gasse no «Palácio Aéreo», durante algum tempo, natural-mentě guardando o maior segredo. Pretendia, segundo afir-mou, castigar a mäe de uma injustica que lhe fizera e nenhum castigo lhe parecia proporcionado ä falta senäo convencé-la da sua morte. Séria interessante, dissera, ver como ela a trataria depois. Ele, confiado em que a menina näo aguen-taria mais do que uma noite, cedera aos seus modos insi-nuantes e arrebatados. A doenca da irmä, que se agravara na mesma altura, contribuíra para lhe embotar as faculda-des de raciocínio. E tinha de reconhecer que a menina Palma o ajudara bastante nesse transe, influenciando-o com o seu saudável optimismo, alem de lbe avivar amiúde a memória acerca dos medicamentos a ministrar ä doente. Uma jovem ínvulgar, muito desaproveitada na escola. Em poucos dias aumentara cem vezeš os seus conhecimentos de Botánica e Zoológia. Estava quase a acabar de ler o «Caramuru» e surpreendia-o com as suas observacôes muito pertinentes. Enfim, fora uma honra e um prazer hospedá-la no «Palácio Aéreo». Só lamentava que por causa disso fosse obrigado a responder em tribunál mas näo duvidava que os seus jul-gadores iam acreditar na sua sinceridade. Mas entäo a história da menina Palma? Em que é que ficamos? Culpada ou inocente? A verdade é que näo consigo chegar a uma conclusäo. Prefiro considerá-los ambos vítimas de uma suces-säo de acasos que os ultrapassaram. Mas vítimas que, de alguma forma, mereciam o que lhe s aconteceu. A menina Palma, por andar a brincar com o fogo. O poeta do campo, por se comportar como um pequeno deus que julga poder introduzir desvios as leis da natureza. Quanto ä quinta, selado o portäo e votadas todas as suas culturas ao abandono, perdidos os galináceos a favor do Estado, fechado e esquecido nalguma gaveta do tribuna! o livrinho que contém o pensamento de Marco Aurélio, tornou-se täo árida como o resto da paisagem e acabou por ser vendida ao engenheiro Palma que queria oferecer ä vila um campo de futebol. CONSEQUÉNCIAS DO PROCESSO DA DESCOLONIZAgÄO Um tipo nojento, o coronel. Passeava-se pelo hotel, a cagar sentencas, como se fosse o dono de tudo aquilo, e apesar da sua idade provecta, aí uns cinquenta bem puxa-dos, náo podia ver uma mulher sem ensaiar logo a maneira de lhe cair em cima. A minha frente tivera o arrojo de apal-par o peito da minha madrinha quando íamos os trés no elevador, fingindo um súbito desequilíbrio que o projectou com ambas as maos para a frente, e de que só se recompós quando o elevador parou e uma família inteira de testemu-nhas de Jeová apareceu alinhada á entrada da porta. Porém, só me apercebi verdadeiramente da forca do bicho quando ele, ao apanhar-me sozinha num corredor deserto, me revistou de alto a baixo em poucos segundos sem passar em branco sítio onde pudesse esconder-se uma ervilha. A menina Borges partilhava da minha indignacao mas alguns anos a mais, cerca de trinta, e um sentido muito agudo da fragilidade e efemeridade da vida, levavam-na a resolver tudo com banhos quentes, Hirudoid, xarope para a tosse e um Bialzepam quando precisava da calma de um guru. Bern vistas as coisas, o coronel, ex-combatente do nosso império colonial, limitava-se a adoptar por reflexo, nos cor-redores do Siesta Hotel, os velhos métodos da guerrilha urbana. Em vez de arquitectar vingancas eu devia tentar compreendé-lo e se possível estudar a melhor maneira de nao me atravessar no seu caminho. Ou entao fazer como ela, que se aliara á esposa do coronel, uma senhora muito tímida e virtuosa, católica praticante, sempře vestida e pen-teada com apuro apesar de diariamente fornicada, Estávamos a passar férias no Siesta Hotel, trés estrelas, cento e vinte e cinco apartamentos quase todos ocupa-dos por retornados, uma decoracao agressiva em cores ber- 61 jorravam plumas lilas, malva e branco, de acrflico, e uma imaginagao diabolica na profusao de cores e formas dos abat--jours tipo mobile, em tirinhas de plastico. Por fora a visao era ainda mais espectacular, quando se observavam as cento e vinte e cinco varandas viradas ao sol e a piscina em forma de rim, com os seus acessos por estradinhas de cimento entre relvados amachucados por centenas de pes que tinham des-botado ate ficar cor de ago. Eu gozava as minhas primeiras ferias na praia, na qualidade de acompanhante e parente com menos recursos de minha prima, a menina Borges, e nao tinha vergonha de me mostrar grata embora a visse fazer algumas econornias com o meu passadio, levando a delica-deza ao ponto de me antecipar aos seus designios para nao a obrigar a lutar contra a sua natureza. Por exemplo, se a minha prima encomendava dois bolos, quando era sabido que um nunca a deixava satisfeita, eu comia apenas metade do meu com a preocupacao de o fazer durar e assim podia dar-lhe a outra metade antes que ela ma pedisse, nada per-dendo portanto e gozando ainda o prazer de a ouvir dizer obrigada, como se eu e que lhe tivesse oferecido alguma coisa. Por estas e por outras talvez nao fosse apenas por razoes geneticas que a prima Borges estava a ficar comple-tamente redonda, mas, como ela muito bem dizia, tal como era agradava aos seus adeptos. O coronel Ramires, com as suas atitudes concupiscentes, dera-lhe ainda mais forca na defesa dos seus pontos de vista sobre beleza feminina. A verdade e que eu nunca a vira tao desenvolta e saltitante desde o tempo em que andara de namoro com um emprei-teiro (que desaparecera com o dinheiro destinado as funda-coes do futuro lar) e, se bem interpretava certos sinais — os gelados lambidos em publico com a lingua toda, os roubos graciosos de uvas e frutos secos nas bancas do mer-cado, os sorrisos descarados sem destinatario aparente, o torn de voz desnecessariamente alto e esganicado —, a minha companhia devia estar a provocar-lhe um curioso efeito de regressao no tempo, apesar de eu nao alinhar em charadas e ate ficar incomodada com certas patetices. sala de convivio. Ao fim de uma semana continuava nas mäos de um curioso que näo atinava com o motivo que a fizera de repente pör-se äs escuras e a raiva e a desilusäo fomentavam as especulagöes mais absurdas. Minha prima comecou a encarar seriamente a hipötese de irmos embora. Näo aguentava passar mais tempo sem o mundo rastaquere do Bataclä, a seducäo ambigua do enigmätico doutor Mun-dinho. Perante tal ameaga lembrei-lhe que o coronel tinha televisäo privativa no seu apartamento. E assim, uma noite, vestidas como duas freiras laicas com gripe e psicologica-mente couracadas contra todos os ataques, fomos bater ä porta do apartamento do coronel, que ja nos fizera saber mais de uma vez o prazer que teria com a nossa presenga. O seräo comegou sob os melhores auspicios, com o coronel completamente absorvido pela telenovela, devorando lite-ralmente as actrizes como o demonstravam os caninos ensa-livados e fazendo alguns comentarios brejeiros sem interesse especial. Continuou com um bridege ao qual me esquivei porque entretanto surgiu uma amiga da coronela, viciada na jogatina, e acabou com uma mostra de fotografias, quase todas de negras nuas, a que o coronel chamava pomposa-mente «imagens da nossa Africa». Como näo nos tfnhamos saldo mal da experiencia repetimo-la no dia seguinte. Desta vez havia outra pessoa em casa, de quem alias ja ouvira falar muito. Refiro-me ä filha do coronel, sobre quem corriam as histörias mais con-traditörias desde que o pai lhe arranjara no proprio hotel um pequeno espago para abrir um saläo de cabeleireiro. Disse-me, mas näo era isso que constava, que o subsidio do Estado mal lhe dera para arrancar com um secador, um lavatörio e um calorifero. No decorrer daquele ano ja expe-rimentara de tudo, trangas com oleosidades ancestrais, cara-pinhas descontentes, cränios roseos de sexagenärias depe-nadas, seborreias infecciosas, piolhos e parasitas värios, e a tudo deitara mäo para bem servir a cKentela, desde o DDT a produtos caseiros baptizados com o rötulo «made in France». O que ela näo disse, e se murmurava ä boca pequena 62 63 a direita a urna velocidade incrivel como por engano do com-putador. E era esta criatura, duplamente sedutora pelo génio financeiro e o tipo élancé, cem por cento colonial, que vinha ter comigo, se interessava pela minha existencia, se propu-nha arranjar-me o cabelo de borla, me mostrava como tinha tudo a lucrar em trocar os saiotes engomados pela simplici-dade de uns shorts pretos muito justos e uma blusinha ber-rante cortada numa capulana! Comecaram a transmitir uma pe9a de teatro e ela aproveitou para me safar dali. «Anda — disse — vou apresentar-te o meu irmäo. Näo pode sair do quarto porque está de castigo.» Bom, talvez eu devesse ter comecado por f alar no irmäo da Semíramis. Efectivamente a família compunha-se de pai, mäe e dois filhos e tinha a particularidade de os filhos näo saírem em nada aos pais e de se detestarem todos cordial-mente, com excepcäo dos dois irmäos, que eram muito uni-dos. O filho tinha ainda uma particularidade só dele: era anäo, mas um anäo alto, um metro e quarenta no bilhete de identidade azul, embora já andasse pelos dezassete anos. Já o vira anteriormente mas só ä dištancia e para lhe mos-trar que näo o confundia com um garoto cumprimentara-o com um meio sorriso bem feminino. Portanto a Semíramis disse — vou apresentar-te o meu irmäo — e eu senti-me profundamente emocionada porque era a primeira vez que prestávam homenagem ä minha dife-renciacäo sexual e duma maneira cheia de galantéria. — O meu irmäo Péricles, Pikles para os amigos — disse a Semíramis. — Parece ter dez anos mas vai fazer dezassete. Os medicos dizem que foi um problema emocional que lhe trávou o crescimento mas se um dia comeca a crescer ninguém o agarra. Na altura a apresentacäo pareceu-me carecer de tacto mas, como vim a saber, era assim que o Pikles gostava de jogar, arriscando tudo no primeiro encontro, para que cada um fosse obrigado a escolher a hipótese que o definia: doente, anormal, aleijado, fenómeno de feira, ou simples- Estava rodeado de revistas tecnicas sobre electronica, computadores e outros temas pouco aliciantes mas que deviam entusiasma-lo bastante a julgar pela confusao de papeis com numeros e diagramas que juncavam a mesa de trabalho. Cai na asneira de me mostrar interessada e o resul-tado foi passar uma boa meia hora a ouvi-lo explicar, por metaforas e imagens, o funcionamento de um computador. Quase me senti agradecida quando a coronela entrou no quarto e depois de dizer que nos vinha fazer companhia durante uns minutos comecou a falar da vida que levavam em Africa (comiam lagostins todos os dias e ela ia aos bai-les do Governador de vestido comprido de lhama e sanda-lias douradas!) e dos projectos que tinha para o futuro dos filhos. Reparei que o amor de mae nao a cegava nem a lem-branca dos esplendores passados a afectava na sua maneira de ser realista e pratica. Entre outras coisas acertadas, disse que o filho nao servia para quern queria homem bonito na cama, mas rapariguinhas espertas como eu sabiam dar o devido valor a um futuro engenheiro de maquinas. Olhei para o Pikles. Ele emendou com os labios, «electronico». Desfeito o equfvoco rimo-nos os quatro e a conversa pros-seguiu civilizada e ordeiramente. — O que e que pens as do meu irmao? — perguntou--me a Semiramis a despedida, quase com angustia. Respondi-lhe, pouco a vontade, que o achava um tipo muito curioso. — Mas porque? — insistiu. — Bom... porque sabe uma porcao de coisas e tam-bem porque tenho a impressao de que «aquilo» lhe deu uma maturidade especial. Ela ficou aliviada. Disse: — Eu sabia que ias perce-ber. Nao e so a inteligencia dele, e o resto. Nem sequer e propriamente maturidade. Maturidade e uma palavra tao gasta, nao concordas? Mas tens razao ao falar «daquilo». «Aquilo» as vezes pode ser muito chato ou mesmo terrfvel mas nao no sentido que as pessoas julgam. 64 65 a menor íaeia uu que ua ^uum ^^v,^. Depois disso habituei-me ä obscuridade do pensamento e dos hábitos linguísticos da Semíramis quando tocava no seu assunto favorito, o irmäo. Nunca se referia a ele sem grandes circunlóquios e prolegómanos, como se a verdade do Pikles se escondesse algures no interior de um labirinto de que ninguém senäo ela tinha o fio condutor. ] Depreendi no entanto que ela diagnosticava uma psi-cose de culpa do coronel em relacäo ao filho, que em erianca desmaiava ao ouvir o pai berrar em casa com o vozeiräo de comandar os tropas, e um dia, a propósito do horror do Pikles por animais domésticos, em especial gatos, contou--me que o coronel o obrigava a atirar sobre gatos vadios para ter a mäo treinada quando chegasse a altura de acertar -noutros alvos. Entäo o meu interesse por ele redobrou e por várias vezeš, de uma maneira alusiva e disereta, tentei encaminhar a conversa para os traumas da guerra, assunto que estava muito na ordern do dia, mas a família em bloco f näo mostrava perceber e a coronela até tinha o desplante j de sorrir e acenar com a cabeca e depois virava-me as cos-tas, como se ao meu direito de falar correspondesse o dela de näo responder. Conversar com o Pikles também näo era fácil pois ele estava quase sempře de castigo (traduza-se: trancado no quarto a estudar) e a coronela recambiava-me amaveímente. Perguntei ä Semíramis que crime é que ele '. tinha feito e ela explicou-me que para além de näo crescer näo tinha feito mais nada, mas, precisamente por ser anäo, os pais o obrigavam a estudar muito para tirar o máximo de partido da sua inteligencia o que já näo séria preciso, evidentemente, se fosse um monte de músculos estúpidu q.b. Além disso ninguém conseguia tirar a mania ao coro- j nel de que o rapaz era anäo porque se obstinava em näo í crescer, primeiro para fugir ä tropa, depois para lhe frus- f trar os pianos, já que pelas leis da hereditariedade devia j ter saldo um latagäo como eram todos os machos da estirpe ; dos Ramires. t Minha prima, a quem transmiti estas informacöes, abespinhou-se toda quando eu acusei o par de farísaísmo tíssima e um comportamento digno de uma grande dama caída em desgraca. Se se mostravam um bocado severos para com o seu único filho era porque queriam prepará-lo para os graves problemas que havia de enfrentar pela vida fora se náo conseguisse atingir um tamanho normál. Antes isso, atalhei eu virtuosamente, que um gigante com f alta de mio-los. Aí é que tu te enganas!, saltou ela como uma fera, picada pela minha alusáo, ainda que velada, ao coronel. Isto foí o ponto de partida para uma discussao em que a menina Borges defendeu como sempře a importáncia da componente sexual no amor e no casamento e eu a escandalizei enchendo--lhe os ouvidos com as minhas preferéncias eróticas que abrangiam em lugar de destaque Clayanger, o meu profes-sor de moral e o inesquecível Poil de Carotte antes de se tornar no senhor Renard. Acho que foi depois desta conversa que tne pus a pen-sar no Pikles, náo sei bem por que associacáo de ideias, a ponto de ele se tornar uma referéncia obsessiva e obsi-diante ao longo das vinte e quatro horas do dia, para espanto de algumas pessoas que se davam conta de que eu vivia em permanente conluio físico e mental com uma personagem invisível. Assim, e pondo de lado a influéncia de Semíramis, que tinha o cuidado de esconder bem o seu jogo sob uma máscara confusa e mistificadora, tenho de admitir que fui eu que construí á volta do Pikles um enredo complicado de encantamento e seducáo e, mais que sucumbir aos podereš da inocente vítima, me deixei envolver nos meus pró-prios sortiíégios. Foi assim. Há muito que o coronel planeava uma ida á praia, náo o costumado pedaco de areia a abarrotar de veraneantes para onde se encaminhavam diligentemente os hóspedes do hotel, mas um pedaco de costa ainda virgem onde se podia andar nu na santa cumplicidade da natureza e o marisco crescia á solta como erva num pragal. Levava--se um farnel, colchas velhas para armar uma tenda e dor-mir a sesta, comia-se uma caldeirada e voltava-se noite fechada, depois de termos visto o sol mergulhar nas águas, 66 67 atirámonos com ardor aos preparativos. O Opel do coronel, lavado á mangueirada por fora e por dentro, nao per-dera contudo o cheiro a rančo, como se tivesse passado para ele alguma coisa do seu possuidor. Em contrapartida era largo e confortável, oferecendo boas superfícies de apoio. A frente sentaram-se o coronel e a esposa. Atrás a minha prima, uma amiga da coronela, a Semíramis, o Pikles e final-mente eu, em diagonál com o nosso líder. Como a minha prima ocupava dois lugares ficava para o Pikles um pequeno espaco simbólico á beira do assento, conseguido á custa de um esforco permanente, meu e da Semíramis, para manter-mos as pernas de esguelha e perfeitamente unidas. Era tao incómodo que ainda náo tínhamos andado meia-dúzia de quilóftietros icei-o para os meus joelhos e rodeei-llie a cin-tura com o anel dos bracos. Foi o melhor que podia ter feito. O peso pluma do Péricles nao dava para me amarrotar a saia nem transmitia mais calor do que uma lámpada de 40 watts. A partir daí comecei verdadeiramente a gozar a viagem. O Opel, apesar de larguíssimo e descentrado e da tendéncia para deslizar para fora da faixa, íá ia cumprindo o seu dever, com grande gáudio do coronel que nao Ihe regateava elogios. Logo de início tratara de avisar que passeio era passeio, náo íamos correr a maratona, mas, incitado pela Semíramis, acabou por c ar r eg ar no acelerador até o ponteiro do conta-quiló-metros encostar á direita do quadrante. Foi o delírio. O ar šalino entrava em forca pelas janelas abertas e as toa-lhas e tudo o que era pano estralejava e ameacava levantar voo. Eu e o Pikles, curvados para a frente, recebíamos em pleno rosto a chicotada do vento, uma sensacáo exaltante, náo muito diferente, julgo eu, da que teríamos se fóssemos dois malucos de moto, a fugir da polícia no deserto do Mojave. A verdade é que a velocidade e a trepidacáo esta-vam a dar-me volta á cabeca e sem dar por isso estreitei tanto o abraco ao Pikles que ele protestou com um gemido abafado. Tanto baštou para cair em mim e procurar tran-quilizá-lo com as palavras mais doces do meu vocabulá- debaixo da camisa africana com desenhos de frutos e ani-mais tropicais e acariciei-lhe a pele mořena esticada sobre uma armacäo flexível e elástica como o corpo de um pombo. Vendo que marés de arrepios lhe percorriam as costas pen-sei que talvez viesse a calhar uma massagem, arte em que era bastante hábil desde que a minha prima me iniciara nesse método para a ajudar a combater as insónias. Comecei pela zona das omoplatas, agreste e montanhosa, e fui explorando centímetro a centímetro cada parcela de território, ora per-correndo o fino rosário dos ossos da coluna, ora irradiando em excursôes para os lados, primeiro com a preocupa9áo de copiar o virtuosísmo dos dedos da minha prima, depois guiada por uma inspiracáo muito mais pessoal, que tinha em conta a linguagem do coracäo mais do que uma técnica aprimorada. E a prova de que näo me estava a sair mal era ver o Pikles balancar-se ao ritmo dos meus joelhos, a morrer--me aos poucos nas mäos como um baläo mal atado. Nem precisava de o ver para saber a expressäo que lhe ia nos olhos. Se parasse havia de me detestar, portanto era obri-gada a continuar e a manter um ar ao mesmo tempo natural e animado mas náo tropo. Felizmente que a Semíramis servia--me de biombo e atraía as atencôes, rindo e conversando com a sua voz estentórea. Quando os pulsos me comegaram a doer experimentei interessar o meu protegido por outras distraccôes mais säs como seja o dia bonito, as alegres camionetas de carreira cheias de excursionistas, as putas ä beira da estráda com o ar de ter acabado de cair da estratosfera, mas logo com-preendi que ainda náo era tempo ao receber uma série de pontapés nas canelas. O pior é que as exigéncias do Pikles näo iam ficar por ali, tornava-se bastante evidente, e eu näo estava em situacäo de resistir sem provocar um escän-dalo de dimensôes incalculáveis. Obedecendo a um gesto de comando dele, deixei que os meus dedos escorregassem pela regiäo das ancas e da barriga, cova rasa e firme, enter-rada entre dois ossos agucados como penhascos. Aí consta- 68 69 U-C I1UI11CII1 ljut v.Uüium«yu u± «.^^.^ £-_„„.v~.—--___- ----- _ que mais parecia uma trela ou grilhäo de escravo. Ja näo podia voltar aträs. Entrara na zona de influencia do Pikles (elegante subterfiigio que me evita explicacöes embaraco-sas) e era täo livre de desistir como ele de satisfazer a curio-sidade da mäe, que queria saber a razäo por que o nosso duo se mantinha täo calado. Em suraa, fi-lo gozar bastante e tambem aproveitei alguma coisa. A tal ponto que deixei por completo de ouvir a voz acalorada da Semiramis e so reagi ao enconträo amigävel que ela me deu com o cotovelo quando o carro se imobilizou ä vista da linha azul-escura do mar e ao silencio extasiado se sucedeu a balburdia e o rebulico da confusäo da chegada, num ambiente de euforia alarve em que de repente nos vimos separados, eu e o Pikles, sem perceber muito bem que meios tinham usado para por fim ä nossa associacäo. A praia ficava ainda longe e por isso foi com os joelhos ja a vergär de cansaco que atingimos o cobicado solo arenoso. Separämo-nos em dois grupos, homens para um lado, mulheres para o outro, e vestimos os fatos de banho agachados no canavial. Depois convergimos vagarosamente para o nosso acampamento, cada um a tentar disfarcar os seus pontos fracos e a apreciar as plästicas alheias äs furta-delas. Salvava-se a Semiramis, com as suas coxas firmes e bem modeladas, a pele de seda cor de canela e toda a sua pujanca tropical. O coronel tinha corpo de sapo, a coronela e a amiga defendiam-se com fatos de banho espartilhados e enchumacados e escondiam o desalinho dos cabelos debaixo dos imponentes cones dos chapeus mexicanos. Minha prima, essa, nao tinha comparacäo possivel com ninguem. O seu fato de banho era um modelo de patinadora com um palmo de saia aos folhos para tapar a superabundäncia de carnes e como näo dispensava a maquilhagem nem os colares, os braceletes e os aneis repolhudos, parecia um idolo gordo e juvenil. A Semiramis propos que fossemos imediatamente ao banho e todos a seguimos, desprezando os apelos insis-tentes da menina Borges, que näo tinha pressa nenhuma em molhar-se e perder o aspecto apresentävel. Deixando-os até uma pequena enseada inacessível a pé enxuto. Caí na areia, exausta, enquanto ela se afastava, sem evidenciar ponta de cansa9o, anunciando que ia fazer umas exploracôes e näo precisava de companhia. O Pikles ficara logo estendido junto da orla do mar, virado de nariz para baixo e esquartelado como um náufrago dado ä costa morto. Fechei os olhos. Pensei que se ele quisesse viria ter comigo mas os minutos passaram vagarosamente sem que nada perturbasse a placi-dez da hora e do lugar. Inesperadamente comecou a cho-ver. Nem queríamos acreditar mas era mesmo chůva, pro-veniente de uma única nuvem enorme e arredondada que se instalara ä f rente do sol e por cima das nossas cabecas, delimitando um espaco escuro atravessado por tracos obli-quos que ao cair cavavam pequenas crateras no chäo. Antes que ficássemos completamente encharcados corremos a abrigar-nos sob a cornija de uma r och a. Ali perto abria-se uma espécie de nicho profundo entre dois blocos, para onde mudámos ä procura de uma proteccäo mais eficaz. Afinal a abertura continuava por um corredor que ao alargar-se deu lugar a uma gruta de tecto baixo onde o ar parecia acumulado sob pressäo e tinha um cheíro intenso e íodado. E foi aí que se deu o milagre, melhor, a metamorfose, pois näo aconteceu nada que näo obedecesse a leis naturais e até näo tivesse sido previsto pelos medicos. Naquela atmosféra purificada de fundo do mar o Pikles desencolheu-se, empertigou o tronco, esticou os bracos, e daí a pouco tocava com a testa no tecto da caverna. Instantes depois tinha de se ajoelhar para caber lá dentro. No entanto näo parecia nada assustado e eu propria, depois de me convencer de que o fenómeno näo era perigoso nem incontrolável, sucumbi ä alegria e emocäo de participar com ele no grande Evento. Acresce que chorei, ou antes, vertemos em conjunto lágri-mas que chegaram para humedecer um pouco de areia ä nossa volta. Fomos encontrar a coronela e a amiga tricotando dili-gentemente ä sombra dos chapéus mexicanos, entre um monte de toalhas encardidas. O coronel e a minha prima 70 71 de que a coronela dissesse alguma coisa a propósito da trans-formacäo do Pikles mas tudo o que lhe concedeu foi urn breve olhar apreciativo. A outra näo foi mais explícita. Só depois é que percebi que estavam a conspirar contra a minha prima e o coronel e o movimento solerte das agulhas tradu-zia äs mil maravilhas o seu estado de espírito. Quando quis voltar a ver o Pikles fui praticamente posta na rua. Estava a preparar-se para os exames finais dos cur-sos por correspondéncia e o coronel näo permitia que alguém se atrevesse a por em perigo os frutos de um ano de traba-Iho. A menina Borges também näo teve mais sortě. A coronela ameacara o marido de divulgar o seu indigno procedi-mento, fazendo-o perder a autoridade de que gozava no hotel e talvez dizer adeus a alguns privilégios. Deixámos o hotel ainda na estacäo alta, quando a piscina desaparecia sob um mar de gente e todos os dias se registavam animadas aglomeracöes no hall, enquanto a porta ia e vinha nas jambas trazendo baforadas de calor e o afluxo de novos clientes. Antes de entrar no taxi olhei pela ultima vez as cento e vinte e cinco varandas e a piscina em forma de rim, agora todas tortas e esfumadas, entrevistas através de uma membrána liquid a. Mesmo assim acho que descobri o que procurava, o Pikles ä varanda do apartamento. Estava empoleirado nas grades e fazia adeus, mas äquela distäncia e contra o sol näo me atrevo a afirmar que o adeus era para mim, nem sequer se era ele, um hörnern baixo, um anäo, um rapaz desconhecido ou algum menino. 72 O QUERIDEZAS