TIBÚRCIO – Para que manda vossa mercê chamar a minhas primas tão depressa? D. LANCEROTE – Logo vereis. Entram D. Clóris e D. Nise AMBAS – Que nos ordenas, Senhor? D. LANCEROTE – Sobrinho, elas aí estão; escolhei uma das duas para vossa esposa. D. CLÓRIS – Eu fiz voto de ser freira e, assim, não posso casar. D. LANCEROTE – Pois case D. Nise. D. NISE – Eu menos, que quero ser donzela. D. LANCEROTE – Isso já não pode ser, que dei a minha palavra, que vale mais que tudo. D. TIBÚRCIO – Eu já me resolvera a aturar a ríspida condição de D. Nise; mas, sem receber o dote, não me recebo. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 75 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D.LANCEROTE – Andai, que sois um impolítico. Algum homem que tem brio fala em dote? D. TIBÚRCIO – E algum homem que quer dote atenta em brio? Entram D. Fuas, D. Gil e Semicúpio, vestidos de mulher, com mantos SEMICÚPIO – Senhor, esta indústria nos valha, que para sair sempre foi boa uma saia. D. GILVAZ – Quem serve a Cupido, não é muito que se afemine. (Aparte) D. FUAS – Até nisto mostra o amor que é cobarde! (Aparte) D. LANCEROTE – Que mulheres são essas, que saem da nossa alcova? D. CLÓRIS – Estou tremendo não se descubra a tramóia. (Aparte) SEMICÚPIO – Senhor D. Tibúrcio, as mulheres honradas, como eu, se não tratam desta sorte. D. TlBÚRCIO – Senhora, vossa mercê vem enganada. D. LANCEROTE – Que é isto, sobrinho? D. TIBÚRCIO – Eu o não sei, em minha consciência. D. LANCEROTE – Senhoras, como entrastes nesta casa? SEMICÚPIO – Este Senhor, sobrinho de vossa mercê, merecia que lhe dessem duas facadas, pois sem alma nem consciência, depois de o introduzir na minha casa, para casar com uma de minhas filhas, que vossa mercê aqui vê, teve tais ardis, que enganou a ambas e de ambas triunfou; e, para mais penas sentir, esta madrugada nos mandou viéssemos a esta casa, que disse era sua, e Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 76 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA no cabo sei que não é, e está para casar com uma sobrinha de vossa mercê. Ah, traidor, ladrão! Não sei como te não esgadanho e te arranco essas goelas! D. LANCEROTE – É notável caso! Sobrinho desalmado, que é o que fizeste? D. TIBÚRCIO – Senhor, eu estou tolo de ver mentir esta mulher! D. GILVAZ – Ah, falso D. Tibúrcio, o Céu me vingue de tuas fal- sidades! D. FUAS – Ainda nega, o magano? Tal estou, que lhe arrancara essas barbas. SEMICÚPIO – Deixai, filhas! Deixai, que ainda no Céu há raios, e no Inferno a caldeira de Pêro Botelho para castigo de velhacos. Vamos, meninas! (Vão-se) D. CLÓRIS – Já estamos livres deste susto. (Aparte) D. NISE – O criado vale um milhão. (Aparte) D. LANCEROTE – Senhor sobrinho, vossa mercê a tem feito como os seus narizes. Basta que vossa mercê é useiro e vezeiro a enganar moças? D. TIBÚRCIO – Senhor, eu não conheço tais mulheres. D. LANCEROTE – Se não tendes outra desculpa, essa não me satisfaz, e agora vejo que por isso dilatáveis o casar com vossas primas, fingindo irresoluções e regateando o dote. D. TIBÚRCIO – Senhor, permita Deus, que se eu... D. LANCEROTE – Não jureis falso. Dizei-me: e tivestes atrevimento de meteres mulheres em casa, sem atenção ao decoro de vossas primas? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 77 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Primas do meu coração, eu estou para enlouquecer, pois estou tão inocente... D. CLÓRIS – Cale-se; tenha juízo! Basta que com esse feitio nos queira lograr? D. NISE – É o Senhor sisudo, que não, aprovava os ranchos de alecrim e manjerona! D. TIBÚRCIO – Ora basta que diga eu que não conheço tais mulheres. D. CLÓRIS – Cale-se, tonto! D. NISE – Cale-se, simples! D. CLÓRIS – Basbaque! D. NISE – Insolente! AMBAS – Quê? Agora casar? Aqui para trás. (Vão-se) D. TIBÚRCIO – Senhor tio, dê-me atenção; senão, desesperarei. Canta D. Lancerote a seguinte Ária Eis aqui: eu estou perdido, gasto feito, noiva pronta, porta aberta e casa tonta. Ah, sobrinho! Mas que digo? Emprestai-me a vossa espada, que me quero degolar. Oh prudência desgraçada, pois não faço uma salada por ninguém me ouvir gritar. D. TIBÚRCIO – Que isto a mim me suceda! Não há homem mais infeliz! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 78 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA IV Praça. Aparecem D. Gil e Semicúpio D. GILVAZ – Uma e muitas vezes te considero, Semicúpio, prodigioso artífice de meu amor, pois com as tuas máquinas vás erigindo o retorcido tálamo, que há-de ser trono do mais ditoso hime- neu. SEMICÚPIO – Já disse a vossa mercê que mais obras e menos palavras. Semicúpio, Senhor, já se acha mui cansado. Tomara que me aposentasse com meio soldo, que este ofício de alcofa é mui perigoso; que, suposto tenha asas para fugir, também as asas têm penas para sentir. D. GILVAZ – Semicúpio, já o pior é passado. Acabemos de deitar esta nau ao mar, que então teremos enchentes. SEMICÚPIO – E no cabo de tantas enchentes, tudo nada. D. GILVAZ – Anda; não desmaies, que hoje havemos mostrar ao mundo os triunfos do alecrim. SEMICÚPIO – E a manjerona todavia não menos viçosa com as borrifos de Fagundes. D. GILVAZ – Mas a galantaria é que todas as suas ideias redundam em nosso proveito. SEMICÚPIO – Aí é que está a filagrana do jogo: Fagundes a semear, e nós a colher. Aparece Sevadilha com mantilha D. GILVAZ – Aquela que lá vem não é Sevadilha? SEMICÚPIO – Pelo cheiro, assim me parece. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 79 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Que novidade é essa, Sevadilha? Tu só, por aqui?! SEVADILHA – Que há-de ser? A maior desgraça do mundo! D. GILVAZ – Quê? Morreu o velho? SEVADILHA – Isso então seria fortuna. D. GILVAZ – Pois que foi? SEVADILHA – Foi que D. Tibúrcio, com a pena de se ver acometido de três mulheres, como vossa mercê sabe, à vista das noivas e do sogro, tomou tal paixão, que lhe deu esta noite uma cólica, e está quase indo-se por um fio; e assim eu, por uma parte, Fagundes e o galego por ambas, vamos a chamar o médico. Adeus, que me não posso deter. D. GILVAZ – Espera. SEVADILHA – Não posso, que D. Tibúrcio está morrendo por instantes. SEMICÚPIO – Não te canses, que já o achas morto. Ande cá; tenha feição e faça palestra com os amigos. D. GILVAZ – Que faz D. Clóris? SEVADILHA – Não me detenha; adeus. SEMICÚPIO – Diz-me primeiro que tal te pareci em trajes de mulher. SEVADILHA – Não estou para isso; deixe-me ir, que estou de pressa. SEMICÚPIO – Há tal pressa! Como se estivesse alguém para morrer! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 80 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Não vê que vou acudir a esta grande necessi- dade? SEMICÚPIO – Vai-te, filha; vai-te; não te sofras. SEVADILHA – Bem puderas tu poupar-me essas passadas, e ir chamar um médico às carreiras. SEMICÚPIO – Vai descamada, que eu chamarei o médico. D. GILVAZ – Sim; com muito gosto. SEVADILHA – Ora faça-me esse favor, e adeus. (Vai-se) D. GILVAZ – Anda depressa; vai chamar o médico. SEMICÚPIO – Que médico? Cuide noutra coisa. D. GILVAZ – Isso é zombaria? Não permita Deus que o homem morra por nossa omissão. SEMICÚPIO – Vamos, que eu e vossa mercê havemos ser os médicos na enfermidade de D. Tibúrcio. D. GILVAZ – Estás louco?! Pois nós sabemos medicina? SEMICÚPIO – Assim como há filosofia natural, porque não haverá natural medicina? D. GILVAZ – E se o doente morrer, por falta de remédio? SEMICÚPIO – Mais depressa morrerá por muitos remédios. D. GILVAZ – E que lhe havemos de aplicar? SEMICÚPIO – Tudo o que não for veneno; porque o que não mata engorda. D. GILVAZ – Isso é temeridade. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 81 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Vamos, Senhor, e Deus sobre tudo! Aparece D. Fuas D. FUAS – Espera, traidor D. Gil! SEMICÚPIO – Ai, que isto é alguma espera! D. GILVAZ – Que me quereis, D. Fuas? D. FUAS – Que metais a mão a essa espada. D. GILVAZ – Para quê? SEMICÚPIO – É boa pergunta! Para que será? É para fazer alféloa magana. D. FUAS – Vereis que sabe o meu valor castigar ofensas de um amigo desleal; pois, sabendo vós que D. Nise era o ídolo da minha veneração, chegastes a profanar o meu culto com os sacrílegos votos de vossos sacrifícios, a quem suavizaram os odoríferos hálitos da manjerona. SEMICÚPIO – Aí, cos diabos! D. FUAS – E assim, metei a mão a essa espada, para que se conserve D. Nise, ou segura no templo de meu peito, ou no de vosso coração. SEMICÚPIO – Senhor, aqui não é lugar de desafios: vamos para Vale de Cavalinhos a jogar os coices. D. GILVAZ – D. Fuas, estais louco? Vede que sem causa é a vossa queixa. D. FUAS – Não quero satisfações; vamos puxando. SEMICÚPIO – Este homem vem puxado. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 82 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – Pois, para que vejais que o satisfazer-vos não é temer-vos... Aparece Fagundes com mantilha FAGUNDES – Cé! Ah, Senhor D. Fuas! Uma palavrinha depressa, que importa. D. FUAS – Aquela é Fagundes. Que me quererá? Esperai, D. Gil, enquanto falo a esta mulher. SEMICÚPIO – Senhor, não consinto; ou falar, ou brigar! D. GILVAZ – Deixai mulheres e brigai, que estou pronto a satisfazer-vos por este modo. FAGUNDES – Senhor, venha depressa. SEMICÚPIO – Já vai, que quer aqui primeiro meter a espada pelo olho a um amigo. FAGUNDES – Ande; senão, vou-me. D. FUAS – Espera, que eu vou. D. GILVAZ – Briguemos, D. Fuas. SEMICÚPIO – Vamos a isso, antes que se acabe a cólera. D. FUAS – D. Gil, se tendes brio, esperai, que eu venho já. (Vai para Fagundes) SEMICÚPIO – Ora vá de seu vagar, que esta pendência não é de ceremónia. Senhor D. Gil, abalemos com os cachimbos, que brigar com loucos é ser mais louco. (Vai-se) D. GILVAZ – Tomo o teu conselho. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 83 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Sim, Senhor, a casa está revolta; D. Tibúrcio nos artículos da morte e quase moribundo; o velho banzado e tudo banzeiro; e, à vista dista, pode vossa mercê introduzir-se em casa o mais depressa que puder, em alguma forma que intentar a sua indústria. E adeus! D. FUAS – Ouça cá. FAGUNDES – Não posso, que vou à botica. D. FUAS – Pois essa ingrata de D. Nise ainda... FAGUNDES – Não estou para ouvir nada. D. FUAS – Espere; tome lá esses vinténs pelo trabalho. FAGUNDES – Mostre cá depressa. D. FUAS – Ora diga-me. Pois D. Nise... FAGUNDES – Noutra ocasião falaremos; venha isso depressa. D. FUAS – Tome lá! Mas diga-me, enquanto tiro a bolsa: essa falsa, essa cruel... FAGUNDES – Ai, mostre cá; não me detenha. D. FUAS – Espere, que tenho o boldrié por cima da algibeira. FAGUNDES – Pois, Senhor, se a sua bolsa está aferrolhada, a minha língua está ferrugenta. (Vai-se) D. FUAS – Muito interesseira é esta velha! Mas aonde está D. Gil? D. Gil? Foi-se o cobarde; mas à fé de quem sou, que as não há-de perder comigo; e tu, ingrata Nise, hoje irei a ver-te disfarçado; que, à vista das tuas falsidades, é justo que me revista não só de outro hábito, mas também de outro afecto. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 84 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Canta D. Fuas a seguinte Ária De um amigo, e de uma ingrata ofendido e ultrajado? Quem me dera ver vingado! Oh, não sei como ainda cabe no meu peito tanta dor! Mas sim, cabe, porque as penas nos estragos repartidas pelas bocas das feridas, sairá com mais vigor. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 85 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Cena V Câmara. Haverá uma cama e nela estará D. Tibúrcio deitado, assistido de D. Lancerote, D. Clóris, D. Nise e Sevadilha D. LANCEROTE – O que tarda este médico! SEVADILHA – Não pode tardar muito, pois me disse que já vinha. D. LANCEROTE – Como estais agora, meu sobrinho? D. TIBÚRCIO – Depois que arrotei, acho-me mais aliviado. D. NISE – Vaso mau não quebra. (Aparte) D. CLÓRIS – Se fora coisa boa, não havia de escapar. (Aparte) D. LANCEROTE – Não sabeis quanto folgo com a vossa melhora, pois me estava dando cuidado o enterro, e me podeis agradecer a boa vontade, pois vos seguro que havia de ser luzido. Vós o veríeis! D. TIBÚRCIO – Outro tanto desejo eu fazer a vossa mercê. Entram D. Gil e Semicúpio, vestidos de médico. SEMICÚPIO – Deo gratias. D. LANCEROTE – Entrem, meus Senhores Doutores. D. GILVAZ – Em boa me meteu Semicúpio! Eu não sei o que hei-de dizer! (Aparte) SEMICÚPIO – Qual de vossas mercês é aqui o doente? D. LANCEROTE – É este que aqui está de cama. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 86 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Logo me pareceu pelos sintomas. SEVADILHA – Senhora, que são Semicúpio e D. Gil! (Para D. Clóris) D. CLÓRIS – Bem os vejo! Nise, que te parece? D. NISE – Que faz melhor efeito o teu alecrim, que a minha manjerona. Entram D. Fuas e Fagundes FAGUNDES – Entre, Senhor Doutor; aqui vem este Senhor, que também se entende muito bem. D. FUAS – Neste instante chego de fora da terra, quando me chamou esta mulher, que viesse ver a um enfermo. D. LANCEROTE – Já era escusado; porém entre e sente-se. D. CLÓRIS – Nise, D. Fuas compete nas finezas com D. Gil. D. NISE – Não me pesa. D. FUAS – Aqueles são D. Gil e Semicúpio. Estou ardendo! (Aparte) SEMICÚPIO – Ah, Senhor! Não vês a D. Fuas também como gente? (Para D. Gil) D. GILVAZ – Já sei. D. TIBÚRCIO – Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Senhor Doutor! SEMICÚPIO – Agora vou a isso. Ora diga-me: que lhe dói? D. TIBÚRCIO – Tenho na barriga umas dores mui finas. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 87 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Logo as engrossaremos. E tem o ventre túmido, inchado e pululante? D. TIBÚRCIO – Alguma coisa. SEMICÚPIO – Vossa mercê é casada, ou solteira? D. TIBÚRCIO – Porquê, Senhor Doutor? SEMICÚPIO – Porque os sinais são de prenhe. D. LANCEROTE – Não, Senhor, que meu sobrinho é macho. SEMICÚPIO – Dianteiro, ou traseiro? D. LANCEROTE – Ui, Senhor Doutor! Digo que meu sobrinho é varão. SEMICÚPIO – De aço, ou de ferro? D. LANCEROTE – É homem! Não me entende? SEMICÚPIO – Ora acabe com isso. Eis aqui como por falta de informação morrem os doentes; pois, se eu não especulara isso com miudeza entendendo que era macho, lhe aplicava uns cravos; e, se fosse varão, umas limas; e, como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe há-de fazer. D. LANCEROTE – Eis aqui como gosto de ver os médicos: assim especulativos. SEMICÚPIO – Pois o mais é asneira. Diga-me mais: ceou demasiadamente a noite passada? D. TIBÚRCIO – Tanto como a futura, porque, desde que se me acabaram as chouriças que trouxe no alforge, me tem meu tio posto a pão e laranja. D. LANCEROTE – Aquilo são delírios, Senhor Doutor. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 88 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Assim deve ser por força, ainda que não queira, pois conforme ao aforismo, cum barriga dolet, cetera membra dolent. D. TIBÚRCIO – Não são delírios, Senhor Doutor, que eu estou em meu juízo perfeito. SEMICÚPIO – Pior, pois quem diz que tem juízo não o tem. D. LANCEROTE – Senhor Doutor, o homem está alucinado depois que uma fantasma que saiu de uma caixa o desancou; e sobre isso, a grande pena que tem tomado de umas moças que aqui introduziu em casa, enganando-as, de cuja insolência se me veio aqui a mãe queixar, que era mulher de bem, ao que parecia. SEMICÚPIO – Ela é muito criada de vossa mercê. D. TIBÚRCIO – Deixemos isso; o caso é que a minha barriga não está boa. SEMICÚPIO – Cale-se, que ainda há-de ter uma boa barrigada. Deite a língua de fora. D. TIBÚRCIO – Ei-la aqui. SEMICÚPIO – Deite mais; mais! D. TIBÚRCIO – Não há mais. SEMICÚPIO – Essa bastará. É forte linguado! Tem mui boa ponta de língua! Vejam vossas mercês, Senhores Doutores. D. GILVAZ – A língua é de prata. D. FUAS – Húmida está bastantemente. SEMICÚPIO – Venha o pulso. Está intermitente, lânguido e convulsivo. Ó menina, tomou as águas? SEVADILHA – Ainda não veio o aguadeiro. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 89 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Pergunto se o doente fez a mija! D. TIBÚRCIO – Nesta casa não há ourinol. SEMICÚPIO – Pois tome-as, ainda que seja numa frigideira, em todo o caso, quia per orinis optime cognoscitur morbus. D. LANCEROTE – Ah, Senhores! Grande médico! D. NISE – E D. Fuas como está melancólico! (Para D. Clóris) D. CLÓRIS – Estará cuidando na receita. SEMICÚPIO – Ora, Senhores, capitulemos a queixa. Este fidalgo (se é que o é, que isto não pertence à medicina) teve uma colórica precedida de paixões internas, porque o espírito, agitado da representação fantasmal e da investida feminil, retraindo-se o sangue aos vasos linfáticos, deixando exauridas as matrizes sanguinárias, fez uma revolução no intestino recto; e, como a matéria crassa e viscosa que havia nutrir o suco pancreático, pela sua turgência se achasse destituída do vigor, por falta do apetite famélico, degenerou em líquidos. Estes, pela sua virtude acre e mordaz, vilicando e pungindo as túnicas e membranas do ventrículo, exaltaram-se os sais fixos e voláteis por virtude do ácido alcalino, de sorte que fez com que o Senhor andasse com as calças na mão toda esta noite: in calsis andatur, qui ventre evacuatur, disse Galeno. D. LANCEROTE – Eu não lhe entendi palavra! D. TIBÚRCIO – Eu morro, sem saber de quê! SEMICÚPIO – Conhecida a queixa, votem o remédio, que eu, como mais antigo, votarei em último lugar. D. GILVAZ – Eu sou de parecer que o sangrem. D. FUAS – Eu que o purguem. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 90 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Senhores meus, a grande queixa, grande remédio. O mais eficaz é que tome umas bichas nas meninas-dos-olhos, para que o humor faça retrocesso de baixo para cima. D. TIBÚRCIO – Como é isso de bichas nas meninas-dos-olhos? SEMICÚPIO – É um remédio tópico; não se assuste, que não é nada. D. TIBÚRCIO – Vossa mercê me quer cegar? SEMICÚPIO – Cale-se aí! Quantas meninas tomam bichas, e mais não cegam? D. LANCEROTE – Calai-vos, sobrinho, que ele médico é e bem o entende. D. TIBÚRCIO – Por vida de D. Tibúrcio, que primeiro há-de levar o Diabo ao médico e à receita, que eu em tal consinta! (Ergue-se) SEMICÚPIO – Deite-se, deite-se! O homem está maníaco e furioso! D. LANCEROTE – Aquietai-vos; sois alguma criança? D. NISE – Ora, Senhores Doutores, já que vossas mercês aqui se acham, bem é que os informemos, eu e minha irmã, de várias queixas que padecemos. SEMICÚPIO – Inda mais essa? Ora digam. D. CLÓRIS – Senhor, o nosso achaque é tão semelhante, que com uma só receita se podem curar ambos os males. D. NISE – Não há dúvida que o meu achaque é o mesmo em carne que o de minha irmã. SEMICÚPIO – Achaque em carne pertence à cirurgia. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 91 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Que, como dormimos ambas, se nos comunicou o mesmo achaque; e assim, Senhor, padecemos umas ânsias no coração, umas melancolias na alma, uma inquietação nos sentidos, uma travessura nas potências; e finalmente, Senhor Doutor, é tal este mal, que se sente sem se sentir; que dói sem doer; que abrasa sem queimar; que alegra entristecendo, e entristece alegrando. SEMICÚPIO – Basta; já sei: isso é mal cupidista. D. LANCEROTE – O que é o mal cupidista, que nunca tal ouvi? SEMICÚPIO – É um tal da moda. D. NISE – Que remédio nos dão vossas mercês? D. FUAS – Eu dissera que o óleo de manjerona era excelente remédio. D. GILVAZ – O verdadeiro para essa queixa são as fumaças do alecrim. D. FUAS – Ui, Senhor Doutor! A manjerona é um excelente remédio. D. GILVAZ – Nada chega ao alecrim, cujas excelentes virtudes são tantas, que para numerá-las não acha número o algarismo; e não faltou quem discretamente lhe chamasse planta bendita. D. FUAS – Se entrarmos a especular virtudes, as da manjerona são mais que as da erva santa. SEMICÚPIO – Daqui a pô-la no altar não vai nada. D. FUAS – A manjerona é planta de Vénus, de cujos ramos se coroa Cupido, e para o mal cupidista não pode haver melhor remédio que uma planta de Vénus; pois, se notarmos a perfeição com que a natureza a revestiu daquelas mimosas folhinhas, para que todo o ano sejam hieroglífico da imortalidade; aquele suavíssimo aroma de cuja fragrância é hidrópico o olfacto, ela é a delícia de Flora, o mimo de Abril e a esmeralda no anel da Primavera. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 92 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – É verdade; não há dúvida! D. NISE – Estou tão contente! (Aparte) D. GILVAZ – O alecrim, Senhor, pela sua excelência, é titular na república das plantas, cujas flores, depois de serem bela imitação dos cerúleos globos, são a doçura do mundo nos melífluos ósculos das abelhas. SEMICÚPIO – Todavia, a matéria é de apicibus. D. GILVAZ – Ele é a coroa dos jardins, o lenço vegetável das lágrimas da Aurora. Nas chamas, é Fénix; nas águas, rainha; e finalmente é o antídoto universal de todos os males, e a mais segura tábua da vida, quando o mar das queixas assopram os ventos inficionados; e para prova deste sistema, repetirei, traduzindo em português, um epigramal do protomédico Avicena, poeta arábico. SONETO Um dia para Siques quis amor uma grinalda bela fabricar; e por mais que buscou, não pôde achar flor do seu gosto entre tanta flor. Desprezou do jardim o seu candor, e a rosa não quis, por se espinhar; ao girassol mostrou não se inclinar, e ao jacinto deixou a sua dor. Mas, tanto que chegou Cupido a ver entre virentes pompas o Alecrim, um verde ramo pretendeu colher. Tu só me agradas, disse, pois enfim por ti desprezo, só por te querer, jacinto, girassol, rosa e jasmim. D. CLÓRIS – Viva o Senhor Doutor! Eu quero as fumaças do alecrim. D. TIBÚRCIO – E morra o Senhor doente! Ai, minha barriga. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 93 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS – Se versos podem servir de textos, escute uns de um antegonista desse autor a favor da manjerona, pelos mesmos con- soantes. SONETO Para vencer as flores quis Amor setas de Manjerona fabricar. Foi discreta eleição, pois soube achar quem soubesse vencer toda a flor. O jasmim desmaiou no seu candor; a rosa começou-se a espinhar; no girassol foi culto o inclinar; ais o jacinto deu, de inveja e dor. Entre as vencidas flores pôde ver retirar-se fugido o Alecrim, que amor para vingar o quis colher. Cantou das flores o triunfo, enfim, nem os despojos quis, por não querer jacinto, girassol, rosa e jasmim. D. NISE – Viva o Senhor Doutor! Eu quero o remédio da manje- rona. D. LANCEROTE – Não cuidei que a manjerona e alecrim tinham tais virtudes. Vejamos agora o que diz o Senhor Doutor. D. TIBÚRCIO – Que tenho eu com isso? Senhores, vossas mercês me vieram curar a mim, ou às raparigas? Ai, minhas barrigas! SEMICÚPIO – Calado estive ouvindo a estes Senhores da escola moderna, encarecendo a manjerona e alecrim. Não há dúvida que, pro utraque parte há mui nervosos argumentos, em que os doutores alecrinistas e manjeronistas se fundam; e, tratando Dioscórides do manjeronismo e alecrinismo, assenta, de pedra e cal, que para o mal cupidista são remédios inanes; porque, tratando Ovídio do remédio amoris, não acha outro mais genuíno contra o mal cupidista que o malmequer, por virtude simpática, magnética, diaforética e diurética, com a qual curatur amorem. Repetirei as palavras do mesmo Ovídio. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 94 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SONETO Essa que em cacos velhos se produz Manjerona misérrima sem flor; esse pobre alecrim, que em seu ardor todo se abrasa por sair à luz, ainda que se vejam hoje a flux desbancar nas baralhas do amor, cuido que elas o bolo hão-de repor; senão, negro seja eu como um lapuz. O malmequer, Senhores, isso sim, que é flor que desengana, sem fazer no verde da esperança amor sem fim. Deixem correr o tempo, e quem viver verá que a manjerona e o alecrim, as plantas beijarão do malmequer. SEVADILHA – Viva e reviva o Senhor Doutor! E, já que é tão bom médico, peço-lhe me cure de umas dores tão grandes, que parecem feitiços. SEMICÚPIO – Dá cá as pulseiras. Ah, perra, que agora te agarrei! Tu estás marasmódica e empiemática. Ah, Senhor! Logo, logo, antes que se perpetue uma febre podre, é necessário que esta rapariga tome uns semicúpios. SEVADILHA – Semicúpios, eu?! É coisa que abomino. SEMICÚPIO – Eu descarrego a minha consciência e não sou mais obrigado. D. LANCEROTE – Ela não tem querer; há-de fazer o que vossa mercê mandar. FAGUNDES – Eu também sou de carne; tenho anos e tenho achaques. SEMICÚPIO – Pois cure-se primeiro dos anos; logo se curará dos achaques. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 95 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Não, Senhor, que este achaque não é anual; é diário. SEMICÚPIO – Se fora nocturno, não era mau. Pois que achaque é o seu, senhora velha? FAGUNDES – Que há-de ser? É esta madre, que me persegue. SEMICÚPIO – Ui, você, com esses anos, ainda tem madre?! E o que será de velha a senhora sua madre! Filha, isso não é madre; é avó. FAGUNDES – Talvez que por isso tão rabugenta me persiga. E que lhe farei, Senhor Doutor? SEMICÚPIO – A uma madre velha que se lhe há-de fazer? Andar! Ponha-lhe óculos e muletas, e deixe-a andar. D. LANCEROTE – Isto aqui é um hospital, graças a Deus. Só eu nesta casa sou são como um pêro, apesar de duas fontes e uma funda. SEMICÚPIO – Oh, ditoso homem, que vive sem males! D. TIBÚRCIO – Senhores, o meu mal devia ser contagioso, porque depois da minha doença todos adoeceram. Ai, minha barriga! D. LANCEROTE – Pois em que ficamos? SEMICÚPIO – Senhor meu, falando em termos, o doente sangre-se no pé; vossa mercê na bolsa; às senhoras suas sobrinhas, três banhos; à moça, semicúpios; e a velha lancem-na às ondas, que está danada. FAGUNDES – Ai, que galante coisa! D. CLÓRIS – Eu não quero mais remédio que os fumos do ale- crim. D. NISE – E eu os da manjerona. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 96 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Não seja essa a dúvida. Ainda que não sou desse voto, cada um é senhor da sua vida, e se pode curar como quiser. Lá vai a receita! Canta Semicúpio a seguinte ÁRIA Si in medicinis te visitamus, non asniamus, sed de alecrinis, et manjeronis recipe quantum satis aná. Credite mihi, qui sum peritus, non mediquitus de cacaracá. D. LANCEROTE – Esperem, Senhores; vossas mercês perdoem. Lá repartam essa ninharia entre todos, que eu não estou aparelhado senão para um. SEMICÚPIO – Venha embora, que só este é o verdadeiro sintoma da Medicina. (Vai-se) D. GILVAZ – Ai, Clóris, que, quando o mal é de amor, só o morrer é remédio! (Vai-se) D. FUAS – Finjo que me vou, por ver se posso apurar a falsidade de D. Nise. (Vai-se) D. TIBÚRCIO – Mande-me cerrar este miombo, que vou entrando em um suor copioso; abafem-me bem. D. LANCEROTE – Aqui servia o meu capote. Paciência! Vamo-nos e deixemo-lo suar; ninguém lhe fale à mão. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 97 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. CLÓRIS – Vamos, Nise, a moralizar os extremos destes amantes. (Vai-se) D. NISE – Tanto me importa; vamos a regar os nossos craveiros. (Vai-se) FAGUNDES – O diabo de Semicúpio temo que me meta em um chinelo com seus ardis. (Vai-se) SEVADILHA – É para ver se o meu malmequer também entra em réstia. (Vai-se) Entra D. Fuas D. FUAS – Já todos se foram. Quem me dera encontrar a esta tirana, cruel, falsa, inimiga! Entra Fagundes FAGUNDES – D. Tibúrcio fica a suar como um cavalo. Mas ai! Quem está aqui? D. FUAS – Sou eu, Senhora Fagundes; não se assuste. FAGUNDES – Senhor, que temeridade é esta? Vossa mercê não vê que ainda é lusque-fusque? Como, sem deixar anoitecer, penetra estas paredes, aonde até o sol entra às furtadelas? D. FUAS – Não reparei que ainda era dia; pois no abismo de meu ciúme sempre estou às escuras. Aonde está esta cruel D. Nise? FAGUNDES – Estará no jardim. D. FUAS – Pois vamos lá, e de caminho quero me vá dizendo de meter-me na caixa a mim e a D. Gil. FAGUNDES – Vamos, que eu lhe contarei o que foi; ande por aqui com pés de lã. Ai, Senhor D. Fuas, quanto me deve! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 98 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA CENA VI Vista de quintal, em que haverá alguns alegretes e uma capoeira, e vêm D. Gil e Semicúpio descendo por uma corda D. GILVAZ – Semicúpio, deixa-me descer eu primeiro, para que se não quebre a corda com o peso de ambos. (Desce) SEMICÚPIO – Agarre-se bem à corda e deixe-me escorregar. D. GILVAZ – Ora já cá estou; mas eu não paro aqui, até encontrar com D. Clóris. (Vai-se) Chega D. Lancerote D. LANCEROTE – Este quintal é o meu divertimento e encanto. Um homem aqui assentado e tomando o fresco não há maior regalo. SEMICÚPIO – Agora já poderei descer afoitamente. D. LANCEROTE – Que é isto que cai sobre mim? Quem me acode? Ao descer, Semicúpio cai sobre D. Lancerote SEMICÚPIO – Não é nada; escarranchei-me no velho, cuidando que era poial! Estou bem aviado! (Aparte) D. LANCEROTE – Mas que vejo? Aque-d'el-rei, ladrões! SEMICÚPIO – Não o disse eu? D. LANCEROTE – Ladrão, velhacão! Tu descendo por uma corda os altos muros de meu quintal! Pois com essa mesma corda te atarei de pés e mãos, até que amanheça para entregar- te à justiça. SEMICÚPIO – É bem feito, já que eu mesmo dei a corda para me enforcar. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 99 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Dá cá os braços. SEMICÚPIO – Já está meu amigo? Quer-me abraçar? D. LANCEROTE – Anda cá, ladrão; mostra cá os pulsos. SEMICÚPIO – Não tenho febre. D. LANCEROTE – Anda, que atado hás-de ficar. SEMICÚPIO – Senhor, por sua vida que me não ate! Basta o enleio em que me vejo! D. LANCEROTE – Dize: a que vieste a este quintal? SEMICÚPIO – Ora, Senhor, ate-me muito embora, mas não me aperte por isso. D. LANCEROTE – Por isso é que eu te aperto; hás-de confessar a que vieste. SEMICÚPIO – Eu estou atado; não sei o que lhe responda. (Aparte) D. LANCEROTE – Qual foi o fim que aqui te trouxe? SEMICÚPIO – A dar fim à minha vida, por dar princípio à minha morte por meio desta corda, que, falsa, me entregou nas mãos de vossa mercê. D. LANCEROTE – Vieste roubar-me, não é verdade? SEMICÚPIO – Sim, Senhor, mas foi a roubar-lhe as atenções. D. LANCEROTE – Anda, ladrãozinho, para a capoeira, donde ficarás atado. SEMICÚPIO – Para onde, Senhor? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 100 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Para a capoeira, até que venha o Sol a ser testemunha do teu latrocínio. SEMICÚPIO – Pois vossa mercê quer encapoeirar-me?! Graças a Deus que não sou cá nenhuma galinha! Mas sabe porque fala? Porque me acha atado; quando não, havíamos jogar as cristas. D. LANCEROTE – Anda, ladrão, que aqui ficarás até amanhecer! (Vai-se) SEMICÚPIO – Ora, criado Senhor Semicúpio: já sabemos que isto é meio caminho andado para a forca; mas é bem feito que isto a mim me suceda. Que tinha eu cá com D. Gil? Pois, para que ele fosse galo, me vejo eu feito galinha, se bem que já podia ser frango pelo esfrangalhado. O magano estará a estas horas entre glórias e eu entre penas; ele voando na esfera de amor, e eu de asa caída na gema dos ovos. Aparece Fagundes FAGUNDES – Que mais me falta para fazer? Eu já fiz a cama a todos; já fiz a selada de rabos para cearmos; já temperei as gaitas para o galego; já assei o fricassé; já cosi um guardanapo; agora me falta deitar os arenques de molho, para ficar com as mãos lavadas. Ora sou uma tonta: esquecia-me o melhor, que é matar uma galinha para o doente, e mais trazia a faca na mão para isso! SEMICÚPIO – Eu o estava dizendo; grande desgraça é ser um homem galinha, pois de uma mulher tem medo. FAGUNDES – Mas confesso que não sou para ver sangue, que logo desmaio; porém eu fecho os olhos e meto a faca, que alguma ficará espichada. SEMICÚPIO – Oh, mulher! Deus te tire isso do pensamento! FAGUNDES – Qual! Eu sou muito melindrosa e fusilânima. Não tenho valor para matar uma formiga. Ora lá vai a Deus, e à ventura! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 101 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Sem falência, eu morro de morte galinhal! Não há mais remédio que falar à velha; mas, se lhe falo, é capaz de acordar o cão do velho, que está dormindo, e encerrar-me em parte mais apertada. Não sei o que faça; pois tal estou, que, se a velha me mata, não tenho no corpo pinga de sangue para deitar. FAGUNDES – Para que é cansar? Eu não sou sanguinolenta. Entra Sevadilha SEVADILHA – Fagundes, o Senhor está desesperado por você! Que faz aí? FAGUNDES – Já que vieste, matarás uma galinha, que eu não me atrevo. (Vai-se) SEMICÚPIO – Lá vem a Sevadilha! Ora o certo é que donde a galinha tem os ovos, aí se lhe vão os olhos. SEVADILHA – Aborrece-me gente melindrosa. Vejam agora que dó pode haver de matar um animal! Verão como eu faço isto brincando. SEMICÚPIO – Não são bons brincos esses, Sevadilha; mas, se tu já me tens morto, para que me queres tornar a matar? SEVADILHA – Ai, que estamos em tempo que falam os animais! Este, pela voz, é Semicúpio. SEMICÚPIO – Eu sou que te falo de papo; é o teu Semicúpio que está feito semigalo. SEVADILHA – Quem te meteu aí? SEMICÚPIO – O velho, por eu ser metediço. SEVADILHA – Pois como foi? SEMICÚPIO – Já me não lembra, que eu tenho memória de galo. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 102 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Anda cá para fora. SEMICÚPIO – Não posso, sem tu me enxotares daqui. SEVADILHA – Como não podes, se eu sei que muito pode o galo no seu poleiro? SEMICÚPIO – Isso seria se o velho me não desasara. SEVADILHA – Não sabes o bem que me pareces nessa capoeira! Estás guapo! Estás frança! SEMICÚPIO – Sim, estou frança, porque estou feito galo. SEVADILHA – Pois dá-me das tuas penas para um regalo. SEMICÚPIO – Pois tu te regalas com as minhas penas!! SEVADILHA – Não, mas folgo de ver-te feito alma em pena. SEMICÚPIO – Que fará, se souberas que estou todo coberto de penas vivas! Ora anda, Sevadilha, tira-me de mais penas. Cantam Semicúpio e Sevadilha a seguinte Ária a duo SEVADILHA Meu frangainho topetudo, como é galantinho! Que lindo que está! SEMICÚPIO Minha bela malfazeja, caí na esparrela; liberta-me já. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 103 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA Coitada da pila, pila, pila, pila, que te hão-de pilar. SEMICÚPIO Acode-me, filha, que estou há meia hora a cacarejar. AMBOS Que triste cantar é o cacarejar! SEVADILHA Mas não te agastes, que eu vou-te a soltar. SEMICÚPIO Vem já, que não posso mais tempo penar. AMBOS Que é pena, que é mágoa que uma ave de pena não possa voar. SEMICÚPIO – Anda; deita-me pela porta fora, ainda que seja aos coices. (Vai-se) SEVADILHA – Ora vamos. (Vai-se) Entra D. Fuas D. FUAS – Para este quintal ou jardim ou o que for me disse Fagundes viera D. Nise a regar a sua manjerona; mas, enquanto ela não vem, me esconderei atrás deste canteiro de alecrim, pois da manjerona não quero auxílios para encobrir-me dos argentados esplendores da Lua, que tão clara se ostenta esta noite, talvez avisando-me, na clara inconstância de seus raios, a variedade de D. Nise. (Esconde-se da banda do alecrim) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 104 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Entra D. Gil D. GILVAZ – Grande temeridade foi a minha, pois, sem avisar a D. Clóris, me expus a penetrar os quartos desta, com o perigo de me encontrar D. Lancerote; mas sem dúvida Clóris virá a este seu jardim a namorar o seu alecrim; e assim, escondido nas sombras destas plantas... Mas ai, que é manjerona! Perdoa Clóris, que esta acção foi um acaso, e não eleição! (Esconde-se da banda da manjerona) Aparecem D. Nise e D. Clóris, cada uma pela sua parte, com aguadores na mão, regando e cantando o seguinte: D. NISE Sois no céu de Flora, manjerona bela, não só verde estrela, mas luzida flor. D. CLÓRIS Alecrim florido, que de Abril na esfera sois na Primavera fragrante Primor. AMBAS Esta pura neve, que tributa Flora, são risos da aurora, e lágrimas de amor. Recitado D. NISE Mas que vejo? Ai de mim! Quem, arrogante, da manjerona usurpa o ser fragrante? D. GILVAZ Quem, ó Nise, escondido amante espera o Sol que adoro nesta verde esfera? (Sai) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 105 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS Pois, traidor, como assim tirano intentas roubar-me a Nise, que meu peito adora? (Sai) E tu, falsa, inimiga... Mas ai, triste, que mal a tanta pena a dor resiste! D. CLÓRIS E tu, falso D. Gil, que em torpe insulto buscas a manjerona, amante oculto, deixa-me, fementido... D. GILVAZ Atende, ó Clóri, que sem causa fulminas teus rigores, quando em puros ardores nas chamas do alecrim feliz me abraso. D. NISE Sem motivo, D. Fuas, me criminas, porque eu firme.. D. GILVAZ E eu constante... D. GILVAZ e D. NISE Fiel te adoro e te busco amante. Ária a 4 D. GILVAZ Atende, ó Clóri, atende verdades de quem sabe ser firme em te adorar. D. CLÓRIS Suspende, infiel, suspende injúrias de quem sabe jamais te acreditar. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 106 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS Nise ingrata, infiel amigo, cesse a bárbara indecência, que a evidência não se pode equivocar. D. GILVAZ e D. NISE Pois tu só, querida prenda. D. FUAS e D. CLÓRIS Já não creio os teus enganos. D. GILVAZ e D. NISE Nas purezas do meu peito felizmente viverás. D. FUAS e D. CLÓRIS Nos rigores de meu peito teu castigo encontrarás. TODOS Mas, ó cego amor tirano, como posso em tanto dano teu estrago idolatrar? Chega Fagundes FAGUNDES – Já acabaram de cantar? Pois agora entrem a chorar. D. CLÓRIS – Porquê, Fagundes? FAGUNDES – Porque o Senhor seu tio diz que logo vem ao quintal, afirmando que há ladrões em casa; e diz que se não há-de deitar esta noite, ainda que faça rosa divina. D. GILVAZ – Aonde estará Semicúpio? FAGUNDES – Não aparece; Senhores, escondam-se, e não digam ao depois que duro foi, e mal se cozeu. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 107 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. NISE – Metam-se nesta capoeira entretanto. D. GILVAZ – E que remédio, já que Semicúpio não aparece? D. FUAS – A necessidade sabe unir a quem se deseja separar. Nise cruel, eu me escondo na capoeira, que só o lugar das penas é o centro de um amante infeliz. (Mete-se na capoeira) D. GILVAZ – Quem serve a Cupido, às vezes é leão, às vezes galinha. (Mete-se na capoeira) FAGUNDES – Ah, Senhores! Não me esmaguem os ovos de uma galinha, que aí está de choco. Aparecem D. Tibúrcio e Sevadilha SEVADILHA – Senhor, não me persiga! Olhem o diabo do homem! D. TIBÚRCIO – Aí no quintal te quero. Mas aqui está Clóris e Nise. Remediarei o negócio. Esta moça faz zombaria de mim; deixa-me tu casar, que eu te porei a caminho. D. CLÓRIS – Que é isso, primo? Como, estando doente e tão perigoso, vem a estas horas ao sereno? D. TIBÚRCIO – Que há-de ser, se vocês não sabem ensinar esta rapariga, pois lhe digo que não faça às avessas? De sorte que me fez vestir e sair atrás dela, como desesperado das perrices que me faz. D. NISE – Tu não queres, Sevadilha, senão ser descortês a meu primo? FAGUNDES – Vossas mercês não querem crer que se há-de fazer desta moça a peste, fome e guerra. SEVADILHA – Para que estamos com arcas encoiradas? O Senhor D. Tibúrcio anda-me ao sucário e não me deixa uma hora nem instante. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 108 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. TIBÚRCIO – Cal'-te mentirosa! FAGUNDES – Isso tem ela, que levanta um testemunho como quem levanta uma palha. D. CLÓRIS – Não nos importa essa averiguação; só digo, Senhor D. Tibúrcio, que parece muito mal estar vossa mercê aqui connosco a estas horas, e que pode vir meu tio e achar-nos com vossa mercê; que, suposto seja primo e com tentações de noivo, sempre o recato de decência se deve conservar; e assim, lhe pedimos em cortesia se vá para o seu quarto. SEVADILHA – Ande; vá despejando o beco. D. TIBÚRCIO – Nem eu quisera que meu tio me achasse aqui, por nenhum modo. Mas, coitado de mim, que ele lá vem! Tomara que me não visse! SEVADILHA – Pois esconda-se nessa capoeira. D. TIBÚRCIO – Dizes bem. D. CLÓRIS – Estás louca, Sevadilha? Meu primo há-de-se lá meter numa capoeira? Isso não! D. TIBÚRCIO – Não importa, que para conservar o seu recato me meterei na parte mais imunda. (Entra na capoeira) D. NISE – Estamos perdidas, que lá se encontra com os dois! Que fizeste, maldita? SEVADILHA – Eu bem sei o que fiz: verão que peça lhe prego! D. GILVAZ – Este deve ser Semicúpio. És tu, Semicúpio? D. TIBÚRCIO – Qual Semicúpio? Sou semibala para ele. Quem está aqui? Ó Sevadilha, abre-me a porta, que eu quero sair, corra a água por onde correr! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 109 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEVADILHA – Cale-se, que aí vem o velho. D. FUAS – Que tal me suceda! D. GILVAZ – Estou tremendo! D. NISE e D. CLÓRIS – Estamos perdidas! Vêm D. Lancerote com uma luz na mão, e Semicúpio vestido de ministro com vara na mão SEMICÚPIO – Não se assustem, minhas Senhoras, que isto não é mais do que uma diligência. D. LANCEROTE – Vossa mercê poupou-me o trabalho de o ir procurar de manhã, para lhe entregar um ladrão que tenho preso naquela capoeira. SEMICÚPIO – A isso mesmo venho, que já tive quem disso me avisasse. D. NISE – Que será isto? (Aparte) D. CLÓRIS – São infortúnios meus. (Aparte) FAGUNDES – Demos com o pé na peia. (Aparte) SEVADILHA – Folgo, por amor de D. Tibúrcio! (Aparte) SEMICÚPIO – Hoje todos hão-de mamar o chasco, que a ninguém me hei-de dar a conhecer. Ora, meu Senhor, como foi este caso? D. LANCEROTE – Suponha vossa mercê que, acabada uma junta de médicos, que vieram assistir a meu sobrinho, sendo já quase noite, estando eu assentado junto daquela manjerona, que não me deixará mentir, veio descendo um homem por uma corda; e, cuidando que eu era poial, me pôs o pé no cachaço. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 110 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Isso foi o mesmo que pôr o pé no pescoço. Não há maior desaforo! D. LANCEROTE – Assustei-me, não há dúvida, quando me vi daquela sorte oprimido; mas, tornando a mim, fui sobre ele e, conhecendo que era ladrão, o prendi nessa capoeira, donde a perspicaz diligência de vossa mercê saberá melhor obrar do que eu falar. SEMICÚPIO – E como conheceu vossa mercê que era ladrão? D. LANCEROTE – Pela cara, que era a mais horrenda que meus olhos viram. SEMICÚPIO – Estou já desenganado que sou feio. (Aparte) D. LANCEROTE – Ande vossa mercê e verá. SEMICÚPIO – Ah, sô ladrão, saia cá para fora. D. FUAS – Vossa mercê vem enganado, porque eu... (Sai) Há maior desgraça?... Sou um homem bem-nascido. SEMICÚPIO – É D. Fuas! Quem me dera ver a D. Gil, que é o que cá me traz! (Aparte) D. LANCEROTE – Senhor, este não é o ladrão que eu encerrei. SEMICÚPIO – Já se vê que este não é tão feio como vossa mercê diz. Vejamos se está lá mais algum! Oh, cá está mais outro! Venite ad cam para foram! Ai, que é D. Gil! Já estou descansado! (Aparte) D. LANCEROTE – Também não é este o ladrão que eu aqui encerrei. D. GILVAZ – Claro está que não sou eu, pois eu, graças a Deus, não necessito de furtar. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 111 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – E que faziam vossas mercês aqui, se não eram ladrões? SEMICÚPIO – Essa inquirição me pertence a mim, que sou juiz privativo desta causa; e vossa mercê, meu amo, não se costume a mentir aos ministros de vara grossa, dizendo-me que o ladrão era feio e horrendo, quando vemos que estes Senhores são mui bem estreados. D. LANCEROTE – Senhor juiz, por vida minha, que era o mais feio homem que vi em meus dias. SEMICÚPIO – Cale-se! Não minta, que o hei-de mandar carregar de ferros! D. LANCEROTE – Ora, Senhor, torne vossa mercê a ver a capoeira, que, assim como achou dois, que eu não meti, talvez que ache o que eu encerrei. SEMICÚPIO – Já não tenho mais que buscar. D. LANCEROTE – Faça-me esse gosto, que pode lá estar ainda mais algum. SEVADILHA – Isso se perde? Veja, Senhor Doutor. SEMICÚPIO – Bem sei que vou debalde, mas eu vou. Mas não; entre vossa mercê, que me não quero encher de piolhos. Ande, que lhe dou patente de quadrilheiro. D. LANCEROTE – Eu vou, que quero agora apurar este enigma. Ai, que ele aqui está! Não o disse eu? SEMICÚPIO – Traga-o cá para fora. D. LANCEROTE – Ei-lo aqui. Mas que vejo! Não sois vós, meu sobrinho? D. TIBÚRCIO – Eu sou, por meus pecados. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 112 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Eu estou besta em besta. SEMICÚPIO – Este sim, que é o ladrão, que tem horrendíssima cara; todos três venham comigo. D. NISE – Ai, D. Fuas, que estou sem alma! (Aparte) D. CLÓRIS – Ai, D. Gil, que estou sem vida! D. LANCEROTE – Senhor, advirta que este é meu sobrinho. SEMICÚPIO – Por ser seu sobrinho, não pode ser ladrão? D. LANCEROTE – Senhor, ele mal podia descer pela corda, pois estava doente de cama. SEMICÚPIO – Pois acaso ele dorme na capoeira? D. LANCEROTE – Não, Senhor. SEMICÚPIO – Se não dorme, que fazia nela, feito socius criminis destes dois machacazes? D. LANCEROTE – Sobrinho, a que viestes à capoeira? D. TIBÚRCI0 – Eu, Senhor, estando... SEMICÚPIO – Chitom! Não me usurpe a jurisdição; já disse que estas averiguações só a mim me pertencem. Vamos andando ad cagarronem. D. LANCEROTE – Não importa: ide, sobrinho, que Deus é grande. D. TIBÚRCIO – A minha inocência me livrará. D. LANCEROTE – Como é a sua graça, meu Senhor? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 113 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – O bacharel Petrus in cunctis, juiz de fora daqui, com alçada na vara até o ar. D. LANCEROTE – Pois, Senhor bacharel Petrus in cunctis, saiba vossa mercê de caminho que também me furtaram um capote de saragoça em muito bom uso. SEMICÚPIO – Capote de saragoça é caso de devassa: notificados vossas mercês todos, para que em amanhecendo venham jurar a minha casa sobre este furto. D. LANCEROTE – E aonde mora vossa mercê? SEMICÚPIO – Junto a um D. Gilvaz, que mora... D. LANCEROTE – Já sei; eu perguntarei. SEMICÚPIO – Pois lá estará quem lhe responda. D. GILVAZ – Ai, que é Semicúpio! Agora reparo; já estou sem susto! (Aparte) SEMICÚPIO – Vamos; amanhã todos a minha casa, sob pena de prisão. (Vai-se) D. FUAS – Ai, Nise, que as tuas falsidades me puseram neste estado! (Aparte; vai-se) D. TIBÚRCIO – Tio, trate logo de soltar-me. (Vai-se) D. GILVAZ – Quem não deve, não teme. (Vai-se) D. LANCEROTE – Que mal sossegarei esta noite, indo preso meu sobrinho, se não aparecer o ladrão que eu prendi! Não há homem mais desgraçado! (Vai-se) D. NISE – Tal estou de sentimento, que até me faltam as lágrimas para o alívio. (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 114 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Eis aqui os alecrins e manjeronas. Coisas de ervas é para bestas. (Vai-se) SEVADILHA – E de que escapou Semicúpio! Também alguma alma boa rezou por ele. (Vai-se) D. CLÓRIS – Ai, D. Gil, que a tua desgraça será a causa de minha morte! (Vai-se) Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 115 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA Cena VII Sala, em que haverá um bufete, tinteiro, papel, pena e cadeiras; e entram D. Gilvaz e Semicúpio vestido ainda de juiz. D. GILVAZ – Não te perdoo o susto que me fizeste levar. SEMICÚPIO – Nem eu o chasco da capoeira, que me fez sofrer. D. GILVAZ – E agora, que determinas com essa devassa que queres tirar? SEMICÚPIO – Logo verá. D. GILVAZ – E porque não soltas a D. Fuas e a D. Tibúrcio que estão fechados naquele quarto escuro? SEMICÚPIO – Não poderei também ter meus segredos, sem que ninguém o saiba? O certo é que, como os trouxemos às escuras, entendem fixamente que estão em rigorosa prisão. Mas aí vem gente, e vossa mercê faça vezes de escrivão. D. GILVAZ – Aí parou uma sege. Se serão elas? SEMICÚPIO – Lá está quem as há-de encaminhar. Sedete, que aí vem subindo a primeira testemunha. Entra D. Lancerote D. LANCEROTE – Senhor, aqui estamos todos à ordem de vossa mercê. SEMICÚPIO – Venham entrando um a um. D. LANCEROTE – Pois, Senhor, lembre-se do meu capote. SEMICÚPIO – Eu já tenho tomado isso a mim; vá descansado, que eu puxarei bem pela justiça, e farei quanto ela der de si. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 116 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. LANCEROTE – Não tenho mais que dizer. (Vai-se) D. GILVAZ – Homem, tu me tens atónito com as tuas indús- trias! SEMICÚPIO – Bem é que as reconheça. Ah, Senhor, esteja de meio perfil, para que não o conheça D. Nise, que lá vem. Entra D. Nise D. NISE – Venho morta. Nunca em tal me vi! SEMICÚPIO – Uma vez é a primeira! Sente-se, minha Senhora; desabafe-se; suponha que está em sua casa. D. NISE – Ai, Senhor! Não sei que respeito infunde a cara de um juiz, que faz titubear o mais valente coração! SEMICÚPIO – E mais eu, que pareço um Papiniano assanhado! Diga o seu nome. Vá lá escrevendo, Senhor escrivão. D. NISE – Chamo-me D. Nise Sílvia Rufina Fábia Lisarda Laura Anarda e... SEMICÚPIO – Basta, Senhora. E pode vossa mercê com todos esses nomes? D. NISE – Ainda faltam catorze. SEMICÚPIO – Visto isso, é vossa mercê a mulher mais nomeada que há no mundo. Que idade tem? D. NISE – Quinze anos escassos. SEMICÚPIO – Liberal andou a natureza: em tão poucos anos, tanta perfeição. E do costume? D. NISE – Não entendo. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 117 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Ponha lá que do costume jejua. Sabe quem furtou aquele capote ao Senhor seu tio? D. NISE – Presumo que foi um criado de D. Gilvaz, que entrou disfarçado a vender alecrim. SEMICÚPIO – Tenho largas notícias desse criado, e me dizem que é ardiloso quantum satis. D. NISE – Isso é de pasmar! SEMICÚPIO – E sabe se aqueles homens da capoeira seriam ladrões? D. NISE – Não, Senhor, porque um era D. Gil, e outro D. Fuas, que ambos... SEMICÚPIO – Diga; não se faça rubicunda. D. NISE – Senhor, os ditos homens vieram por causa de amor; e, como veio meu tio, se esconderam na capoeira. SEMICÚPIO – Rapaziadas! Ora ande; vá-se aí para dentro e não faça outra. Seja sisuda e virtuosa, que assim manda o direito: honeste vivere. D. NISE – À obediência de vossa mercê. (Vai-se) D. GILVAZ – Homem, acabemos com isso; venha D. Clóris, por quem estou suspirando. Entra Fagundes FAGUNDES – Muito bons dias, meu Senhor. SEMICÚPIO – Chegue-se para cá. Olhe para mim. Vossa mercê, a meu ver, tem cara de testemunha falsa, ou eu me engana- rei. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 118 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Serei o que vossa mercê quiser. SEMICÚPIO – Como se chama? FAGUNDES – Ambrósia Fagundes Birimboa Franchopana e Gregotil. SEMICÚPIO – Isso são nomes, ou alcunhas? FAGUNDES – Será o que vossa mercê for servido. SEMICÚPIO – Casada, ou solteira? FAGUNDES – Nem casada nem solteira; assim-assim. SEMICÚPIO – Assim, como? FAGUNDES – É que tenho o marido no Brasil há quarenta e sete anos. SEMICÚPIO – De que anos casou? FAGUNDES – De quarenta justos, que os fui fazer à porta da igreja. SEMICÚPIO – Que anos tem? FAGUNDES – Vinte e cinco bem puxados. SEMICÚPIO – Não é nada: casou de quarenta, tem o marido no Brasil há quarenta e sete anos, e diz que tem vinte e cinco de idade! Vá-se daí, bêbada, falsária, que a hei-de amarrar a uma escada e deitá-la por essa janela fora. FAGUNDES – Eu não sei contar, senão pelos dedos. Ouça vossa mercê, que eu quero dar a minha quartada. SEMICÚPIO – A quartada dei eu. Ande; não cuide que se há-de lavar com uma bochecha de água; vá-se para dentro. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 119 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA FAGUNDES – Eu vou rebolindo. (Vai-se) D. GILVAZ – Acaba já com isso. Entra Sevadilha SEVADILHA – Sou criada de vossa mercê. SEMICÚPIO – Ai, que já a justiça começa a abrir os olhos para ver a Sevadilha! Eu encosto a vara, que estou varado. Menina, como é o seu nome? SEVADILHA – Sevadilha, sem mais nada. SEMICÚPIO – Que anos tem? SEVADILHA – Sete mui fanados. SEMICÚPIO – Só sete? Não sois má carinha para um sete levar. Casada, ou solteira? SEVADILHA – Estou para casar com um criado daqui do seu vizinho D. Gil, que, ainda que feio, é mui carinhoso. SEMICÚPIO – Esse foi o que furtou o capote a seu amo? SEVADILHA – Esse mesmo. SEMICÚPIO – Logo, é ladrão? SEVADILHA – É o vício que tem; que, se não fora isso, era um moço perfeito. SEMICÚPIO – Ai, Sevadilha, que esse ladrão... SEVADILHA – Que tem, meu Senhor? Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 120 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Nada, nada! E por um triz, que não deponho a judicatura e perco o juízo! Assina-te aqui em branco, que eu estou pelo que disseres. SEVADILHA – Eu não sei escrever. SEMICÚPIO – Porém, sabes muita letra! Vai-te aí para dentro. A rapariga me pôs a ver jurar testemunhas. SEVADILHA – Eu já vi uma cara que se parecia com a deste juiz! (Vai-se) SEMICÚPIO – Entre quem falta. D. GILVAZ – Resta D. Clóris. Semicúpio, perdoa, que hei-de falar-lhe. SEMICÚPIO – Faça o que lhe digo e não tenha graças comigo. D. GILVAZ – Como estás inchado! SEMICÚPIO – Se queres ver o vilão, mete-lhe a vara na mão. Entra D. Clóris D. CLÓRIS – Senhor juiz, logo declaro que eu de furtos não sei nada, e só que D. Gil foi um dos da capoeira e está inocente, por- que... D. GILVAZ – Porque foi preciso obedecer-te, querida Clóris. (Levanta-se) D. CLÓRIS – Que vejo! D. Gil?! Cobre alentos o meu coração. D. GILVAZ – Não te admires dos sucessos de meu amor, que os influxos do teu alecrim sabem triunfar dos maiores impossíveis. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 121 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA SEMICÚPIO – Aliás, que um Semicúpio sabe fazer possíveis as maiores dificuldades. Aí tem, Senhor D. Gilvaz, o seu bem de portas adentro! Tenho cumprido a minha palavra; e, se não está bem servido, busque quem o faça melhor. D. CLÓRIS – Uma vez que me vejo em tua casa, não porei mais em contingências a minha fortuna. SEMICÚPIO – Isso mesmo! Quem disse casa, casa. D. LANCEROTE – Que é isto, Senhor Doutor? As testemunhas vêm e não tornam? SEMICÚPIO – Já está concluída e sentenciada a devassa. D. LANCEROTE (entrando) – Quem são os culpados? SEMICÚPIO – As Senhoras suas sobrinhas, que são umas finas ladras. D. LANCEROTE – Minhas sobrinhas ladras?! De que sorte? SEMICÚPIO – Desta sorte. Vamos saindo cá para fora! Vai Semicúpio trazendo a todos para fora e diz o seguinte: SEMICÚPIO – Porque, vistos estes sucessos, consta que a Senhora D. Nise furtou o coração do Senhor D. Fuas, e a Senhora D. Clóris o de D. Gil; e assim é de razão que lho restituam, casando com eles, porque no matrimónio se entregam os corações com as vontades. D. FUAS – Em cumprimento da sentença, eu a executo pela minha parte igualmente alegre, e admirado desta rara invectiva de Semicúpio. D. NISE – É de justiça esta acção. Que alegria! Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 122 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. GILVAZ – D. Clóris, dá-me o coração, que me tens na mão, que te peço. SEMICÚPIO – Isso é falar com o coração nas mãos. Senhora D. Clóris, case-se, mas não se arrependa. D. CLÓRIS – Senhor D. Gil, o meu coração lhe entrego, em recompensa do que lhe roubei, se acaso é furto o que se dá por von- tade. SEMICÚPIO – D. Tibúrcio, tenha paciência e pague as custas, de permeio com o Senhor D. Lancerote, já que foram tão basbaques, que se deixaram enganar de mim. Semicúpio, tantos de tal mês, etc. D. TIBÚRCIO – Senhor tio, seja-lhe para bem, que aqui já não há para onde apelar. D. LANCEROTE – Nem eu me posso agravar, quando o matrimónio é o ditoso fim destes excessos. SEVADILHA – Quem casa a tantos, porque se não casa a si? SEMICÚPIO – Não me fales em remoques. Já sei, Sevadilha, que queres casar comigo; e, pois a sentença passou em causa julgada, demos as mãos e a boa vontade. SEVADILHA – Oh, discreta mão que escreveu tal sentença! FAGUNDES – E que há-de ser de mim, Semicúpio, que neste negócio também dei minha penada? SEVADILHA – Em vindo a frota, virá teu marido. D. GILVAZ – E, pois te consegui, galharda Clóris, publique a fama os vivas do alecrim, que triunfou de tantos impossíveis. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 123 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA D. FUAS – Tende mão, que não é justo que roubeis à manjerona a parte que lhe toca no aplauso que merece; pois, à sombra de suas folhas, conseguistes muita parte da dita que possuís. FAGUNDES – Isso é verdade; se não, diga-o a escada e a caixa. D. TIBÚRCIO – Foi boa caixa. D. GILVAZ – Que importa que a manjerona abrisse os caminhos aos favores, se o alecrim serenava as tempestades na tormenta dos enleios? SEMICÚPIO – E, se não, diga-o também o fogo salvage, a medicina, a ministrice e a mãe de duas filhas. D. TIBÚRCIO – Pois que vai, Senhor tio? É bico, ou cabeça? D. LANCEROTE – Paciência por força. D. CLÓRIS – Não se pode negar que venceu o meu alecrim, pois ele tocou a meta, pondo fim a nossos desejos. D. NISE – A manjerona só merece aplausos, porque deu princípio a este fim. SEMICÚPIO – Então, visto isso, venceu o malmequer, pois ele foi o meio entre o princípio da manjerona e o fim do alecrim. SEVADILHA – Pois viva o malmequer! D. GILVAZ – Tenho dito; venceu o alecrim. D. TIBÚRCIO – Se a eficácia das razões não basta a convencer-vos, esta espada fará confessar o triunfo da manjerona. SEMICÚPIO – Deixe estar a folha, que as da manjerona não são o Alcorão de Mafoma, para que se defendam à ponta de espada; e, pois estou feito juiz, pela autoridade que tenho declaro que ambas as plantas venceram o pleito, pois cada uma fez quanto Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 124 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA pôde. E, para que se acabem essas guerras do alecrim e manjerona, mando que os dois ranchos façam as pazes e se ponha perpétuo silêncio nesta matéria, sob pena de serem assuntos de minuetes e andarem por boca de poetas, que é pior que pelas bocas do mundo. TODOS – Pois viva o alecrim e viva a manjerona! SEMICÚPIO – E viva todo o bicho vivo! D. LANCEROTE – Vivamos todos, meu sobrinho. D. TIBÚRCIO – Essa é a verdade. SEMICÚPIO – E como não há triunfo sem aclamação; enquanto o coro não principia a festejar este aplauso, coroemos esta obra com as ramas da manjerona e alecrim. CORO D. NISE e D. FUAS – Viva a manjerona Perpétua no durar! D. CLÓRIS e D. GILVAZ – Viva o alecrim Feliz no florescer, TODOS – Viva a manjerona Viva o alecrim Pois que soube vencer, E a outra triunfar. D. NISE e D. FUAS – No templo de Cupido, Troféu de amor será. D. CLÓRIS e D. GILVAZ – Nas aras da fineza Em chamas arderá. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 125 © Porto Editora Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA TODOS – Viva a manjerona, Viva o alecrim, Pois que soube vencer, E a outra triunfar. Guerras do Alecrim e Manjerona António José da Silva 126