caderno de memórias coloniais CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS por isabela figueiredo TfTULo: Caderno de Memörias Coloniais, por Isabela Figueiredo copyright: © Angelus Novus e Isabela Figueiredo design: FBA capa: Olhar-te. Publicidade e Artes Graficas, Lda data de edicäo: 2010 isbn: 978-972-8827-69-4 DEPösiTO legal: 300946/09 4'ediqäo angelus novus, editora Rua da Fonte do Bispo, n° 136, Edificio Uniäo, 3° B 3030-243 Coimbra E-mail: geral@angelus-novus.com Reservados todos os direitos de acordo com a legislagäo em vigor. De cada vez que abria uma gaveta ou espreitava para dentro de um armário, sentia-me como um intruso, um ladrao devassando os locais secretos da mentě de um homem. A todo o momento esperava que o meu pai entrasse, parasse incrédulo a olhar para mim e me perguntasse que raio é que eu pensava que estava a fazer. Ndo me parecia justo que ele ndo pudesse protestar. Eu ndo tinha o direito de invadir a sua privacidade. Paul Auster, Inventar a Soliddo A memoria humana é um instrumenta maravilhoso mas falivel. (...) As recordagöes quejazem dentro de nós näo säo gravadas em pedra; näo só tém a tendencia para se apagarem com os anos, como tam-bém é frequente modificarem-se, ou inclusivamente alimentärem, incorporando delineamentos estranhos. Primo Levi, 05 que Sucumbem e os que se Salvám 7 Disse alto, com voz forte e jovial, muito perto da mi-nha cabega: -Olá! Era um olá grande, impositivo, ao qual me seria impossível náo responder. Reconheci a sua voz, e, ain-da no sono, pensei, náo poděs ser tu; tu já morreste. E abri os olhos. Lourenfo Marques, 1960 9 1. Manuel deixou o seu coracáo em África. Também conhe-qo quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, trés machambas, bem como a conta no Banco Nacionál Ultramarino, já con-vertida em meticais. Quem é que náo foi deixando os seus múltiplos cora-cóes algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta. 11 Os brancos iam äs pretas. As pretas eram todas iguais e eles näo distinguiam a Madalena Xinguile da Emilia Cachamba, a näo ser pela cor da capulana ou pelo feitio da teta, mas os brancos metiam-se lá para os fundos do canico, com caminho certo ou näo, para ir ä cona das pretas. Eram uns aventureiros. Uns fura-vidas. As pretas tinham a cona larga, diziam as mulheres dos brancos, ao domingo ä tarde, todas em conversa intima debaixo do cajueiro largo, com o bandulho atafulhado de camaräo grelhado, enquanto os maridos saiam para ir dar a sua volta de homens, e as deixavam a desenferrujar a lingua, que as mulheres precisam de desenferrujar a lingua umas com as outras. As pretas tinham a cona larga, mas elas diziam as partes baixas ou as vergonhas ou a badalhoca. As pretas tinham a cona larga e essa era a explicacäo para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chäo, onde quer que fosse, como os animais. A cona era larga. A das brancas näo, era estreita, porque as brancas näo eram umas cadelas fáceis, porque ä cona sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade, que elas eram muito estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isto das outras. Limitavam-se ao cumprimento das suas obrigacöes matrimoniais, sempre com sacrificio, pelo que a fornicacäo era dolorosa, e evitável, por isso é que os brancos iam ä cona das pretas. As pretas näo eram sérias, as pretas tinham a cona larga, as pretas gemiam alto, porque as cadelas gostavam daquilo. Näo valiam nada. 13 As brancas eram mulheres sérias. Que ameaca consti-tuía para elas uma negra? Que diferenca havia entre uma negra e uma coelha? Que branco perfilhava filhos a uma negra? Como é que uma negra descale a, de teta pendurada, vinda do canico a saber dizer, sim paträo, certo paträo, dinheiro paträo, sem bilhete de identida-de, sem caderneta de assimilada, poderia provař que o paträo era o pai da crianca. Que preta é que queria levar porrada? Quantos mula-tos conheciam o pai? Os brancos entravam no canico e pagavam cerveja, tabaco ou capulana a metro ä negra que lhes apetecesse. A bem ou a mal. Depois abotoa-vam a braguilha e desapareciam para as suas honestas casas de família. Como poderia alguém saber de onde eram, e como se chamavam? Os brancos mantinham a mulher algures no centro da cidade, ou na Metropole. E para aí seguiam. As incursóes sexuais pelo canico näo assombravam o seu futuro, porque uma negra näo tinha poder para reclamar paternidade. Ninguém lhe daria crédito. Mas um branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e passaria a ser aceite, com reservas, mas aceite, porque era mulher do Simôes, e por respeito ao Simôes... Era frequente no caso dos canti-neiros e machambeirôs afastados da cidade, homens re-lativamente ä parte na sociedade colonial decente, que mais cedo ou mais tarde se cafrealizavam. Para urna branca, assumir uma uniäo com um negro, implicava proscricäo social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado. O meu pai revoltava-se quando encontrava urna branca com um negro, já depois do 25 de Abril, em Portugal. Fitava os pares como se visse o Diabo. Eu dizia-Ihe pára de olhar, o que é que te interessa? Respondia-me que eu näo sabia, que um preto nunca poderia tratar bem urna branca, como ela merecia. Era outra gente. Outra cultura. Uns cäes. Ah, eu näo entendia. Ah, eu näo pódia compreender. Ah, eu era comunista. Como é que tinha sido possível eu dar em comunista? 14 15 Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-se. Uma pessoa que observasse bem o meu pai, os olhos a sorrir simultaneamente com a boča, a sensua-lidade viril das máos, bracos, pés, pernas... uma pessoa que escutasse a maliciosa rapidez da sua resposta, o sentido de humor permanente e dúbio desse gigante percebia que aquele homem gostava de foder. Eu náo sabia, mas sabia. Quando o meu pai me levantava no ar como se fosse uma coisa, ou me transportava ás ca-valitas, sentia-me fraca perante a forca total, dominada, possuída por ela. Eu nunca percebi nada sobre isso de foder até aos meus sete anos, ou melhor, conscientemente nunca percebi. Desconhecia a existéncia e depois o significa-do do verbo e náo fazia qualquer ideia sobre como se realizava a procriacao. Mesmo muito depois dessa idade, pensava que as criancas nasciam porque os homens e as mulheres se casavam e, nesse momento, Deus punha as mulheres "de bebé". Náo dizia "grávidas". Também náo conhecia essa palavra, e a primeira vez que a disse, a minha máe deu-me uma bofetada para eu aprender a náo dizer palavroes. A sexualidade do meu pai foi uma questáo que só me surgiu, e palidamente, depois dos sete. A čerta altura da noite percebi que os meus pais fechavam a porta do quarto e a minha máe parecia chorar. Houve uma noite em que me levantei, Ihes bati á porta e disse, "pára de fazer isso á máe". Náo sabia o que faziam para que a minha máe sofresse assim, mas náo queria que aconte-cesse, muito menos sob as máos do meu pai, e percebia 17 que o que quer que fizessem, se era ä porta fechada, näo podia ser sadio. Mais tarde, apareceu um livro volumoso debaixo da cama dos meus pais. Era do Dr. Fritz Khan e o titulo tinha a palavra "sexual". Quando o abri observei que continha ilustracöes de homens e mulheres nus com pelos e orgäos sexuais visiveis. Havia muitas ilustracöes absolutamente vergonhosas que me abstenho de revelar. Li o livro deita-da a toda a largura da cama dos meus pais, com o queixo apoiado na borda do colchäo e os bracos caidos para virarem as päginas do livro, no chäo. Quando escutava os passos da minha mäe, fazia deslizar o volume proibi-do para debaixo da cama e simulava uma situacäo em que me encontrava a 1er qualquer outro livro inofensivo. Estava tudo pensado, mas eles perceberam a certa altura, porque o Fritz deixou de estar debaixo da cama e deu-me algum trabalho a descobri-lo escondido no guarda-roupa. Tirar o livro do guarda-roupa para voltar a esconde-lo representava um risco maior. Mas li-o todinho, apesar das dificuldades - a minha mäe tinha demasiado que fazer no quintal! - e fiquei a perceber que o sexo era trabalhoso, eventualmente uma porcaria, embora hou-vesse interessantes potencialidades a explorar. O maior choque que sofri com a consciencia da sexua-lidade paterna aconteceu no dia em que o vi, com os meus olhos de dez anos, cobicar uma rapariga que pas-sava, e atirar-lhe um piropo. Foi na bomba de gasolina que ficava ä saida de Lourenco Marques, logo a seguir ao entroncamento da Matola. Estou a ve-lo fora da car-rinha, braco apoiado na janela, esperando a vez que o preto viesse meter gasolina - e fazer aquela figura. Que vergonha! O meu pai! Que vergonha! A minha mäe diz agora que percebia perfeitamente quando ele andava com outras. Mas fazia de conta que näo peicebia. Calava-se. Que opcäo havia?! Há uns anos, contou-me que a polícia chegou a ir lá a casa para falar com ele sobre certo caso em que teria idp fazer uma instalacäo numa casa particular e se teria metido com a dona, uma mulher casada. Imagino a cara da minha mäe e a do polícia "olhe, minha senho-ra, queremos fazer umas perguntas ao seu marido sobre umä queixa apresentada contra ele". E também estou a ve-lo, sorridente, sedutor, ufano, lancar umas indi-rectas ä senhora, sozinha em casa. Ela até pode ter-lhe dado corda e ele avancado com autorizacäo, nunca se saberá. Ou pior, ter avancado sem corda. Conhecendo o meu pai, parece-me menos provável. Ele gostava de mulheres, de usar com elas a malicia do discurso, os duplos sentidos, tinha gozo no jogo da seducäo, e deve ter comecado por ai. Quero acreditar que deva ter sido assim. Mas dessa vez saiu-se mal. Recordo as conversas ouvidas entre mulheres. Eu näo tinha idade para entender, pensavam elas, por isso fala-vam sobre o que ele fazia nos bairros indigenas antes da chegada da minha mäe, e os herdeiros mulatos que por lá teria deixado antes de casar. As suas surtidas as palhotas teriam sido bastante frequentes. Porque o meu pai, já se sabe, gostava de foder, porque as esposas de colono, quando se juntavam, falavam das cabras das pretas e da facilidade com que tinham filhos uns atrás dos outros, porque eram muito abertas, e também gostavam... e aludiam sub-repticiamente ao que se dizia serem as características dos órgäos sexuais masculinos do negro e voltavam ao tema de que as negras gostavam 18 19 de fazer aquilo... e esta conversa sempře me cheirou a esturro. Uma branca näo admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E näo admitir era uma garantia de serie-dade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida, ou por medo. E algumas tal-vez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, a abrir as pernas, a ser largas. ** fk : ' J jí* ě 1 -Íp-T 21 Ele sentia prazer em viver e gostava de comer, beber e foder, isso já expliquei. Lourenco Marques, na década de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentracäo com odor a caril. Em Lourenco Marques, sentavámo-nos numa bela esplanada, de um requintado ou descontraído restaurante, a qualquer hora do dia, a saborear o melhor uisque com soda e gelo, e a debicar camaröes, tal como aqui nos sentamos, ä saída do emprego, num snack do Cais do Sodré, forrado a azulejos de segunda, engolindo uma imperial e enjoando tremocos. Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhes gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no servico e chamado paträo. Digo nós, porque eu estava lá. Ne-nhum branco gostava de ser servido por outro branco, até porque ambos antecipavam maior gorjeta. O meu pai, a quem coube a missäo de electrificar a Lourenco Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara. Lembro-me bem de o escutar ä mesa, tagarelando sobre a questäo, com a minha mäe, relativamente a determinados brancos que lhe vinham pedir emprego, e que seriam uma boa aquisicäo, pois, sim senhor, mas o ordenado dobrava ou triplicava, e näo, preferia andar ele sozinho a tomar conta das suas inumeras obras, por onde deixava os seus inumeros pretos. Tinha doze no prédio da 24 de Julho, mais vinte no Sommershield, mais sete numa vivenda na Matola... e corria, o dia inteiro, a cidade, de um lado ao outro, a controlar o trabalho da 23 pretalhada, a p6-los na ordem com uns sopapos e uns encontroes bem assentes pela mao larga, mais uns pon-tapes, enfim, alguma porrada pedagogica. Um branco saia caro, porque a um branco nao se podia dar porrada, e nao servia para enfiar tubos de elec-tricidade pelas paredes e, depois, cabos electricos por dentro deles; um branco servia para chefe, servia para ordenar, vigiar, mandar trabalhar os preguicosos que nao faziam nenhum, a nao ser a forca. O que se dizia a mesa do jantar era que o sacana do preto nao gostava de trabalhar, ganhava o suficiente para comer e beber na semana seguinte, sobretudo beber; depois, ficava-se pela palhota estiracado no pulguedo da esteira, a fermentar aguardente de caju e de cana, enquanto as pretas traba-lhavam para ele, com os filhos as costas. Os brancos respeitavam estas mulheres do negro, muito mais que os seus homens. Era frequente b meu pai dar dinheiro extra as mulheres, quando os ia procurar as palhotas, e os encontrava perdidos de bebados. Dinheiro para elas comerem, para darem aos filhos. O negro estava abaixo de tudo. Nao tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Esta era a ordem natural e inquestionaveldas relacoes: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, ja la estava o meu pai; chegava de brancos! Alem de mais, empregados brancos traziam vicios; um negro, por muitos vicios que ganhasse, havia sempre forma de lhos tirar do corpo. Em Mozambique nao havia televisao e, portanto, nao suportavamos o ruido do telejornal, nem dos programas da manha, da tarde e da noite. Havia os radios, que, em Portugal, se chamavam telefonias, e que todos empu-nhavam para ouvir a emissora local, ou a da metropole, em onda curta, essa muito mais protocolar, dando outro estatuto a quern a escutasse; até porque era preciso um rádio melhor, nao um mero transistor minusculo, ou um Xirico. Havia pelo menos uma emissora para os negros, que falava a sua lingua e tocava a sua música, e que nenhum branco ouvia, embora a tolerasse nas obras, porque a negralhada ia trabalhando entretida com a marrabenta e mais o batuque e a ladaínha incompreensivel do landim falado, e os cabos e fios iam progredindo pelas entranhas dos edificios, como tinha de ser. Em Lourenco Marques, as pessoas sentavam-se no restaurante, de preferéncia no exterior, porque as ventoi-nhas no interior eram inúteis, e o ar condicionado, um luxo, conversando, durante prolongadas horas, sobre o fait divers colonial; bebiam do bom e do melhor e, eventualmente, fodiam, no final, em casa ou fora dela, legitimamente ou nao. Em Mozambique era fácil um branco sentir prazer de viver. Quase todos éramos patroes, e os que nao eram, ambicionavam sé-lo. Havia sempre muitos pretos, todos á partida preguicosos, burros e incapazes a pedir trabalho, a fazer o que lhes ordenássemos sem levantar os olhos. De um preto dedicado, fiel, que tirasse o boné e do-brasse a espinha á nossa passagem, a quern se pudesse confiar a casa e as criancas, deixar sozinho com os nossos haveres, dizia-se que era um bom mainato. Arranjava-se-lhe farda de caqui, chinelos, dava-se-lhe da nossa comida, comia na mesa do quintal ou na 24 25 é&ÉM da cozinha, e quando a roupa do paträo ficava coca-da, oferecíamos-lha. Ninguém queria perder um bom mainato. Os pretos comecavam a pedir trabalho äs nossas por-tas desde criancas, rapazes e raparigas. Batiam ao portäo, abríamos, e apareciam criancas esfarrapadas, descalcas, ranhosas e esfomeadas de farinha dirigindo-nos as pou-cas palavras que conheciam, "trabalho, paträo". Criancas da minha idade ou mais novas. Abria a porta aos pedin-tes e ficava a olhá-los sem palavras. Näo compreendia. Chamava a minha mäe, que rapidamente os enxotava, "vai-te embora, aqui näo há nada!", e eu seguia para o meu quarto e continuava a ler Dickens ou o que quer que fosse. Näo compreendia. O prazer de ler um livro amortecia humilhacöes, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Porque esse foi o problema. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal dištancia. Os livros podiam confer sordidez, malevolén-cia, miséria extrema, mas, a urn certo ponto, havia neles uma redencäo qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. O s livros mostravam-me que na terra onde vivia näo existia redencäo alguma. Que aque-le paraíso de interminável pôr-do-sol salmäo e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concen-tracäo de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existencia. Quem, numa manhä qualquer, olhou sem nitro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquan-to furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, 27 näo esquece esse siléncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependéncia e submissäo, sobrevivéncia e conspurcacäo. Näo havia olhos inocentes. 5. Foder. Essa descoberta tornou-se algo que me envergo-nhava e desejava. Tinha os tais sete ou oito anos. Numa das raras ocasiôes em que pude brincar fora do meu quintal, - o meu pai näo estava em casa e a minha mäe deve ter-se querido livrar do empecilho -lembro que voava num baloico improvisado num ramo de cajueiro, empurrada por um rapazito da vizinhanca, mais ou menos da minha idade. O cajueiro situava-se junto aos caboucos e paredes semi-erguidas de uma nova casa de colonos - e nunca de lá saiu, mesmo depois de concluída a construcäo. Ironicamente, era a casa da Dona Prazeres. O miúdo era obviamente branco, filho de vizinhos de confianca, gente boa da metropole; havia convivéncia. Perguntou-me, "Queres jogar a foder?" Jogar a foder?! Ora aí estava urna brincadeira que eu näo conhecia, nunca tinha jogado na escola e näo sa-bia mesmo como era. Devo dizer que o Luisinho tinha apenas urna vaga ideia, embora soubesse mais do eu. Era curiosa, portanto näo me passou pela cabeca recusar tal brincadeira. Perguntei-lhe como se fazia e ele esclare-ceu-me resumidamente, "despimo-nos e eu ponho-me em cima de ti". A coisa näo me pareceu muito ortodoxa, "despirmo-nos", "em cima de", mas aceitei sem proble-mas. Tinha curiosidade, e näo só. Pressenti ser algo que näo se podia fazer, portanto devia ser bestial e queria experimentar. Era curiosa, aventureira, era urna miúda sozinha que brincava com as formigas. O Luisinho avisou que era melhor irmos fazer aquilo para dentro da casa. Mas näo existia casa, apenas alguns 28 29 tijolos ja colocados ate a altura do que viriam a ser as janelas, nada de recto, apenas chao de terra vermelha. No interior desta estrutura em construcao existia ja divisao em compartimentos. Escolhemos o que viria a ser o espaco da casa-de-banho. Deve ter-nos parecido adequado a fisiologia da funcao. Era um espaco pequeno e dava para as traseiras da futura casa. E relevante que tenha-mos escolhido esse espaco mais pequeno, portanto mais fechado sobre nos, mais intimo, porque nenhum de nos sabia muito bem o que estava a fazer, o que era isso de fo-der. Mas intuiamo-lo. E foi muito simples. Despimo-nos completamente, eu deitei-me sobre a terra, exactamente como nos ensinavam que se devia dormir, pernas e bra-cos bem direitos, o Luisinho deitou-se nuzinho sobre mim, exactamente como nos ensinavam na escola que se devia dormir, e ali ficamos alguns minutos, nessa posicao de dificil equilibrio, conversando e "fodendo". Eu estava por baixo e podia ver a abertura ja existente onde se situariam as janelas. E, num apice de segundo, apercebo-me da figura do meu pai, oh, meu Deus, o meu pai, estou a ve-lo ainda hoje, debrucado nesse vago, com os antebracos pousados no tijolo, olhando para baixo, observando a cena, apercebendo-se da situacao e desa-parecendo rapidamente. Percebi tudo. Nessa fraccao de segundo levantei-me, derrubando o Luisinho, e agar-rando a minha roupa. No momento em que o meu pai deu a volta ao exterior da casa, entrou pela porta e me arrebatou pelo braco, estava o Luisinho ainda em pelota e eu ja meia vestida. Segundos antes da pancada, tinha ja a certeza absoluta que foder era proibidissimo. Senti durante muito tempo as violentas bofetadas do meu pai a arder no rosto e os golpes que espalhou pelo meu corpo; rosto, bracos, nádegas, costas, pernas. Onde caisse. Foi violento. Depois fechou o meu braco nas suas poderosas garras e voei para dentro do nosso quintal, onde me largou e pude fugir em direccao ao meu quarto, contendo lágrimas, ardendo, humilhada, pensando que a minha vida acabava. ali. Pior que a dor da pancada era a da humilhacao por ele me ter visto foder, me ter apanhado no pior dos pecados. Achei que nao era capaz de voltar a olhar para ele nem ele para mim, de sair do quarto. Mais tarde ouvi-o contar á minha máe, mas nem me recordo da sua resposta. Nunca, no resto da minha infáncia, da minha vida, qualquer um deles falou comi-go sobre o acontecido. É algo que náo existiu. Nesse dia longinquo de 1970 perdi a inocéncia, desco-bri o sexo, e comecei a sonhar que fodia com o Gianni Morandi enquanto ele me cantava Non son degno di te, I non ti merito piu. 30 31 Kle gostava de viver. Náo tinha medo de nada. Com ele tudo era possível. Tinha uma carrinha Bedford, branca, na qual trans-portava os materiais da electricidade; cabos, tubos, maquinaria. Na altura, só quem morava no mato é que tinha jipe. Quando decidia que íamos passear - e decidia-o mui-tas vezeš, porque era o que mais gostava de fazer - a minha máe tremia. Era certo que o passeio ia acabar tonnosco perdidos ou acidentados num qualquer fim de niundo, tendo de procurar, a pé, cantinas ou palhotas para pedir ajuda. Enterrávamo-nos na areia ou o carro gripava ao atravessar um riacho ou embatia numa pedra ou num buraco fundo e partia-se o eixo ou acabava-se a gasolina... Eu e a minha máe dizíamos-lhe "náo passa!". E ele, "vocés váo já ver!" E víamos! Daquele sítio em concreto víamos horas de paisagem! O meu pai metia-se pelo mato dentro e desencantava alguém, em alguma palhota, para vir empurrar, desenrascar o branco por uma gorjeta. Eu bendizia sempře essa gente recrutada á forca, que para mim surgia do meio das árvores como se viesse do céu. Saindo da cidade, os lugares podiam tornar-se selvagens e inabitados por quilómetros e quilómetros. Eu e a minha máe temíamos a noite, e só pensávamos em como sair dos apuros em que o meu pai nos metéra por ter descoberto uma estráda que "de certeza devia ir dar a qualquer sítio". Náo só raramente chegávamos ao tal sítio dos sítios, como nos enervávamos, acabando por náo aproveitar a paisagem com o espírito que se esperaria. 33 Era Africa, inflamante Africa, sensual e livre. Sentia--se crescer por debaixo dos pes. Era vermelha. Cheirava a terra molhada, a terra mexida, a terra queimada, e cheirava sempre. Nao e que eu nao apreciasse os passeios do meu pai, mas as criancas nao compreendem bem o espirito de aventura. Tinha medo. Gostaria que tivesse sido possivel o meu pai viver o suficiente para podermos repeti-lo na minha adulticia, mas nao sei se ele poderia regressar a Africa, apesar de ter sido a unica terra que amou. Nos dias que antecederam a sua morte ainda sonhava andar a fazer umas instalacoes nuns predios da "Sommershield". Tambem nos meus sonhos os caminhos ainda sao de , terra vermelha batida. 7. As mangas pesavam nas árvores, penduradas por fios verdes. Pesavam muito gordas, rosadas, levando os ramos a tocar o chäo. Da juncäo da manga a esse caule que a sustinha, escorriam gotas viscosas de resina transparente. As pretas vendiam mangas no chäo, em fila, no bazar de Lourenco Marques. As pretas vendiam tudo no chäo, em qualquer lado; estendiam uma capulana velha e faziam montinhos de tomate, de raizes, de mangas, de amendoim. Tudo o que as pretas vendiam tinha saido das terras que cultivavam, mas näo lhes pertenciam, e tudo era bom para comer. As pretas vendiam para comerem elas e os seus filhos e os homens, que nunca säo de ninguém. Um branco e um preto näo éram apenas de racas dife-rentes. A dištancia entre brancos e pretos era equiva-lente ä que existe entre diferentes espécies. Eles éram pretos, animais. Nós éramos brancos, éramos pessoas, seres racionais. Eles trabalhavam para o presente, para a aguardente-de-cana do "dia-de-hoje"; nós, para poder pagar a melhor urna, a melhor cerimónia no dia do nosso funeral. Uma branca näo vendia mangas a näo ser por grosso, a outros brancos que as distribuíssem. Uma branca näo vendia mangas no chäo, ä porta. Mas eu era uma colo-nazinha preta, filha de brancos. Urna negrinha loira. E a colonazinha negra que eu era vendia montezinhos de mangas do lado de fora do portäo da machamba. Trés mangas, com mais urna empoleirada no topo. Quatro mangas: urna quinhenta. Eu sabia que era barato, mas 34 35 convinha veneer a desconfianga dos negros que passavam a pe, vindos da Jornada, e se deparavam com a colona-zinha sentada no chao, de pernas cruzadas, tomando conta da pequena venda de mangas, que assentava sobre um caixote virado, servindo de banca para o negocio. Era preciso que o preco fosse muito atractivo para que ousas-sem perder o medo e aproximar-se da menina branca--negra como eles. "Quanto e?", perguntavam de longe. "Quinhenta", respondia. E entao eles vinham, hesitantes, surpreendidos, mas sorridentes. Lembro o sorriso grande dos negros. E compravam. Eram as melhores mangas da minha mangueira, multo gordas de sumo e carne, muito coloridas de rosa e salmao. So uma quinhenta. Quatro. Vender mangas ao portao, escondida da minha mae, era a desobediencia que preferia praticar. S 8. O preto chamava-se Manjacaze. Náo sei onde morava, se tinha mulher ou filhos, mas imagino que sim, que morasse numa palhota a duas ou trés horas de caminho de Lourenco Marques. Imagino que para pegar ás sete da manhá saísse da palhota ás cinco. E fizesse todo o caminho respirando a primeira neblina leitosa, rasteira ao cháo, depois o nascer do sol bravo e fresco áquela hora. Manjacaze era o eriado do prédio Lobato. Trazia para baixo todo o lixo dos sete andares do prédio, em grandes bidons que tinham sido de gasolina. Deslocava-os até náo sei onde. Náo queríamos saber dis-so. Éramos brancos, queríamos lá saber o que faziam os pretos ao nosso lixo, desde que desaparecesse. Manjacaze era querido dos inquilinos. Os meus pais davam-lhe sempře as sobras do pao do dia anterior, restos de comida, a roupa rasgada, velha, que tinha deixado de nos servir. De vez em quando, porque éramos católicos e bons - Páscoa, Natal, Entrudo - uma garrafa de vinho ou aguardente, uns fritos da minha máe. Comida, bebida, objectos que eram dados com altruísmo ao preto bom, ao preto que vergava as costas e a cabeca numa vénia, quando nos via, e que era simplesmente bom, um bom preto. Vejo Manjacaze muito nítido; as suas maos secas calo-sas postas á frente das pernas, com os dedos entrelaca-dos, enquanto agradecia, muito obrigado patrao, muito obrigado senhora, muito obrigado menina, e se dobrava. Manjacaze era bom. Os olhos de Manjacaze, ligei-ramente amarelados, eram bons. Nunca falava alto, nunca modificava o tom de voz, sorria sempře. Vejo-o retirar os bidons de lixo do elevador de servico. Posso 37 1 t descrever corno os rodava fazendo-os circular para fora, avancando-os ate a rua. Sempre do elevador do servico, o unico em que subia e descia, embora fosse ele quem os desencravava a todos, quem resolvia os problemas dos sete andares do predio Lobato. Manjacaze, vai la acima, temos coisas para ti. Mui-to obrigada, senhora. Sempre uma palavra boa. Manjacaze ajudou-me a acreditar na especie humana, nos que apesar de humilhados na hierarquia, mantinham a dignidade sobre todas as coisas, e a valorizavam como invisivel posse sagrada. Naquela altura em que ainda acreditava em tudo, e nao poderia antecipar que havia de ter nada, falhar, sobretudo os outros, eu, a normalidade, falhar ano apos ano, como se tivesse nascido invisivelmente manchada. Manjacaze tinha um ar de avo. Se pudesse sentar-me ao seu colo e ouvir historias dos pretos, como se isso fosse possivel nesta vida! Porque um negro nao tocava numa branca nem como avo. Era tabu. Por isso, apenas sornamos um para o outro. Nao diziamos nada. 9. Ao sabado trabalhava-se, e o meu pai pagava a semana ao final da tarde. Ao sabado havia milando. Moravamos num terraco da 24 de Julho. O rectangulo de cimento que constituia a caixa do elevador elevava-se nu acima do chao, como uma especie de torre de vigia. Subiamos seis degraus bem altos para aceder ao portao dessa construcao que metia medo. Ao sabado, ao final da tarde, o meu pai chegava ao terraco com os pretos todos, os desenrascados, os man-drioes e os assim-assim. Eles sentavam-se nos degraus da caixa do elevador, constituindo, assim, um anfiteatro de assalariados. Falavam a lingua deles entre si. Raramente portugues. Metiam-se comigo, ou nao. Pediam-me para perguntar isto e aquilo ao meu pai. Pediam-me copos de agua. As vezes a minha mae dava-lhes sandes ou bola-chas. Se era vespera de dia importante, o meu pai era capaz de dar ordem para distribuir copos de vinho ou cervejas com sandes de carne. Esses momentos eram bons. O meu pai sentava-se no topo da mesa da sala com os livros e blocos de apontamentos onde assentara o trabalho de cada um, mais as notas e moedas para pagar. Havia, por vezes, entre o meu pai e a minha mae, alguma conferencia sobre o valor dos pagamentos a efectuar, sendo que ela tentava acalmar-lhe os animos; dizia-lhe, "nao facas isso", dizia-lhe, "fazes mal", dizia-lhe, "so vais arranjar problemas". Lembro-me que eram finais de tarde todos em ouro, de uma serenidade animada. Comecava a near mais fresco. Os corpos largavam a escravidao do trabalho como 38 39 se larga a pele velha. No dia seguinte seria domingo e ao domingo näo se falava em trabalho. Saia-se, comia--se, bebia-se, estava-se ä sombra, ouvia-se rädio. Mas, no meu terraco, a essa hora, apesar de tudo, o ar tremia de medo e incerteza. Gostava de ver ali os pretos do meu pai. Todos juntos pareciam muitos. Descansavam um pouco. Eram ho-mens diferentes uns dos outros. Uns mais novos, outros velhos, com a carapinha a embranquecer. Uns calados e seriös. Outros sorrindo. Alguns com medo. Outros, fa-lando como doidos. Rondava-os, observava-os, enquanto o meu pai fazia as contas; ia lä dentro confirmar se ele estava no mesmo sitio, chateado, praguejando; regres-sava ao anfiteatro de negros, que se impacientava com o tempo; as contas demoravam. Queriam ir-se embora, que estava a demorar; voltava lä dentro, estäs a demorar; o meu pai muito tenso, eles que esperassem; corria ao anfiteatro, tinham de esperar. Os fins de tarde em ouro retalhavam os nervös a qualquer um. A certa altura, o meu pai comecava a chamä-los, näo sei porque ordern. Podia ser a da recolha que fazia, äs segundas de manhä, nas bombas do Xipamanine, ou ao calha. O procedimento era simples. Os negros iam ä sala, e o meu pai entregava-lhes o dinheiro. Äs vezes eles contavam e reclamavam. O meu pai gritava-lhes que nes-sa semana tinham estragado um cabo ou chegado tarde ou sornado ou mostrado mä cara ou era so porque lhe apetecia castigä-los por qualquer coisa que tinha metido na cabeca. Näo sei, tudo era possivel. Para alem de ter mau genio nestas coisas, tinha os seus preferidos, e aos seus preferidos pagava sempre o acordado sem descontos. Depois havia os mais novos, recem-chegados, ou aqueles em quem o meu pai náo confiava. E com esses havia muitas vezes milando. Ainda náo tinham percebido as regras, que eram só duas: receber e calar. Náo era preci-so agradecer. Mas se agradecessem, comecariam a subir na tabela de preferidos. A única hipótese de náo haver milando, era metérem o dinheiro recebido no bolso das calcas rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e náo eram poucas as vezes em que saíam da sala com um murro nos queixos, um encontráo dos bons. Havia milando bravo. Ameacavam o meu pai, o que o irritava ainda mais. Eram expulsos. Eu e a minha máe, tremíamos. Entre os negros que ainda esperavam receber, crescia um siléncio tenso. Depois, tudo se pas-sava muito depressa. O meu pai chamava o resto dos nomes, pagava e punha-os a andar. A seguir ficava do-ente para o resto da noite O meu pai tinha o condáo de transformar os finais dourados das tardes de sábado num poco escuro de medo e raiva. 40 41 10. Havia o filho do vizinho preto. O que comprou a casa do lado, na Matola, a que tinha a manfurreira na esquina traseira que dava para o telhado na nossa garagem. Subia pelo limoeiro velho para fugir ä minha mäe, falar sozinha, brincar com os gatos e imaginär mundos novos, um outro mundo. Quase engravidei do filho do vizinho preto. Tinha dez anos e o medo pös-me de cama. Foi por pouco. Ileus protegeu-me. O negrito, vendo-me no telhado da garagem, subia ä sua manfurreira para falar comigo äs cscondidas da minha mäe. Foi o ünico com quem me relacionei profundamente. Chegämos a tocar-nos nas inäos, quando ele transferia para os meus bracos os gatos que tinham fugido para o seu quintal. Tinha mäos iguais äs minhas, rosa-amarelo-beje nas palmas, mas de preto. Falävamos da escola. De jogos. De bichos, sobretudo de cobras, porque havia inümeras no mato do seu quintal, c ele gostava de me meter medo com isso. E mostrava--mas ja cadäveres. Lembro-me do dia em que lhe disse, "a minha mäe näo me deixa falar contigo". Tambem me lembro de lhe dizer "tenho de me ir embora, que ela estä ii chamar". Chamava-me furiosamente, muito zangada por näo ter acesso ao telhado, e näo poder desancar-me ä chinelada. Ela tinha medo das minhas conversas com o negro. Eu tinha medo do filho mulato que ja devia estar a crescer na minha barriga, de certezinha. Agradava-me o rapaz, e ja tinha percebido que quando um hörnern e uma mulher gostavam um do outro, nascia uma crianca. Se eu estivesse grävida do preto, o meu pai podia matar--me, se quisesse. Podia espancar-me ate ao aviltamento, 43 até näo ter conserto. Pódia expulsar-me de casa e eu näo séria jamais urna mulher aceite por ninguém. Havia de ser a mulher dos pretos. E eu tinha medo do meu pai. Desse poder do meu pai. 11. Nao gostava de aneis. Os pretos nao tinham aneis. Ti-nham brincos pesados nas orelhas, que se rasgavam verticalmente. Tinham, ao pescoco, fios com sementes vermelhas, fitas coloridas nos pulsos, nos tornozelos, nos bracos. Eu tinha de usar um anel de ouro com um rubi. Era feio e apertava-me o dedo. Os negros nao usavam nada que os apertasse, a nao ser o trabalho do branco. Servir o branco apertava ja o suficiente. Por isso, os negros, ao domingo, bebiam o vinho de caju que tinham deixado a fermentar toda a semana. O vinho era branco turvo. Era um vinho sujo; flutu-avam pedacos de fibra e casca da fruta. Era fermentado em garrafas de cerveja Laurentina, das grandes, ou 2M, das grandes; bazucas, valentes. O caju torcia-se como a um esfregao e deixava um sumo aspero e doce, leitoso, que fazia os negros felizes. Sim, ao domingo a tarde, os negros eram felizes com o seu vinho de caju. Ao domingo a tarde, os negros nao eram negros, eram nada; eram como os patroes brancos, felizes, e podiam rir e foder, cantar, cair e dormir. Aos domingos a tarde os negros eram quase brancos entre si. E tudo acabava a segunda, antes do raiar do sol. Ao domingo a tarde, a radio passava o Nelson Ned cantando Domingo a Tarde. Ao domingo a tarde iamos ao cinema. O cinema da Machava passava sessao dupla, com intervalo de meia hora entre cada filme; os mufa-nas calcados vinham vender Quibons geladinhos aos brancos, e chupas em piramide as criancas dos brancos. 44 45 A enorme sala do cine Machava dividia-se em tres zo-nas bem definidas: bancos corridos de pau, a frente: primeira plateia; bancos individuals estofados, ate ao fundo: segunda plateia; empoleirados metro e meio acima da ultima fila da segunda plateia, os camarotes, todos forrados a veludo vermelho, luxo dos luxos, so ocupados quando o filme era mesmo muito popular e a afluencia o exigia. Filmes como O Fado, A Maluquinha de Arroios. Cantinflas, Jerry Lewis e Trinita tambem enchiam camarotes. Alguns negros iam ao cinema. Calcavam-se e vestiam roupa europeia remendada. Sentavam-se na primeira plateia, e, eventualmente, em dias pouco frequentados, na primeira fila da segunda plateia. Nao estava escrito em lado algum que os negros nao tinham acesso normal a plateia ou ao balcao, mas rara-mente os vi ocupar essas zonas. Havia um entendimento tacito, nao um acordo: os negros sabiam que lhes cabia sentarem-se a frente, nos bancos de pau: os brancos espe-ravam que a pretalhada se juntasse toda a frente, a falar aquela lingua la deles, olhando para tras a cobicar a mulher do branco, mas devidamente sentados no banco que lhes pertencia. Para os brancos, um preto, la da primeira plateia, nunca olhava para tras por bons motivos. Ou lancava o amarelo do olho contra-natura as brancas, ou procura-va o que roubar, ou destilava odio. De forma geral, no cinema ou fora dele, o olhar dos negros nunca foi, para os colonos, isento de culpa: olhar um branco, de frente, era provocacao directa; baixar os olhos, admissao de culpa. Se um negro corria, tinha acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar. 46 Ao domingo ä tarde iamos ao cinema. Eu levava um anel. Näo gostava de aneis. Os lugares da segunda plateia do Cine Machava havi-am sido montados sobre um piano inclinado. Tudo o que caia rolava ate ä primeira plateia, e ninguem lä iria; era o lugar dos pretos. Nem valia a pena. Eu teria sete anos. Usava aquele anel. Detestava-o. Pensei em ver-me livre da horrivel bijutaria, e ocorreu--me uma ideia infalivel, que executei na primeira oportu-nidade. No cinema, na escuridao, a meio do filme, num momento de maior barulho, maior suspense, tirei o anel do dedo, e lancei-o, com o possivel impulso, por debaixo dos cadeiröes, para que rolasse, inapelavelmente, ate ä primeira plateia, e desaparecesse, para sempre, nas mäos dos negros, que haviam de lhe chamar um figo. Num domingo, fi-lo, e respirei de alivio. Adeus anel. Adeus, suplicio. Adeus para sempre. Havia de dizer que o tinha perdido, que me estava largo, que me tinha caido do dedo sem notar. E depois, nada a fazer. Um anel era caro. Realmente. Mas, paciencia. Eu era täo distraida! Nesse domingo comi um Quibom no intervalo. Estava contente. Ninguem reparou que ja näo tinha o anel, mesmo quando me esqueci de esconder a mäo. Nesse dia, ja terminava o intervalo, quando uma cena deveras invulgar prendeu a atencäo da segunda plateia em massa: um negro tinha saido do seu lugar lä ä frente, e avancava pelo corredor lateral esquerdo, perguntando algo, de fila em fila. O que queria o gajo? Andava a pedir dinheiro, de certeza. E, quando chegasse ä nossa fila, ninguem lhe ia dar nada, ja se sabia. Que trabalhasse. Näo se dava dinheiro a negros, a menos que trabalhassem, e o que se desse, seria pouco, para näo se acostumarem mal. 47 n Quando chegou ä nossa fila, pudemos distinguir--lhe, entre o polegar e o indicador direitos, um minús-culo anel dourado com urna pedra vermelha, enquanto perguntava, "Este anel é daqui?" A minha mäe ainda guarda esse anel, lá em casa, na caixa dos ouros. 12. Tinhamos uns mainatos que carregavam as mercearias da loja do Lousä, em caixotes de cartäo. Atravessavam Lourenco Marques a pé, se preciso fosse, com eles ä ca-beca, äs costas, näo era da nossa conta. Carregassem. já vinham a pé lá do sítio onde dormiam, que havia de ser uma palhota clandestina em qualquer lugar que näo nos interessava, desde que näo trouxessem pulgas nem piolhos nem parasitas dos que se enterravam na pele. Se näo tinhamos mainatos, tinha o Lousä os dele. Näo precisávamos de sacos de plástico. Mas parece que isto era só na minha família, esses ca-brôes, porque segundo vim a constatar, muitos anos mais tarde, os outros brancos que lá estiveram nunca pratica-ram o colun..., o colonis..., o coloniamismo, ou lá o que era. Eram todos bonzinhos com os pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-nos melhor, e deixaram muitas saudades. 48 49 13. Ernesto näo ia trabalhar hä tres dias. Era preto e os pretos eram preguicosos, queriam era passar o dia estendidos na esteira a beber cerveja e vinho de caju, enquanto as pretas trabalhavam na terra, plantavam amendoim ao sol, suando com os filhos äs costas, ao peito, e a enxada a subir e descer para o chäo. Preto era mä res. Vivia da preta. Näo pensava na vida, no futuro, nos filhos. So queria descansar, dormitar, dancar, cantar, beber, comer, viver vida boa. Era absolutamente necessärio ensinar os pretos a trabalhar, para seu proprio bem. Para evoluirem atraves do reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e com o dinheiro poderiam prosperar, desde que prosperassem como negros. Poderiam deixar de ter uma palhota e construir uma casa de cimento com telhado de zinco. Poderiam calcar sapatos e mandar os filhos ä escola para aprender oficios que fos-sem üteis aos brancos. Havia muito a fazer pelo hörnern negro, cuja natureza animal deveria ser anulada - para seu bem. De maneira que, ocasionalmente, aos säbados ä tarde, o meu pai tinha de ir ao canico procurar o Ernesto. O canico era para os lados de Xipamanine, ou do aero-porto, ou longe, longe. O canico era como o labirinto do Minotauro, e o meu pai era o Minotauro que ai entrava e saia, quando lhe apetecesse, para exercer a sua justica. O canico encontrava-se talhado de caminhos estreitos, rccortados por entradas para aglomerados de palhotas, onde se juntavam mulheres falando, criancas chorando ou brincando, cäes sarnosos dormindo, cabritos remo- 51 endo capim, pilóes pilando milho, vozes altas, latas de comida fumegando sobre o carváo; basicamente, a vida. O canico era de cana velha, já cinzenta, ou nova, cor de café com leite clarinho. O meu pai levava-me pela mao, e eu sentia-me portáti] como uma mochila leve; ia quase no ar. A terra era verme- i lha e havia uma poeira cor-de-rosa sobre todas as coisas. Por vezeš o meu pai parava e perguntava, onde fica a casa do Ernesto tal e tal? Ah, era mais adiante, perto duma árvore grande, duma cantina velha, dum cruzamento onde estava uma palhota nova, e depois ia, ia, ia, encon-trava. O meu pai perguntava, e eu ia atrás, voando sobre [ o solo vermelho, espreitando pelos recortes no muro de canico atrás do qual se escondia a vida dos negros, essa vida dos que eram da minha terra, mas que náo podiam ser como eu. Eram pretos. Era esse o crime. Ser preto. Depois o meu pai encontrava o lugar, é aqui que mora o Ernesto? Onde está o preguicoso? A mulher apontava a palhota. O meu pai largava-me a mao, e entrava, enquan-to eu ficava cá fora abracada ao meu peito, no meio das galinhas, dos filhos descalcos do preto, da preta, dos outros pretos todos da vizinhanca que tinham visto o branco e vinham saber. i O meu pai gritava lá dentro, e aos safanóes trazia-o para fora, atordoados ambos. Segunda, vais trabalhar, ouviste? Segunda, estás nas bombas ás sete. Vais trabalhar para a tua mulher e para os teus filhos, cabrao preguicoso. Queres fazer o que da vida? Safanao. Soco. E a mulher e os filhos e o bairro todo, e eu, estávamos : ali, imóveis, paralisados de medo do branco. E eis que o branco mete uma nota na mao da negra e diz-lhe, dá de comer aos teus filhos; depois levanta-me no ar, aträs de si, presa pelo seu pulso, enquanto grita ao negro, Segunda, nas bombas, ai de ti. £ voamos ambos para fora do canico. De todo o lado sai, assoma gente, e cäes, galinhas, cabras assustadas. Ja um nervoso miüdo no canico. O branco foi la dentro, deu porrada no Ernesto, agora vai a sair, o branco trouxe a menina, e a filha do branco. E o hörnern branco que me leva pela mäo voando, atravessa o canico veloz, procura a Bedford estacionada la fora, senta-se, pöe o motor a trabalhar, arranca, olha para mim, entäo, estäs cansada, queres ir beber uma Coca-Cola? Queres que te deixe provar o meu penalti? Olho-o, näo respondo. Aquele hörnern branco näo e o meu pai. 52 53 14. Nunca tinha batido em ninguém, mas dei-lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque näo concordou comigo, porque eu é que sabia e mandava e estava čerta, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá agora por que lhe dei a irialdita bofetada! Mas dei-lha, na Escola Especial, no intervalo da ma-nhä, encostada aos fundos da sala da 4a classe. Uma parede branca. Era a Marília. Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a irritar-me, bato-lhe. Pódia perfeita e impunemente bater--Ihe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé. sem se mexer, com a mäo na cara, sem nada dizer, fit;indo-me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliacäo. Disse-lhe, já levaste, e depois afastei--me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infämia que tinha cometido, esse exercício de poder que näo compreendia, e com que näo concordava. Näo por ser uma bofetada, mas porque tinha sido ä Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada pódia contra mim. Queixasse-se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo ä partida? Senti-me muito mal. Depois. A experiéncia tinha-me saído amarga. Bater nos mais fracos näo era nada cristäo. Jesus näo o faria. Näo esqueci o rosto esguio e o belo cabelo crespo da bela Marília. Era mulata e näo pódia bater-me. Näo me lembro se lhe cheguei a pedir desculpa. Acho que näo. 55 15. A saída da porta da cozinha, na casa da Matola, a mill ha máe plantara uma alameda de piripireiros que me chegavam á testa, lindos de frutos o ano inteiro, nos quais eu treinava a minha coragem e capacidade de resis-tčncia. Puxava os piripiris, arrancando-os aos ramos, cscolhendo os mais vermelhos e inchados, e comia-os crus, mastigando-os, sofrendo o fogo da terra as primei-ras tentativas, mas procurando, mais tarde, encontrar padroes de picante consoante a forma, cor ou tamanho das bagas. Desejava tornar-me forte. Primeiro um piripiri sem caretas, dois, trés, chegando aos quatro, e sem limites, até poder atingir a medalha de ouro nos jogos olímpi-cos da malagueta, que por acaso se realizavam amiúde, e espontaneamente, entre a miudagem da vizinhanca, na unidade F do Bairro Doutor Salazar, Matola Nova. Quem aguentava mais? Quern aguentava sem engasga-mentos e trejeitos faciais? Haveria de vencer os rapazes da vizinhanca em todos os aspectos passíveis de ava-liacáo, mas, sobretudo, haveria de ultrapassar-me. Ser forte como o meu pai. Ser forte como o meu pai desejava que fosse. E como os pretos - que comiam piri-piri sem caretas. Ou como a Helen Keller - que náo comia piri--piris alguns. Por isso, treinava-me duplamente a cada saída pela cozinha: primeiro, a alameda, os piripiris em crescendo degustativo; segundo, as corridas á volta da casa, porque havia que ser resistente, volta a volta, e quando aguentasse seis sem parar, rápido chegaria ás sete, depois ás oito, e ao céu do atletismo. Ser forte. Havia que resistir a tudo, nao desistindo. Havia que ser como a 57 Helen Keller. Como o meu pai. Como os pretos. A vida nao haveria de me apanhar desprevenida. Havia de viver tudo, viver melhor e bem. Nao seria uma minhoca, uma alforreca, uma amiba. Nao havia de ser um pau-mandado como as outras mulheres. Eu cá nao dobraria. Havia de ser como a Helen Keller. Ou o meu pai. Nesta parte jj nao entravam os pretos. Lembro-me: era preciso veneer o fogo e a dor. 16. As camisas do meu pai eram sempre brancas. Era sábado ä tarde. A minha mäe tinha ficado de escrava ao quintal. Aos coelhos que tinham sarna. Ao transplante de nabicas para regos de terra que ela propria cavava, a negra. Era sábado ä tarde, depois do almoco cuja alquimia lhe tinha pertencido. Era depois de me ter vestido de lavado, e ao meu pai. Como todos os dias. Sábado ä tarde de luz bronzeada nos ombros, de brisa marítima muito fácil através dos cabelos. Trinta e tal graus. O peito movia-se devagar. As narinas abriam-se e fechavam-se, lentamente. Porque era o sul. Respirava-se. Sentada na Bedford branca que o meu pai conduzia na estráda da Matola, a caminho de Lourenco Marques, uma tangerina madura abriu os gomos dentro do meu cérebro. Uma revelacäo, um milagre: num segundo, sem expli-cacäo, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterals dos prédios, "Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Lux cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer". Sumarenta, a tangerina aberta, uma flor no meu cérebro, era doce; e disse ao meu pai, "sei ler". Sorriu-me, "és o meu tesouro". Näo disse, pensou, "és tudo para mim". O meu pai veštia urna camisa de algodäo fino, muito branca. Lavadinha, passada a ferro com zelo pela minha mäe, apertada demais no botäo da barriga, quase a esgar-car. A pele do meu pai, tostada, brilhava de brilho. E os olhos, de brilho. O sorriso do meu pai sorria sozinho. 58 59 Sem nada mais escondido. Ä noite chegaria a casa com a camisa negra de nódoas, porque o meu pai tocava e deixava tocar-se pelo pó, pelo carväo, pelas laranjas, por mim. Agora estava impecável. No bolso da camisa notava-se um resto de nódoa a tinta de caneta rebentada. Coisa de nada. Um milímetro. Impecável. x Essa tarde era feliz: iríamos passear no Zambi, levar--me-ia a comer iogurtes ä Baixa, ou talvez fôssemos petis-car moelas ao Sabié. Deixar-me-ia bebericar cerveja do seu copo. Ou um penalti, um tricofaite. Soltar-me-ia a mäo, e eu poderia correr, e respirar sozinha, sem cercas, um pouco - respirar fundo, respirar o ar agridoce de ca-tinga, polen e amendoim - porque ao lado do meu pai nenhum preto pensaria roubar-me; esse medo; ninguém iria roubar-me nem molestar-me, essa culpa de que tam-bém eu seria culpada porque o meu sorriso era dema-siado puro; o meu pai estava ali, e as suas mäos eram como patas de urso; contar-me-ia histórias de quando era novo, na Metropole; a da nuvem que desabava for-tíssima sobre si, no caminho de Óbidos para as Caldas, e da qual ele fugia, correndo ä mesma velocidade, e na ( mesma direccäo, mantendo-se, afinal, debaixo dela; do que só se apercebeu quando parou de pulmöes reben-tados, e a nuvem o ultrapassou. A memoria dele. Näo, a minha. As suas histórias ridículas, para que eu me risse, e involuntariamente soubesse que é doce ser ridículo, ser só uma pessoa ridícula, ser uma pedra, um páo acabado de cozer. Ser nobremente ridícula. Disse-lhe, "pai, já sei ler", e encostei a cabeca para | trás, pousando-a na almofada do assento, com os olhos fechados, enquanto absorvia a maresia que vinha da direita, dos sapais ao lado da Sonefe. Os meus músculos, sempre tensos, afrouxaram. Agora já näo era a guerra em mim, e podia descansar; as regras de leitura fize-ram sentido num ápice, só porque a tangerina teimosa decidira abrir-se por inteiro no meu cérebro, como um polvo que estende os tentáculos. Ali, dentro do carro, a caminho de Lourenco Marques, perto da Sonefe, como a primeira menstruagäo. Sabia ler. Tinha sido dificil. Mas agora, este milagre. Täo rápido. Sabia ler. Abri de novo os olhos, para confir-mar, e li, como se näo tivesse feito outra coisa toda a vida, "cigarros LM long size, a vida moderna para o homem moderno". Näo percebia como tinha acontecido, mas sabia ler. Esse milagre de ler, essa mágia täo rápida no meu cérebro, como se alguém movesse uma varinha ä dištancia ou soletrasse palavras misteriosas, desenfeiticaram-me. A partir dessa tarde de sábado, embora a minha prisäo física näo se alterasse, e os muros e as grades de ferro continuassem altos ä minha volta, em todos os lugares, tornei-me mais livre. As frases podiam roubar-me a qualquer lugar, levar-me para dentro de mentes diversas, e escutar o que pensa-vam e näo diziam; as mentes dos bons e os maus e os mais ou menos, que eram a maior parte; sentar-me em navios perdidos, pairar sobre vulcóes e dormir em jar-dins de rosas e sombras suavemente lilases. Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior ini-miga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vé, c escuta e nem pediu autorizacäo. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira. Só muitos anos mais tarde, muitos, muitos, compre-endi que saber ler, o acesso a essa chave para descodi- 60 61 ficacao do segredo, me transformara, contra todas as vontades, na toupeira que lhes havia de roer todas as raizes, devagar, uma de cada vez, ate restar po. O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre. 17. No Marcelismo, os navios acostavam cheios, todas as semanas. Os colonos chegavam misturados com as tropas e ficavam por ali, alugavam casa, instalavam-se, punham os filhos no liceu, na escola comercial ou industrial, arranjavam um mainato recomendado, ou arrisca-vam um que lhe fosse bater ä porta; poucos compravam uma cantina, perto ou longe, a quinhentos ou seiscentos quilómetros da capital, e vendiam carväo, petróleo, fari-nha, peixe seco e cerveja aos pretos que saiam do mato e näo falavam portugués. Aprendiam a falar todos os dialectos, eram intermediários em negócios, safavam-se bem. A maior parte ficava pela urbe. As tropas iam para o Norte e arranjavam, através dos programas de rádio, madrinhas de guerra a quern envi-ar aerogramas. Eu desejava ser madrinha de guerra. Se já tivesse 15 anos... As madrinhas de guerra eram uma espécie de namoradas via postal, portanto, sem beijos na boca, e eu gostava de ouvir os programas em que se enviavam mensagens, "Maria Albertina Santos, madrinha do furriel Diamantino Russo, colocado em Nova Viseu, na companhia 3470, envia cumprimentos seus e da família, e faz votos pelo seu breve regresso com saude e boa disposicäo". Sabíamos tanto sobre o que faziam os tropas como sobre a politica do pais. Sabiamos nada. Näo descrevo uma terra ignorando que nela existia uma guerra. Havia uma guerra, mas näo era visivel a Sul; näo sabiamos como tinha comecado, ou para que servia exactamente. Pelo menos, até ao 25 de Abril, näo se falou disso na minha presenca. Nem se evitou falar. 62 63 Havia guerra porque havia turras. Havia turras porque a natureza humana era maldosa e insatisfeita. A maldade existia em todo o lado e restava-nos lutar contra ela. A guerra era no Norte, mas nao tomavamos conscien-cia da sua gravidade, nao se falava em soldados dos nos-sos que tivessem sido mortos, nao existia para nos esse vocabulario que agora conhecemos, como emboscadas, guerrilha, mina disto e daquilo. Achavamos que estavam la pelos quarteis a cumprir a tropa, a fazer umas accoes de propaganda. A dar uns encostos nos negros que nao se portassem bem, o que era normal. Ou a limpar-lhes o sebo, se fossem teimosos e nao obedecessem, o que era pouco provavel. Era isso que o meu primo devia andar a fazer no Norte; a dar uns encostos aos negros. O Norte era muito distante. Era la em cima na terra dos macuas e dos macondes. Os turras, todos ladroes, queriam roubar a terra aos Portugueses. Vinham da Tanzania com a pele muito preta e maldosa. Era preciso defender a nossa terra, por isso e que chegavam os soldados de Portugal. Tambem havia soldados pretos. Esses, faziam-nos comandos, para irem a frente e morrerem primeiro; assim se poupava um branco. Que os pretos morressem na guerra era mal menor. Era la entre eles. 64 18. O meu primo nasceu em Lourenco Marques e nunca pronunciou as trés silabas muito dificeis da palavra Maputo. Ma-pu-to. As cinco de Lourenco Marques fluiam liquidas. Muito brancas. Maputo era nome de preto. Um preto, uma zona selvagem, um rio podiam chamar-se Maputo, Incomati, Limpopo, Zambeze. Uma vila de pretos podia chamar-se Marracuene, Inhaca, Infulene, Xipamanine. Uma cidade de brancos, nao. Tinha de ser Lourenco Marques, Beira, Mocimboa da Praia. Xai-Xai era de preto. Ponta do Ouro era de branco. Nenhum branco que tenha saido de Lourenco Marques se habituou a chamar-lhe... outro nome qualquer. Como geleira. Um branco ainda hoje pensa geleira, e emenda, em milésimos de segundo, para frigorífico. Pensa gali-nha, corrige para frango. Pensa Lourenco Marques e diz, com gozo, com desforra, como se manter um nome fosse manter o que designa, Lourenco Marques. Diz muito longamente e saboreia as silabas todas. Lou-ren-co-Mar--ques. A vida, em Lourenco Marques, era serena, morna, sibilada, muito fluida como o seu nome. O meu primo quando conseguiu sair em seguranca do Maputo, olhou para trás, na estráda do aeroporto, e disse, "nunca mais regressarei a Lourenco Marques". Cumpriu-se. 65 19. Depois enterrámos-lhe a faca de mato, o revolver e a farda. Tinha estado no Niassa com autorizacao para ma-tar pretos, e tudo aquilo cheirava a sangue, e cheirou durante muitos anos, mesmo enterrado no chao fértil, incerto da Matola, até se oferecer um tiro nos miolos, já em Xabregas, após ter queimado todas as veias, assaltado ourivesarias na Almirante Reis e assassinado negros a tiro, pelas costas, na Damaia. Para alem disso, foi meu primo direito. Nas ex-colónias era fácil morrer. Estava-se vivo, morria-se. Havia acidentes de caca, acidentes no mato, acidentes de trabalho, acidentes rodoviários, acidentes. Cortavam-se dedos e saravam-se a seguir, lavados com água fria. A carne crescia no mesmo lugar. Se náo sara-vam, amputava-se o braco ou morria-se de septicemia. Era fácil. A vida de um preto valia o preco da sua utilidade. A vida de um branco valia mais, muito mais, náo que valesse grande coisa. A vida de um "bife" da Africa do Sul, dos que vinham com chapéu de mexicano apanhar sol na Polana, isso sim, era vida. Esses, sim, sabiam lidar com pretos, manté-los com rédea bem curta. Matar um preto, no Marcelismo, comecava a ser chato; a polícia, se descobrisse, vinha fazer perguntas. "Entáo, ó Rebelo, náo viu o peáo, e matou-o?" "Eu náo, agente Pacheco, era noite, náo havia luzes na picada, o gajo ia bébado, e atirou-se-me para cima da carrinha, o que é que voce queria que eu fizesse?!" "Que parasse, homem, que prestasse assisténcia ao preto!" 67 "Pensei que só lhe tivesse dado uma pancada, que o gajo acordasse dali a umas horas com a bebedeira curada... seguia caminho prá palhota e nunca mais so lembrava disso. É pretalhada. Bebem até cair, e depois lixam-nos a vida." "Vou fechar os olhos desta vez, mas veja se näo se re-pete, ó Rebelo, que agora temos ordens da metropole..." Matar um preto, a partir de certa altura, comecou a dar chatice. No Maputo, após a independéncia, e mesmo antes, certos militares desmobilizados do exército portugués que nao regressaram á pátria, por serem mocambicanos, negros ou brancos, foram perseguidos e assassinados. Dizia-se, filtre brancos, que era a FRELIMO em vinganca de guerra. Havia comités de bairro; formavam-se comissoes. Ia-se a casa. Revistava-se. Tudo era possivel nesse tempo sem lei. Morrer sempře foi fácil naquela terra, antes ou depois. O meu primo tinha sido educado no mais profundo desprezo pelo negro. Quando fez 19 anos, e o mandaram para o Niassa, partiu contente. Ia lutar pela California portuguesa. Descia a Lourenco Marques de nove em nove meses, mas já nao era o mesmo. Deixou crescer a barba. Era a guerra, e o meu primo nunca falou da guerra. Ninguém falava da guerra. Suponho que náo se fale da guerra, nunca. "Entao, sao tesos, os gajos, lá no Norte?" Ele sorria, nao respondia. "Mas voces limpam-lhes o sebo, hein? Eles ainda vao ver quern fica com isto." O meu primo falava pouco e evitava a roda social. Fechava-se no quarto a fumar, e calou-se para sempre. Mesmo que tenha dito uma ou outra coisa depois disso, "sim, náo, talvez, nao sei", nunca mais falou. Tinha vergonha, o meu primo. Olhava-me com uns olhos vivos, e tinha vergonha de mim. Era um homem mořeno e bonito. Eu tinha 10 anos muito em fogo, amava-o em segredo, e embora nao soubesse o que era o sexo, sonhava viver com ele intensas aventuras eróticas. Espreitava-o no seu quarto, que man- 68 69 tinha sempře em meia-luz, onde se refugiava fumando muito. Náo sabia o que dizer-me. Tinha vergonha de mim. Eu fechava os olhos e fantasiava que nos amar-ravam, abracados um ao outro, lancando-nos a uma piscina incendiada, e que a intensidade do que era rea-lizado, essa violěncia, nos queimava de prazer. O meu primo acordou o meu primeiro, estranho desejo, e, uns a nos mais tarde, matou-se. 71 21. O meu pai conversava na rua com outros homens. Eu rodopiava á sua volta, como sempře, escutando o ruído distante das conversas. Era o dia da minha primeira menstruacao. Usava um vestido de popelina branca, curto, liso, cintado, e meias de renda dentro de sapatos rasos, de verniz. Tudo era bianco, porque me vestiam sempře de branco, como um cordeiro que há-de sacrificar-se. Tinha uns sapatos largos, abriam boča, e tropecei nas escadas, deixando ver, ao fundo, as cuecas manchadas de sangue. Sabia que estavam encharcadas, que nao tinha posto um pano, e morri de vergonha lenta, supondo que todos aqueles homens tinham visto o meu sangue. Entre eles, o meu primo muito jovem, muito bonito, com o qual sonhava secretamente; e ele tinha visto as minhas cuecas sujas de sangue. Gracas a esta embaracosa memória posso datar a minha primeira menstruacao. Era, entáo, Janeiro. Era o dia da minha primeira menstruacao. Fazia 11 anos, e regressaríamos de casa de al-guém, onde teria eseutado conversas de adultos durante horas a fio. Barulho que nada me dizia. "Sim, estou a ouvir". Que sim, que estava a ouvir, dizia-lhes. Sim, ou-via. Pensava. Olhava. Observava os animais, os bibelots, as lombadas dos livros da Biblioteca Básica Breve, os mainatos que raspavam o cháo, e depois o lavavam com aguarrás, e lhe passavam a cera, e puxavam o brilho com metade de um coco, e um esfregáo de la, até espe-lhar. Fascinavam-me esses homens enormes, luzidios de negros, vergados no cháo, limpando o que sujávamos, 73 servindo-nos iguarias do mar cujas cascas talvez pudes-sem chupar, e lamber os dedos, enquanto lavavam a loi-ca. E eram táo iguais a mim. Tinham mae, pai, primos... Os olhos eram tao espertos como os meus. Sorriam-me. Falavam-me, quando os patroes náo estavam perto. Eu gostava de conversar com os mainatos. Os mai-natos tratavam-me bem, carregavam-me as cavalitas. A minha mae tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. Ou desconfiava de mim, adivi-nhando a minha alma de preta. 22. Soube do 25 de Abril a 26. Contaram ao meu pai, ao final da tarde, estando nós na praceta projectada á avenida Latino Coelho, em Lourenco Marques. Sei que estávamos na praceta projectada á avenida Latino Coelho, porque estou a ver o cenário dos prédios, os homens em círculo nas suas balalaicas azuis, cinzentas, castanhas-claras, trocando opinióes; e eu, vagueando entre eles e o lancil, no qual me ia equilibrando como entretimento, enquanto os escutava. Por momentos agarrava a mao do meu pai, rodopiando á sua volta, puxando-lhe os bracos. Ele animava-se na conversa com os outros homens, e eu escutava, desinteressadamente, o barulho desequilibrado das vozes, e as emocoes que continham. Ouvia de longe. Náo ouvia. Só o meu pai me interessava. Vestia calcoes de caqui e calcava chinelos de borracha de enfiar nos dedos, comprados nos chinas da baixa. Estava calor. Era final de tarde, e crescia já essa sombra húmida, e o cheiro das árvores e da terra, cansadas de luz; mas o dia náo tinha sido táo quente. A minha máe tinha subido para preparar o jantar. Mas é estranho, porque só fomos morar para a praceta projectada á Latino Coelho após os massacres de 7 de Setembro desse ano. Talvez tivéssemos ido visitar al-guém. Talvez o meu padrinho Joaquim, o maluco, que tinha aí construído uns prédios, quer dizer, os pretos do meu padrinho Joaquim tinham aí construído uns prédios, porque o meu padrinho náo percebia nada de construcao, embora soubesse dar ordens, e gritar que queria tudo pronto no dia seguinte, e que depois vinha aí o canalizador e o electricista... E também devia saber 74 75 dar ordens ao canalizador e ao electricista, porque o meu padrinho era essencialmente poeta e suicida, explorador de mulheres e mentiroso. E espírita. Tinha uns zumbi-dos nos ouvidos e via coisas estranhas. O homem seria clarividente, construtor näo, isso garanto. Lembro-me de uma outra conversa sobre o 25 de Abri], também ao finál da tarde, na Baixa, do lado esquerdo do edifício do bazar, e cá fora. Um grupo de homens, como sempře, eu a única rapariga, apenas porque acompanha-va o meu pai, e participava como testemunha irrelevante nos seus actos públicos. Era a filha do electricista. Está crescida a tua filha. Andas em que classe? E pouco mais. Ouvia. A conversa da praceta projectada ä Latino Coelho decorreu ao pôr-do-sol, mas näo täo tarde. A luz era mais branca. Nesta, a luz caía mais ténue, mais alaran-jada. Era a luz laranja do índico, da mesma cor da terra do Zambi, da Costa do Sol, da Ponta Vermelha, que näo é vermelha, é laranja forte como acafräo escuro. Qual dos cenários é o real? A conversa sobre o 25 de Abril teve lugar lá em cima, no Alto-Maé, ou na Baixa? Foi a mesma conversa? Foram conversas diferentes sobre o mesmo assunto? Prefiro o segundo cenário. Talvez as duas tenham acontecido. A coeréncia temporal, a uma grande dištancia, perde-se. "Foi assim", "tenho cá esta ideia". Uma coisa é čerta: aconteceu. Tinha acontecido uma revolucäo na Metropole. No dia anterior registara-se grande confusäo: Marcelo Caetano fugira para o Brasil, o país estava sem governo, havia tropa na rua; era a república das bananas; e como seria nas colónias? Sim, tinha havido confusäo, e depois?! O Governo tinha mudado de mäos, e bem, que os que lá estavam roubavam-nos todos os dias. Tinham sido os niilitares. Era bom para nos?! Iam dar a independencia as colonias? Ah, finalmente, Africa ia ser nossa! Finalmente, iamos deixar de pagar imposto aos cabr5es da Metropole! Agora, poderiamos prosperar e fazer da nossa terra uma (lalifornia. Era isso que a nossa terra ia ser: a California. A California, mas como na Africa de Sul. Com os pretos tlebaixo da mao, controlados, ou nao fariam nenhum. O 25 de Abril ia entregar Africa aos brancos, e depois iamos ser felizes. 76 77 23. As cabecas dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos e os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares partidos. A negralhada remendava as bolas com trapos já engo-mados de sangue seco, rasgados aos cadáveres, e assim sustinham a estrutura que se desfazia a cada pontapé, até já näo restar senäo urna mäo cheia de ossos moídos, moles, que depois se chutavam para o mato, atrás do canico. E vinha outra cabeca putrefacta, até amolecer. Era fim-da-tarde. Anoitecia rapidamente. Transmitiram-me o recado no caminho até ao aeropor-to, passada a picada de areia alta que vinha das entranhas da Matola, e se fazia a 90 ä hora até chegar ao alcaträo. Repetiram-mo. "Näo te esquecas de contar." Ä passagem da carrinha formava-se, ao lado, e para atrás, para os que haviam de vir, urna nuvem de poeira encarni-cada que se entranhava nas texturas do corpo e da roupa que se veštia. E secava a garganta, as narinas, os olhos. "....agora, lá, säo muito amiguinhos dos pretos, mas tu vais explicar-lhes que isto näo é como eles pensam. I\'lendem-nos, mas ninguém fala do que nos fazem os pretinhos... Contas tim-tim por tim-tim os massacres de Se-tembro. Contas tudo o que nos aconteceu. E ä Candinha..." No 7 de Setembro o meu pai chegou eufórico. As coisas iam voltar a ser o que éram. "Isto vai voltar a ser nosso; est á tudo no Rádio Clube, ocuparam aquilo, os negros esläo lixados, estäo a contas. Ainda vamos ganhar isto." Eu sorri. O que significaria "ganhar isto"? 1 )eixava-me ir. Deixava-me tanto. Näo interessava nes-se momento. Os dias éram täo lentos e bons.. Se ganhás- 79 semos, quem ganharia, exactamente? O que era ganhar? O meu pai estava feliz. Eu estava feliz. Sorria porque era dele. Sabia quem ele era. Sabia uma parte. Sorria porque já sabendo quem ele era, eu era dele, ainda. Arrancou-me do chäo e levou-me a pé até ao Rádio Clube, as cavalitas. Havia uma multidäo branca frente ao edifício. Ho-mens, sobretudo. Também esposas. Mal vislumbrei o edifício, de uma das esquinas, a da direita. Sei que era a da direita, porque estou a ver essa nesga, sei que estou ligeiramente inclinada para conseguir alcancá-la. Apenas um edifício, o mesmo Rádio Clube de sempře, onde se realizavam as emissôes de variedades que escutávamos ä noite. Mas para o meu pai, e todos aqueles brancos, naquele momente, o edifício do Rádio Clube era símbolo de uma esperanca, e todos aí se concentravam ansiosos, como se adorassem o deus político de um templo pagäo. Era uma esperanca invisível, mas forte, como é a esperanca, tornáda ali pedra solida, portanto, palpável. Algo materiál. Escutava-se um ruído nervoso. O ar do fim da tarde fervia de energia de macho, de desejo, de medo. Barulho väo, descargas de voz desafi-nada, mas em fundo, nos peitos, um enorme siléncio que třeme, que devora, uma fome castigada que näo sobreviverá ao riscar de um fósforo. Tudo o que sei sobre o 7 de Setembro de 1974 é isto: os brancos estavam a ganhar aos pretos, talvez já näo houvesse a tal independéncia de que se falava, e que os brancos tanto temiam. Mais nada. 24. Descemos os dois de mäo dada até ä Baixa, para petiscar em qualquer sítio, falando sempře. Talvez moelas, pipis, améijoas. Um prego. Para o meu pai, uma bebida de ál-cool cortado a refrigerante; para mim, um refrigerante cortado com a bebida cortada do meu pai. Ele era fácil demais para mim. Muito fácil para mim. Sem me ensinar, o meu pai iniciava-me no prazer que já havia despontado com o estranho fogo do meu padri-nho. Eu gostava da sua presenca, de passear com ele a pé, por onde quer que fosse, de mäo dada. Näo falava comigo sobre responsabilidades, näo me penteava nem endireitava a gola do vestido, como a minha mäe, mas dirigia-se-me como a uma adulta. Falávamos do que o dia trazia e levava. E ele era livre comigo, aquela coisa sua, parte de si, igual a si. Era muito grande e muito poderoso como um rei--gigante, e a sua presenca protegia-me de todos os medos irracionais. Acho que nunca fui täo feliz como nesses momentos em que me pegava pela mäo e caminhava comigo pelas ruas de Lourenco Marques, até ao Scala, até depois do Scala, vendo montras, pessoas, sentindo cheiros vindos de todo o lado, ao entardecer, enquanto as luzes das avenidas e dos néons se iam acendendo. E ele explicava-me, "agora ligaram-nas na subestacäo do..." Todos os meus sentidos despertavam nesses fins--de-tarde. Sentia-me uma pessoa. Sentia-me uma mulher. A sua alma-gémea. Näo houve nenhum homem capaz de me resgatar como ele, de me quebrar, de me dar vida só por existir. 80 81 Só por estar ali, sorrir-me, dar-me valor. Dar-me a mäo. Pegar em mim. Escutar-me. Esse pai a quem traí. Na descida até ä Baixa, nesse dia, perguntou-me u que queria ser. Dactilógrafa, talvez, respondi. Gostava de máquinas de escrever. O meu pai explicou-me que isso näo garantia a sobrevivéncia. Que poderia ser engenhei-ra agronóma. Que se ganhava bom dinheiro; Mocam-bique era urna terra fértil onde crescia o que se plantasse, e iria precisar de engenheiros agrónomos no futuro. O que era engenharia agronóma? Para o meu pai, o mais importante era a minha autonómia. Tinha de pensar em garantir a minha indepen-déncia. Ter meios de sobrevivéncia sem depender de um homem. Esta conversa é muito clara para mim. Travou-a comi-go junto ao jardim Vasco da Gama. "Tens de ter uma profissäo que te permita viver a tua vida, com os teus filhos, ou näo, sem depender de nenhum homem! Sem estares äs custas de ninguém. Tens de ser dona da tua vida. Tens de ser livre. Compreendes?" "Compreendo." "Para isso tens de estudar, tens de ir para a univer-sidade!" "Sim. Eu vou." 25. Após o 25 de Abril j á se ouvia falar livremente sobre a guerra. Até porque os turras entraram pela cidade dentro e foi necessário explicar de onde vinham, quem éram usses invasores cheios de poder. Percebi que os colonos desejavam a independéncia, mas sob poder branco. Eventualmente, partilha de fun-cóes administrativas com um ou outro mulato educa-tlo, maleável. A FRELIMO era indesejada. Aquela terra, diziam, näo séria para os negros nem para a metropole, mas para os brancos que ali viviam. Séria uma independéncia branca; pretendia-se erguer ali uma Africa do Sul-califórnia-portuguesa. Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. "A independéncia foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos". Eu traduzo, "aquilo que entregaram aos pretos deviam té-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada". Quando revelam, com lágrimas sinceras, "deixei o meu coracäo em Africa", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha uma vida täo boa". O meu pai, na véspera de morrer, sonhou que andava a fazer uma instalacäo no Sommershield, e que eu tinha ido com ele na carrinha; depois fomos petiscar ao Sabié, uns pregos; Coca-Cola, eu; ele, um tricofaite. Estou a ver o meu pai a sorrir. "Gostas?" Sorrio. "Gosto". Precisamos de tempo para compreender. Para matar. ľara poder olhá-los de novo na cara com o mesmo amor. Para perdoar. 82 83 26. Nessa outra vida distante tive um gato chamado Boli-nhas. Periodicamente, fugia pela janela da cozinha, e desaparecia durante semanas. Regressava magro, sujo, em sangue, sem uma orelha, falto de unhas, com o rabo cortado, chamuscado e zarolho. Miava a janela por onde tinha saido, abriamo-la, e entrava lento e moribundo, perante a nossa incredulidade. Demorava a recompor-se. Quando ia, nunca davamos pela partida, nem sabiamos se regressaria. Nunca soubemos, e foi assim durante anos. Tambem havia o Gimbrinhas que o meu pai um dia trouxera do mato, dizendo, cuidado, e selvagem. O Gimbrinhas era enorme, tigrado, e nunca se afastava. Lstirava-se ao longo da secretaria do meu pai, sobre a papelada das empreitadas. O meu pai nao o retirava; dizia-lhe, no maximo, com orgulho de macho para macho, chega-te para la, e o Gimbrinhas chegava-se, continuando a sua funcao de espirito maior da casa. Se o Gimbrinhas era selvagem?! Era um bocado. Deu-me u mas unhadas na cara so porque queria beijar-lhe o na-riz. Nao estava para aturar criancas. Era um gato muito nubre, muito senhor. Eu tinha-lhe respeito e preferia agarrar-me ao doce Bolinhas, que nao era tigrado nem selvagem nem tinha vindo do mato nem se via nele qualquer pedigree. Depois veio a guerra, ou seja, a FRELIMO, e os gatos ftcaram abandonados em Lourenco Marques. Nunca consegui entender que tivessem deixado ficar para tras o Bolinhas e o Gimbrinhas. Nao me serviu a desculpa de que os haviam depositado em casa de alguem, tendo dai fugido. Que nao podiam transportar os gatos para 85 outro lugar. Que os gatos tinham de ficar. Näo acredito que tenham fugido. Disseram que os pretos os comeram. Os gatos e os cäes que os brancos deixaram para träs, näo os contentores com a mobilia de pau-preto nem os cinzeiros de pe alto, em pau-rosa, ou os dentes em mar-fim, foram todos comidos pelos pretos e pelos Chinas e pelos monhes. Nesse tempo näo se saia vivo de sitio nenhum. Havia a ilusäo da vida na metröpole; de comecar tudo de novo, escapar ao caos, ao morticinio. Depressa se desiludiam os iludidos, marcados pelo desenraizamento. De todos os morticinios daqueles dias, o que mais me tocou foi o dos animais domesticos, por serem os ünicos inocentes em täo complexo jogo de poder. 27. Piziam que eu já era uma mulher. Ao meio, na Bedford, entre ambos. O carro ia depressa. Estávamos atrasados. Já näo f alavam. Atravessava os lugares conhecidos, e sabia que era a ultima vez. Olhava com indiferenca as árvores grandes, coloridas, as sombras, a luz de amoníaco da tarde, as esquinas suj as, o canico pardo dos dois lados da estráda do aeroporto. Näo valia a pena fixar uma imagem. Tudo se extinguiria depressa. Näo voltaria a esse lugar, que sendo a minha terra, näo me pertencia. A minha terra nunca veio, depois disso, a ser um metro de chäo preciso - um talhäo do qual se pudesse dizer "pertenco aqui". Ou, "véem aquela janela no 4° andar, foi ali"; "onde está agora aquele prédio, a minha mäe..." A minha terra havia de ser uma história, uma lingua, uma ideia miscigenada de qualquer coisa de cultura e memória, um näo pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao mesmo tempo poder ser tudo, e de todos, se me quisessem, para que merecesse ser amada; quanto custava o amor? O meu corpo tornou-se devagar a minha terra. Mate-rializei-me nela, e todos os dias voltava ao anoitecer ä minha terra, e dela saía de manhä. Quando parámos no aeroporto, o recado de que era portadora já me tinha sido repetido inúmeras vezeš. O recado era importante: a pretalhada, nesses dias, ma-tava a esmo; prendia, humilhava aleatoriamente. Sentía-mo-nos moribundos de vida; já nem se falava de poder. Tínhamos medo. E isto era a verdade. A verdade do fim. 86 87 A vida de um branco em Lourenco Marques tinha-st tornado um jogo de sorte ou azar. Joguei esse jogo, sem perdas de maior, umas semanas antes da partida, enquanto esperava a boleia do meu pai, numa das esquinas da 24 de Julho: a da Escola Especial. Era um lugar com muita sombra, muito fresco, essa esquina. Vestia umas calcas castanhas de tecido de licra, compradas na Africa do Sul. Um jovem negro que se deslocava rapido na minb;i direccao, sem qualquer intencao aparente, ao aproximar--se, abracou-me com a esquerda, esmagou o meu corpo contra si, arrebanhando com a mao direita o meu monte de Venus, apertando-o com forca, como espremeria um ca]u para sumo. Olhou-me nos olhos, muito perto, sem temor, sem culpa. Largou-me sem palavra, e continuou rapido, sem se voltar. Permaneci na mesma posicao, paralisada, muda, com os olhos abertissimos. Minusculos pontos brilhantes rebentando ao redor de mim. Nao procurei ninguem. Nao vi ninguem. Nao sei se alguem me viu. Nao sei se havia gente na rua. Nao sei se o meu pai chegou logo, se demorou. Quando chegou, subi silenciosamente para a carrinha, e ele levou--me aonde tinha de me levar. Nunca lhe contei isto, nem a minha mae. Tinha de poupa-los. Evitar chatices. Podia ser um rastilho. Com o meu pai nunca se sabia. Era neces-sario evitar que ele se metesse em sarilhos naquela epoca. O tempo dos brancos tinha acabado. Um acontecimento como o que acabei de descrever, em pleno dia, no meio da cidade, no tempo dos brancos, 88 nunca sucederia. A acontecer, garantiria a este jovem lin-cliamento sumário em poucas horas. Haveriam de encon-trá-lo. Morreria ele, ou outro parecido, mas haveria morte. Ele sabia-o. Agora, nada o poderia atingir. Porque o sabia, ousara fazé-lo, olhando-me simultaneamente nos olhos, com vitória. Tudo era possivel nesses dias. Mas, sobretudo, tinha chegado o seu tempo, coincidindo com o fim do meu. Eu era ali a figura da terra vencida que pode saquear-se. "Os negros mataram, á catanada, o marido e os filhos da Conceicáo, no Infulene; lembra-te disto, desmembra-ram-no todo, estava espalhado no milheiral... foi o teu pai que lhe encontrou os bocados...! " Já és uma mulher, tens de lhes contar o que fizeram á Candinha do Jaquim, com o pau... que a usaram todos, e depois lho espetaram por baixo ate lhe sair á garganta, até morrer como Cristo." Mas na metropole náo conheciam a catana. Seria necessário descrever as caracteristicas e potencialidades dessa arma. So depois contar. Largas como as de talho, a maior parte, mas mais longas, com láminas largas, ligeiramente curvadas, ou náo, dependendo do tipo de fabrico; pesadas, afiadas, cortando granito. Abriam mato, capavam, esventravam, decepavam, trinchavam. As catanas eram dóceis ás máos dos negros. E frias. Lavavam-nas cuidadosamente com saliva, lambendo-as, e limpavam-nas á camisola suja. Uma catana valia ouro e tinha vida propria. O seu espirito. Havia um espirito em cada lamina. Uma catana podia transformar qualquer corpo vivo numa massa aleatória e informe de órgáos. Em segundos. 89 Era um instrumento de morte e poder como nenhum outro. Näo tive medo de armas de fogo, porque a morte estava escondida dentro delas. Mas urna catana trazia as entranhas descobertas, brilhava, tinha manchas que nunca saíam. Urna catana era a carantonha gozona da morte, com os lábios pintados de vermelho. Nos dias que se seguiram ao 7 de Setembro a negra-lhada perdeu o freio, e na Machava, no Infulene, na Matola, na Malhangalene, e em todo o lado, chacinou, cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os gatos, cäes, galinhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram-nos agonizando sobre a terra, empapando sangue; salvavam-se as galinhas cafreais de pescoco pela-do. E os gatos pretos. "Quando os viste jogar ä bola com as cabecas, na estráda do Jardim Zoológico... contas tudo... tudo o que roubaram, saquearam, partiram, queimaram, ocuparam. Os carros, as casas. As plantacôes, o gado. Tudo no chäo a apodrecer. Tu vais contar. Que nos provocam todos os dias, e näo pode-mos responder ou levam-nos ao comité; que nos postos de controle nos insultam, nos humilham, nos cospem em cima; que näo nos deixam ir ä igreja; que prenderam o padre e o pastor adventista por recusarem parar o culto. Que nunca sabemos se regressamos a casa. Que depen-de da vontade deles. Julgam-se reis disto, que é deles, que mandám. Como se eles tivessem feito esta cidade, tudo o que aqui está. Tudo isto que é nosso. Conta que prendem, torturam, mátam sem olhar a quern; que näo há comida, que tudo o que chega da ajuda internacionál é para os grandes da FRELIMO, que näo chega äs lojas. Conta quantas horas estás na bicha do päo para chegares de saco vazio. Diz-lhes que tudo o que lá ouvem nas notícias é menti-ra, que o Almeida Santos e o Mario Soares sáo uns cáes que nos estáo a vender por meio tostáo. Que ponham o Spínola. Esse tem pulso. É teso. Tragam-nos o Spínola. Diz que náo conseguimos vistos para a Africa do Sul, nem para a Rodésia. Que tentámos tudo. Que havemos de regressar; temos de arranjar espaco num navio para meter a mobília, e só com cunha. Diz á tua avó... umas caixas grandes, pelo correio... a ver se náo chegam com tudo partido. O pau-preto, que lá valerá dinheiro. E as moedas de prata, o peso delas em prata. Ela que aconchegue essas coisas onde houver espaco. Os teus livros da Anita. A ventoinha grande. O candeeiro de secretária do pai. A máquina de escrever. As jarras de porcelana do Raul da Bernarda que trouxe no meu enxoval. O servico de chá. A cabeca da máquina. Papéis, fotografias, o teu diploma da primeira comunháo. O servico de chá chinés." 90 91 28. No 7 de Setembro, o Domingos escapou-se ä catana por um pescoco negro, e fugiu com a mulher e a filha para a cidade. O Domingos criava porcos e galinhas no Vale do Infu-lene. Quer dizer, os pretos do Domingos criavam-lhe os porcos e as galinhas, enquanto ele fornicava a viúva do outro lado da estráda. A machamba ainda lá deve estar, ä beira da velha estráda do Infulene, amurada de canico dos dois lados, ä direita de quem vem do Maputo em direccäo ä Matola, no cruzamento com a picada de areia que ia dar äs terras do Cändido. O Domingos näo tinha luz electrica, porque näo fora criado com ela na Metropole, portanto, näo precisava. Por isso, a sua casa, ä noite, enchia-se da luz mortica dos candeeiros de petróleo, que tremeluziam através das redes mosquiteiras nas janelas todas abertas. Ä noite, no Infulene, näo se respirava, porque os mosquitos colavam-se äs paredes da traqueia e da laringe. As paredes dos Domingos, lembro-me bem, estavam pintadas, de cima-abaixo, com uma cor rubra, seca, de mosquito esborrachado há muito tempo. Como se fosse um papel de parede com arabescos. Foi-se fazendo essa pintura, com os anos. Era normal, nas casas dos colonos, sobretudo fora da cidade. E o Infulene era um päntano. Näo havia nada para fazer, no Infulene, ä noite. Eu gostava de ficar por lá a dormir com a filha do Domingos, que era a minha maior amiga. Ouvíamos concursos na rádio, ou música no gira-discos. Líamos Sarah Beiräo. Mentira. Ela contava-me a história, excepto o fim, e de- 93 pois, sim, ela emprestava-me Sarah Beiráo. Falávamos de rapazes. Ela falava. E riamos. A Domingas era mais velha que eu. Tomávamos ba-nho de imersáo juntas. Eu achava-a grande, e bonita, porque já tinha mamas e pélos púbicos, mas na verdadi? ela era apenas grande. A Domingas foi quern me masturbou pela primeira vez. Logo pela manhá, com a banheira cheia de água morna, estendeu a sua perna entre as minhas, e procu-rou, com o pé, a entrada da minha vulva, que esfregou devagar, fitando-me trocista e rindo-se. Sabia-a toda. ]■ eu fitei-a, e ri-me, e deixei-me ficar a olhar para ela, rindo e gozando, igualmente. Quis tomar banho com a Domingas a vida inteira, mas depois veio o 7 de Setembro, os revoltados partirarn a banheira, e tivemos de negar-nos esses prazeres táo higiénicos e marginais. No 7 de Setembro, o Domingos salvou a mulher u a filha, mais nada. A casa do Infulene foi arrombada, saqueada, queimada, o gado levado ou morto. Os negros do Domingos estavam fartos de carregar sacas de farinha e milho e farelo que nunca eram para eles. O Domingos teve sorte, porque o Cándido, o da machamba ao fundo da picada, que, como ele, criava porcos e galinhas, foi assassinado á catanada, bem como os filhos, mais tudo o que era branco e mexia: cáes, gatos e periquitos. Os corpos foram retalhados e espalhados pela machamba; nenhuma cabeca ficou perto de nenhuma perna. A mulher do Cándido, que nessa noite ficara na cidade, foi depois ver o que sobrava. Como sobrou nada, a náo ser os cepos brancos em putrefaccáo, pediu aos homens da FRELIMO que lhe abrissem uma cova no cháo, onde enterrar o colectivo de homem e ňlhos e animais, todos irreconhecíveis. Náo interessava quern era quern. A vida tinha de continuar, e continuou. Uns meses depois, o comité avisou que as casas saqueadas e desabitadas, náo regressando os proprietaries, seriam ocupadas pela populacáo das palhotas. Para os brancos, nada havia a que regressar. Tinham esgotado as flats para alugar no Maputo. Náo queriam perder a propriedade - pelo menos, nessa altura, ainda pensa-vam poder manté-la - mas temiam regressar. Assim, o Domingos justificou a casa negociando, com o comité, aulas de alfabetizacáo para o povo, dadas pela filha, que andava no liceu. A filha chamou-me como ajudanta, e as quartas e sábados, passámos a ensinar as primeiras letras aos filhos dos que assassinaram o Cándido na casa queimada. Náo havia móveis, apenas o cháo e paredes de cimento lambido pelas chamas. Os negritos chegavam ás trés da tarde, sentavam-se sem ordem alguma, no meio da sala ou encostados ás paredes. Vinham descal-cos e esfarrapados, como desde sempre; vinham com as pernas e os bracos brancos e vermelhos de pó e terra, a cara ranhosa e os olhos remelosos. E eu e a Domingas, muito brancas, muito limpas, muito bem calcadas, muito educadas, desenhávamos o alfabeto, a giz, na parede queimada, que depois lavávamos para secar depressa e servir outra vez. Trazíamos os cadernos e os lápis, onde lhes desenhávamos linhas de is e us e pes e res, que tinham de copiar. Náo falavam portugués, a náo ser o mínimo, mas entendiam tudo o que lhes explicávamos. E, ao fim da tarde, quando comecavam os mosquitos, os filhos dos que mataram o Cándido iam-se embora felizes por terem aprendido muitas letras. Foi assim que, 94 95 durante doze meses, eu e a Domingas alfabetizámos, com autorizacäo do comité, os negritos do Vale do Infulene. Depois, mandaram-me embora para a Metropole, para ser uma mulher, e a Domingas continuou, sozinha, a assegurar o património do pai, que nunca foi seu. Quanto a nós duas, a guerra roubou-nos o prazer. Roubá sempre. Quando crescemos, e a vida nos corrompe, torna-se impossível voltar äs primeiras letras, äs que näo conhe-cem, naturalmente, qualquer corrupcäo. Mas isto já foi tudo na outra vida. 96 29. 1975, Novembro. Voos da TAP esgotados há meses, para qualquer destino. Nos dias anteriores tinha havido um corrupio. As malas. Os fundos falsos. As calcas de La Finesse verde--alface e amarelo-canário, para o Inverno portugués, täo cinzento e castanho e azul-escuro. Meias. Cuecas. Soutiens. Pensos higiénicos Modess. Camisolas de manga comprida. Um pesado casaco de lá clara, fora de moda, apertado ä pressa. Lourenco Marques esvaziava-se de brancos, ricos e pobres, desde muito antes da independéncia. Tínhamos ficado para o fim. O meu pai acreditava num reviralho, numa Africa branca na qual os negros haviam de se assimilar, calcar, ir ä escola, e trabalhar. Os negros haviam de nos sorrir, sempre, e agradecer o que fizéramos pela sua terra, quer dizer, pela nossa terra, e servir-nos, evidentemente, porque eram negros, e nós brancos, e esta era a ordern natural das coisas. Näo é normal habituar os cäes a coleira e trela, ou abater um cabrito e assá-lo? Pois essa era a ordern do mundo. O meu pai acreditava num movimento de brancos, num outro movimento de brancos, após o de 7 de Setem-bro. Um que havia de vencer mesmo, que seria financiado pela Africa do Sul ou pela Rodésia. Havíamos de expulsar o poder negro da cidade, e remeté-lo ao mato, de onde tinha vindo, onde pertencia, e domesticá-lo ou chaciná--lo. Um ou outro, conforme fosse merecido. Uma Africa de brancos, sim, uma Africa de brancos, repetíamo-lo. Porque aquela terra, senhores, era do meu pai. O meu pai era todo o povo mocambicano. Sentia forca e raiva, 97 k e espumou até ao último dia, recusando baixar a voz perante um negro, mostrar-lhe os documentos, as guias de viagem, tratá-lo por vocé, dar-lhe a mäo em sinal de aceitacäo da sua autoridade. Com ou sem independéncia, um preto era um preto e o meu pai foi colono até morrer. Na véspera da sua morte, quando já näo comia nem bebia, sonhou que os pretos lhe tinham metido os cabos pelas paredes, tudo mal feito, e gritava com eles. Andava enrolado naquilo. Sofria. Perguntei-lhe, "ainda te lem-bras muito do Sommershield?" Lembrava; sabia de cor o nome de todas as ruas, a localizacäo dos prédios, a designacäo comercial das lo-jas, em cada esquina, e os nomes próprios e apelidos dos construtores encarregues de cada obra. Recordava cada um dos seus pretos favoritos: o Samuel, o Ninhanbaka... "Nós tínhamos feito daquilo a America... se aqueles gajos... e estes...", e abanava a cabega, soltava um rangido, fechava os olhos, encolhia os ombros até ao pescoco, sacudia-se como se quisesse soltar pensamentos: "pretos do caneco". Em 1975 já näo se construía em Lourenco Marques. Tudo parou. Já näo havia obras por onde enfiar cabos de eleetricidade, e, mesmo que as houvesse, seriam entre-gues aos cooperantes soviéticos, cubanos, do Báltico, näo a um colono mal visto, com má fama, um passado manchado, preso por um fio. A pouco e pouco, os negros do meu pai desapareceram no canico, porque já näo havia trabalho. Näo restou um. Nunca mais vi os pretos do meu pai. Na escola, o professor de Frances, era preto. II était du Senegal. Noir. Le francais au noir! A História era a dos reinados anteriores a Gungunha-na, essa etnia, e as outras, que éram muitas. E das guerras que travavam. Os bantu, os shona, os do Monomotapa. Os nguni, depois os zulus. Os brancos riam-se. Aquilo era a história dos pretos! Os pretos julgavam que tinham história! "A história dos macacos!" Em Portugués escrevíamos poemas sobre o colonia-lismo, a exploracäo do homem pelo homem, a luta armada, o fim do lobolo e da candonga; a FRELIMO como religiäo, os salvadores do povo, Samora Machel, Graca Simbine, Eduardo Mondlane, esse sim, que era "casado com urna branca, porque fora educado na Európa; nem era bem negro, era mais mulato" - com esse havia "a porca de torcer o rabo, por isso o assassinaram; foi o Samora" - e o Chissano, "falso como Judas". Em Educacäo Visual realizámos trabalhos colectivos: murais sobre a revolucäo, cartazes sobre a revolucäo... Mas aquilo näo era escola. Séria, portanto, necessário dar-me destino. Eu era branca. "Eu já era urna mulher. Era perigoso". No dia viňte e tal fecharam-me as malas e os sacos, e eu näo disse nada, porque urna filha "näo tinha que-rer, näo era achada"; atiraram-nas, ä ultima da hora, para a caixa fechada da Bedford, sobre tubos, cabos, fichas-fémea e macho, interruptores, e outros apare-lhómetros para medicäo de voltagem, naqueles dias já sem uso; a minha mäe penteou-me aos repelôes, como sempre, e disse-me, "hoje, vestes este fato. Vais para a Metropole". 98 99 Subi para a carrinha com ordem para näo me sujar; näo que ma tenham dado - eu sabia - näo pódia sujar-mo nunca: tinha esgotado a prerrogativa ao nascer. Por isso, sujava-me muito, primeiro que tudo, prioritariamente. No dia viňte e tal subimos os trés para a Bedford, em siléncio; eu, para o meio; eles, um de cada lado, y conduziram-me ao aeroporto, pela picada que saía da Matola Nova: Bairro Salazar. O meu pai chamava-lho Bairro Salazar. Deixou-nos pó vermelho na garganta. íamos depressa. Atrasados. Acho que foi a última vez que estive no meio deles. Entre eles. Nesse siléncio revi a matéria. Era a portadora da mensagem; levava comigo a verda-de. A deles. A minha, também, mas eles näo imaginariam que eu pudesse ter uma verdade só minha, sem a sombra das suas mäos. E revi a matéria. 30. O meu pai conduzia a Bedford branca na picada que atravessava toda a Matola Nova até ä estráda de alcaträo que ligava Lourenco Marques ä Matola Velha, lá mais ao fundo. E eu näo ia de branco. Ele guiava depressa demais, porque estávamos atrasados para o voo. Eu ia nesse dia para a Metropole. O voo era ao final da tarde, e sabia-se que precisaria de umas boas horas para cumpri-mento de todos os trämites alfandegários. Conferéncia de documentos. Vasculhar as malas. Passar no controle de metais, no apalpamento... Ouvia o estrondo dos cabos de electricidade, sacudidos pelos buracos da picada, na caixa da carrinha, lá atrás, esse lugar que ia deixar atrás, atrás; passávamos junto ä canti-na, do lado direito de quem ia, onde os negros esperavam pelas boleias, e vendiam tudo, lenha, montes de carväo, galinhas, cabritos, capulanas e raizes para mascar. Era aí que eu pedia para ir comprar garrafas de cerveja Laurenti-na ou 2M ou Seven Up, ou pedacos de gelo ou enxofre ou óleo ou azeite, ou qualquer coisa de que a minha mäe se tivesse esquecido, e näo houvesse outra solucäo, porque o meu pai näo estava por perto. Podia descalcar-me äs escondidas no mato, e ir clandestinamente, sem sapatos, a ver se conseguia que os meus pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e sola dura, rachada. E gin-gava como uma preta, para experimentar o que era ser preta. E as mamanas passavam por mim e riam-se, e os negros também. E diziam-me coisas que eu näo percebia, riam-se, a branca, a branca, essa branca do electricista. E eu ria-me. Tinham reparado em mim. Parecia-me com eles. Tinham-se rido. Ia descalca. E näo podia. 100 101 íamos aí, a meio do caminho. Á passagem da carrinha levantava-se uma nuvem do poeira vermelha que caía sobre a carapinha dos pretos, e a pele castanha dos pretos e os tornava irreais, seres táo extraterrenos, intensos, proibidos. Táo misteriosos. Sei que nao ia de branco, porque era o dia da minha partida para a Metropole, e tenho a certeza que cheguei a Lisboa com calcas de terilene azul-marinho. E foi Junto á cantina, essa cantina, que o meu pai teve de volta r atrás. Esquecera-se de alguma coisa que fazia parte da minha bagagem. O anel de esmeraldas da minha tia, que eu teria de passar na alfándega, no dedo médio; esta-va muito largo, ataram-lhe cordel para o engrossarem u mo cintarem ao dedo; largo, mesmo assim: era de ouro branco com pedras que considerei desprezíveis; tinha outra ideia do que deveria ser uma esmeralda; a minha tia, quando retornasse, nao teria dedos que chegasseni para os anéis, pelo que os ia distribuindo. Isso contrariou-me. Nao o anel. Voltar atrás. Perder vinte minutos. Vestiria o que me pedissem, colocaria nos dedos os anéis que me entregassem, se quisessem até os engolia, ou entalava-os debaixo das mamas, como se fazia com as notas, as moedas de prata e as pedras preciosas a sério. Queria sair dali para fora o mais de-pressa possível. Tinha ficado feliz quando soube que na decisáo finál sobre o meu futuro tinha vencido a partida. Hou-ve uma decisáo? Nao interessa. Que se tinha decidido que eu me iria embora no primeiro aviáo disponível. Qualquer desculpa serviria: os estudos, a seguranca, a minha virgindade... Dali para fora. A andar. Rápido. Queria, como uma eriminosa de guerra, voltar costas a toda aquela esquizofrenia que näo me permitia ser legitimamente quem eu era nem viver com o que eles eram. Precisava de uma identidade. De uma gramática. Melhor, de poder mostrá-las sem medo. Sou isto, pronto, sou isto, assim, agora, olhem, arranjem-se. Vestiam-me e calcavam-me de branco, mandavam--me pisar o raio da terra táo negra e húmida que chiava debaixo dos pés, ou táo vermelha que o verniz ou o couro se pintavam de uma aguarela de sangue claro. Näo havia forma de poupar o meu corpo as manchas da terra, contudo estava proibida de me manchar dela. Näo havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca. Na minha memória estou sempře vestida de branco, preocupada em näo me sujar. O vestido branco que näo usei nesse dia é a mais clamorosa metafora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada ä saia que näo pode sujar, olhando os sapatos brancos que näo pode empo-ar. É assim que me vej o, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas. Do lado do volante, o meu pai. Vais para a minha terra. Vais gostar. Pede ä tua avó que te faca toucinho entremeado com couve branca. Do lado da janela, a minha mäe. Näo te suješ. Penteia-te. Sempře despenteada. Tem cuidado para que nada chegue partido. Olha o anel da tua madrinha. Sim, olharia por tudo. A quem entreguei o anel da minha madrinha? Era Novembro, fazia muito calor e eu usava um vestido branco em tecido črepe. Näo me podia sujar. Tudo isto parece certo, mas é mentira. Eu vestia de azul. 102 103 Agora, depressa, para o aeroporto. A vida na colonia era impossivel. Ou se era colono, ou se era colonizado, nao se podia ser qualquer coisa de transicao, no meio daquilo, sem um preco a loucura no horizonte. 31. \,'a noite ja longa, lä for a, homens cavalgando camelos ;iproximam-se do aviäo para prestar assistencia tecnica. Vejo-os passando sob a asa. Alguns, param. E uma imagem invulgar, portanto estranha. E noite, c uma noite especialmente so. A primeira noite em que ninguem me mandou apagar a luz, e em que me enca-ininho para a mulher que escreve estas palavras. A mesma mulher, ainda menina, o mesmo cabelo e os olhos claros vazados pela miopia, as mäos com muitas linhas, as pernas gordas nas coxas que continuam a rasgar as calcas entre as pernas. A mesma pessoa, como poderei cxplicar isto melhor: a mesma pessoa. Na noite, as forrrias lentas, ciaras dos camelos encima-dos por homens de turbante. A toda a volta, uma escuri-däo apocaliptica. Nem uma luz. Foi hä trinta e tal anos. E o aeroporto de Dakar. Acabämos de fazer escala no Senegal por imperativos tecnicos. Näo saimos do aviäo, näo podemos levantar-nos nem desapertar os cintos de seguranca. Lembro-me que e o Senegal porque na altura pensei, e o sitio de pnde vem a margarina. Havia uma margarina muito boa do Senegal e barravamo-la no päo. Näo me letnbro se fizemos escala em Joanesburgo ou em Luanda. Se calhar fizemos. So me lembro da margarina do Senegal, e dos homens de turbante sobre camelos, rodeados pela mais funda escuridäo. Digo ä hospedeira que preciso de procurar o anel de esmeraldas da minha madrinha, um que trazia neste dedo, que me caiu dos dedos num momento de esque-cimento, que näo dei por nada, que deve ter rolado para 104 105 träs, ou para a frente. Diz-me que näo posso levantar-me. Estou desesperada, e um anel de esmeraldas, näo me pertence, tenho de o entregar a alguem, depois, näo sei quando, estä-me largo, caiu, preciso de me levantar e de o procurar. Ela diz-me que näo. So quando chegarmos a Lisboa. Que tenha paciencia. A forma como olhämos para as nossas mäos aos dez anos, e a forma como olhamos para elas, agora, estou n olhar para as minhas mäos agora, näo muda. As mesmas mäos. Como puderam envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nos dos dedos. Os mesmos olhos. () mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesma mäos. Reaccöes iguais perante os acontecimentos, a expres-säo dos sentimentos, como a alegria, mas sobretudo o medo, näo mudam relevantemente ao longo do tempo. A partir de certa idade, muito cedo na infäncia, ja somos nos, o que hä-de perseguir-nos sempre. Näo me lembro de sobrevoar Lourenco Marques. Näo vi pela ultima vez a baia de Lourenco Marques. Menti-ra. Vi, sim, qualquer coisa! O mato longo lä em baixo, enquanto o aviäo ascendia. O mato quente. Mais nada. Quando partimos, muito ao final da tarde, Lourenco Marques ficou para träs do pör-do sol, muito doce, muito madura, mas ja longe quando levantämos; era o lugar onde nunca voltaria; eu sabia; agora tinha de me prepa-rar para ser uma mulher, comecar uma vida nova, fazer tudo certo. Sabia que era dificil. Que estava marcada por uma larga solidäo invisivel. Näo sabia como tinha acontecido nem porque. Sei-o, hoje, porque reconheco o meu pensamento seguindo os mesmos caminhos, enformado nos mes- nios moldes. Porque sou a mesma. Lembro-me de como pensava. Ja estou aqui, contudo ainda la estou. Na verdade, todo o passado, presente e futuro ali se fundiram, na-quela viagem, e eu so posso falar usando as palavras de fronteira, de transicao, manchadas, duais que ai se formaram. No aeroporto de Lourenco Marques, nos momentos que antecederam a entrada para a alfandega, lembro--me de uma porta de vidro. Quando se atravessava, nao havia regresso. Via os que tinham entrado, ja distribuidos por filas. Tinhamos chegado tarde, porque o meu pai esquecera--se do anel da minha madrinha, o que perdi no aviao, e ainda era preciso cumprimentar todos aqueles brancos que se foram despedir da filha do electricista, levando recados, cartas, pequenas encomendas que eu deveria encaixar na bagagem de mao, avisos sobre como deveria contar tudo na Metropole, a mesma lenga-lenga, contas tudo o que nos tern feito, diz que perdemos tudo, que o dinheiro nao vale nada, que nao ha que comer, que mataram os Monteiros, que a filha do Sousa mais o mari-do estao presos, conta que estamos quase a ir. Diz que eles hao-de matar-se uns aos outros. Que nao querem trabalhar e morrerao de fome. Que Africa sem brancos esta condenada. Vao chorar e clamar tanto por nos! Mas, agora, vai, depois la nos encontraremos e falare-mos. A gente vai a seguir. Agora vai que ja e tarde, vai, vai, e neste instante em que tudo esta perdido, em que ja nao ha volta, em que entro por essa porta de vidro, apos os beijos formais, um sentimento estranho que nao 106 107 consigo controlar, um vazio, um nunca mais vou voltar, uma coisa que se perde, urn vazio, e esse amor täo escon-dido, täo evidente pelo meu pai, que me projecta para os seus bracos, contra a minha vontade, como uma bala que o atravessa e o torna exangue, eu chorando a fio, näo conseguindo largar o seu corpo, os seus bracos enormes, o seu corpo enorme, as suas mäos enormes, a sua carne enorme que beijo, que näo quero largar. E volto aträs, chorando a fio, abracada a qualquer parte desse corpo sagrado, chorando, chorando-o, arranhando-o de amor, como se o mundo acabasse ali, e acabava, depois a minha mäe, que me sacudia, envergonhada, e eu, envergonha-da, tanta gente, näo chores, filha, olha as pessoas, näo chores, filha, agora vai que ja e tarde, e o corpo doce, doce, äcido, suado do meu pai, o corpo querido do men pai, a camisa branca e doce, äcida, suada, encharcada das lägrimas que eu näo percebia nem controlava. E agora vai, agora vai, e atirou-me para dentro da porta de vidro, ao colo atirou-me para dentro da porta de vidro, e eu voltei-me e vi o seu rosto contrito, ja do outro lado, as suas duas mäos inteiras espalmadas contra o vidro, o sorriso misturado com lägrimas. As duas mäos iguais äs minhas mäos. Estas, de carne, que agora escrevem esta frase. As mesmas. 32. "La pela Metropole andam muito amiguinhos dos pre-tos!, mas que vejam bem quern eles sao, e a paga que nos deram por tudo o que aqui enterramos, e era nosso; esta cidade, o trabalho, donde comiam. E por ti que vao saber. Tens de contar. Conta a todos." Quando desci da carrinha, no aeroporto de Lourenco Marques, e era a ultima vez, ia toda vestida de sangue: era terra vermelha, mas na verdade, sangue, que se foi soltando durante a viagem aerea, realizada na noite por pudor, nao para dormir. Por vergonha, em silencio. "Enfta no dedo o anel-esmeralda da tua madrinha. Se perguntarem, diz que e teu". "Diz que nos vamos a seguir, que o teu pai vai mon-tar uma oficina de electricista... ve la sitios baratos para alugar... Diz que ficamos sem nada, que vamos comecar do zero." O aeroporto estava cheio: barulhos de coisas e pessoas, cheiro a suor, ansiedade, medo, perda. Recados, cartas, pequenos objectos para alguem. "Nao te esquecas do que tens de contar. Agora es uma mulher. Ja es uma mulher. Esta tudo nas tuas maos". "Coragem. Nao te esquecas de contar a verdade!" E-sem uma palavra, inerte, ignorando-os, ignorando a verdade deles, chorei. Chorei porque tinha chegado ao fim; ao momento em que pressentimos nunca mais voltar a nenhum lilas, a nenhum laranja, ao cheiro e vida dessas cores; chorei abracada ao meu pai, so mais uma vez, ao meu pai, e depois... "nao te esquecas, rapariga; vais estudar para seres uma mulher"; e tendo voltado de novo aos bracos 108 109 do meu pai, para chorar o que so ele poderia saber que chorava, despedi-me dele ate uma outra vida. E nesse momento houve um vacuo de tempo em que nao fomos pessoas, nao tivemos culpas nem prazeres; nada humano - so nos; senti ao longe o odor da sua car-ne transpirada, acida e doce, que era a minha, dos seus ombros e rosto, um abraco que nao pudemos desapertai nunca; e ainda nao, e em nenhum lugar, nunca, porque nao era apenas um abraco, mas a alianca invisivel, muda, que mantinhamos, a qual fui fiel mesmo quando o trai logo a seguir. Tudo o que me interessa e ser-lhe fiel e fa-zer justica e esse momento de vacuo em que nao fomos humanos, mas so os dois, um do outro, sem tempo. Quando nos reencontramos, uma decada depois, ja nos tinhamos despedido excessivamente. Para que tudo outra vez, se o nosso tempo tinha acabado?! Era a ultima hora, a ultima hora, e ele empurrou--me para a porta de embarque; olhei para tras, antes de entrar, chorando: tinha de ir, porque levava o anel de esmeralda, as cartas, os pacotes, os recados sobre a verdade. Tinha de ir. Peguei na pequena malinha de mao, um necessaire creme, porque todas as mulheres tinham um necessaire, e eu, diziam, ja era uma mulher, voltei-me, parei de chorar, e parti. Ainda estou a olhar. Ainda estou voltada. Do outro lado da vidraca, juntos, acenando, eles ainda estao la. Longe, la. Do outro lado, la. A minha mae com um ves-tido azul-escuro de bordado branco na gola. O meu pai, uma camisa branca manchada de po, as calcas ao fundo da barriga; desbarrigado. Despenteado. Bronzeado de colono. O sorriso de olhos vermelhos do meu pai. O sor- riso a chorar do meu pai. As suas maos iguais as minhas coladas ao vidro da porta. Quando o aviáo tornou altura houve dentro da cabina um siléncio fundo sobre a baia de Lourengo Marques, os suburbios, as palhotas, as terras de cultivo, o mato que vi enquanto subiamos. Em siléncio, mas num siléncio ainda mais fundo, porque afinal já era uma mulher, voltei a chorar o que perdia e haveria de pagar. A divida alheia que me caberia. Nunca entreguei a mensagem de que fui portadora. no in 33. Apagam-se as luzes no interior da aeronave. Faltam horas nara aterrarmos em Lisboa. Podemos descansar com os nossos pesados restos coloniais, se conseguirmos fechar os olhos por escassos minutos. Näo a conheco. E uma mulher morena, bronzeada, alta, imponente. Veste um fato de saia e casaco de sarja branca, justo. Traz uns enormes öculos escuros de arma-cäo branca. Recostada num sofa individual branco, descai o busto negligentemente, entreabrindo as pernas de frente para as enormes janelas franqueadas ä brisa feliz da Prima-verä; as cortinas de fino algodäo branco, translücidas, esvoacam como as de uma casa de praia ä beira-mar. As mäos morenas, com irrepreensiveis unhas brancas; os cotovelos apenas pousados nos bracos do sofa. Como alguem que se oferece para receber uma dädiva invisivel. Acabo de chegar de fora, de longe, onde afinal sem-pce estive. Entro na imensa sala branca e contemplo-a de perfil. Criancas correm de um lado para o outro, ä sua volta, ruidosas, em desassossego. Näo as conheco. A mulher, como urn robot desligado, näo se incomoda, näo se sobressalta. A voz de uma outra mulher, que atravessa a sala, apres-sada, carregando ä cintura uma trouxa de roupa para lavar, informa-me, indiferente, "esta e a filha do teu pai". Ouco e corrijo de imediato, mentalmente, "esta e a outra filha do meu pai. Recordo as nunca assumidas infideli-dades do meu pai e acrescento, so para mim, "pode ser!" Activada pela voz que passou, a mulher majestosa levan- 113 ta-se, alisa a saia antes de se endireitar, volta-se para mim e estende-me o braco, sorrindo, olhando-me por cima dos öculos. E bonita, caramba. E uma mulher enorme, inteira, com um longo e farto cabelo escuro, umas longas pernas bem torneadas, como uma miss das ex-colonias, como a Ana Paula Almeida, como a Riquita... Sinto-me insignificante perante o esplendor sensual daquela filha do meu pai. Assim que me estende o braco, as frentes do casaco, de-sabotoado, mas encostado ainda ao peito, abrem-se com-pletamente, e expöem todo o seu tronco: e vejo-a nua da cintura para cima. Estende-me o braco, mas eu näo posso responder com o meu, porque agora olho apenas aquele espaco nu ate ao recorte pübico que a saia descaida permi-te. Urn nu escultorico, de märmore: as mamas crescidas e cheias, espetadas na minha direccäo como setas, os peque-nos mamilos tesos, de um castanho quase rosa, o abdomen musculado, esticado, o ventre liso, a perfeita curva da anca. E como se, consciente de tanta majestade, tivesse de-sejado tornar-se irreal, toda a sua pele brilha sobre o bronzeado, acrescentada de luz. Uma finissima pelicula de po prateado cobre-lhe o pescoco, as mamas, o abdomen, o ventre, as ancas, cada milimetro da generosa pele. Pinta-a. Veste-a de nudez. E tal nudez e o tesouro. Mantem o braco estendido na minha direccäo. Continua a sorrir, a olhar-me por cima dos öculos, que ainda näo tirou. Quer ser minha amiga, embora näo mo tenha dito. Vai dizer-mo agora. Näo trocämos uma palavra. Mas vai falar agora. Sinto medo. Sinto muito medo da filha do meu pai. E depois chegamos a Lisboa 34. Eu tinha andado a roubar os pretos. Julgava que me iam lavar os pezinhos com agua de rosas?! Isto nao eram as Africas! "Ah, nao gostas de bofe com arroz? Andaste a roubar os pretos e julgas que havemos de te servir camarao num prato de ouro!" Nao se responde. Baixam-se os olhos. E mentira e e verdade, mas ambas precisam de voz, e nao a temos. E muito cedo. Eu ainda estava na raiz da verdade. Ainda la dentro, humida, crescendo, comendo terra, esperando terra. Todos os lados possuem uma verdade indesmentivel. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitira a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Ha inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Ha tantas vitimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Ha vitimas-vitimas e vitimas-culpadas. Entre as vitimas ha carrascos. Passa muito tempo ate termos a voz, ate termos salda-do, a bem ou a mal, a divida que pensamos dever; ate cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tao sujas, tao forcadas. Ate nao nos importarmos de ser apenas umas cabras, parias do sangue e da raca. Ate perder a fe e a cortesia. Tudo. 114 115 35. O meu pai tinha urna cara grande e suada cheia de ódio ou amor conforme os dias. Tendo eu preferido os do amor, calharam-me muitos dos de ódio. Quando ama-mos e nos violám num mesmo tempo, e näo podemos fugir, enfrentamos de igualmente perto a face do amor e a do ódio, e näo desviamos o rosto; sentimos o cuspo bater-nos nos lábios, nos olhos, e ouvimos até ao fim, sem pestanejar, sem um movimento muscular que possa ser mal interpretado. Näo podemos fugir. Torna-se urna certeza. Urna prisäo de alta seguranca dentro da qual sabemos que temos de resistir e sobreviver. O meu pai era voraz, devorava, vociferava todos os sentimentos que conseguia exprimir, e conseguia muito bem, com urna expressividade täo brutal que causava vertigens. Quando somos novos, acreditamos nesse amor ou nes-se ódio porque aquele é o rosto de quem amamos. Näo há mais ninguém, estamos entregues äs mäos dos que nos criaram e que dizem sermos seus. E somos. Mas custa ser de alguém a quem se deve urna fidelidade sem limites. Recebi todos os discursos de ódio do meu pai. Ouvi-os a dois centímetros do rosto. Senti-lhe o cuspo do ódio, que custa mais que o cuspo do amor, e enfrentei, olhos nos olhos, a sua raiva, a sua frustracäo, a sua täo torpe ideológia, e ouvindo, näo disse nada, nem um assentimento, nem um músculo se mexeu, e eu, inteira, era um näo. Tive medo do meu pai. Que me batesse com as maná-pulas, que me gritasse, que me dissesse tu näo és minha filha, porque a minha filha näo gosta de pretos, näo acompanha com pretos, näo sonha com pretos. Havia 117 uma raiva táo grande dentro de si, em amigável conví-vio com o amor que podia oferecer-me de um momento para o outro. Mas nao me arrancou um assentimento. Nunca ouviu da minha boča um tens razao, um realmente, um pois. No maximo, um percebi, como resposta a um percebeste? Po r-que ele podia obrigar-me a sentar, ouvir e calar, sujeitar-me a sessoes públicas e privadas de ideologia rácica, mas nao convencer-me das vantagens da raca nem do ódio. O meu pai nao me arrancou ao que eu era e pensava; o meu pai nao foi capaz de formar o meu pensamento. Escapei-lhe. Ele repetira-me demasiadas vezeš a sua lenda preferida, a de Sáo Martinho, o que reparte a capa. Por-tanto, tendo eu absorvido uma mensagem táo generosa, podia gastar á vontade o seu latim com a conversa dos pretos. Eu poderia ter ouvido a lengalenga vinte e quatro horas por dia nos altifalantes, como um prisioneiro em Guantánamo, e nao teria mudado um centímetro. Porque o que eu pensava, pensava com uma certeza inamovível. Nao foi fácil ser a filha do electricista. Sonhei muitas vezeš que o electricista havia de morrer de muitas manei-ras e deixar-me livre para pensar, para existir sem medo. Para lhe responder. E um dia morreu mesmo, sem que pudéssemos ter feito completamente as pazes, sem que eu estivesse totalmente crescida, e ele totalmente vencido, e agora está aqui sen-tado, a dois centímetros do meu rosto, a ler-me, e eu, sinceramente, só queria dizer-lhe que vivemos um tempo demasiado curto para o nosso amor, confuso, desajusta-do, injusto. Que foi só isso que nos aconteceu: um tempo, um espaco, um tabuleiro de xadrez errado para o amor. E que o traí para que pudéssemos levantar a cabeca. 36. Maputo/Lisboa, voo TAP, via Senegal Lembro a data em que desembarquei sozinha no aero-porto de Lisboa, pelas seis da manha de um dia no finál cle Novembro de 1975. Estava muito frio, e eu gelava. Mas csse nao foi o dia mais frio do Inverno de 75; se bem me recordo, essa estacáo foi especialmente rigorosa. Passada a alfandega, bem agasalhada no meu casaco de lá verde-alface, que pertencera á minha madrinha nos anos 50, e fora á pressa adaptado ao meu corpo, desci uma passadeira longa e curva que me levaria até pessoas que desconhecia, mas que me esperavam - a fa mília dos meus pais. Nó Carnaval seguinte, o meu tio pintou-se de palhaco, vcstiu o meu casaco de lá, as minhas calcas amarelas de tecido "la finesse", e foi tocar trompetě, bébado, para o meio da rua. Que foliáo! Que bem vestido de palhaco que ele estava! Em Portugal, habituei-me cedo a ser alvo de troca ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás. Mas o meu sentido de justica era um Pai-Nosso. Se me absolvia de culpa, eu podia atravessar, impassível, multidoes de acusadores. Nada me deitava abaixo. No entanto, o meu peito foi pactuando com o ridículo a que me expunha, e abriu-se a ele totalmente. Vém dizer-me que a čerta altura da minha juventude eu levava tudo á frente. Era um carro de combate, uma voragem, se quiserem. Depois veio uma tarde em que fui obrigada a dizer a verdade: "perdi tudo excepto os meus lápis n° 1." Respirei fundo. E doía-me muito o peito. 118 119 37. Era Novembro e eu tinha acabado de chegar. Nas Caldas da Rainha, em 1975, para ir para a escola atravessava uma rua negra, com alcatráo levantado nas bordas, sem passeio: um tunel de edlfícios muito sujos pelo tempo, dos dois lados da via. Era uma rua cinzenta--escura do princípio ao fim. Á hora a que ali passava havia ainda muito nevoeiro ou fumo ou frio opaco. A atmosféra era espessa, e eu atravessava-a como uma faca. Cruzava-me com trabalha-dores apressados, vergados pela hora matinal, pelo sono, pelo cansaco, pela pressa. Caminhavam muito rápido e de passo miúdo, com os olhos postos no cháo, usando casacos e bonés de fazenda axadrezada, cinzenta, preta ou castanha e fatos de trabalho escuros. Nunca lhes via a cara. Do lado direito da estráda, no início da rua, abria-se uma porta larga para as entranhas de uma oficina. Náo era uma porta, mas uma cloaca. Dentro, paredes negras de humidade e óleo velho. Quando passava frente ao portao, trés homens atarracados, com maos e roupa sujas do trabalho, gritavam-me comentários sexuais que me esforcava por náo ouvir. Colava o pescoco aos ombros, comprimia as paredes dos ouvidos, fechava os olhos, fechava-me, e mesmo sem querer escutava mamas, cona, rabo, palavras que vinham adornadas com advérbios ou verbos de péssima expressao. Insultos. Tinha 12 anos, quase 13, e insultavam-me por eviden-ciar mamas, cona e rabo, náo percebendo eu o desme-recimento. Insultavam-me por já ser uma mulher. Isso bastava. 121 Näo havia outro caminho para a escola. Era preciso ir por ali todos os dias. A minha avó era urna velhinha muito branca e vestia--se toda de preto. Quando lhe descrevi o comportamento dos homens da garagem, disse-me que era assim, que näo respondesse, que mulheres honradas tinham ore-lhas moucas. Näo sei se a rua negra ainda existe. Em Portugal tudo demora muito tempo a mudar. 38. ,\ metropole era suja, feia, pálida, gelada. Os Portugueses da metropole éram pequeninos de ideias, täo pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo reben-tadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que t riste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando--iios ä cara que estava difícil, pois estava, que aqui näo havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguicosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdé--la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que línhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta b cava. Insignificances cabrôezinhos, se eu havia de dizer a verdade, se eu havia alguma vez de dizer a verdade. Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doen-tcs dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vém cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retornados, täo altivos como príncipes que perde-ram o trono, e que häo-de recuperá-lo, julgam eles, oh, se näo!, porque nada atica as ganas como perder, e perder bem, ä americana. Täo feios, täo pobres de espírito esses Portugueses que ficaram, esses Portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafäo. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mäos. Pequenos. 122 123 39. O meu pai ia apodrecendo numa prisäo da FRELIMO por ter afirmado, em público, que Samora Machel näo passava de um reles auxiliar de enfermeiro. Conhecendo o meu pai, acredito que terá acrescentado qualquer outro mimo como "preto de merda", ou pior. Isto aconteceu em 78. Eu estava em Portugal há trés anos. Saiu do cárcere, irreconhecível e calado, após longa e angustiante intervencäo da minha mäe, a qual conhe-ceu alguém que era amigo de outrem, que se dava com Graca Machel, a quem se foram escrevendo cartas com pedidos de cleméncia. O assunto acabou por se resolver, até porque o meu pai näo fora a julgamento. A prisäo do meu pai foi tabu na família. Ele nunca nos falou sobre o que se passou lá dentro, e nós tivemos pudor em pergun-tar, pelo que imagino o pior. A sombra do que näo se sabe é sempre enorme. O meu pai era um gabarolas bem disposto, portanto, se näo lhe ocorreu gabar-se sobre os seus feitos heróicos desta fase, nem sequer uma gracinha, é provável que näo tenham existido, e que a coisa näo lhe tenha corrido bem. Nos anos 90, já ele estava em Portugal há algum tempo, e a propósito do meu nojo por aranhas, gabou-se sobre certo dia em que acordara no cimento da prisäo, sentindo o peso de um enorme bicho peconhento sobre o ombro, o qual arrancou ä pele nua com a manápula que lhe conheci, lancando-o para longe; riu-se; que ele era muito corajoso, isso nós já sabíamos, näo estranhá-mos; perguntei-lhe como éram as instalacôes, como tomavam banho, e respondeu que os guardas os leva- 125 vam "lá abaixo ao rio", referia-se ao Zambeze, e que aí se ensaboavam e lavavam a cinco metros dos crocodilos. Mais nada. O assunto cortou por aí. Lembro-me da pele do meu pai, muito lisa e húmida. Lembro-me do seu ombro onde se terá aninhado um bicho peconhento. Conhecendo o meu pai, tenho a certeza que lhes deve ter chamado pretos de merda, a todos, e todos os dias, e que terá apanhado forte e feio, sem dó, sem hora. Conhecendo o meu pai, e amando-o, apesar de tudo, dói-me imaginá-lo espancado, humilhado, vergado por aqueles que antes vergou. Dormindo no cháo de cimento, ao molho com os condenados de delito comum. Para os brancos que decidiram ficar nas ex-colónias, após a independéncia, por solidariedade com os movi-mentos de libertacáo, ou por náo térem outra escolha, ou náo quererem té-la, a vida náo foi fácil. Os retorna-dos, tendo a maior parte regressado ä metropole amal-dicoados e de máos vazias, safaram-se bem melhor. Os brancos que ficaram em África tornaram-se alvo fácil de numerosas vingancas. Eram suspeitos. Os seus passos e palavras eram vigiados pelas instituicôes, pelos comités de bairro, pelos vizinhos. Era preciso ter cuidado com o que se dizia e fazia. Qualquer deslize seria considerado colonialista, e náo havia piedade, o preco era alto. A denúncia constante. 40. O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras. O meu corpo lutava contra si, corpo--a-corpo, mas o do meu pai era grande, pacífico e de carne. O corpo do meu pai era dele e valia a pena. O seu corpo era o do outro que estava em mim, mas sem guerra. Redondo, macio, arranhado, o corpo do meu pai dava-se ao riso, as cócegas, ao meu corpo. O meu pai tinha os pés rosados, de uma pele muito branca e quebradica que escamava; dizia que era a filária, e que náo lhe puxasse as peleš. A minha máe náo me deixava andar descalca por causa da filária, que dava muita comichäo, e seria preciso queimar a pele, com gelo, até ao osso. O meu pai tinha nos pés umas escamas como massa folhada, que eu desejaria puxar e comer. A carne do meu pai era doce. A pele do meu pai era morna e mořena. Os seus pés eram bem acabados, cheios, com os de-dos desenhados ao pormenor, como uma escultura do Renascimento, e as unhas redondinhas, transparentes, brilhantes. Ä hora da sesta de domingo, quando eles se deitavam, e eu náo tinha que fazer - a náo ser brincar com o Piloto, que a minha tia envenenou numa aldeia da Estremadura, anos mais tarde, e com os gatos, que ficaram em Lourenco Marques, quero dizer, no Maputo, e que fugiram atrás das gatas, e foram, de certeza, apa-nhados, mortos e comidos como coelhos pela pretalhada csfomeada, disse a minha máe, e que a pretalhada havia de amargar o que tinha feito aos brancos - nessas tardes eu ficava a brincar com os pés do meu pai, atravessada na cama. 126 127 A minha tia envenenou-me o Piloto em Abril de 1978, e acusou os vizinhos. Foi nas férias da Páscoa. Embalei o meu cäo morto. Nunca tinha tido aninhado um cadaver contra o peito. Tinha os olhos abertos, vidrados, as patas traseiras contorcidas, rasando o focinho, duro, gelado. Segurei-o nos bracos, e apertei-o, e chorei sobre o seu corpo inocente a minha culpa, dor, perda, impotencia e abandono. Enterrei-o por baixo da nogueira que existia na fazenda. Mais tarde, abateram a nogueira. Os meus tios sempre me olharam com a mesma emocäo com que se trata um electrodoméstico. Para que servia um cäo? E que importäncia tinha o cäo que a retornada, a que roubara aos pretos, se tinha dado ao luxo de trazer para a Metropole, quer dizer, para Portugal?! Se para retornados näo havia lugar, para cäes de retornados ainda menos. O meu pai apertava os pes um contra o outro, pressionava-os, fazia forca, e ria-se. Eu näo consegui-ria separá-los, brincar como queria. Os pes do meu pai cheiravam a pélo de cäo. Era um cheiro seco e doce. Os cäes cheiram a terra e a päo. Cheiravam a päo, sim, a terra e a päo, e eu queria tanto fazer-lhes cócegas, c morder-lhes, e ele ria-se, e dizia, larga-me rapariga, e eu ria-me, e fazia pior, e a minha mäe dizia, larga o teu pai, rapariga, e eu ignorava-a, tem juizo rapariga, vai para a tua cama rapariga. O corpo da minha mäe era geométrico e seco. Näo tinha autorizacäo para lhe tocar. No corpo da minha mac apenas me interessava o seu peito grande e mole. Que delícia haveria de ser poder mexer-lhe, mamar, chupar por todo o lado. Apalpar com forca. Sacudia-me, esta quieta. Tocar na minha mae era uma atitude pouco propria. O corpo do meu pai, pelo contrario, solido, redon-do, disponivel, revelava-se uma colina cheia de arbustos e vegetacao a qual podia trepar, e sentir, cheirar, beliscar, morder. Puxava-lhe os pelos, as unhas. A barriga das pernas do meu pai tinha uma curva tao harmoniosa, tao ondulada, e era tao cheia. Simula-va que as mordia com muita forca, e ele simulava gri-tar, ai, ai, esta quieta rapariga. Que belas pernas tinha o meu pai. Brancas. Nem demasiado musculadas nem gordas, embora fosse gordo. Compridas, torneadas. Os calcoes assentavam-lhe bem. Eram umas pernas quase femininas. Aticava-me, sorrindo cheio da mesma falta de modestia que tao bem conheco, querias ter umas pernas tao jeitosinhas como as minhas,?! Querias, nao querias?! As minhas vao a amostra a umas senhoras. Dizia isto muito vez, quando estava bem vestido, vou a amostra a umas senhoras. E eu pensava que brincava. As pernas do meu pai, que raiva. A barriga do meu pai descaia quando se deitava de lado. Que solenidade. Que importancia, a de uma barriga assim dilatada. Tinha-lhe respeito. Ele protegia-a com os bracos, e aos genitais, se bem que os ultimos nao me causassem interesse. Quando se deitava de lado, se vestia calcdes largos e curtos, era possivel vislumbrar nesses lugares certas sombras medonhas. Desviava o olhar por vergonha e medo e nojo. As partes intimas do meu pai eram uma mancha escura e mole. Que contacto visual tao desagradavel! Lembro-me do rocar da sua cara mal barbeada na minha cara, nos meus labios. Vai fazer a barba. Ja fiz a 128 129 barba, agora vé lá. Querias ter uma pele täo maciazinha, näo querias?! Querias! Era macia. Lembro-me do cheiro a suor do seu pesco-co. Suor de homem. Denso. Da massa enorme que era o seu corpo, täo segura, täo čerta. Sentar-me ao seu lado, ao seu colo, äs suas cavalitas. O corpo do meu pai era um trono. O corpo do meu pai era bom. O que dele restou encontra-se arrumado numa gaveta do cemitério do Feijó. Quanto ao resto que lhe pertencia, näo consegui arrumá-lo em lugar algum. Näo cabia. 41. A minha mäe acha que vai morrer e näo pode deixar-me sozinha no mundo. Por isso, localizou-a. Eu quero estar sozinha no mundo. Näo me ofendam com as palavras brutais que tive de escutar a vida inteira sem poder pro-testar, e de que fugi quando fui senhora de mim. A minha mäe deu-lhe o meu numero. Ela queria muito falar comigo. Tinha-me perdido o rasto. Tinha saudades da menina perdida: eu. Em viňte minutos, o passado bateu-me no rosto com urna fenomenal chapada. As pessoas näo mudam. Quando as reencontramos, muitos anos depois, percebemos por que nos afastámos. "Os negros, os cabrôes, os filhos-da-puta. Vim de lá há um ano. Nunca deixei que me faltassem ao respeito. Chamavam-me mama, chamavam-me tia, e eu dizia--lhes, näo sou tua mäe, que eu näo sou puta. Nem tia, ó meu cabräo. E näo me assaltas que eu sou branca e estrangeira e ponho a polícia atrás de ti, meu escarumba de merda." Ouvi isto toda a minha vida. Venham falar-me no colonialismo suavezinho dos portugueses... Venham-me com essa história da carochinha. As pessoas näo mudam. Um branco que viveu o colonialismo será um branco que viveu o colonialismo até ao dia da morte. E toda a minha verdade é para eles urna traicäo. Estas palavras, uma traicäo. Urna afronta ä memória do meu pai, mas com a memória do meu pai podemos bem os dois. Os carniceiros foram todos täo bonzinhos que quando matavam o cabrito dávam as vísceras aos pretos. A tripa. A pele. Pagavam-lhes o trabalho escravo com porrada 130 131 mais a farinha, que comiam com as maos, aqueles porcos negros; e se os faziam trabalhar sete dias por semana, sem horário, era apenas o legítimo tratamento de que precisavam os preguicosos. Um favor que o branco lhes fazia. Civilizar os macacos. E agora, em Maputo, uma falta de respeito. "Falta-mos lá nós. Tem saudades. Um branco é constantemente assaltado. Na rua. Em casa. Roubam-nos tudo, os cabroes. E estragaram aquela terra. Queimaram-na." 132 42. O jovem encontrava-se á minha frente na fila da caixa, com um avio de bolachas e chocolates. Trajava de oficial marinheiro. Uma farda negra, de boné branco, muito composta, muito nobre. Sobre a manga esquerda do casa-co, ao alto, numa placa de fazenda bordada a ouro, lia-se Mocambique. A minha atencao ficou de imediato presa áquele rapaz. Tive o impulso de o chamar e lhe dizer, olhe, desculpe, só queria dizer-lhe que eu também sou de Mocambique. Mas depois náo fiz. Havia de ser ridicule O que lhe interessaria tal coisa?! Dentro de mim haver uma terra da qual sou desterrada. Se calhar também ele. E depois?! A seguir pensei que talvez fosse o seu apelido. O rapaz chamar-se-ia Tiago Mocambique como outros se chamam José Portugal. Subiu em direccao ao Alfeite e eu segui-o, orgulhosa do seu aprumo. Os desterrados, como eu, sao pessoas que nao pude-ram regressar ao local onde nasceram, que com ele corta-ram os vínculos legais, náo os afectivos. Sao indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presenca traz más recordacoes. Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa macula. A mais que provável retaliacáo. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma macula impossivel de apagar. Persigo oficiais mari-nheiros que trazem escrita, na manga do casaco, a pala-vra Mocambique! Passaram algumas décadas sobre a menina que enca-rava os negrinhos de meia duzia de anos que pediam trabalho ao portáo, descalcos, rotos, esfomeados, e 133 chamava a mäe, trabalho näo havia. Eu sabia que näo havia. Contudo, chamava-a. Havia a esperanca que de repente houvesse capim para apanhar, ou uma moeda, päo. Äs vezeš a minha mäe estava bem-disposta. Äs vezes tinha pena das criancas. Eu e eles näo falávamos a mesma lingua. Apenas umas palavras soltas. Olhava-os muito, e eles a mim. Por exem-plo, neste momento estou a olhá-los através do tempo, e há uma perplexidade nos seus olhos, um vazio, uma fome, e nos meus uma impotencia, uma incompreensäo que nenhuma razäo poderá explicar. Mocambique é essa imagem paráda da menina ao sol, com as trancas louras impecavelmente penteadas, perante essa crianca negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num siléncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justica, do bem e do mal, da sobrevivéncia. Um desterrado como eu é também uma estátua de culpa. E a culpa, a culpa, a culpa que deixamos crescer e enrolar-se por dentro de nós como uma trepadeira inco-lor, ata-nos ao siléncio, ä solidäo, ao insolúvel desterro. 43. Caiu a noite sobre todas as coisas que nascem da terra, que tocam a terra, que confinam os seus limites. Tu estas sobre a terra. Quero dizer, revolves-te nela. Estendeste o teu corpo ao comprido entre os arbustos, quieta, sentin-do comichao pelos insectos que deixas subirem-te os bracos, sorvendo o odor enjoativo do chao, agora em repouso, o odor acre das folhas que a frescura da noite humedeceu. Era isto que querias. Este cheiro. Sentas--te. Sorris. E exactamente como imaginavas. Purpuri-nas multicolores brilham entre os ramos das arvores, iluminando os vultos das aves caladas. Fragmentos de luz que se ateiam e apagam na escuridao, suspensos como libelulas. Barulhos tao leves. Asas. Uma ave piou. A brisa levanta folhas. Folhas batem em folhas. O peso de patas quebra ramos. Os caes selvagens espreitam-te. Os que como tu nao sao nada bem definido, nem caes nem lobos. Nao te ladram. Os caes nunca te ladraram. Cheiras-lhes os sexos. Sim, sao da tua laia. Boa compa-nhia. Lambes-lhes os focinhos. Podes lamber. Dormir enroscada na matilha, se quiseres. O cheiro doce do sono, do calor. Tao embalada. Nao te importa a terra no cabelo nem nas unhas. Esfregas-te. Ris. Ouves o teu riso incomodar a noite. Que silencio. Que ternura. Tudo e verdade e tu trincas a terra. Lambe-la contra o ceu da tua boca. Claro que recordas esse sabor. Sabias que havias de recordar esse sabor. O chao tern todo o mesmo travo final a argila e a osso de vaca moido. A terra e doce. E agora podes subir de novo as arvores. O limoeiro do teu velho quintal na Matola. Sentes-te leve. Se calhar podes voar, como outrora voaste. Tinhas saudades. Confessas 134 135 para ti propria, tinhas saudades disto. A liberdade. A noite caiu longa, e a noite e o teu dia. Vais adaptar--te. Uma vida tem muitas vidas, tu sabes. E a primei-ra noite que dormes na rua. Que nao tens cama. Estas euforica. Como vai ser a tua primeira noite? A que casa regressaras? Quanto tempo permaneceras sobre a cova onde o teu passado apodrece? Nao devias pisar a tua campa. Para onde vais? Para onde vais, agora? 136 Ä memoria do meu pai. Lourenco Marques, 1960 Posts Agosto O odioso low profile Dinamitar o Cristo-Rei O carro da lama Figado de porco 3 5 7 9 11 sobre isabela «Isto e a serio» Uma conversa com Isabela 13 10 livros 15 5 datas 16 5 lugares 17 Posts, entrevisla & mais ainda... AGOSTO Os cafés encerraram, excepto o do tabaco e das cervejolas, que leva com a chapa do sol toda a tarde. Encon-tra-se repleto de famílias inteiras de vizinhos que näo foram passar férias ä terra nem ao Algarve nem a Ibiza, discutindo, de mesa para mesa, entre suores, assuntos de importäncia internacionál, como a idoneidade moral do Barbas da Costa da Caparica, que responde pela do Benfica. A gritaria näo me deixa ler o jornal, e as crian-cas, todas malcriadas, correm atrás das cadelas, puxam-lhes a coleira e chateiam-nas até ä exaustäo. Äs cinco da tarde a rua abrasa e ninguém sai. O meu bairro parece uma vila abandonada no faroeste. So os plátanos, do outro lado da estráda, conseguem respirar sob o sol. Agosto é um barril de água choca. Agosto é um tapete encardido de gen-te. Agosto é o més mais triste do ano. 3 O ODIOSO LOW PROFILE Tenho um defeito profissional que se conjuga que nem flores com certas caracteristicas da minha personalidade, e que em Portugal e considerado uma enorme desele-gäncia entre as pessoas educadas, as pessoas de bem, as pessoas contidas, as pessoas que se esforcam por andar na rua fazendo de conta que nem sequer existem: falo alto. Em Portugal toda a gente quer ter um low profile, ou melhor, traduzindo ä letra, perfil baixo, ou melhor, traduzindo livremente, näo dar nas vistas. Näo tenho nada contra, embora näo compreenda por que as inco-modo tanto. Näo faco esforco para aparentar profile al-gum. Deixo que a natureza faca o seu trabalho. Näo seria capaz de viver debaixo desse autocontrolo. Passei toda a minha vida a desejar fugir a todos os controlos possiveis. Näo ando nas ruas a pensar, ai, estou a falar alto, se calhar era melhor baixar a voz, ou, ai, dei uma gargalhada, se calhar näo devia gargalhar täo expres-sivamente, podia disfarcar, tapar a mäo com a boca, e emitir um ligeiro ri-ri-ri. Deu-me para tirar partido da vida toda, e e sempre a abrir. Ontem, ä hora de almoco, calhou sentar-me, na canti-na, ao lado de uma colega a quem pus a alcunha secreta de "Nada de extremismos", porque e o que a apanho a di-zer todas as vezes que a encontro. Conversävamos sobre umas politicas lä da fäbrica, tudo com muita moderacäo, e num certo momento perguntei-lhe quem tinha feito a afirmacäo x. Ela respondeu, o Pedro. Eu exclamei, o Pedro?! Qual Pedro?! Hä lä muitos nas diversas seccöes da fäbrica. E a "Nada de extremismos" respondeu-me secamente, fala mais baixo. Muito secamente, com cen- 5 sura, mesmo a matar. Por segundos, senti-me sua filha, sensacao deveras traumatizante. A "Nada de extremismos", a maior mosca-morta da fábrica, que náo se compromete com nada, náo diz sim nem nao nem talvez, e deve abrir a torneira da casa de banho de cada vez que vai fazer xixi, mandou-me baixar o volume. Olhei á volta. Nao havia por ali ninguém que pudesse de alguma forma tirar ilacóes da mlnha pergun-ta, "Qual Pedro?", mas calei-me, por boa educacao e boa vizinhanca, pensando, claro, que eu teria a delicadeza de nao mandar calar os outros com uma tal frieza. DINAMITAR O CRISTO-REI Nossa Senhora tem andado em digressao pela Margem Sul por mor da comemoracáo do cinquentenário da construcao do Cristo-Rei. Confesso que nao foi assim que a minha máe me contou á hora do almoco. Falou--me do representante do Papa, e de muitos cardeais, e do bispo de Setúbal a elogiar a nossa presidenta da Cámara, e de muitos, muitos padres de todo o lado, e procissóes, e que em Lisboa também tinha sido muito lindo, que a Senhora tinha ido a um hospital, e muita gente, muita gente, tudo muito lindo, muito lindo, como é que era possível que eu náo tivesse ficado em casa a seguir pela televisáo. Fui ouvindo isto entre as favas com salada de alface e pescada frita, e só me pronunciei quando chegou a parte em que me revelou que Nossa Senhora tinha vindo num vidro de Roma. Porqué num vidro de Roma? Acaso o vidro portugués náo é suficientemente bom? Eu tinha percebido mal. Era numa redoma. Nossa Senhora tinha vindo nu-ma re-do-ma. "Porque traz uma coroa de ouro de muitos quilos, manto bordado a ouro e jóias, muitas jóias." Até parei de mastigar para lhe responder, "e esse ouro e essas jóias, vendidos, náo seriam uma boa forma de a Igreja arranjar dinheiro para ajudar uma quantidade de famílias, agora com a crise?!, e Nossa Senhora náo se importaria de viajar mais pobrezinha." Sacrilégio! Roubar o ouro á Senhora! Que náo, que o ouro e as jóias tinham sido oferecidos pelo povo com muito sacrifício. Retorqui, sem grande sucesso, "mas náo achas que agora o povo está a precisar disso tudo de volta?" 6 7 E acabou-se ali a conversa, que ela näo me quer ver excomungada. Adiante, e passemos para a importäncia que a estátua do Cristo-Rei tem para a populacäo da Margem Sul. Para nós, almadenses de carne ou de adopcäo, o Cristo-Rei é o maior mamarracho que alguém se lembrou de cons-truir no nosso território. Um bloco de cimento atirado ao alto, descarnado, com Cristo de bracos abertos para Norte. Cristo näo merecia tanta fealdade! Em cinquenta anos de existencia, o Cristo-Rei serviu-me, quando era mais nova, para namorar ä sua larga sombra e aproveitar as delícias da juventude pelo meio duns arbustos muito discretos que o rodeavam. Depois, muraram-no, passaram a chamar-lhe santuário, e deixou de ter interesse. O que a gente queria mesmo, e aproveito para lancar a ideia ao senhor vereador do património edificado, era dinamitar aquilo como se fez aos prédios em Tróia, e construir ali um carrossel, urna montanha russa, enfim, urna grande feira popular toda iluminada ä noite, com farturas e tiro aos pratos e umas barracas com cerveja fresca e caracóis e pipis. E urna enorme bandeira, no alto, com a foice e o martelo bordados a ouro. Era isso, se faz favor. O CARRO DA LAMA A Micas caminha devagarinho porque sofre de displa-sia avancada na anca. Digo-lhe, quando chega junto de mim, és o carro da lama. É uma expressáo muito antiga que aprendi com a minha máe. O meu vocabulário é essencialmente rural, bem como a minha prosódia. A minha fala é a fala da minha mae, por muitos oceanos que tenhamos atravessado. Gosto da expressáo "o carro da lama". Seria a carroca de bois que vinha lenta na estráda do Inverno. Os animais puxariam a carga, arrastando-se sob o peso da chuva que enlameava todos os caminhos da aldeia. O carro da lama progrediria com dificuldade, nao sendo o ultimo a chegar, porque em Janeiro todos os carros eram da lama. É uma expressáo ferozmente antiga, marcada pela dureza da vida na aldeia, para todos os seres que nela viviam. O mundo mudou muito e as nossas expectativas sáo agora muito altas. Hoje, pelo menos para os citadinos, a felicidade náo se limita a desejar ter estradas sem lama. Ambicionamos possuir um jipe para podermos enterrá-lo e desenterrá-lo, recreativamente, pela lama dos caminhos. O que para os outros era trabalho, para nós é entretenimento. O prazer tornou-se demasiado caro e complexo 8 9 FIGADO DE PORCO O meu primeiro aborto saiu-me pela boca do corpo como um grande figado de porco cortado aos bocados. Acor-dei na minha cama ensanguentada, e ao levantar-me, involuntariamente, o meu corpo expulsou litros de san-gue coagulado, ainda fresco. Era tao bonita essa carne vermelha, que era apenas sangue. Fiquei com aquilo nas maos. Eram muitos bocados. Rosas de carne viva que iam saindo de mim conforme caminhava pela casa, deixando um rasto de sangue, como se o utero regurgitasse sozinho por ter bebido demais na noite anterior. Talvez eu tivesse bebido demais na noite anterior, nao me lembro. Depois abortei outra vez mais devagarinho. Era so um fiozinho de sangue nas cuecas, uma coisa de nada, e percebi logo que havia outro figado de porco pronto a sair. No hospital, rasparam-me o utero com uma nava-lha, e eu senti, rasp, rasp, rasp. Era o meu figado de porco a ser retalhado, e nao me deixaram ve-lo na bacia de metal. Devem ter queimado tudo na incineradora do hospital, e saido em fumo pela diamine, como os conde-nados em Auwschwitz. Podiam ter-me deixado traze-lo para casa, para um arroz de cabidela. Ao menos, que o fritasse para as cadelas. Com tudo isto vim a descobrir que sou uma excelente produtora de figado de porco. 11 «ISTO E A SERIO» Uma conversa com Isabela Os seus dados biográficos, alias sucintos, referem o nascimcnto em Louren^o Marques e a vin-da para Portugal aos 13 anos de idade. A questáo inipoe--se: a Isabela é africana, mais precisamente, mocambicana? Considera ter uma dupla nacio-nalidade? Cheguei a Portugal com 12 anos, a 5 semanas de fazer os 13. Já náo era uma crianca, mas ainda náo era uma mulher. Já aprendera que tudo tem consequéncias, já desenvolvera a minha consciéncia e senslbilidade, contudo, mantinha a inocéncia propria de uma menina. Já recebera muitas influéncias, mas outras espe-ravam por mim. Quando era pequena, havia uma grande énfase dos meus pais e entourage no facto de eu ser um produto genuinamente mocambicano, ou coca-cola, como diziam. Contudo, isso náo é verdade quanto ao genuinamente. Estive sempře rodeada de referéncias portuguesas: a minha máe mascarava-me de nazarena, no Carnaval, e em minha casa comia- l- 'J i """) IT' ; I » \ I* Quando cheguei a Portugal, a primeira coi-sa que quis comer foi páo barrado com margarina Vaqueiro, para espanto de todos 13 -se bacalhau com batatas regado a azeite portugués. Aprendi a falar e escrever em Lingua Portuguesa e nunca conheci outra bandeira ou outro hino que näo os Portugueses. Durante a escola primária, tal como em Portugal se estudava a geografia das colónias, também eu estudei a da Metropole. Lia as revistas edita-das em Portugal, todas as que lá chegavam. Lembro-me de uma publicidade ä margarina Vaqueiro que me fazia desejar prová-la. Quan-do cheguei a Portugal, a primeira coisa que quis comer foi päo bar-rado com margarina Vaqueiro, para espanto de todos. Para mim era uma margarina legitimamente portuguesa, com a respectiva designacäo pastoril. Era essa ideia pastoril, rural, que tinha de Portugal, e que me foi transmitida pelos meus pais. Em Portugal, diziam eles, o vinho era melhor, bem como a fruta e os legumes. Näo havia macäs como as portuguesas... Nem melancia... Nada se comparava. Nem os produtos da Africa do Sul. Os meus pais tinham uma atitude de duplicidade relativa-mente ä Metropole. Por um lado, era a sua terra, e enchiam-na de virtu-des, como os emigrantes, por outro reclamavam para si a legitimidade da sua presenca em Mocambique, território onde haviam conquistado um posicáo confortável, consideran-do-o igualmente seu, e náo desejan-do abandoná-lo. Náo tinham qual-quer intencáo de regressar. Aquela já era a terra do seu coracáo. Qualquer retornado se reconhecerá nesta ideia. Que nacionalidade tinha eu no meio disto tudo? Bem, a nacionalidade náo é apenas um conceito administrativo, mas aponta para a pertenca a uma nacáo, logo, uma ideia de povo, e nesse caso eu sempře fui portuguesa. Alias, a questáo da língua, ou sej a, a forma como se fala, pensa e escreve é muito determinante no meu caso. Sempře me senti portuguesa, embora uma portuguesa diferente, de além--mar, porque há várias formas de se ser portugués. Ninguém me pode pedir que seja uma portuguesa típica. Posso ser uma portuguesa que recebeu outras influéncias, que conviveu com outra cultura, outra geografia, outro ambiente e que saiu um bocado misturada. Náo me sinto mocambicana. Sinto-me uma portuguesa que nasceu em Mocambique. Sempře fui qualquer coisa em UJVROS Sozinha, Sarah Beiráo fane Eyre, Charlotte Brontě A Dor, Marguerite Duras Primavera no Par-que, Christiane Rochefort Lá Onde o Rio te Leva, Tobias Schneebaum Onde Estivestes de Noite, Clarice Lispector Fisteus Era un Mundo, Lupe Goméz Irma Barata, Irma Batata, Adilia Lopes Desgraca, J. M. Coetzee A Erva Canta, Doris Lessing 14 15 DATAS 25 de Abril de 1974 7 de Setembro de 1974 -tiveirtos medo de morrer. 22 de Novembro de 1975 - aterrei no aeroporto da Portela. 1 de Julho de 1983 - o pri-meiro texto que publiquei. 3 de Maio de 2001 - morte do meu pai. transicäo, mas uma coisa que precisa de ser portuguesa para poder reco-nhecer-se, encaixar-se e sossegar um bocado. Qual a reflexäo que faz sobre este hiato täo longo entre a publicacäo do seu prinieiro livro "Conto e conto quem diz" (1988) e este "Caderno de Memörias Coloniais" (2009), vinte anos passados? O que significou para si a publicacäo entäo? E agora? O primeiro livro que publiquei surgiu na sequencia de um concurso literärio no qual fui premiada. Foi importante na medida em que me deixou perceber que o que escrevia tinha alguma qualidade. A decisäo do jüri, constituido por Agustina Bessa-Luis, Dinis Machado e Ondina Braga, deixou-me muito orgulhosa. Recordo com ternura as palavras de encorajamento que me dirigi-ram. O hiato de 20 anos justifica-se pelo facto de tudo ter acontecido quando era demasiado nova. Tinha alguma tecnica, de facto, mas näo um tema. Depois do Conto escrevi alguns textos excessivamente traba- lhados, que depois näo conseguia ler. Andei perdida. Näo encontrava o meu lugar do ponto de vista literärio. Estou certa que fui uma desilu-säo para muitas pessoas que espe-ravam mais de mim. A certa altura senti a necessidade de me afastar des-se mundo. Näo suportava a consci-encia de que näo tinha correspon-dido äs expectativas literärias que haviam depositado em mim. Acho que sobretudo näo me suportava. Mas digo sempre que era muito nova, precisava de crescer e dei-xar correr a vida. A certa altura, a necessidade de escrever venceu. Näo tinha perdido essa capacidade e nem sequer estava embotada pelo tem-po. Pelo contrario, o teclado estava muito mais solto, e o que queria escrever tinha-se tornado mais intenso e violento, e existia um alvo. Isso surpreendeu-me, essa conscien-cia de que ainda sabia escrever, de que a mensagem saia com eficäcia e forca. Entusiasmou-me. O blogue foi-me servindo perfeitamente. Estou convencida que o hiato de 20 anos, durante os quais me dedi-quei totalmente ao trabalho, foi benefico e absolutamente necessärio para me descobrir. LUGARES Lourengo Marques - mäe. Bombaim - pica-va-me a língua e o céu-da-boca. Lisboa - idade adulta e autonómia. Cacilhas - o amor, partidas e chegadas Alcácer do Sal - fúga, luz e solidäo. 16 17 Publicar nesta altura e importan-te. Sinto isto como um recomeco, e claro que gostaria que tivesse conti-nuidade, embora näo esteja ä espera de milagres. O que muda na transposicäo dos textos publicados no blo-gue O Mundo Perfeito para o formato de livro? Pensa que no processo de adaptacäo para o novo formato estes textos se alteraram, säo agora outros? Näo, näo. Os textos säo os mes-mos. Mantem a autenticidade que tinham quando da sua publicacäo no blogue. 0 Mundo Perfeito tinha värias "histörias" em curso, tal como agora o Novo Mundo. Mas os textos que constam deste livro, e que constituiam uma dessas "histörias", foram publicados com uma grande seriedade da minha parte, a qual se mantem no formato livro. No blogue, para minha satisfacäo pessoal, havia sempre "palhacada", como costumo dizer, mas isto näo era "palhacada". Isto era a serio. A sua perspectiva é assumida-mente a da "pequena colona branca". Imagina o que séria a perspectiva da "pequena colo-nizada negra", o reverso da sua condicäo? Como imagina esse alter-livro? A "pequena colonizada negra" também aqui aparece a espreitar num ou noutro texto. Näo poderia existir uma "pequena colona branca" sem haver também uma "pequena colonizada negra", tal como näo há fogo sem ar. Creio que a perspectiva da "colonizada negra" tem sido objecto de muita literatura produzida nas ex-colónias e de facto näo imaginei esse alter-livro. Teria de estar livre das questôes que me atormentavam ao escrever este. Nada do que aqui escrevo foi fácil de admitir e revelar. Levei anos. O "Caderno" aborda questôes pessoais que me assombra-ram durante toda a vida. A "pequena colona branca" era uma questäo demasiado presente, demasiado urgente; ocupava-me totalmente. Também considero que esta publicacäo é uma forma de me libertar mais dela. 18 19 O meu pai e o principio de tudo. Foi aquele que mais amei e odiei. Aquele que melhor me serviu como mode-lo e de quem mais me quis distinguir. O seu livro poderia talvez cha-mar-se «A Morte do Pai», em vez de «Caderno de Memorias Coloniais», ou näo? Pode dizer--nos por que razäo o seu enfren-tamento da memoria do Pai e indissociävel da sua experien-cia colonial? O Pai estä aqui tambem em vez do coloniattsmo e e o seu verdadeiro nome? E isso? Poderia chamar-se "A Morte do Pai" e cheguei a pensar nessa expressäo como titulo. O meu pai e o principio de tudo. Foi aquele que mais amei e odiei. Aquele que melhor me serviu como modelo e de quem mais me quis distinguir. Talvez por ter sido filha ünica, talvez por ter brincado com o meu pai mui-to mais do que com outras criancas, talvez por te-lo escutado e admirado como se escuta e admira um deus, a importäncia do meu pai na minha vida assumiu proporcöes gigantescas que näo desapareceram com a sua morte. O seu corpo desapareceu e eu fiquei a contas com a sua memoria. Foi dificil, porque podemos pedir contas a uma pessoa, mas näo ä sua memoria. E a certa altura do meu percurso tinha mesmo contas a pedir-lhe. Ja era uma adulta e tinha o direito a exigir dele accöes e discursos que se coadunassem com os valores que me tinha transmitido. Eram bons valores cristäos. Por isso näo lhe perdoava ter sido um racista e continuar a se-lo depois da epoca colonial. Temia que nos cruzässemos com um negro na rua e o meu pai o interpelasse com um tratamento menos proprio. Tratava todos os negros por tu e falava-lhes na lingua do sul de Mocambique. Imagine-se o que e ir a subir a rua Augusta e o meu pai parar um transeunte negro, de 18 anos, nascido na Maternidade Alfredo da Costa, para lhe perguntar em que provincia de Mocambique tinha nascido e em que trabalhava cä, isto tudo em landim, a tal lingua do sul de Mocambique. Quando o meu pai regressou a Portugal trouxe consigo o colonialis-mo e nunca foi capaz de sair dele. O meu pai era o colonialismo. Portan-to, o meu pai era tambem a injustica e a violencia. Talvez eu näo saiba bem, do ponto de vista histörico, o que foi o colonialismo - muito me escaparä; mas sei muito bem o que foi o meu pai, o que pensava e dizia, e esse e um conhecimento präti- 20 21 Gostava que näo houvesse um segundo volume do "Caderno"; séria bom si-nal; mas näo sei, realmen-te, se esta minha história estará alguma vez terminada. co do colonialismo que nenhum historiador pode deter, a menos que tenha vivido a mesma experiéncia. Podemos esperar um segundo volume deste Caderno de Me-mórias Coloniais"? Considera que este livro poderá alguma vez estar verdadeiramente ter-minado? Gostava que näo houvesse um segundo volume do "Caderno"; seria bom sinal; mas näo sei, re-almente, se esta minha história estará alguma vez terminada. Este livro é constituído por textos que näo foram escritos de uma só vez, numa mesma altura. Fui escrevendo ä medida das minhas necessidades que nunca sei quais seräo. As minhas memórias desse tempo väo surgindo motivadas por estimulos inesperados. Näo desejei ter estas memórias, mas o problema é que também näo consigo evitá-las. E a certa altura achei que näo tinha que as evitar. Precisava de viver com isto o melhor possível, de assumi-lo. Por ultimo, como lida com a questäo da exposicäo da vida do seu pai que a publicacäo deste seu livro implica? Sera muito dificil as pessoas entenderem por que fiz isto, sobretu-do as mais pröximas. Pensaräo que traio o meu pai. Que uma filha näo expöe assim aqueles que lhe deram a vida, sejam quais forem os motivos. Uso o vocäbulo traicäo muitas vezes ao longo do livro, porque sempre me senti sua traidora, apenas porque näo conseguia ver o mundo pelos seus olhos. Este momento, em que revelo tudo, e aquele em que me sinto menos traidora. Pelo contrario, sinto que faco o que tinha de ser feito. Ponderei muito a publicacäo des-tas memorias e decidi faze-lo para beneficio de todos. Quando digo todos näo me refiro apenas a mim e ao meu pai, mas aos retornados, de forma geral, e a alguns Portugueses. Ja houve quern me dissesse que temos de ultrapassar o passado, que näo vale a pena tocar em assuntos täo sensiveis. Temos realmente de ultrapassar o passado, mas so podemos faze-lo depois de o enfrentar. E preciso admitir "eu fiz isto", "eu sou isto" e depois, sim, avancar. Neste 22 23 momento nao me parece que os retornados e restantes Portugueses tenham realizado esse trabalho de analise. Estamos sempre a varrer o colonialismo para debaixo do tape-te. O que mais gostamos de dizer, quando acusados relativamente ao nosso passado ultramarino, e que "a nossa colonizacao foi suave, nao teve nada a ver com a dos ingleses, etc." Concordo que a nossa colonizacao foi diferente. Nao consigo e dizer que foi melhor. Passadas quase quatro decadas, esta na altura de se comecar a falar destas questoes historicas com o devido distanciamento. O tempo de evitar ja passou. Para mim passou. Do ponto de vista pessoal nao havia motivos para evitar estas reve-lacoes. A minha luta interior, pessoal tinha acabado. Depois, e isto ja e a minha costela crista, que herdei do meu pai, a fazer das suas: ele nao se confessou antes de morrer, e eu quero realizar essa confissao em seu nome, e ao faze-lo, como sua principal acusadora, que fui, gostaria que tambem me fosse facultado o poder de o absolver. Quero acreditar que o tenho. Este livro serve para lhe dizer isso: ok, vai em paz, estas absolvido! Agora, ca me arranjo eu com o resto! 24 ESTA QUARTA EDICÄO FOI COMPOSTA EM CARACTERES STONE SERIF DESENHADOS POR SUMMER STONE E IMPRESSA EM PAPEL VOLUME DE 80g E A CAPA EM CARTA INTEGRA DE 235g NA PAPELMUNDE, EM VILA NOVA DE FAMALICÄO, EM 2010, 35 ANOS APÖS O REGRESSO DA AUTORA A PORTUGAL