SENTIDO DA EPOPEIA Personagens Este texto. com algumas diferengas, foi levado ä cena em 1986 pelo grupo «O Bando», sob o título Estilhagos. MARIANA A encenacäo foi de Joäo B rites e a interpretacäo de NOÉMIA Márcia Breia, Maria Emília Correia e Pompeu José. OCTÁVIO 1. A CHEGADA NOÉMIA e MARIANA chegam a uma pensäo, numa terra alentejana, onde decidiram passar uns dias, longe de tudo. As duas amigas tém mais de quarenta anos de idade. Vestem hem. Já no quarto, väo alegremente atirando a bagagem para cima da coma. MARIANA: Urna mala! NOÉMIA: Outra mala! MARIANA: Um saco! NOÉMIA: Um casaco felpudo! MARIANA: Mais outra mala! NOÉMIA: Uns óculos escuros! MARIANA: Mais um saco... NOÉMIA: Ainda outro saco... MARIANA: Uma máquina de escrev... NOÉMIA: Eh, lá, isso näo, näo me atires a máquina de escrever! MARIANA: Urna maleta! 13 Agua em Pena de Pato O Sentido da Epopeia NOÉMIA: Hum, os lengóis cheiram a mofo... MARIANA: Cheira tudo a hafío. É de estar fechado. Vamos lá a arejar isto... NOÉMIA: A janela e stá um bocado perra. Estes tipos ainda náo descobriram o alumínio... MARIANA: Ainda bem! NOÉMIA: Dá aqui uma ajuda... Olha, sempře julguei que a vista fosse melhor... Construíram para ali uns ca-sinhotos ou lá o que é aquilo... MARIANA: «Cabanejos»! Mas, também, que querias tu ver? NOÉMIA: Olha, ao menos, sobreiros... MARIANA: «Chaparros»! Ai achei tanta graca ao homem... NOÉMIA: Qual, ao pastor? MARIANA: Ao pastor: «Montevedro é já alem ä dré-ta daquele chaparro. Havera de lá estar uma tabuleta mas os mocos dum cabráo deram cabo dela...» NOÉMIA: «Já além»... Vinte quilómetros de estráda ruim. MARIANA: O ar é puro. Vamos cá ter uma destas orgias de oxigénio... NOÉMIA: Ä falta de melhor. MARIANA: Talvez se arranje, quem sabe? NOÉMIA: Ih, a cama range que se farta... MARIANA: O meu inalador? Queres ver que me es-queci do inalador? Ah está aqui... Que alívio. Preciso de ter o inalador sempře ä mäo. O ar é puro mas, ás vezeš, a humidade... MARIANA: Ah, cá estamos... NOÉMIA: Cá estamos... MARIANA: Bah, estou cheia de pó. O estupor da estráda... Sinto-me toda peganhenta. NOÉMIA: Também eu. Olha! Olha! MARIANA: Tenho de tomar um duche. NOÉMIA: Eu também. Espero é que tenham a água quente ligada... Vai tu primeiro. MARIANA: Náo, náo, primeiro tu! NOÉMIA: Vá lá... MARIANA: Ai que cerimónias. Olha, tiramos á sorte. «Um dó li tá, cara da mendoá, um soneto coloreto, um dó li tá...» Ves? Calhou-te a ti... 2. REMINISCENCIA MARIANA: Ao passar por Évora bem podíamos ter ido ver o Octávio. NOÉMIA: Sabes, quando eu estou a conduzir e tenho um destino náo gosto de parar a meio. É tudo de fiada... Náo descanso enquanto náo chegar ao fim da linha. Sempře fui assim... MARIANA: Também, era só um pequeno desvio... NOÉMIA: Alem disso parece-me incorrecto aparecer em casa das pessoas sem avisar primeiro. Alias, em qual-quer altura podemos passar por lá. Náo fica muito longe... É já alem, como dizem aqui na regiáo. MARIANA: Eu estive para te dizer, mas depois náo... Achas que ele gostava de nos ver? NOÉMIA: Quem sabe? As pessoas, nas circunstän-cias em que ele se encontra, ás vezeš tornam-se azedas... MARIANA: Mas, bem ves, passarmos mesmo ali a dois passos e... Noémia! NOÉMIA: Hum... MARIANA: Vamos lá um dia destes, está combina- do? 14 15 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia NOÉMIA: Vamos, pois. Amanhä, ou assim... MARIANA: Os amigos säo para as ocasiôes, näo é? NOÉMIA: Temos que lá ir mas näo é para cum-prir provérbios, näo é por convengäo social. É porque era nosso amigo, ou melhor, é nosso amigo, e gostamos dele. MARIANA: Ah, claro, claro... NOÉMIA: Onde é que te queres instalar? MARIANA: Qué? NOÉMIA: Pergunto onde é que te queres instalar. Na mesa de camilha ou na secretária? A mim tanto se me dá... Trabalho bem em qualquer lado. MARIANA: Entäo, pronto, fica tu com a mesinha que eu tenho mais papéis... Era um miúdo täo giro. NOÉMIA: O Octávio? Pois era... MARIANA: Encarava a vida com uma grande fres-cura. Espantava-se com tudo, me srno com pequenas in-signifícáncias. Era capaz de estar a falar connosco de política e interromper-se para dizer, encantado: «01ha um melro, viste aquele melro?» NOÉMIA: Sim, distraía-se um bocado... MARIANA: Äs vezeš dava-me a impressäo de que näo me levava muito a sério. Tratava-me como uma miúda. Era muito delicado, muito cauteloso comigo. Nun-ca me exigia que fizesse esta ou aquela tarefa. Pedia sempře: «Mariana, tu näo te importavas de...» NOÉMIA: E o que eras tu, senäo uma miúda? MARIANA: E ele? E ele? E tu? E tu? Olha, vou-te pagar a gasolina. NOÉMIA: Agora? Tu e stas maluca... Fazemos as contas no fim... 3. REVIVALISMO... MARIANA: Deve haver mosquitos, ä noite. Vi uns velhos sentados com mata-moscas na mäo. Há-de haver por aí mosquitada em barda... NOÉMIA: A mim näo me incomodam... MARIANA: Näo? Nem as melgas? Que sorte. Cá a mim, é cada baba... NOÉMIA: Que estás a fazer? Deixa estar isso. Há tempo para arrumar... MARIANA: Näo gosto de ver coisas espalhadas. Näo me dá jeito... E agora, ligar para casa... Podia ligar-me para Lisboa, para o 456789?... Ninguém atende? Mas näo atendem ou está inter-rompido? Ah, näo atendem... Obrigada, eu depois volto a telefonar. «Logo que chegues, telefona, logo que chegues, tele-fona...» Eu telefono e näo está ninguém... NOÉMIA: Se calhar ele foi... comprar cigarros... MARIANA: Olha, um pássaro, um pássaro! Quase nos entrava pela janela dentro. NOÉMIA: Detesto pássaros! MARIANA: Eu também, mas visto assim, contra o céu, dava urna sensacäo de... Mas também näo gosto de pássaros. Aquelas garrazitas morn as e aduncas, buáh... NOÉMIA: Eu odeio pássaros porque a literatura está cheia de pássaros. Näo há poeta que näo meta pássaros nos poemas... Já näo se atura... Säo os pássaros e os an-jos de pedra. Safa! MARIANA: Ora bem, entäo quando é que se comega a trabalhar? NOÉMIA: Täo ansiosa... Hoje proponho que näo se trabalhe. Hoje descansa-se. Assim as duas quietas, a olhar... MARIANA: Lá em casa ninguém me pode ver sosse- 16 17 Agua em Pena de Pato O Sentido da Epopeia gada. E como se fosse antinatural... Mai eu me sento, vém logo o André ou o meu filho a pedir qualquer coisa, a perguntar qualquer coisa... Eles nao fazem de propósito, nem reparam, mas lá no ultimo devem pensar que aquilo nao faz sentido: a mae sentada? A mae a nao fazer nada? E arranjam sempře maneira de me pór a cirandar de um lado para o outro... NOEMIA (trauteando): You load sixteen tons and what do you get? I Another day older and deeper in debt... AMBAS: Saint Peter don't you call me I "cause I can't go. I I owe my soul to the company store... MARIANA: Nao brinques! NOEMIA: Tu tambéin nao te impoes... MARIANA: Nao é isso... É que se eu nao me me-xesse, punham-me a casa de pantanas. O que, também trouxeste a almofada? A almofada? NOEMIA: Trago sempre. Recuso-me a dormir em almofada que nao seja a minha. As pessoas riem, acham esquisito... Quero lá saber! Prefiro uma ironia a um torci-colo... MARIANA: Mas que é que tern de especial, essa almofada? NOEMIA: Nada... Sei 11.. É fofa... é a minha almofada... MARIANA: Quando me lembro de ti, toda activa, a tomar decisoes, a definir orientagóes... Quern é que iria adivinhar que tu, lá muito em segredo, tinhas uma almo-fadinha predilecta? NOEMIA: Ah, sim? E quern é que iria adivinhar que tu, tantos an os volvidos, virias a dar numa pacata economists toda voltada para os teus pianos de investimento? Tu, sempre de cabelos ao vento, vestida de bombazi-na e cabedal, a distribuir panfletos... MARIANA: Eu nao andava sempre de bombazina e cabedal. Tinha umas calcas de bombazina, como toda a gente... Verdes, ainda me recordo... NOÉMIA: E um casaco de cabedal, näo? MARIANA: Ná, estás a confundir, näo era eu... Tu é que andavas sempre de saia e casaco, muito compostinha... Nem parecias progressista. Havia até quern fizesse comentários. NOÉMIA: Havia? As parvas... MARIANA: Tinha graca se, naquele encontro de outro dia, tivéssemos aparecido todos vestidos com os trajos de entäo: tudo de bombazina, tudo de camisoläo, tudo de cachecol colorido, tudo de camisa ä pescadora. As mulheres de rabo de cavalo, os homens de barba cer-rada... NOÉMIA: Já agora, alguns vestidos de polícia de choque, para completar a mascarada... Havia de ser um festival de desabotoados e esborre-gados, a tentarem caber em fatos que já näo lhes servem. As mulheres ficam mal, de rabo de cavalo branco. E com os homens todos de barba branca, aquilo havia de parecer um concurso de Pais-Natal... MARIANA: Deixa-me rir. Estou a pensar no Raul, vestido de Pai Natal... Imagina, o belo Raul, o grande destrogador de cora-gôes... Como ele está agora... Até me fez pena: balofo, com-pletamente calvo, beigola descaida, a falar com voz rou-fenha. Lembra vagamente um vendedor de automóveis... NOÉMIA: Há que reconhecer que nós também esta-mos... enfim, um tudo-nada diferentes... MARIANA: Pois, um tudo-nada... NOÉMIA: Foi a ultima vez que me apanharam numa reuniäo daquelas... MARIANA: Näo tínhamos nada que dizer uns aos outros, näo era? «Ah, tu eras o tal... pois, já te estou a reconhecer... Ainda estás lá no mesmo sítio, näo?» «Qual sitio? Eu sou advogado em Penafiel...» E tínhamos de fingir aquela alegria postiga... Ainda bem que ninguém se lembrou de 18 19 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia comegar a cantar... Também, quern se lembra ainda das letras das cancôes? NOÉMIA: Antes assim... Com música séria tudo ainda mais... desconfortável. Faltava lá o Octávio. Senti a falta do Octávio... MARIANA: Quem é que íe contou? NOÉMIA: O qué? MARIANA: Aquilo do Octávio... NOÉMIA: Quem é que havia de ser? Vé se adivi-nhas... MARIANA: A Amelia? NOÉMIA: A Amelia, claro... O desprezo que eu sinto pel a Amelia... Deu em parasita das desgracas dos outros. Ela compraz-se com as in-felicidades, dir-se-ia que se nutre disso. Há um casal desavindo? A Amelia proclama; alguém tem dificuldades de dinheiro? A Amelia divulga; alguém está doente? A Amelia vai de porta em porta anunciar... E tira infor-macôes, e dá pormenores... com aquele falso ar de com-paixäo... No fundo, a desgraca dos outros dá-lhe tanto prazer... MARIANA: Pobre Octávio... NOÉMIA: O jeito radiante com que ela chega ao pé de alguém e diz: «Sabes, fulano foi fazer urna biopsia. Parece que é grave...» Vaca! MARIANA: Pobre Octávio... Se fosse só o álcool... Mas ela deu-me a entender que havia mais qualquer coi-sa... Urna doenca má... NOÉMIA: Há doengas boas? MARIANA: Näo derives... Sabes o que quero dizer... Eu estive vai näo vai para lhe telefonar, para o procurar... mas depois näo calhou. Metia-se sempre qualquer coisa pelo meio. Enfim, näo calhou... Pena que näo tivéssemos passado por lá, ä vinda... NOÉMIA: Podias ter avisado que era naquela terra que ele estava a viver... MARIANA: Mas tu ainda há bocado disseste que nunca paravas, nas viagens. NOÉMIA: Pois, está bem. Mas podias ter avisado... MARIANA: Para qué? NOÉMIA: Näo interessa. Avisavas, pronto! Também nunca mais o vi. Os dias foram passando, passando, e... nunca deu jeito... MARIANA: Está-se bem aqui, assim... Ouves o ru-morejo das árvores? Em Lisboa nunca se dá por ele. NOÉMIA: E os grilos. MARIANA: E os grilos... NOÉMIA (trauteando): Nada poderá deter-nos / nada... MARIANA: Mas essa foi a cancäo que o Octávio cantou no Convívio de Ciéncias. Lembras-te? O Octávio, naquela noite, estava em grande forma, radiante... MARIANA E NOÉMIA: Nada poderá deter-nos, I nada poderá vencer-nos, I vimos do cabo do mundo, I com este passo seguro... 0) MARIANA: O Octávio. NOÉMIA: O Octávio... Amanhä... 4. A ESCRITORA MARIANA: Voces, os escritores... NOÉMIA: Näo me digas isso assim que eu fico logo em pänico. Eu, antes de mais, sou funcionária publica. Só depois é que sou escritora... C) Joaquim Namorado e Fernando Lopes-Graga, Cangóes Heróicas. 20 21 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia MARIANA: Viva a modéstia... NOÉMIA: Modesta, eu?... Olha, olha... MARIANA: Voces todos, quando escrevem, estäo sempře pensar na posteridade, näo é? NOÉMIA: Ora, eu queria era que a posteridade fi-casse lá para diante, muito sossegada... Tomara eu que os de agora me lessem, quanto mais a posteridade... MARIANA: Vamos, lá... confessa. No fundo, no rundo... NOÉMIA: Olha uma coisa, e esse teu piano de inves-timento, como vai?... MARIANA: Antipática! Vai indo. Mas näo é sangria desatada... Coloco a amizade antes. NOÉMIA: A conversa, queres tu dizer... MARIANA: Dizias que só escrevias ä máquina, que só escrevias ä máquina... Eu a pensar que eras uma escri-tora mecanizada e, afinal, estás para aí a escrever ä mäo. Nem sequer abriste o estojo da máquina... NOÉMIA: E depois? Sou inconstante, pronto. Näo posso dar-me ao luxo de ser inconstante? Mariana, Mariana, vá lá, deixa-me ser um bocadinho volúvel, deixas? MARIANA: Lá por isso, minha querida, tern a bon-dade! Os defeitos säo para se exercerem. Por mim, até acho graga... A posteridade... A mim näo me interessa nada, a posteridade. Se daqui a dois séculos aparecer alguém a dizer que antigamente havia uma tal Mariana Ferreira que fazia uns pianos de investimento do caragas, garanto-te que isso näo me afecta nada... Tu... Tu vais fugindo, näo é, Noémia? NOÉMIA: Entäo, Mariana... 5. METÁFORAS... MARIANA: Mostra! NOÉMIA: Näo, näo mostro. Näo mostro! Isto está só apontado. É urna primeira versäo... Näo mostro nada a ninguém quando estou a escrever. MARIANA: Mas eu näo sou ninguém, sou tua ami-ga, ou näo? NOÉMIA: Näo puxes! MARIANA: Vá lá... NOÉMIA: Näo puxes, olha que rasgas... MARIANA: Se rasgar, a culpa é tua. Larga! NOÉMIA: Ah, puta... (risos) Entäo? MARIANA: Giro, porreiro... NOÉMIA: É tudo o que tens para dizer? «Giro, porreiro»... MARIANA: É muito... enfim, muito... parecido conti-go... f NOEMIA: Está um bocado confessional, näo achas? MARIANA: Pois, é natural... as pessoas falam do que sabem... Tu falas de ti, dos teus problemas... Havias de falar de qué? Dos mineiros? Tu näo sabes nada de mineiros, falas de ti. É assim... Olha, näo levas a mal que eu te faga um reparo? NOÉMIA: A mal? Até agradeco. Diz, diz... MARIANA: Sério? NOÉMIA: Diz lá... MARIANA: Aqui onde está escrito... deixa ver... «Aspernas dele bamboleavam como dois péndulos sol-tos...» NOÉMIA: Entäo? MARIANA: É que, com franqueza... dois péndulos... Logo dois péndulos juntos... Näo estou a ver, franca-mente näo estou a ver os péndulos aos pares... Näo é que, em rigor, näo possa ser... E, é claro, há a linguagem 22 23 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia poética... Mas, dois péndulos e ainda por cima soltos... Já ves... Soltos? É como se o homem estivesse no ar e as pernas a dar e dar... As pemas, ou mesmo os... NOÉMIA: Dá cá isso! MARIANA: Eu só... NOÉMIA: Dá cá, imediatamente! Larga! MARIANA: Mas que estás a fazer? Para que é isso? Náo rasgues. Náo rasgues! Que feitio... Aquilo era só uma observagáo de porme-nor... O que eu fui dizer... Alias, posso estar perfeita-mente enganada. Era só uma opiniáo de passagem... NOÉMIA: Lixo com esta trampa toda! MARIANA: Noémia, que feitio... NOÉMIA: Pronto. Está no lixo. Ficaste satisfeita, náo? MARIANA: Oh, Noémia, eu náo queria... NOEMIA: Ah, minha querida, nao penses que a tu a opiniáo teve a minima importáncia... A minima... Eu também, francamente, já náo estava a gostar děste tex-to. Era só o que me faltava... Estava feita, se tivesse que reconsiderar de cada vez que os amigos botám sentences... MARIANA: Estás a ser injusta... NOÉMIA: Eu sei bem o que valho. Tem sido bem recebidos, os meus livros... O Algada até me mandou um cartao... náo digo entusiástico, mas muito simpático. E a crítica... MARIANA: Noémia, por amor de Deus, eu nao po-nho nada disso em causa, eu limitei-me... NOEMIA: Náo perceběste nada do texto, confessa. Náo percebeste mesmo nada. A tua reaccáo, alias — «é giro, é porreiro» — desculpa, mas é mesmo de quem náo percebeu patavina... MARIANA: Pronto, está bem, náo percebi... NOÉMIA. E fica sabendo, náo és tu que me vais demover de continuar a escrever... MARIANA: De que é que estás á procura? NOÉMIA: O numero de telefone do Octávio! Estava aqui, o numero do Octávio... Onde é que o puseste? Por favor, ligava-me ao... Náo, deixe estar, náo é nada... Nada, nada, obrigada... Sabes? Detesto bébedos. Sempře detestei bébedos: aquelas vozes entarameladas, os gestos peganhentos, a imagem da decadéncia... Náo, náo suporto. Assim, de um momento para o outro, náo... É deprimente... Ainda por cima, enervada como estou... Náo, náo consigo! Fica para depois. Ligas tu, está bem? Ligas tu, mas depois... 6. A FAMÍLIA MARIANA: O André está um lorde, um paxá... Náo quer saber de nada, náo se rala com nada... Podia arran-jar outro emprego, mas marimba-se. Diz que náo está para se chatear com os impostos... Náo te grama, sabes? NOÉMIA: Ai náo me grama? MARIANA: Acho que é uma espécie de ciúme. Quando tu telefonas torce sempře o nariz... Enfim, esqui-sitices, ressentimentos que já vém dos velhos tempos... NOÉMIA: E tu acreditas nisso? MARIANA: No que? NOÉMIA: O teu homem diz-te que náo gosta de uma amiga tua, e tu acreditas... Que ingenuidade... MARIANA: Por que é que náo havia de acreditar? 24 25 Agua em Pena de Pato NOÉMIA: Eu só acreditava se ele me dissesse isso a mim, a sós... E mesmo assim... podia sempře ser para ti-rar um efeito... MARIANA: Que autoconfianga que tu tens... NOÉMIA: Experiéncia... experienciazinha... MARIANA: Mas eu ia a dizer... Náo sei se continue a dizer... NOÉMIA: Diz... diz... MARIANA: Ele cada vez fala menos. Antiga-mente ainda passávamos seroes inteiros a conversar... Agora, chega a casa, vestě uma jaleca velha e vai tra-tar dos avióezinhos. Quase todas as semanas compra uma caixa de construgoes e dedica os tempos livres a cons-truix avioes de plástico. Nem os telefonemas atende. Tem cá uma colecgáo... O dinheiráo que ele gasta naqui-lo... Eu náo desgosto de o ver entretido. Ainda assim, sempře é melhor do que quando ele tinha a mania do Alexandre Dumas. Passava horas e horas a ler Alexandre Dumas: As Jóias da Rainha, José Balsamo e coisas assim, de quatro ou cinco volumes. O gozo que aquilo lhe dava... E chegava a acordar-me, de noite, para me ler tre-chos do Alexandre Dumas... De resto, nao está disposto a ralar-se com mais nada. Tanto se lhe dá que chová ou faga sol... Mas olha lá, o que é que tu querias dizer com aquilo? NOÉMIA: Tu nao és capaz de estar calada? Desculpa, mas eu estou aqui a tentar concentrar-me e tu falas, falas... Por que é que nao te concentras também no teu trabalho? MARIANA: Ai, desculpe lá... que susceptibilidade... Náo queria perturbá-la... NOÉMIA: Náo querias, mas perturbaste. Pronto, diz lá... Diz lá... O Sentido da Epopeia MARIANA: Agora também náo digo. NOÉMIA: Vá lá... MARIANA: Näo, näo, cada qual trabalha nas suas coisas, pronto. NOÉMIA: Era o teu marido, näo era? O teu maridi-nho. Pronto, conta lá... MARIANA: Acabou-se! NOÉMIA: Entáo... MARIANA: Nem penses... NOÉMIA: Amuadiga, caramba... 7. A OFERTA MARIANA: Já te passou? Hoje estás melhor? NOÉMIA: Também náo era nada de cuidado. Uma dor de cabega... uma moinha... MARIANA: A mim pareceu-me que era sobretudo neura! A maneira como tu falaste com o homem da re-cepgäo..; NOÉMIA: Há dias assim... MARIANA: E já tinhas atestado o depósito, já tínha-mos comprado a caixa de chocolates... NOÉMIA: Ontem estava que näo podia ver nin-guém... Há ocasiôes em que näo posso ver ninguém na minha frente. Fico zangadiga com toda a gente... as pes-soas metem-me raiva. MARIANA: Na parte que me toca... desculpa lá a minha presenga. NOÉMIA: Deixa-te disso. Näo era nada contigo... era com o mundo... Estava zangada com o mundo, pronto... Näo era bom dia para visitar o Octávio... Já vés... MARIANA: Achas que ele gosta de chocolates? NOÉMIA: Nunca se sabe de que é que os homens gostam... O que é que lhe havíamos de levar? Flores? Um cinzeirinho artesanal? MARIANA: Depois, se calhar, a irmä come-lhos to- 26 27 Água em Pena de Pato dos. Pior para ela. Näo devem ser grande coisa estes chocolates comprados aqui. Devem ser mais velhos que a Sé de Braga... NOÉMIA: Dá cá um... Depois logo se compra outra caixa... MARIANA: Vá lá... Hum... näo säo maus... Vamos amanhä? NOÉMIA: Vamos, pois. MARIANA: Näo queres telefonar já, a avisar? NOÉMIA: Para qué? Telefonamos amanhä, antes de partirmos. Oxalá ele näo esteja bébedo... Eh, näo comas os chocolates todos... Fussangona... 8. A VIDA REAL Toca o telefone MARIANA: Filho, filho, entäo, como estäo todos? O pai? Ah, sim? Olha, olha... Os avós? Diz que e u mando um beijinho, eu mando um beijinho... Tens estudado? Diz ao pai que näo se esquega do cobertor eléctrico liga-do. E tu, lembra-te de mudar a serradura do gato. Hä? Ah, sim? Claro. Qué? Para o Gerés? Nesta altura do ano para o Gerés? E o que é que o pai te disse? Ah, pois, isso säo coisas que compete ä mäe resolver... Tudo o que te-nha responsabilidades... Chama lá o pai. Ai foi aonde? Hum... Olha, tem lá paciéncia mas eu näo estou nada de acordo que vás para o Gerés... Aquilo säo só penhascos e ribanceiras... E com quern é que i as? Ah, nem pensar... nem pensar... Tens muito tempo para ir ao Gerés... Aquilo deve e star gelado, por lá... Tu és ainda muito novo, filho... é perigoso... Por que é que voces näo väo antes até ä Costa, para casa dos avós? Agora näo deve estar lá ninguém... Näo grites, se fazes favor näo gritas ao tele- ti Sentido da Epopeia fone! Eu te dou a tirania... Pronto, está o caso arruma-do... Beijinhos... ... Bern, onde é que eu tenho o lápis? Que chatice, ando sempře a perder os lápis. Bolas! Olha, tem o bico partido. Lápis chineses... Ele há dias... NOÉMIA: O comboio, estás a ouvir o comboio? Nem sempře se ouve. Só quando o vento corre de fei-cjío... MARIANA: Queria ir para o Gerés! Sozinho, com uns amigos, para o Gerés. Ainda se estampava de algum barranco abaixo... Com quinze anos, para o Gerés. Eu só fui ao Gerés com mais de trinta, e ainda assim ia caindo por uma cascata... Conheces o Gerés, tu? NOÉMIA: Conheco. MARIANA: E o pai näo liga nenhuma, está-se nas tintas. Desde que näo o incomodem... Näo é uma questäo de rigidez, percebes, mas eu fica-va em cuidados, a imaginá-lo a suportar aqueles frios. Até lobos há... NOÉMIA: Ora, Mariana, coitadinhos dos lobos. To-mara eles que näo os chateiem, quanto mais... MARIANA: Tive que recusar, claro. E ele ficou aborrecido, mas näo havia outra alternatíva. Agora, para o Gerés... Um bando de catraios, de mochila äs costas, lá no extremo de Portugal. Era só o que faltava... NOÉMIA: Deixa lá o mogo... MARIANA: Deixa lá o moco, deixa lá o moco... É muito fácil para quem näo tem filhos decretar a tolerancia. Tenho reparado que as pessoas que näo tém filhos säo sempre de um extremo liberalisme quando se trata dos filhos dos outros... NOÉMIA: Pronto, já aqui näo está quem falou. Se näo me dás o direito de me pronunciar, eu näo me pro-nuncio... 28 29 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia MARIANA: Para o Gerés... «Curtir!»... Diz-te alguma coisa, isto: «curtir...»? NOEMI A: Diz: significa divertir-se, gozar... Näo me digas que näo sabias. Em que mundo vives tu? MARIANA: A primeira vez que ouvi a palavra, associei logo a curtumes, peleš... lembrei-me daquelas manufactures malcheirosas de Marrocos... Imagina, apareceu-me lá um puto em casa, muito desembaragado, e veio desafiar o meu para irem curtir um bocado, näo sei para onde... Cheguei a pensar que eles esti-vessem interessados em artesanato... «Curtir» r Onde raioforam eles buscar esta acepcäo? É como Disco Jockey... O meu marido costuma dizer que isso de Disco Jockey é um homenzinho que anda a cavalo nos discos. E o meu filho: «Pai, com franqueza, sempře a mesma piada...» Säo muito diferentes de nós, näo säo? NOÉMIA: Ainda be tri... MARIANA: Ainda bem, o tanas... Já te contei aquela dos cadernos? Apareceu-me o puto a rir-se: «Imagina que o Pedro queria que eu Ihe empres-tasse os meus apontamentos... Os apontamentos de Física, que me deram um trabalhäo»... «Entäo?», perguntei eu... «Ora, entäo... quem quer bolota atrepa, mäe. Eu esta-va a trabalhar para ele, näo?» «Com franqueza, näo per-cebi...» «É fácil de perceber. Eu emprestava-lhe os meus ricos apontamentos e ele, sem esforco nenhum, acabava por tirar melhor nota que eu. Näo era justo, mäe...» «Ah, e é justo recusares a solidariedade a um colega?» «Solidariedade? Isso é retórica humanista, mamä...» Imagina, Noémia, retórica humanista... NOEMÍA: Sinal dos tempos... MARIANA: O André levantou os olhos do jornal e resmungou qualquer coisa lá do seu canto, «alarves», ou coisa parecida... Um miúdo de quinze anos a preocupar-se com o em-prego, com o seu futuro pessoal, numa idade em que de-veria ainda brincar, fantasiar... É uma violéncia, Noémia, isto que estäo a fazer aos nossos filhos. O egoísmo como norma de vida. Que será desta geragäo? NOÉMIA: Nada, väo ser excelentes pais e mäes de família, como tu e os outros... E näo te preocupes: estas coisas vém e väo. Tudo passa... MARIANA: Aqui há uns anos, deram na televisäo a notícia duma manifestacäo reprimida num desses países da America do Sul. O miúdo olhou para nós e disse: «Mas para que aquilo, que é que tinha? Era apenas urna manifestacäo...» Vieram-me as lágrimas aos olhos e repa-rei que o André também tinha ficado comovido: Era apenas urna manifestacäo... Valeu a pena, termos passado pelo que passámos para que os nossos filhos pudessem dizer tranquilamente: «Que mal faz? Era apenas urna manifestacäo...* E, no entanto, agora está assim... NOÉMIA: E as manifestagôes no nosso tempo... me-nina! MARIANA: O Octávio ia sempre ä frente. Apanhei cada sústo... NOÉMIA: Também eu! Corria, corria... Urna vez parti um salto. MARIANA: Também, só tu é que ias de salto alto para as manifestagôes... Lembras-te? «Companheiros! estudantes!» NOÉMIA: Tu estás um bocado obcecada com o passado. Confessa... É urna armadilha, Mariana, acredita, a obsessäo com o passado é urna armadilha. Estamos encantados, fas- 30 31 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia cinados e depois... depois näo suportamos o confronto coin o mundo real... Em casa dos meus pais, nunca houve televisäo. íamos ver a casa de um vizinho. Quando apareceu o primeiro frigorífico, comprado a prestagöes... ainda me recordo... foi uma festa. Automóvel, nem pensar. Cheguei a usar os vestidos da minha mäe, aque-les saias-casaco, de que tu tanto te admiravas... Tinha os tostôes todos contados. Cedo aprendi a defender-me, Mariana. E tu também tinhas obrigagäo de te saber defender... MARIANA: Defender-me, eu? Mas defender-me de qué? NOÉMIA: Olha, lá no mini stério, há quem queira fazer-me a vida negra. Um cercozinho de maquinagôes, trapagas, pequeninas perfídias... A mim näo me apanham e m falso. Escrevo tudo. Registo tudo o que f ago, tudo o que os outros dizem, chego a tomar nota do que eu propria digo. Näo me apanham, Mariana. Tu devias fazer a mesma coisa... MARIANA: Lá na empresa também há umas chati-ces, mas, francamente, näo tenho grande razäo de queixa... Nem sequer reparo em muita coisa... NOÉMIA: Pois é, näo reparas... Estás voltada para o passado, para um mundo de fantasias e de slogans, Mariana. Tens de enfrentar a vida. Ficaste fascinada por urna série de vocábulos: «generosidade», «solidariedade», «fraternidade»... Razäo tem o teu miúdo. Defende-se, sabe mais da vida que tu... MARIANA: Näo te estou a reconhecer, Noémia... NOÉMIA: Tu, Mariana, o André, o Octávio, nunca foram capazes de encarar a vida como ela é: dura, perversa, enganosa, madrasta... E agora aí estäo, muito es-pantados, a receberem ligöes dos miúdos... MARIANA: Eu tenho princípios e näo abdico deles... NOÉMIA: Tens princípios? Era melhor que tivesses fins... 9. O ENGENHEIRO MARIANA: Filauta!!! NOÉMIA: O qué? MARIANA: Filauta! NOÉMIA: Näo percebi, francamente... MARIANA: Filauta. Tu és uma filauta. Fi-lau-ta!! NOÉMIA: Mas que é que isso quer dizer? Filauta? MARIANA: Sempre tenho ouvido esta palavra e nunca soube bem o significado dela antes de te conhecer. Näo tenho duvidas. Filauta és tu, só podes ser tu: tu ar-des em amor por ti propria, tu amas-te a ti e a mais nin-guém. Amas-te? Minha querida, tu tens uma verdadeira paixäo por ti, uma auténtica idolatria... Aposto que, ä noite, quando me apanhas a dormir, ajoelhas do teu lado da cama e diriges oragôes a ti propria. Tu és a tua grande divindade, Noémia... Que pri-vilégio, uma religiäo täo exclusivista... NOÉMIA: Mas que foi, que foi agora? O que é que me faz merecer a honra de um insulto raro?... Filauta, ora, filauta... MARIANA: É venha a mim, venha a mim... Säo os teus papéis, é o teu espago, säo as tuas decisoes, é a tua vida... só pensas em ti. Saíste-me a pessoa mais egoista que eu j á vi em toda a minha vida... NOÉMIA: Que exagero... Mas tens de me reconhecer uma qualidade: a paciéncia, safa!... Eu estava täo bem sozinha, näo sei porque é que acedi a... MARIANA: Olha acedeu, olha, ela acedeu... Pois se foste tu quern me desafiou. Eu estava täo bem em Lis-boa, näo precisava nada de me vir meter nesta espelun-ca... Eu tenho família, eu... NOÉMIA: Olha, Mariana, a mim, francamente, já näo me sobra pachorra para estas discussôes. Se queres fazer urna cena vai lá ter com o teu maridinho, pôe a mäo na anca e desata a peixeirar... Comigo näo! Vá lá urna pessoa meter-se com mulherzinhas... 32 33 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia MARIANA: Antes uma mulherzinha que uma bal-zaquiana gaiteira a arm ar ao pingarelho. NOÉMIA: Bašta! MARIANA: Mas bašta, o qué? És tu agora que decides também quando é que eu falo e quando näo falo? «Basta, basta», como se eu aceitasse ordens tu as. NOÉMIA: Ouve, escuta... MARIANA: Näo pode ser, tens de perder essa mania de mandar nos outros... NOÉMIA: Mariana, por favor, presta atencäo: somos duas pessoas adultas e civilizadas. Tu estás muito exalta-da... MARIANA: E tu, näo estás exaltada? NOÉMIA: Estava, estava, mas já passou... Vamos tentar controlar-nos, está bem? Pronto, eu reconhego que também me excedi um bo-cadinho: näo é meu costume, mas, enfim... agora, tu, francamente, a chamares nomes... A chamares «filauta»... filauta... MARIANA: Fazes-me raiva, as vezeš fazes-me raiva... NOÉMIA: Foi aquilo do engenheiro, näo foi? MARIANA: Quero lá saber do teu engenheiro... NOÉMIA: Já vés, ele convidou-me a mim... Acho que seria incorrecto levar outra pessoa comigo... Já näo tenho idade para paus-de-cabeleira. MARIANA: É foi correcto, deixares-me para aqui, a fazer horas... Mas näo importa, näo é isso que importa, amigo näo empata amigo... NOÉMIA: Cada qual tern a sua vida, näo é? MARIANA: Pois... Mas tinhamos combinado que era hoje que tele-fonávamos ao Octávio, e que hoje reservávamos a tarde para ir visitar o Octávio. E tu estiveste-te nas tintas e foste sair com o engenheiro... NOÉMIA: Amanhä, amanhä falamos ao Octávio... MARIANA: E o engenheiro, que tal? NOÉMIA: Que tal o qué? MARIANA: Ora... Vá lá... NOÉMIA: Entäo, o engenheiro é um parvo. Provavel-mente nem é engenheiro; deve ser caixeiro-viajante, ou coisa parecida... Imagina que diz «ataques epiléctricos. «... Fulano, estava com ataques epiléctricos...» Tem uns olhos bonitos, mas é tudo... Um pateta... MARIANA: E... entäo? NOÉMIA: E... entäo, nada. Fomos ao castelo. Ele fartou-se de falar. Sabe imenso de automóveis, de carbu-radores, dessas lérias... Foi cá urna seca... Tenho um pendor para os tipos sentenciosos... nem queiras saber. Äs vezes apanho uns que querem im-pressionar-me falando sobre vinhos. Há Manos capazes de discorrer durante horas acerca de vinhos. Acho que decoram aqueles álbuns que há para aí... e depois debi-tam, debitam... A esses aplico-lhes sempre a mesma re-ceita: olho, muito compenetrada, para o vinho que tenho no copo, miro-o com ar conhecedor, volteio-o urn pouco e digo: «É um bocado adstringente, näo lhe parece?» Re-sulta sempre! Os tipos reconhecem que, efectivamente, o vinho é um tudo-nada adstringente. Alias, cheguei ä con-clusäo de que tudo o que se diga sobre vinhos está sempre certo. Desde que afirmes, com convicgäo, que é adamado, fechado, VÍ90S0, ou adstringente, ninguém te contraria. E quanto mais palavrório metafórico usares, mais brilhas... MARIANA (ri): «Ai, ataques epiléctricos, ai, adstringente...» NOÉMIA: Vés? Tu täo abespinhada e, afinal, 0 auto-denominado «engenheiro» era um atraso de vida... E quanto ao Octávio, amanhä também é dia... MARI ANA: Pois, deixa lá... O que näo se faz em dia de Santa Maria, faz-se no outro dia... 34 35 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia Telefone NOÉMIA: Vai, vai, atende. É para ti. Só pode ser para ti... MARIANA: Sim? É sim... Só um momento, se faz favor... Afinal era para ti, o teu engenheiro... NOÉMIA: Olá, está bom, desde há bocado? Näo, näo. Vou jantar aí a qualquer lado, com a minha amiga. Estou acompanhada, näo reparou? Näo... Näo... Näo, näo dá jeito. Näo, näo vale a pena insistir. Fica para outra vez... Ora, quem sabe? Näo faltaräo ocasiôes... Há mais marés que marinheiros. Sim, sim, claro... Deixe estar, eu depois falo. Depois. Pronto... pronto... adeusinho. Obrigada, fico muito grata... Entäo adeus. Chato. Pateta... Se ele voltar a falar diz-lhe que vá ver se chove. E que v á pel a sombra... MARIANA (n): «Ataques epiléctricos»... NOÉMIA: Palerma! MARIANA: Entäo, que é que ele queria? NOÉMIA: Queria ir a uma discoteca. MARIANA: Ó Noémia, mas vé lá, tu näo te prendas por minha causa. Se te dá prazer ir... NOÉMIA: Estás doida, agora a urna discoteca, com um tipo que diz «epiléctrico» e fala sobre carros. MARIANA: Que chatice... NOÉMIA: Que chatice, o qué? MARIANA: Estou para aqui a servir de empecilho. Tu, se calhar, apetecia-te ir e, lá por estares comigo... NOÉMIA: Deixa lá o caixeiro-viajante. E estás a ver--me em discotecas, feita parva, com esta idade? MARIANA: Estou sinceramente incomodada. Olha, a sério, por que é que näo lhe telefonas e vais com ele? Eu fico bem, avango um bocado com os meus gráficos... NOÉMIA: Pronto! Acabou-se! MARIANA: Näo queria era que dissesses que eu es-tive para aqui a empatar... NOÉMIA: Näo, näo, näo é nada disso. Homens como aquele há por aí aos pontapés. MARIANA: Com a nossa idade j á näo se pode ser muito exigente, näo é? NOÉMIA: Mas que é que estás para aí a dizer? Que é que tu sabes disso? MARIANA: Näo te zangues. Enfim, há que aproveitar as oportunidades... NOÉMIA: Ah, entäo estás a insinuar que eu já estou na fase de ter de aceitar a companhia de fulanos que di-zem «epiléctrico» e falam de vinhos... MARIANA: De automóveis... NOÉMIA: Näo esperava isso de ti, Mariana... Sinceramente, näo esperava isso de ti... MARIANA: Mas que é que eu disse, senhora, que é que eu disse? Eu apenas queria dar-te a Iiberdade de... NOÉMIA: A mim ninguém me dá a Iiberdade de coi-sa nenhuma. Ninguém me dá nada! A Iiberdade sou eu que a tenho, que a conquistei. Näo preciso de ajudas. Nem preciso de condescendéncias. Hipócrita! MARIANA: Desculpa, lá isso näo! Vé como falas... NOÉMIA: Com esse teu ar de sonsa tens estado todo o tempo a diminuir-me. Mas que é que tu queres? Que eu aceite a imagem que tu queres impor-me? Eu tenho quarenta e quatro anos, näo sou nenhum traste... Näo tenho de aceitar qualquer um... MARIANA: V á lá... Vai lá ter com o caixeiro-viajante... NOÉMIA: Cala-te! MARIANA: Eu näo digo nada, eu näo digo mais nada... NOÉMIA: Falsa! Hipócrita... MARIANA: Näo digo mais nada, mas era bom 36 37 Agua em Pena de Pato O Sentido da Epopeia que te controlasses. Estás a gritar tanto que ainda vém lá de baixo, da recepcäo, a saber o que é que se passa... NOÉMIA: Näo compreendeste nada, mesmo nada, do que eu te contei até agora... MARIANA: Vá, dorme... Filauta... 10. AMORES MARIANA (rindo): Tantos homens... NOÉMIA: Eu o que näo compreendo é como uma mulher se pode apegar a um homem só. Que cansaco, que monotonia... MARIANA: Mas tantos homens, Noémia... NOÉMIA: Bern ves: um homem para conversar, ou-tro para passear, outro para passar férias, outro para fazer companhia, outro para a cama... MARIANA: Eu näo era capaz... NOÉMIA: E também se podem revezar, também po-dem altemar, e pode-se sempře meter mais outro ainda pelo meio; baralha-se, volta-se a dar... Acredita que é tudo muito mais colorido... MARIANA: E näo te cansas? NOÉMIA: Também se pode descansar, durante uns tempos. Faz-se uma abstinencia, mais ou menos prolon-gada. Depois, quando for a altura, recomega-se... MARIANA: A mim, francamente, näo me dava jeito. Sou definitivamente monogämica. Näo quer dizer que... enfim... mas tantos homens näo... Hum... NOÉMIA: Que foi... MARIANA: Estava a lembrar-me duma coisa... Nun-ca contei isto a ninguém... NOÉMIA: Nem ao André? MARIANA: Muito menos ao André, safa! NOÉMIA: Entäo? MARIANA: Lembras-te das operagôes que eram ne-cessárias para fabricar um autocolante? Ia-se comprar o papel a um armazém e invariavelmente dizia-se que era «para forrar gavetas». Depois, com um régua e um lápis esquadrinhava-se o papel todo, em pequenos rectängulos; depois, cortava-se ä tesoura; depois escondia-se debaixo da cama porque o pai ou a mäe entravam; depois prepa-rava-se um linóleo, com uma goiva ou um canivete; depois fabricavam-se os disticos: «Abaixo isto» ou «viva aquilo!», com uma tipografia de brinquedo; depois se-guia-se a fase de impressäo... NOÉMIA: Eu sei isso tudo, Mariana... MARIANA: Talvez näo saibas. Tu eras mais do gé-nero de mandar fazer... Mas, enfim, daquela vez o Octávio pediu-me que fi-zesse os autocolantes, e ofereceu-se para me vir ajudar, ä noite. Os meus pais tinham ido passar o fim-de-semana ä quinta. Estivemos ali, até äs tantas, naquelas pequeninas tarefas, e, de momento, estabeleceu-se uma forte ligagäo entre nós. Estávamos ambos disponíveis, enfim, eu estava disponivel e... aconteceu. NOÉMIA: Ai aconteceu!? MARIANA: Depois ambos reconhecemos que tinha sido urna atracgäo momentänea, que... NOÉMIA: Estás em cima dos meus papéis. Sai já daí... MARIANA: Pronto, está bem, näo é precise. NOÉMIA: Olha, olha, tudo amarrotado. E se eu te fi-zesse o mesmo aos teus gráficos? Olha para isto, olha! Urna pessoa com todo o cuidado e ela, vá!, espoja-se em cima dos meus papéis... Näo tinhas nada que me contar isso! MARIANA: Mas tu pediste-me que contasse... 38 39 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia NOÉMIA: Näo pedi nada! E mesmo que pedisse, näo tinhas nada que contar... MARIANA: Näo percebo, Noémia, eu estava täo bem a..% NOÉMIA: IIá coisas que näo se contain. Pura e sim-plesmente, näo se contam, pronto! MARIANA: Já aqui näo está quem falou... eu retiro... eu sei lá... nunca pensei que... NOÉMTA: Deixa, desculpa, säo coisas minhas... Sa-bes o meu feitio... näo ligues... Mariana! Tenho estado a pen s ar numa coisa... MARIANA: Diz... NOÉMIA: Talvez fosse mel h or tu ires sozinha visitar o Octávio. Sempře estavam mais ä vontade. MARIANA: Mas que disparate é esse? NOÉMIA: Sempře detestei sentir-me a mais em qual-quer lado. Para mim, seria intolerável, percebes? Vais tu só, está bem? MARIANA: Mas isso näo faz sentido, Noémia... Olha, a chorar. Noémia, Noémia, minha querida, entäo... NOÉMIA: Näo ligues, näo é nada, isto passa. É a tensäo, näo sei... Isto raramente acontece comigo, mas... Pronto, deixa, já passou. MARIANA: Mas vamos as duas ver o Octávio! NOÉMIA: Claro, claro que vamos... Tenho de pôr gasolina, ver os pneus... Até podemos almogar fora... Vamos amanhä... MARIANA: E até podemos depois ir dar uma volta com ele, espairecer um bocado ao ar livre... Näo achas que ele gostaria? NOÉMIA: Vamos a ver... Desde que a mana do Octávio näo venha connosco... Fica entäo combinado para amanhä? MARIANA: Definitivamente! 11. CONTRATEMPOS MARIANA: Olha, a chover... NOÉMIA: Vai tudo por aí alagado... Olha para aqui-lo, olha... MARIANA: Fica triste, isto assim... NOÉMIA: Triste e escuro... MARIANA: Que magada... Lá se vai o nosso passeio com o Octávio... NOÉMIA: A nossa visita, queres tu dizer... Eu näo me meto ä estráda com este tempo. Ainda por cima com um limpa-pára-brisas torto... MARIANA: Podíamos ao menos telefonar... NOÉMIA: Ah, isso näo... Se telefonarmos é para ir. Eu näo adiro a manifestagôes de simpatia ä dištancia. Dava a impressäo de que telefonávamos para nos descar-tarmos... MARIANA: Sim, claro... Mas podíamos telefonar e combinar outro dia... NOÉMIA: E tu sabes quando é que o tempo vai melhorar? Esperantos... Também, näo custa nada. Quem esperou até agora bem pode esperar mais um dia ou dois... MARIANA: Olha, olha, olha... um rato... urna rataza-na a nadar pela sarjeta... NOÉMIA: Bah... MARIANA: Atira-lhe com qualquer coisa, anda... NOÉMIA: Com o qué? MARIANA: Sei lá. Oh... NOÉMIA: A minha esferográfica vermelha... Atiraste com a minha esferográfica... MARIANA: Näo há pedras. Näo há nada que atirar, neste quarto... Deixa lá a esferográfica... depois compro--te outra. NOÉMIA: Devia era obrigar-te a ires lá abaixo buscá-la... 40 41 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia MARIANA: Olha, obrigar... E como é que tu fazias isso? NOÉMIA: Andas embirrenta, tu... MARIANA: Ai eu é que ando embirrenta, eu?... Äs vezeš penso: Como é que uma pessoa se pode deixar degradar assim? Logo ele, que era o tipo mais rijo, mais decidido... NOÉMIA: Estás a falar do Octávio, näo? MARIANA: Quanto ä doenca, enfim, näo se pode fa-zer nada... Mas o álcool, o isolamento... É certo que a vida äs vezeš nos prega cada partida... Mas, logo ele... Pensei sempře... NOÉMIA: És muito ingénua, Mariana... MARIANA: Pensei sempře que lhe estavam reserv a-dos grandes destinos. Que havia de ser um politico de renomé... exprimia-se täo bem... e, afinal... ; NOÉMIA (suspiro): Ai, ai... MARIANA: Ingénua porqué? NOÉMIA: Mas que sabes tu do Octávio? MARIANA: Se calhar sei mais do que tu... NOÉMIA: Há mulheres que pensam que lá por se térem deitado com um tipo se apropriaram dele... MARIANA: Estás a ser injusta, Noémia... NOÉMIA: O Octávio era um menino rico, Mariana, um filho-família... Isto näo te diz nada? MARIANA: Nem por isso... Que é que tem? NOÉMIA: Olha, em minha casa era tudo contadinho, ? até ao ultimo tostäo. O meu pai comprava sempře lämpa-das de 25 velas e fazia uma fita se eu estava mais de cinco minutos no banho... O Octávio näo fazia contas... Näo precisava de fazer contas... Nota, isto em nada diminui a admiracäo que eu tenho por ele... MARIANA: Pois, näo fazia contas, näo... ■ Äs vezeš marcava-me encontros para sítios afas-tadíssimos. Eu näo tinha dinheiro para os transportes: andava horas a pé... Näo lhe dizia nada, mas interrogava--me: «Será que ele näo percebe que a minha mesada näo dá para estes caminhos?» NOÉMIA: Ele queria lá saber... MARIANA: Näo é isso. Nem sequer lhe ocorria. Estava longe de supor que eu näo tivesse dinheiro... NOEMIA: Inconsideracäo, ou desconsideracäo? MARIANA: Näo lhe passava pela cabeca, é natural. Devia andar muito longe destas dificuldades comezinhas das pessoas... NOÉMIA: E aquele MG branco? O único desca-potável branco em toda a Universidade... MARIANA: Dava-lhe uma čerta graca, confessa. Uma vez até bloqueou uma rua, com o carro, em frente de uma carrinha da polícia. NOÉMIA: Pois, a polícia estava farta de conhecer aquele carro. Os sarilhos que ele näo ia arranjando... MARIANA: Mas era täo... determinado... NOÉMIA: É fácil ser-se um revolucionário quando a família paga as despesas. Pensando bem, o que é que o Octávio arriscava? E, verdadeiramente, o que é que o fazia correr? Para que é que ele precisava de mudar o mundo? Tudo aquilo foi um fogacho de romantismo ju-venil. A juventude passou e... aí tens... MARIANA: Falas como se näo fosses amiga dele... NOÉMIA: Que disparate! Sou mais amiga dele do que tu... Conheco-o melhor, é o que é... Näo tenho ne-cessidade de mitificar para fundamentar a minha ami-zade... E a teimosia... a teimosia de grand seigneur... Tantas vezes que eu lhe disse para näo ir para Africa. «Näo se-jamos rígidos, Octávio, se näo te sentes calhado para aquilo, näo vás. Näo se pode exigir de todos os camara-das que»... E ele foi, na mesma! 43 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia De resto, consideradas as relagöes de... enfim, de forte amizade que havia entre nós era natural, ao men os que ele hesitasse. Mas näo. Quis ir. Estava impregnado de banda desenhada e de romances do Salgari... é o que era... MARIANA: Ele pareceu-me täo determinado, täo * apostado em ir... Eu também Ihe pedi que näo fosse. Aquela partida magoou-me, magoou-me deveras... Noémia, talvez seja melhor näo lhe falarmos em nada i disto quando o formos ver amanhä. NOÉMIA: Que disparate... é claro que näo... MARIANA: Evidente... ? NOÉMIA: Houve tanta gente que foi para a guerra... For que é que logo ele reagiu assim? A acreditar na Amelia está ťechado no casaräo, com a irmä a tratar i dele... Aquela honivel irmä, com a dentuga assim... Imagina! | Era fragil, o Octávio... 12. OCTÁVIO OCTÁVIO está sentado, na obscuridade, num. espago * diferente do de NOÉMIA e MARIANA. Pode acontecer \ que, por vezeš, a sua fala se cruze com a delas. Bebe. í Na melo, uma carta. i Há por ali um cäo | OCTÁVIO: Como descobriram a minha morada? Ah, I a Amelia, claro... «Colega, amigo, vai-se realizar... no dia tal (já foi...) no restaurante... do Bairro Alto um jantar de confraterni-zagäo... näo sei qué, näo sei qué... a crise académica... avisa outros amigos... tal, tal, tal... ť A Noémia näo assina, näo faz pane da comissäo or- I ganizadora. Teria ido lá? j E a Mariana, a Marianita? Muitos faltaram, com certeza: já ninguém os arran- ca ao conchego da televisäo; outros, até prefeririam que näo se soubesse: näo perderam a esperanga de ir a rninistros... Outros já cá näo estäo: foram desaparecendo. A minha geragäo comega a fazer as despedidas. Ouviste, cäo? A minha geragäo comega a bater a bota... Para a próxima aparego, lá no encontro. Para a próxi-ma? Ah, se houvesse próxima... «Estudantes! Colegas!-Este-ano-de 1965-há-de-ficar--assinalado-por-uma-pedra-negra-nos-anais-da-História...» «Colegas! Estudantes! Como-dizia-o-grande-poeta-há--que-manter-sempre-bem-vivo-o-sentido-da-epopeia...» Eh, que calor cá por dentro quando estralejavam os aplausos e subiam os clamores... Que pequenos instantes täo eternos... Nunca, nunca enfiei aquela dos «Valentes estudantes portugueses». Num papelucho, em papel biblia... Ah, a Noemia era terrivel: Reconstitui-se uma conversa antiga. NOEMIA e MARIANA respondem la do seu espago, hirtas, sem nunca olharem para OCT AM 10 OCT A V10: Mas que e isto, Noemia? «Valentes estudantes Portugueses, a vossa luta...», etc., etc. ... Valentes? Mas que raio de linguagem e esta? NOEMIA: E assim mesmo. Enfrentar o governo e ou nao um acto de valentia? OCTAVIO: Bom, esta bem... mas... esta linguagem nao serve. Ninguem se sente identificado com ela... A gente distribui isto e os estudantes desatam-se a rir...» 44 i \: m 45 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia Valentes estudantes»... B ah... Já estou a ouvir as garga-lhadas! NOÉMIA: Estás com preconceitos elitistas, tu! É as-sim que o nosso povo vé os estudantes. Como valentes... OCTAVIO: Mas nós näo vamos distribuir isto ao nosso povo. Vamos fazer chegar os papéis aos estudantes e os estudantes desatam-se a rir se lhes chamamos «va-lentes». Já agora, por que näo «excelsos» ou «egrégios» ou «ínclitos» ou «alevantados»? Estou mesmo a vé-los a receber isto e a romperem ä gargalhada! NOÉMIA: Ouve: vé se te compenetras duma coisa. Tu és um revolucionário, näo és um intelectual! OCTÁVIO: Ah, sim? Intelectual ou näo, «valentes» é um disparate. É ridí-culo... NOÉMIA: Está bem, eu tomo nota da tua observagäo e transmito... MARIANA: O documento está muito bom! Estou de acordo, Octávio... Só há... aqui um pormenor de que eu discordo: é isto dos «valentes». Estás a ver? As pessoas väo achar estranho. OCTAVIO: Entäo e näo é verdade que os estudantes tém sido valentes a afrontar o govemo? É preciso cora-gem ou näo? MARIANA: Pois, mas é o termo, estás a perceber? O vocábulo... OCTÁVIO: E o que é que tem o vocábulo? MARIANA: Soa assim um bocado a... enfatuado. Ou entäo, ao contrário, se quiseres: a populárneho. Näo sei, näo sei dizer bem... OCTAVIO: Ouve, Mariana, é preciso utilizar termos que toda a gente compreenda. Este papel é para ser dis- tribuído entre os estudantes, mas vai ser lido por muita gente: pelos operários, pelos camponeses. «Valentes» é uma palavra que toda a gente percebe. Näo podemos ser elitistas. Como é que o nosso povo diz? Näo é «valen-tes»? MARIANA: Pois, mas eu tenho medo de que os estudantes se nam... Imagina que vais para um plenário e dizes «valentes estudantes!» Toda a gente desata a rir, näo é? OCTÁVIO: Mas o nosso papel também é educar os estudantes para que eles compreendam a linguagem do povo. MARIANA: Achas mesmo isso? OCTÁVIO: Acho, pois! Que sossego... Näo é bem o sossego que eu queria: a quietagäo doce e húmida de um päntano. Mas, enfim, näo se pode ter tudo. E quando nos däo algum sossego, há que apreciá-lo bem, näo o desperdigar... Janelas, portas fechadas, nem as moscas bulem... Cäo, ó canito... vamos lá a saborear esta tranqui-lidade... Entäo, mas que é isso? Tu näo me fazes a continén-cia? Estou para aqui a dizer verdades fundamentals e o meu cäo näo me faz a continéncia? Näo quero cá rabos a abanar... Um cäo que se preza, um cäo sábio e respeita-dor, deve fazer a continéncia! Bater a pala! Bem, se näo me fazes a continéncia a mim, fá-la pelo menos ä dona que vem aí. A mana chegou das compras. Acabou-se o sossego! Cäo, saudemos a mana, bem ali-nhados, peito para fora e barriga para dentro: firme! A mana traz os remédios amargosos... E os cigarros? Excelente! 46 47 Agua em Pena de Pato O Sentido da Epopeia As pessoas^ falam, falam... por que é que as pessoas falam tanto? É uma zoada, zum-zum, zum-zum, tudo a falajar, a falajar... Provavelmente estáo convencidas de que o que dizem interessa a alguém. Contam hisíórias, contain casos, exi-bem-se... Mas eu quero lá saber, quero lá saber... Até a Noémia lhe deu para escrever livros: uma calhandrice por escrito... Eu reclamo um pántano!!! Há dias, estava a mana na canasta, mais o padre e o governador civil e a mulher do veterináři o e aquele ma-fioso da cortiga e vai eu e entro pel a sal a dentro, num vozeirao: «Abram alas a um ex-combatente, abram alas a urn ex-combatente...» Ficaram todos muito espantados a olhar para mim, enquanto eu perguntava a cada um deles, de jeito carrancudo: «Vosseléncia tam be m foi combaten-te?» Subitamente, voltei-ine para a mulher do veterinário e disse: «Imagine que vim de lá invalido, minha senhora. Aqui onde me vé, estou maneta do figado...» A mulher, incomodada, respondeu por instinto: «Ah, coitado...» A mana náo me fala há trés dias. Severa, a mana... Telefone Quern? A Amelia? Náo estou, náo estou, náo atendo a Amelia: diz-lhe que fui a Badajoz, comprar caramelos, que estou num piquenique no fundo da mina de Aljustrel. Que estou no banho? No banho as quatro da tarde... Perspicaz, a maninha... Daqui a bocado volta a Amelia á carga... Só esta Amelia é que me procura. Que interesse terá a Amelia em mim? Telefone Amelinha? Viva... Eu? Estou bem, estou magnifico. Acabo de me inscrever na seccáo de halterofilia do clube dos bombeiros. Náo, mal, náo estou... Dói-me é um bra-50: foi ontem á tarde, na caga ao javali. Umas dentadazi-tas, náo tem importáncia. Agora, a brincar... Eu? Obriga-dinho, manda sempře... Cáo, da próxima vez atendes tu a Amelia, combinado? Quem é que abriu uma janela? Entra o sol, o maldito sol. Estou farto de dizer que o sol é nocivo, o sol é a fonte de todas as podridoes... E esse horroroso barulho dos grilos. Odeio o ruído dos grilos! «Colegas, Estudantes!!!» O medo que eu tinha... Omedo que eu sempře tive. Só eu é que sei, da minha intimidade com o medo... O coragáo batia em tropei, o sangue afluía-me ás fontes, as máos, transpiradas, tre-miam e... uma lassidáo, nas pernas... Mais tarde, em África era a mesma coisa: um desejo insistente, avassala-dor, de náo estar ali... Nas manifestagoes atirava-me para a frente, desafiava a polícia, fazia peito... Era preciso... Ninguém adivinha, os medos que eu passei... A Noémia náo reparava... Pura e simplesmente, náo reparava... Ou entáo — pior — fazia de conta que náo reparava. Mas eu falava-lhe de maneira especial, olhava-a de maneira especial e, quando, desprevenidamente, lhe tocava, a minha perturbagáo devia ser notória, talvez, mesmo, patética... 48 49 Água em Pena de Pato I Ela näo queria saber... Um dia tive de lne dizer: ; Noémia, gostava de te falar num assunto pessoal... ; NOÉMIA: Ah, um assunto pessoal? Diz, diz... • OCTÁVIO: Gosto de ti! NOÉMIA: É natural, Octávio, também gosto de ti... \ OCTÁVIO: Näo é isso, Noémia. Gosto de ti como | hörnern... f NOÉMIA: Ai, ai, Octávio, deixemos lá os assuntos j pessoais... Näo achas que a tua organizagäo poderia fa- | zer um esforgo maior na recolha de fundos? I OCTÁVIO: Está bem, Noémia, vamos ver... ' Mas por que é que tu me davas cabo dos namoros, Noémia? Eram ligacoes passageiras, alegres, frescas, e tu intrometias-te sempře... «Andas a dar-te muito com fula-na, olha que ela náo é de confianca...»; «Beltrana torna atitudes suspeitas, torna cuidado com ela...» «Foste visto com Cicrana... Vé lá em que é que te meteš?...» E eu, obedientemente, cortava as relagoes. Julgava sempře que era uma forma disfargada de me chamares a ti. Mas nao... «Octávio, o autocolante, Octávio, a manifestagáo, Octávio, os fundos, Octávio, as tarefas...» Oh, Noémia, Noémia... Quando voltei de África pensei em telefonar-te. Queria esclarecer tudo aquilo. Depois o tempo foi passando... e eu fui ficando com medo de mais uma conversa enro-dilhada e frustrante... O Sentido da Epopeia satis e pequeninas reflexôes sobre acontecimen-tozinhos... Näo comprei o livro. Näo teria paciéncia para o ler... Sempře lne destinei um ŕuturo de intervengäo política. Depois do 25 de Abril cheguei a esperar que ela apare-cesse no jornal como figura destacada, a dizer umas coi-sas muito categóricas e definitivas... Nada... Um livrozi-to... uma prosazinha poética, um desfiar de banalidade-zinhas inofensivas. Ah, Noémia... A Marianita casou com o André: sempře a atracgäo dos contrários... Como ela era faladora... as vezeš magava um bocadinho... O André näo era mau tipo. Sorna, sorna como tudo: «isto é preciso é calmaria, pá! Isto é preciso é calmaria...» Se calhar tinha razäo: isto o que precisa é de calmaria... Teriam ido ä confraternizacäo? A Mariana näo falta-va, com certeza. O André... näo sei... Noémia, ao sol... Eu via-a vir, muito ao longe, depois de dobrar aquela esquina e ficava a observá-la, sentado num banco de jardim. Pontualmente, ás sete horas... Pelos bancos em volta, havia velhos sentados, a apro-veitarem as ultimas réstias da tarde... Que paráda táo alta que eu joguei... Perdi! Passei aqui há tempos por uma livraria e folheei o livro da Noémia. Divagacôezinhas confessionais e intimistas, uma aguatintazinha de erotismo quantum 50 Noemia, vou mobilizado para Africa... NOEMIA: Tern de ser, nao e? OCTAVIO: Que e que eu fago, Noemia? NOEMIA: Sabes o que tens a fazer... Depois ves-me, esta bem? escre- 57 Água em Pena de Pato OCTÁVIO: Como eu me senti, meu Deus, como eu me senti... Ah, quem dera um pántano... Um vasto, sombrio, tranquilo pántano, de ares espessos, pesados, com um definitivo siléncio a pairar sobre tudo... Siléncio... Quando muito, um gorgolejar abafado de bolhas de metáno, rara-mente, aqui e alem... ou talvez o sinal muito subtil, muito subtil, do rastejar duma serpente... Nada de agitagoes, nada de rumores, nada de golpes de luz... apenas o passar do tempo, lento, aquietado, e aquele odor húmido, adocicado, de coisas mortas e, por-tanto, inofensivas... Um honrado, tranquilo pántano... Mana, maninha, minha querida mana... Leva-me para um pántano e deixa-me lá estar, quieto, com o meu cáo ao lado... Sinto por ai escondida a grande cabra... a imunda, re-pelentissima cabra... Adeja aqui em volta, muito fortuita, muito de mansinho... atenta, a espreita, confundida com os cotoes, com os bolores, com as sombras... Ja ha tantos anos que te conheco o jeito, que te adivinho o bafo... Sentes-te bem, neste ambiente? Entre rendas, bilros, consolas, sanefas, molduras e cache-potsl E ha as velhas mesas mancas, os canapes de estofos macerados, as rendas e rendinhas, em que ja nao se percebe bem o que e renda de renda e renda de po, os retratos bigodudos e graves dos avos, as cabeleiras repolhudas das avos e o monoculo daquele anciao que foi tenente de cavalaria no quadrado de Marracuene: a avo contava, com orgulho, que ele so deu a voz de CARGAAA!!! depois de ter composto o monoculo, e de monoculo espadeirou alegre-mente os indigenas... A esse nao o quiseste tu, na devida altura, imunda cabra. O homem ali a oferecer-se-te, de monoculo e tudo, 0 Sentido da Epopeia e tu viraste-lhe as costas, para o vires recolher mais tarde, num desses quartos, esclerotico e babado... Es perversa, cabra... Perversa e leviana... Tambem em Africa passaste o tempo a farejar-me os passos. E agora, aqui me espreitas outra vez... Vitoriosa? Bah, recuso-me a prestar-te qualquer atencao... Cao, 6 canito, como vai essa vida, pa? Mariana, Mariana, vou para a guerra... MARIANA: Tenho pena, Octávio. Tem mesmo de ser? OCTÁVIO: Tem. MARIANA: Razoes políticas, náo é? OCTÁVIO: Náo só, Mariana... MARIANA: Tom a cuidado contigo, Octávio. OCTÁVIO: Sim, Mariana... MARIANA: Escreve, Octávio. OCTÁVIO: Adeus, Mariana... Até ao ultimo momento estive ä espera que a Noémia me aparecesse e dissesse: «Octávio, näo vás!» Quando o telefone tocou pela ultima vez... náo era ela! Bem poděs rondar, imunda cabra... Eu näo te f ago o jeito. Tens de levar-me ä forga. Eu näo resistirei: seria ridículo espernear, gesticular... Mas näo vou de vontade, näo... Levas-me, mas levas-me ä forga... Noémia... um gesto, um sinal... bastava um gesto... uma entonagäo de voz... Eu quero um pántano... 52 53 Agua em Pena de Pato !■ i t 13. O GOLPE DE MÄO... [ r OCTÁVIO: Eu era apenas um rapazito... convencido í de que sabia rudo, e afinal näo sabia nada de nada. Parti ; de dentes cerrados: «Näo me deitam abaixo! Ninguém f* me deita abaixo!» NOEMI A: Acho que comeca a estar frio... f MARIANA: Já esteve melhor, já... f OCTÁVIO: As pessoas geralmente pensam que as guerras säo feitas por homens. Näo é verdade. Quem h anda na guerra säo os gaiatos... j Eu era apenas um rapazito, com outros vinte e quatro ? gaiatos, para ali, no meio do mato... j" NOÉMIA: Um dos assuntos predilectos dos homens é ; a tropa. Näo suporto. Já näo posso ouvir. Todos come- i gam por dizer que odeiam a tropa, as armas, a violéncia... mas é dar-lhes confianca e aí estäo eles largados a falar daquilo, durante horas seguidas. Casos, histórias, anedo-tas... näo conseguem parar. Ficou-lhes a marca da grande brincadeira, da ultima correria da meninice... OCTÁVIO: O puto näo se calava... Aquela moenga, \ aquele bramido, ora mais alto, ora mais sumido... E os homens, ä minha volta, a perguntar: «Meu alferes, meu alferes, que é que se faz, que é que se faz?» «Que é que se faz? Que é que se faz?» Mas eu sabia \ lá. Eu sabia lá!! "" NOÉMIA: Autocomiseracäo, sempře aquela autocomi- j seragäo... MARIANA: O André nunca fala nessas coisas. Tam-bém, a verdade é que ele nunca fala de nada... Pur a e simplesmente, näo fala. NOÉMIA: Festinhas, querem festinhas, querem colo. Gostam que a gente lhes afague a cabega, os aconchegue ao regago, murmurando: «Coitadinho, coitadinho, vejam lá o que ele sofreu...» Os homens apreciam que se murmure, sabias? MARIANA: Tu sabes mais de homens que eu... O Sentido da Epopeia OCTÁVIO: Mas quando o puto finalmente se calou, foi... Os olhos muito abertos, o peitozito negro a arfar, a arfar, muito ligeiramente a arfar. Olhava para mim. Olha-va para mim! E os homens a perguntar: «Que é que se faz? Meu alferes, que é que se faz?» NOÉMIA: A autocomiseragáo... Eu nunca precisei de sentir piedade por mim propria. Nunca consentiria que ti-vessem piedade de mim... OCTÁVIO: Eu náo merecia isto! Eu afinal tinha ido para aquele inferno para fazer a guerra á guerra... NOÉMIA: Passas-me a manta, por favor? MARIANA: Queres que feche a janela? NOÉMIA: Náo, deixa, depois ficava abafado... OCTÁVIO: Antes de partir, prometi a mim mesmo que nunca dispararia um tiro. Prometi e faltei. Mentira! Tanto tiro que eu disparei... Tanto medo que eu tive... MARIANA: Para muitos, aquilo foi um pesadelo. Tens de reconhecer isso, Noémia. NOÉMIA: Mas por que é que ele embarcou? Ele tinha possibilidades, tinha meios... Por que é que nao foi para Paris, como outros? MARIANA: Ai agora a responsabilidade é dele? NOÉMIA: De quern querias que fosse? De quem querias que fosse? MARIANA: Noémia... Vamos lá.... Eu nunca o contrariei, sabes? NOÉMIA: E eu... E eu... OCTÁVIO: Demorámos horas (quatro? cinco?) a aproximar-nos da base. Uma eternidade para cada movi-mento, por mais pequeno que fosse. Enfim, localizámos os guardas: um deles foi logo arrumado. Garrote! Prático, rápido, silencioso. 54 55 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia Um furriel e eu esperámos pel o amanhecer ao lado do outro guarda: era um velho de carapinha branca que dor-mitava, encostado a uma árvore. Durante todo aquele tempo (trés, quatro horas?) a arma do furriel esteve sempře a um palmo da cabega do negro... E o velho, no sono, resmungava, falava alto... MARIANA: Entáo aquele caso do miúdo... Coitado do Octávio... NOÉMIA: Näo digas «coitado». Näo achincalhes. MARIANA: Näo me regulo pelos teus padroes, minha querida... NOÉMIA: Poupa-me a sensibilidade, ao menos... Olha, vou telefonar-lhe. Por favor, ligava-me ao... Näo, deixe estar, näo é nada... Nada, nada... obriga-da... Que história foi essa do miúdo? MARIANA: Näo sabes? NOÉMIA: Näo. OCTÁVIO: Enfim, amanheceu. Tínhamos a base na frente. Um auténtico bilhete-postal: uma dúzia de palho-tas, galinhas magríssimas já a debicarem aqui e alem... Apertei com forga a perná do furriel. Era o sinal. O tiro ecoou pela floresta e o velho tombou para diante, desarticulado. Coitado. Durante aquelas horas, tinha dormido, tran-quilamente, com a morte, grande cabra, ao lado... MARIANA: Há coisas que, se calhar, é melhor näo se saberem... NOÉMIA: Sou täo amiga dele como tu... ou mais. Acho essa tua reserva ofensiva... i 56 MARIANA: Deixa lá... OCTÁVIO: Depois foi aquela ventania de tiroteio rai-voso... Do lado de lá, ninguém teve sequer tempo de pegar numa arma... E no meio de todo aquele pandemónio, duas estúpidas galinhas, indiferentes, debicavam, esgaravata-vam a terra, muito tranquilas... Era uma afronta para com a obra dos homens. Creio que o furriel também sentiu o mesmo: aprovei, quando ele desviou a arma e as abateu, numa revoada de penas e carnes soltas. Aquilo era uma mortandade! Os animais näo tinham o direito de se alhear! MARIANA: Quando a minha tia morreu — ima-gina — deixou-me um escrínio chines com seis gaveti-nhas. Um escrínio. E eu que näo tenho jóias para guardar... NOÉMIA: Mas isso vem a propósito de qué? MARIANA: De nada. Precisamos de falar sempře a propósito de qualquer coisa? OCTÁVIO: Nem precisavas de dizer nada, Noémia... Bastava um gesto, um trejeito, mesmo... ou, nem isso... um certo olhar, um sorriso, um sinal qualquer... NOÉMIA: Está bem, se näo quiseres dizer, näo digas... MARIANA: O qué? NOÉMIA: Bem sabes. MARIANA: Se soubesse, näo perguntava... NOÉMIA: Irra, que farta, que farta que eu estou... OCTÁVIO: As malditas galinhas... Depois foi o choro. Já nada mexia na aldeia e ouvia--se aquele choro de crianca, por entre os disparos. «Alto ao fogo», mandei eu. «Alto ao fogo!», repetiu o furriel. Daí a nada, um dos homens aparecia-me com o bebé ao colo. Um milagre... 57 Agua em Pena de Pato Imunda cabra! Tens de reconhecer que alem de ca-braes incongruente e voluvel... Em Africa passaste o tempo no meu encalgo... Tantas vezes eu te pressenti, ao perto, como agora... dependura-da num embondeiro, agachada atras dum arbusto, enrodi-lhada na areia da picada... Eu estava disponivel, a tua merce, tanto como hoje, e tu deixaste-me ficar... Estavas so a observar... Fazias-te rogada... E agora, aqui me es-preitas... O Sentido da Epopeia O que é que eu podia fazer? Eu ia dizendo: «Aguen-tem, mas aguentem, pá...» E o miúdo, a definhar, a definhar... Passavam-se as horas e... «Meu alferes, que é que se faz?» Noémia, Noémia, bastava um gesto teu, urna entona-qäo de voz... Queimámos tudo e afastámo-nos ä pressa. Queríamos ficar rapidamente longe do cheiro a carne humana quei-mada... Um de nós trazia o puto ao colo. E ele chorava, chorava... Noémia, Noémia, por que é que deixaste que isto acontecesse? Bastava um olhar teu, Noémia. Um olhar... Horas e horas, no meio do mato, e o puto näo se ca-lava, Noémia... NOÉMIA: Eu, francamente, eu näo sou de areas en-couradas. Sou franca. Se tenho alguma coisa a dizer, digo! MARIANA: Eu também... NOÉMIA: Que é que aconteceu ao Octávio? Que história é essa do miúdo? OCTÁVIO: Quisemos dar-lhe leite condensado, mas ele deitava tudo fora. E chorava, chorava. Eram os ho-mens ä minha volta: «Meu alferes, meu alferes, o puto näo torna nada, meu alferes, o puto deita tudo fora, meu alferes, o puto está cada vez mais fraco, meu alferes, o puto näo se cala...» < ( > Veio a noite. No dia seguinte, o miúdo calou-se. Só os olhos, muito abertos, e uns gemidos muito baixos, muito fracos. «Meu alferes, olhe que o puto se calou, meu alferes, o puto ainda nos morre para aí...» O que é que se faz? O que é que se faz? Eu já náo podia mais. Náo ia deixar que o miúdo nos morresse nos bragos, náo ia deixá-lo abandonado, no meio do mato... Eu já náo podia mais... Disse a um soldado que me trouxesse o miúdo e... Estrondo de um tiro 14. DESENCONTRO MARIANA: Aí tens o que querias saber... Náo era melhor que náo soubesses? Com o dinheiro deste trabalho, vou comprar um forno de micro-ondas. Sempre desejei ter um forno de micro--ondas, mas o André... NOÉMIA: Cala-te! MARIANA: Lamento, Noémia, estou farta! NOÉMIA: Entäo, olha, se estás farta... MARIANA: Näo é só a tendencia que tu tens para embirrar com toda a gente, nem essa exibicäo de petulän-cia... É que passaste todas as marcas... 58 59 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia NOÉMIA: Eu também, só observei que... MARIANA: «Cala-te! Cala-te!»... Cala-te tu! NOÉMIA: Mas que estás tu a fazer? MARIANA: Estou a arrumar as mirthas coisas. Para mim, acabou-se. Alheta! OCTÁVIO: Noémia, Noémia, eu vou para a guerra, näo dizes nada? NOÉMIA: Desculpa, Mariana, mas näo vais. MARIANA: Este lenco, é teu ou meu? OCTÁVIO: Noémia! NOÉMIA: Näo vais, Mariana! MARIANA: E quem é que me impede? NOÉMIA: Tomaste um compromisso: estávamos aqui oito dias, lembras-te? Os compromissos säo para se cum-prirem... OCTÁVIO: Nunca me escreveste, Noémia. Eu espe-rei, eu esperei, e tu nunca me escreveste... MARIANA: Que se lixem os compromissos. Nem mais um minuto. Safa! NOÉMIA: Mariana! Fica! MARIANA: Ai, näo, isso näo, tira-te da frente... NOÉMIA: Fica, Mariana... MARIANA: Se näo te tiras da frente, aleijo-te. Olha que eu näo hesito... Noémia... OCTÁVIO: Mariana, desculpa, tu escreveste e eu nunca respondi... Ia adiando, adiando... NOÉMIA: Para que é isso, de que é que serve isso? Quem tern as chaves do carro sou eu. Olha... MARIANA: E eu ralada... Há-de haver táxis e camio-netas. OCTÁVIO: «Meu alferes, que é que se faz? Meu al-feres, que é que se faz?» Que é que eu havia de fazer? Digam! Eu preciso que me digam! NOÉMIA: Näo me facas isso, Mariana... Näo facas... MARIANA: A i faco, faco... Desculpa, mas faco... OCTÁVIO: Estava o puto ali... o puto ali... NOÉMIA: Mariana, por favor, peco-te: näo vás... Escuta: Tu nem imaginas como eu me sinto, Mariana. Tudo me corre mal, tudo me sai as avessas. Eu pego em qualquer coisa, ela desfaz-se, eu quero qualquer coisa, e acabo por ter sempře o contrário. Tens-me visto para aqui a alardear a minha firmeza, a dar sentencas, mas tinhas obrigagáo de saber, Mariana, que eu apenas me defendo. Eu tenho muito medo e de-fendo-me, percebe, Mariana. MARIANA: Noémia, pronto... Mas náo percebo em que é que um forno de micro--ondas colide com os meus princípios... NOÉMIA: As vezeš sinto-me táo mal, tao só, que chego a folhear a lišta telefónica e vem-me a tentacáo de ligar para um daqueles números ao acaso: «Eh, olá, eu sou a Noémia...» Depois nunca tenho coragem... arrumo coisas, disponho coisas. Tenho passado a minha vida, pensando bem, a organizar coisinhas, a arrumar coisi-nhas, a tirar coisinhas de um lado para pór no outro... e as coisinhas só tem a importáncia que eu lhes dou, Mariana... MARIANA: Vamos, vamos... Mas por que é que eu náo hei-de ter um forno de mi-cro-ondas, como toda a gente?! NOÉMIA: E os homens? Ficaste impressionada com aquilo dos homens, náo foi, Mariana? Tu sabes lá o que é ter sempře as mesmas conversas, sempře os mesmos gestos e acabar todas as manhas com uma sensacáo deabandono, de frustracáo. Eles estáo sempře de passa-gem, Mariana, váo sempře para outro lado. É uma monotonia tao grande... Talvez para algumas náo seja... Mas, para mim... Nem sabes, Mariana, a raiva que eu me sinto, a sós comigo... OCTÁVIO: Eu era apenas um rapazito... NOÉMIA: Admiras-me, por eu ser uma escritora? Oh, Mariana, apenas dá para fazer parte de um pequeni-no cla, que nem seita chega a ser... Alias, eu sou uma falsa escritora. Há falsos médicos, 60 61 Água em Pena de Pato O Sentido da Epopeia falsos advogados... Eu sou uma falsa escritora. O que eu pratico é, de certo m odo, um charlatanismo da escrita. Tu viste aquele meu texto... Näo vale nada... Quando saiu o meu livro eu pensava que toda a gente iria reconhecer-me na rua, que todos, os empregados de café, os do supermercado, todos me apontariam, dizendo: «Lá vai a escritora»... Que tolice... Continuei a ser a dou-torazeca lá do ministério... Estás a ver, Mariana, estás a ver? MARIANA: Pronto, Noémia, deixa lá... Näo exage-res... Se fosse um ferro de engomar, ou uma torradeira, ninguém se espantava. Toda a gente pode ter torradeira ou televisor a cores sem ser acusada de burguesa. Ao fim e ao cabo qua! é a diferenga entre uma torradeira e um forno de micro-ondas? NOÉMIA: É tudo täo efémero, Mariana, täo passagei-ro... OCTAVIO: Há tanta coisa que ficou por esclarecer, Noémia, tanta coisa... E tu daquela vez näo estavas lá para me dizeres o que é que eu havia de fazer... NOÉMIA: Tenho quarenta e quatro anos e passei a vida a fazer coisinhas, inutilidades, trapalhadazinhas... MARIANA: E eu, Noémia, e eu... Em que é que eu era mais estimável se näo tivesse torradeira, batedeira, televisor a cores, ou um forno de micro-ondas? OCTAVIO: Eu näo podia, näo podia deixar o puto ali no meio do mato... Compreendam... eu näo podia... «Meu alferes, que é que se faz?» Eu tinha de fazer alguma coisa, eu... NOÉMIA: Compreende, Mariana, eu tenho de me defender... Näo me abandones, näo? Toda a gente me abandons.. Tu, näo... MARIANA: Pronto, Noémia... Era melhor que eu tivesse um fogäo a Jenha? Ali, o tempo todo a enfarruscar-me, a perder horas... Lenha para aqui, fuligem para ali... Com um forno de micro--ondas, zás, em dois tempos está a refeicáo pronta. E eu sou menos progressista, por causa disso? NOÉMIA: Por que é que o Octávio me deixou e foi táo estupidamente para Africa?... MARIANA: «Queria era ser um camponés», dizia o André nas situagoes tensas. Disparate: o André sabe lá o que é um camponés... Mas quando as chatices apertavam dizia que queria ser um camponés. Os camponeses tem chatices todos os dias e nunca lhes dá para quererem ser intelectuais... acho eu... NOÉMIA: Eu gostava do Octávio, Mariana, a sério que gostava... Mas náo podia dizer-lhe, náo é? Náo podia, pois náo, Mariana? Mariana: Ouve-me! — eu náo... eu náo podia... Telefone MARIANA: Sim, filho? Ah, sim? Ainda bem... Náo, náo é nada... O pai quer falar? Aleluia! Passa, passa... Ora viva, o princes... Entáo onde tem andado metido? Ah... quando? Como soubeste? Hum, A Amelia... Pois... Quando é? Náo, fizeste bem, fizeste bem em di-zer... Que chatice... Amanhá? Hum... Náo sei... depois digo... Adeus... Longa pausa, OCTÁVIO morreu. NOÉMIA: O... o Octávio? 62 63