OLGA, GÖNCALVES RUDOLFO edigoes rolim lisboa RUDOLFO 9 I Signatura____i^_JCÍj___________j i nve n lá mfjfelo JUŤH:f$£o£^\ ROMÁNSKÁ KNIHOVNA ! *2S5iie8S85* !..y:oíické fakulty UK | Filozofická fakulta ^ý.-n. J. Palacha - 118 38 Praha i \ Univerzity Karlovy v Praze Entáo, eu estava ali. Estava deitada na minha cama, e parecia tranquila. Pousara os olhos alem na vidraga, a adiar o mo-mento, a perseguir o indefinível que sempře existiu no desánimo. O desánimo fica assim como um alto-relevo, e nao tem palavras para dizer, tem apenas sinónimos e identidade, Lá fora, os olmos, batidos pelo cutelo da tempes-tade. Percebi que também algo lhes acontecia, algo nada olímpico entrando inopinadamente pelo seu campo de ocultagao. Assim, eu estava no vazio daquele lugar. Uma cámara de cinema, virada para mim, cumpria o seu ofício: muitos olhos pequeninos, verdes, me fitando, concebidos para descerem pálpebras que vao sobrar no rio. 2551108585 10 OLGA G0NC7U.VES RUDOLFO 11 Dentro do copo largo, assemelhavam-se a lentilhas em aquário, perdidas de um outro espaco, outro volume em cujo rótulo se lera o nome de Lorenin. Já näo sabia o que era o medo. Já näo lembrava o que era o pudor, o desejo de ser acariciada, o deleite em ver luz por trás de urna janela, a indulgéncia que favorece os outros e nos favorece. Tinha só, mas tinha ainda, os movimentos livres. E pódia usá-los. Estilhacar as marcas, dar repouso ao ser. Olhei para o lado. O copo luzia, estava ali, nao cessava o copo de tentar-me. Segura-o!, pensei. Enquanto imaginava a propria cena, enquanto me dizia ser em breve apodrecível, em breve lembranca amarrotada, soou o telefóne. Um coaxar de sangue nas artérias, a näo deliča^ deza de interromperem o que a mim só já pertencia, sobrenadando o tempo. A tua voz, porém, chegada do exterior, arrastava pragas e carros, e frustes de granito que sondavam jardins, alpendres abobadados, todos acontecendo-me vertiginosamente em contacto físico. RUD0LF0 13 III Näo me debato com os registos da memoria. Nessa zona, fui sempře transformando tudo em poesia. A poe-sia é um voo, fica ä altura de um pássaro azul com as asas abertas. Anónimo, telefonaste-me ao longo de muitos meses. Nesses instantes, eu pensava no bem e pensava no mal, como todos os que vivem solitários e se tornám quase primitivos, Chegava sempře de noite o misterioso chamamento. — Está lá? Estendia o braco de dentro dos kncóis, agarrava o auscultador, comprimia-o depois contra o ouvido, suspeitando e esperando. — Näo desligue, por favor. Peco-lhe. Preciso fa-lar consigo. Recusando identificar-te, atiravas uma nebulosa, o enigma circulava entre nós. 14 OLGA GONCALVES RUDOLFO 15 — Está lá? Oica-me, preciso ve-la —, organizadas as tuas palavras. É evidente que pouso o telefone no descanso. É evidente que se näo trata de um amigo. IV Seja o que for que eu diga, em nada posso alterar o escrupuloso átomo do meu destino. De qualquer modo, o destino é a hora čerta. Antes, vemo-la fosca, e nem lhe entendemos o contorno, o mecanismo. Para trás, já tudo se vé. E bem. E bem. O tempo. Num curto espaco de tempo, tao curto que pude-ram contá-lo, puderam mesmo noticiá~lo. Sim. Des-crito a negro sobre o papel. Com luz ácida. Luz diurna. Aquilo que na manha seguinte passaram a comunicar: um acidente, a queda no rio, o término da ponte, o incéndio da viatura, trés mortos na bocarra do Tejo, o Tejo em baixo a maiúsculas, preso a instinto de engolir tudo. Assim: o Tejo engolira: um homem e duas criangas. RUDOLFO 17 V Era sempře de noite que tu falavas. Um gesto maquinal: estender o brago de dentro dos lengóis, segurar o auscultador, o mistério cami-nhava sobre a tua voz de uma forma ritualista. O mistério, porém, torna conta do mundo. RUDOLFO 19 VI O telefone retinindo. — Está lál — Nao desligue, Oiga-me. Sei tudo sobre si. Vou ter consigo. A mao tremeu^me. O relógio da sala batera as trěs menos um quarto da manha. Siléncio. Depois, um pequeno ruído. Fui eu pou-šando o auscultador. Rompia-lhe a voz, mas guar-dava-lhe a sombra. RUDOLFO 21 VII Ao longo dos meses, de dentro do escuro, orga-nizavam-se mais ou menos as mesmas palavras: 'Oiga. Deixa-me ir ter consigo?'. Do meu lado, propunha-lhe o vazio. O vazio näo cabe inteiro era nos. Alastra, sem cor ocre, azul, amarela ou turqueza, e paira em todas as superficies. Sem cor porque ele e o vazio. Fere. Ser assim igual ao vazio, ser urn total sem rosto. Comecei a pensar: Tudo depende de mim. Contudo, voltava: Sera um criminoso? Sera um assassino? RUDOLFO 23 VIII Um dia, foi. Aconteceu de maneira suave. — Está lá? — Quem fala? —, oico a minha voz em quietacao, em serenidade. Como se o tricot se erguesse do sofa, pudesse caminhar, sentir, e te aceitasse, qual vento bom, presenca de sentimento novo espraiado em meu real. — Quem fala? — Daqui é o ladräo. RUDOLFO 25 IX Do outro lado do fio, era o ladrao, informado e pronto para falar comigo. Porque ele sabia. Sabia: Que dantes eu usava o cabelo curto e mu-dara de penteado; que guiava um Honda, estacionando todos os dias no passeio, em frente ao Snack; que saia invariavelmente a seguir ao almoco; que escrevia romances policiais, ja lera um, gostara, talvez gos-tasse de ler mais outro; que tinha umas botas em couro amarelo, e vestia capa de fazenda beige; que ficara viuva, ha tempo, ninguem soube dizer^lho ao certo; que perdera tambem dois fil'hos. Rudolfo, os dias correram. Estou sentada a esta secretaria, escrevo acerca de nos, da singularidade do nosso caso, se quisermos chamar-lhe caso. Mas pode-mos conferir-lhe um valor. Detenho-me. Estou sentada a esta secretaria para o acto de sonhar. RUDOLFO 27 X Ignoravas o reflexo do olhar impassível das lenti-lhas, o meu desagrado em näo ser capaz de sorrir, o mal-estar que me advinha do luxo de ser matéria orgänica, porém sentindo em cima a vastidao do tecto, o tecto com a forga toda de quem está vivo. Desconhecias o que marchava em direccäo a mim, dentro em pouco indecifrável me prenderia os ďedos, acenderia velas, e chamaria a noite para fruir com ela o nome aberto no espago de urna pedra. RUDOLFO 29 XI No princípio deste conto eu estava deitada, estava na minha cama e preparava-me para o escändalo de pôr termo ä vida, quando a campaínha do telefone se fez ouvir. Soou durante muito tempo. Fora nesse preciso momento ä cozinha buscar um copo de água, despejara-lhe as grageias todas de um frasco acabado de abrir, voltara para a cama, e ficara depois atenta á expressao do vento. Ficara a magoar--me nele, seguro indício de que me näo alheara da vida, só que näo lhe suportava a estranheza. A estranheza chamo eu o que nos é vedado, o que nos tiram do gosto, sendo jamais grandeza do nosso proprio ins-tinto. Entäo, o aparelho tocou. Tocou excepcionälmente áquela hora, e porque era cedo, näo pude imaginär que se tratasse do importuno que me falava de noite. i 30 OĽGA GONCALVES ÄO ouvir urna voz afirmar ser o ladräo que tentara na véspera forgar-me a porta de casa (aproveitou o tempo em que saí, mesmo com alguns sintomas de gripe, a fim de dar o meu voto para as legislativas), fui assaltada do maior espanto por constatar que se tratava da mesma pessoa que de vez em quando me acordava há já perto de um ano. Como de costume, repetiu ansioso: 'Näo deisligue, pego-lhe. Näo desligue.' Eu estava calma. Por certo, habituara-me. Per-correra o sentimento de temor, fixando-me depois no campo em que a chamada se tornou quase impessoal, melhor dizendo, tornou-se ela em magadora rotina. Ainda hoj e me surpreendo, mas respondi. Nesse dia, respondi, e em tom amável. Um pouco solta. Con-tudo, ä medida que falávamos percebi o lado orgíaco do jogo. Percebi como do medo nasce a astúcia, como o nosso piano primário se desvenda num segundo -e, a par de tudo isto, o quanto eu estava carente ou pre~ disposta para um intercámbio. O diálogo passou-se mais ou menos assim, Volto ao princípio. O telefóne a retinir. Estendi o brago direito de entre os lengóis, com a mäo esquerda segurei O' fio. Ao levantar o auscultador, vi levantar-se urna paisagem matinal, urna paisagem que se ria do meu suicídio. Quer dizer, eu näo estava a gostar do que näo pudera deixar de sentir, desse propósito em que me näo reconhecia. RUD0LF0 31 Quando a voz me pediu para näo desligar, era mesmo isso o que, no mais recôndito de mim, eu dese-jara que me dissessem, e devo ter respondido> sem impaciéncia ou afectagäo: Sim?... Quem fala? ■— Daqui é o ladräo! — Como? (Brincadeiral Alguma vez um ladräo que íenia arrombat^nos a porta se faz no dia seguinte anunciar?) — O ladräo... Näo acredita? (Estou enganada, ou reconhegoAhe a voz?) —■ E, que ladräo? (Comecava o intercámbio.) —i Näo aconteceu nada ontem em sua casa? —.Sim... (A minha voz mais fraca, receiosa, mas vou aié ao [im.) — Em sua casa, ontem. (Insiste a voz.) — E é possível que se atreva a falar-me para dis-cutir o assunto comigo? (Anitno-mel Lorenin pela janela foral) — Queria saber se apanhou um grande sústo. — Vocé tem irmäs? (A astúcia moralizantel) — Porqué? — Alguma delas vive só? (Sinto-me descer ao usar a fraqueza [eminina, em que näo acredita, como arma.) ■—Vivemos doze num quarto, ali ä Graga. Mas näo somos família. — Ah! (Baixei o tom.) E, se alguma irmä sua vivesse sozinha, gostava que lhe fizessem o que vocé me fez a mim? 32 OLGA GONCALVES RUDOLFO 33 —. Näo! (O ladtáo a viti) Acho que cortava as mäos ao individuo. — Born. Isso, tarabém näo... (Estou a capitular.) — Também näo? Garanto-lhe que o fazia. —■ Entäo qual é o seu julgamento do ataque de ontem ä minha porta? — Há mais de um ano que lhe queria falar. Voce desliga sempre... — E essa atitude deu-lhe uma razäo... (Interrompe-me.) —- Nao fui só eu, Estava com dois amigos. — E qual é a graca em telefonar para mo dizer? —• Näo é graca, vi os bombeiros chegarem daí a umas horas, subirem ao seu andar pelas traseiras, vi que näo poude entrar... —• Voce tirou-me a fechadura, mas näo abriu a porta. — Porque a deixou trancada por dentro! Voce tem uma tranca! (É verdade, Ele viu que tenho uma tranca!) — Ah... E entäo, assim, näo podia abrir por fora? (Gargalhadas do ladräo.) —- Está lá? (Irrita-me, Procuro já uma forma de pvovocäAo.) — Fugiu, calculo, porque sentiu gente. — Quem lhe disse? (Zangou-se, Parou de rir. Peto tom de voz, zangou-se.) — Näo pöde acabar o 'trabalho', näo foi? — Ja pos outra fechadura nova? (Agora e ele a provocar, E e o cumulol O melhor sera nao res-ponder.) — Puseram. Eu sei que puseram. Logo de manha estava ai a carrinha da Chaves do Areeiro. — Voce viu? (Sobressalto-me.) — Vi, Estava aqui na rua. —■ As nove e meia ja estava aqui na rua? — Ja. Estava preocupado consigo. — Preocupado comigo? (O ladrao preocupado comigol) — Sim. Quando vi chegarem os bombeiros percebi que lhe iriam abrir a porta por dentro e que voce fica~ ria toda a noite sem poder fecha-la. Bern ve, era do-mingo, nao encontrava quern... — E isso dizia-lhe porventura respeito? (Apres~ sei-me a questionar.) — Dizia. Tanto dizia que nao sai da rua toda a noite. Nao queria que a matula se aproveitasse. — Como? — Tenho uns amigos que tambem a conhecem de vista. — Uns amigos? — Sim, uns companheiros. Como eu, veem-na sair no carro todos os dias depois do almoco. Voce tern um Honda, um Honda branco. — Tenho. ■—'E... porque e que mudou de penteado? 34 OLGA GONQALVES RUDOLFO 35 — Como? (O ladrao sabe que mudei de penteado!) —■ Ficava-lhe tao bem aquela franja! Foi pena. O cabelo assim puxado para tras fa-la mais, velha. — Isso tern alguma importancia? — Voce tern um lindo cabelo encaracolado. Gos-tava da maneira como se penteava. (Silencio, Parece que esta a set inconveniente.) — Fale-me dos seus livros. Quando e que comegou a escrever? — Voce sabe que eu sou...? — Escritora. Sei. No principio, julgava que era jornalista, mas depois ouvi uma conversa a um grupo, ali no Snack. Voce deixa ali sempre o carro... — Como? —•Voce ia a passar, devia ir para o trabalho, um deles viu-a e comegou a desenrolar. — A desenrolar? — Quer dizer, que escreve livros policiais, ate disseram o nome de um de que tinham gostado muito. — De qual? (Isto interessa-me!) — 'Silencio-Chave', J a o comprei. Eh pa, ached giro a brava! — Ah! Ah! Ah! (Sou eu a rir para o ladrao.) —'Voce ri-se? — Entao voce nao concorda que esta conversa tern graga? — Eu, nao. Estamos a falar do seu livro. Quando puder, compro outro... E coisa que manda muito bago os livros... . •—Olhe, talvez eu... (Näo quero recordar o que Ihe ia propor, mas calei-me a tempo.) — O que e que ia dizer? •—■ Nada, nada. Talvez agora me despega. Boa--tarde... —■ Por favor, um momento so, nao desligue. — Creio que ja conversämos tudo. — Pego-lhe, näo desligue ja. Tenho mais coisas para lhe contar. — Para me contar? — Sim, sim. — Mas voce nem me conhece... —> Conhego. Vejo-a todos os dias sair e entrar no predio. De manha, äs vezes vai ä frutaria. Vai ao cor-reio, E compra o jornal. De tarde, vai para o trabalho. — E isso diverte-o? (O horror de nos sentirmos espiados!) — Näo. Mas e bonito saber-se que vai aparecer. — Bern, acabamos a conversa... — Um instante so. Näo me perguntou o meu nome. — E diz-mo? — Digo. A si, digo. Rudolfo. — E mesmo Rudolfo que se chama? — Sim. Para si. — Ah para mim! Quer dizer que tem outro nome... — Quando agora lhe telefonar, ja sabe quem e. — Ja sei... (Fico siispensa, Ele anuncia que väo continuar os telefonemas,) 36 OLGA GONQALVES RUDOLFO 37 — Peco-lhe o favor de acabar-com-esta-brinca-deira-de-mau-gosto. (Martelo bem cada palavra.) — Mas, eu fiz-lhe algum mal? •— Ainda mo pergunta? — Eu queria ver se falava um dia consigo, — E já falou. — Ainda nao lhe contei tudo. O resto... — O resto? — Que sei de si. Bem vé... — Talvez se possa explicar melhor... — Sei que é viúva. Que ficou sem marido, sem os seus filhos. Nao me, disseram bem como. Desastre, parece. -—(Sou eu em siléncio.) — Desculpe, só queria dizer-lhe que sei... — (Sou eu apenas a ouvir, a voltar a ouviv a tem~ pe stade.) — Vocé nao anda de preto. — Tenho outra concepcäo do luto. — Lisa umas botas de couro e uma capa assim cor de café'Com-leite escuro, mais claro do que cas-tanho. Este Inverno tern andado sempre com ela. — Quer dizer que no Inverno passado já me conhecia, isto é, (Atrápalho-me, estou a caiv em inti~ midade,) no Inverno passado já andava, já andavam aqui na rua? — Isso mesmo. E descobri-a logo. Só que nao me lembro da roupa que punha. De Veräo, vocé poe muita roupa branca. — Sim... — Ha mulheres que gosto de ver de jeans, e voce e uma. Ficam-lhe bem. •— (Que respondo? Ah ele ainda esta a [alar!) — La, as pessoas tambem se vestem muito de branco. Calcas, camisas... — (Inter rompo^o): — Lai — Pois. La, em Africa. RUDOLFO 39 XII Era de Africa. De Angola. Bern me apercebera daquele sotaque, essa fala mais musical do que a nossa, um jeito de correr com as sílabas e depois pousar lento numa palavra ou nalgum grupo de palavras. Entäo eu comecava a entender. Ele estava fora do seu lugar, longe da sua terra, o tränsito aqui era--lhe dificil, soava a proibido. Mas jamais houve hipótese de manifestacao, nao servem para nada as manifestacôes, nem os retornados se lembraram de fazé-las. Cada qual tratava do seu, ocupando casas, ocupando barracas, muitos tiveram a sorte de ir parar aos hotéis, e houve os que se junta-ram ä família na provincia. Agora trabalham no campo. Näo há alojamento, ninguém nos empresta dinheiro para comprar seja o que for, mesmo urna máquina com que se trabalhe. Nem há empregos. Um, que veio 40 OLGA GONCALVES comigo no aviäo, aceitou pertencer ä polícia de choque. Diz ele que é melhor do que estar no Jamor! Era onde ele vivia. Mas eu tenho raiva ä polícia de choque, tenho zanga ä repressäo. Como devem ter notado, Rudolfo passou agora a ser o narrador. Continuava a telefonar-me obsessivamente, e eu atendia-o de subito maravilhada pelo modo como en-trara no seu olhar. Näo, afinal, eu näo fóra e jamais seria uma porta sob ameaca de assalto. Era o cháma-mento da casa talvez com buganvília, dos parentes que perdeu, o universo luminoso que constituía um passado. ■—■ O passado näo se altera, disse-lhe um dia a meio de uma das nossas conversas. O passado está lá. Teve a hora čerta. — E entäo, que? — perguntou abruptamente. — O que foi bom e sentimos como inesquecível pode ajudar-nos a recobrar forgas, a descobrir a be-leza escondida em qualquer recanto do presente ce-nário. — Ora! —, ripostou, agreste. Näo gostou. Alem disso, já havíamos discor-dado várias vezeš. Aprendi mesmo que o meu estilo poderia oprimir o seu real, ouvi-lhe nesses momentos entretons de um gosto a ira, hostilizava-o a maneira que eu encontrava de recuperar o paraíso perdido. Reconhecia naquela voz o sentido lírico de algu-mas das minhas crengas, penetrava dentro dela, havia RUDOLFO 41 ali um espaco enovelado entre o que eu dizia e as pró-prias palavras. Contagiava-me a sua animagäo, ela tomava conta do meu desánimo, exactamente como do meu cansaco. Rudolfo era uma personagem entre personagens. E chegara do infinito. Estava longe de imaginär o tempo que levaria a desaparecer do meu horizonte. RUDOLFO 43 XIII Tao sofrido! Aos poucos, depois em cachoeira, foi-se ele revelando. Eu ouvia-o, e estava bem cons-ciente de que dizermo-nos e doloroso. Como se em longo passeio pelas ruas, hoje posso juntar os dados, contar sem muito esforco de memoria o imaginävel e o inimaginävel em Rudolfe Nascera no Moxico, na Terra dos Luenas, a tribo do Amor. O Luena e um afluente do Zambeze, observou. E ele que lhes da o nome. Os pretos dali sao alegres, sao os pretos mais alegres de Angola. Conhecera-os bem. Os Luenas gostam do batuque epileptico, do jogo erotico da sedueäo, o desejo san-grando em seus sentidos. Gritam batendo na mao para dosear o som. Riem, correm, seguem o rastro poeirento dos carros, dizem 44 OLGA GONCALVES adeus a todos os que passam a qualquer distáncia a que se avistem. No interior das cubatas ostentam pinturas obsce-nas, a par de pequenas flores, grinaldas, poéticas si-lhuetas de animais que nos lembrem a vida. Percebi ainda: o Luena exulta fumando liamba, cria espacos artificiais em que se enfeitica. O Moxico? Terra de florestas e de rios, das vas-tas anharas onde corre a zebra e o antilopě, dos lagos tranquilos onde, na época da chůva, sobe a maré-alta. Em seu porte, as florestas adensam-se: é a floresta que nasceu na anhara. Na anhara salta a caca e des-lumbram os enxames das abelhas. Mas a abelha foi trabalho de colono, dizia o meu avó. E da erva das anharas colhem a borracha. Eu nao sabia que ele pudesse falar de estatuária: a pase das herbívoros contra a mancha dos finais de tarde, contra a horda de cores laranja, vermelho e sal~ mao. A galhardia das manadas sob a proeza de uma nuvem de chumbo. O dorso ondulante dos animais em fuga ao cacador. A gigante figura do poeirame quase contendo esqueletos vivos. Ah olhar os animais, olhá-los em carreira na terra que nunca viu arado! —, acrescentou arrebatadamente. E as fémeas! Gostava que visse! Bonitas, com as crias! Fazianvnos pensar nas nossas maes, sei lá, em todas as mulheres, e até no próprio Deus! F RUDOLFO 45 i XIV ■f No Moxico. Sim. Que o meu avó era funante, em Cassamba, terra de grande calor e de grande frio. '. Chamam-lhe 'Terras do fim do mundo'! O trabalho do funante era a permuta, em troca * de panoš e de víveres recebia cera e borracha. Mas, I quanto a ele, foi gente, singrou, deixou ao filho uma loja. Só que o meu pai deu em se aborrecer daquele i. sítio. \ Um dia, depois de longa auséncia, apar-eceu em casa com a notícia: íamos mudar para o Nořte, com-prara uma serracao. \ A minha mäe, coitada, amedrontou-se. Era o des- • conhecido, era a distáncia. Nao houve nada a fazer I porque só ele é que podia decidir, só ele é que man- dava. E ela tinha do hörnern um cagunfo! 46 OLGA GONCALVES RUDOLFO 47 Ainda estivemos um tempito em Malange. Tipos a convencerem o meu pai a ficar por ali. Aquilo ali prometia, era o lugar dos traficantes de diamantes. Mas ele näo quis, achava sujo, dizia que gostava das mäos limpas. E lá seguimos viagem até äs cerca-nias de S. Salvador. Para a crianca que eu era, foi duro. Nunca mais pude ver as zebras, os antílopes. As zebras lisiadas, a estremecerem o corpo, e que eu cheguei a montar! Nunca mais gritei äs lontras no rio! Viviamos bem. Trouxéramos um preto Quiöco, o Cachapulula. Era. Cachapulula Curicanga, de seu nome todo. Tao docil, tao manso como um cäo, como um cachorro na boca da mae. E näo se embriagava, jamais fóra nessas coisas de comer, de beber, de procurar rapariga nos lugares onde o baile sobe ä cabega. Como todo o Quiöco, muito sério, mesmo disfar-gando sentia-se que näo gostava dos Luenas. 'Mulher Luena?... Francesa!' —, e cuspia no chäo. Depois, num rompante: 'Oral Hörnern ter culpa de ir na cama de qualquer mulher! Hörnern saber o que faz!'. Sentia-se que mulher Luena também o atraíra, lim-pava o suor äs costas da mäo, tinha contudo o respeito e a disciplina no sangue, partira connosco, deixara lá em baixo o Moxico. Viagem comprida, sim. Talvez o percurso mais belo da minha vida, uma espécie de aventura, a de um tempo antigo que com outro novo se repartia. E assim outros dias voltaram. Juntei-me ao meu pai no trabalho da serracao, ainda nao estava na hora de garotos brincarem a fazer espingardinha de fisga e bala. Cachapulula era preto de coracáo grande. Mesmo agora, mesmo daqui, posso vě-lo estendido alem na picada, estendido morto. Entenda: igual, igual a qualquer um bem chegado, a qualquer um bem da minha família. Foi o homem melhor que conheci. RUDOLFO 49 XV Em sonhos, a minha casa era a outra, no Moxico, o meu mar urn reflex o do Luena. O Luena era 'O Pai de Todos', täo importante como o Nilo para os Egípcios, segundo o que lhe ouvi. E confirmei a versäo de Rudolfo, ser esse rio o rio da abundäncia. A abundäncia bordeja por ali sem di-ferengar os peregrinos brancos ou a fula gentia, a água se entrega äs terras, inunda-as singelamente para torná-las férteis. A geografia do lugar perde-se em cor e em cor se recupera. Tudo está bem, sendo' har^ monia. Tudo constrói o espesso ou leve escorregar do tempo, e nao crescem bichos a morder com raiva. Qualquer estagao afaga as valas, o sopé dos mor-ros, os calhaus, os talos do capim, e näo há espectros de astronautas na lisa cor da noite, nem mao com 50 OLGA GONCALVES | RUDOLFO 51 nervo da metropole, inquietante, nem voz palaciana f golpeia os longes. O Luena fora-lhe macio, interior, amestrara-lhe o riso no enredo inventivo da infäncia. j- XVI A espacos, também registou a toponimia de algu-mas cidades e vilas de Angola. Era um falar saudoso, como de areias suj as onde perde corpo o trabalho dos pioneiros, ou mais justa-mente, onde falha o encontro para a hora social feita nasso presente. Assim, ao Uíge deram o nome de Carmona, e Dala Tando passou a conhecer-se por Salazar. A Lumbala chamaram Vila Gago Coutinho, como chamaram Vila Paiva Couceiro a Quipungo, e Vila Norton de Matos ao Balombo. A exploragäo colonial, disse. Queriam apagar aquela lingua. Como se os ventos pequeninos da anhara parassem de assobiar, e as sanzalas nao fossem crescendo caminho da mata. Como se branco falando e xingando, e bagagem no porto, e luz de candeeiro, e 52 OLGA GONCALVES RUDOLFO 53 motor, e fósforo, e sabäo e espingarda, e camioneta, e caminho de ferro, e tropa, e mesmo senhora branca a dar ordens, calassem os gritos na Senhora da Mu-xima. Calassem raiva de negro ou enxotassem ka-zumbis! Gente näo manda na vída de outra gente! —, observou. Uma pessoa em casa, ou em musseque, ou em ca-noa, ou em rio de correnteza pescando peixe, ou ouvindo música sem grande ruído, e ver mudar tudo, como se o morro, o pasto, o gado, a cacimba, o mapa lhes pertencesse! E pertencer, como? —, insistia. Porque o Bailundo passou a ser Vila Teixeira da Silva, o Lubango Sá da Bandeira, Capenga Cavilongo foi depois Olivenca-a-Nova. Sei, soube tudo pelo meu pai que evitou sempre esses novos nomes. Nunca o ouvi chamar Vila Arriaga ä Bibala, nem Sousa Lara ao Bocoio, nem Vila General Machado a Camacupa, ou Nova Sintra a Catabola! O deslizar bruto de referéncias, pensei, O meu avô nascera em Macedo de Cavaleiros. E o meu pai ria como um danado quando deram tal nome ao Andulo! Alguns nomes resistiram, muitos, que a terra é grande! E terra näo f ala, guarda seu pensamento, Quifangondo, Mucussuege, Chingongo, Coquembo, .Nambuangongo, Muxaluando, Ngola, Samba Cocoto e Samba Cucala, Tunda Chivava: tantos, tantos luga-res para hörnern nascer livre! Éram palavras convincentes. Sem dúvida, Rudolfo vivera lá o seu idílio, o seu maravilhamento. Pertencendo assim äqueles lugares, era seu filho, näo era filho de colono. RUDOLFO 55 XVII Falei-lhe de viagem longa realizada, de viagem comprida. Pode figurar para onde nos levou o meu pai? A serracao era proximo de S. Salvador, bem che-gado a fronteira com o Congo Belga. Ficámos ali até ao ultimo dia. Chamo-lhe sempře o ultimo dia, como se depois, rumando para aquela cidade, tudo fosse imagein das derrubas de Outono. A luta anti-imperialista? Essa foi chegando, acon-teceria mais tarde, agora estou a contar-lhe de 61, no ano seguinte ao da independencia dos Congoleses. Ouvia-se falar de barulhos, diziam mesmo de ope-ragöes, alguns afirmavam que era precise ter armas. Preferível escondě-las, enrolá-las em cobertores, ou mesmo em jornais. O meu pai näo ligava. / 56 OLGA GONCALVES 'A serracäo e quem me governa! Vitorias, so no trabalho!' —, e seria lä isto a sua crenca, o que lhe importava que toda a gente devia pensar. Outras vezes: 'Fomos nös os pioneiros! Vao lä ver, em Luanda, a estätua do Diogo Cäo!'. Patriotismo, que ele tambem falava do Vasco da Gama, das descobertas, e gostava de imaginär Alju-barrota, e a forga da espada do Nuno Älvares. Acre-dite: se tivesse vivido, ninguem, ouviu?, ninguem teria podido voltar-lhe o presente contra o passado. RUĎ0LF0 57 XVIII Näo creio, näo estou certo de que os bomens se-jam todos iguais. A verdade é que uns näo säo os outros, e pior, cada qual anda ä procura do mando. Naquele dia, apareceram de todos os lados. Ouviu-se primeiro uma grande algazarra nas ca-poeiras, os cäes ladraram. Tratava-'se de uma chusma de pretos dando batidas em direcgäo ä nossa casa. Vieram-se a nós com espingardas, e mocas, e cata-nas, com paus da mata. Pau preparado para vazar olho, para furar corpo. Do que vi, digo-lhe: vi. Näo foi sonho ou fumaca. Sabe o que fizeram ä minha mäe? Sabe?... Foi isso. Eram quatro, ä vez, deitados a ela. E o meu pai amar~ rado a uma árvore. Ali, amarrado a ver tudo. Näo percebi se era sangue ou suor o que lhe escor~ ria pelos olhos, pela cara. Cachapulula arrastou-me de sopetäo para uma lavra próxima, duas cabras diante 58 OLGA GONCALVES RUDOLFO 59 de nós também fugiam. De repente, um estroiido. Ti-nham deitado fogo no gasoil da camioneta. Eu tornara-me difícil, obcecado em nao prosseguir caminho, só desejoso de valer ao meu pai, ä minha mae. Contudo, rodei nos pés, caí desmaiado, e quando dei pelo mundo estava longe, isto é, dei comigo junto a um 'homem velho, em casa de capim. Um vulto aproximando-se, agachou-se, pôs-me o ouvido sobre o peito. Fiquei muito tempo sem com-preender que se tratava de Cachapulula, que o outro preto era também Quiôco, e seu amigo. XIX Gemiam. Falavam baixo. Eu conhecia o dialecto. O vel'ho e Muatangue, nao estou tSo longe assim. Deitaram-me no chäo. Ja sinto o bafo do lume, do cheiro a lenha verde. Ja sei que nem posso inventar palavras para recordar. Ja sei que neste e noutro con-tinente nunca existiram pontes, ja sei que na raiva se trincam os pulsos e que tambem o odio e trabalhävel, ja sei que nas velas do mar atracam armas, ja sei que dedos väo amassar o estrume, ja sei a milenar fogueira da carencia, que piso o po e näo invento o rumo, ja sei de voos fendidos nas alturas, de narrativas sem verdadeiras caminhadas, ja sei que os homens nao querem sentar-se nas cacimbas para fruir o balango do sonho, ja sei que nenhum tempo resgata afaga ou nos liberta, ja sei que espero em väo um sorvo de ägua, ja sei que nao rebenta a flor nos cafeeiros e que do coio me vem espreitar a hiena, ja sei a cantata de 60 OLGA GONQALVES RUD0LF0 61 estarmos circuncisos, já sei de quanta lava a perfurar a sombra, de quanta lágrima de cobra venenosa, se nada salvo em casa, se nada, se nada salvo. O velho Muatangue fala ainda, Abro devagar os olhos. Calca as brazas no ca-chimbo. Oigo o estalar de galhos no fogo, sons noc-turnos na voz de Muatangue. Cachapulula chora. Cachapulula dá vazäo a um pranto que nem é de pesar, será uivo de lobo. Neste instante, rebentou com os dentes duas latas de cerveja. Com a cabeca atirada para trás, bebe. É mau beber assim, penso, descendo de urna névoa. Já entendi: meu pai serrado äs mäos dos guardioes da morte, e minha mäe estandarte, rompida, pau agu-gado em sua carne, pau ali nasso, medrado em chao africano, figúra e gesto para o nosso olhar. XX Tudo estava perto e quase tao distante como a mais fria noite. Registara-o, pesado e lentO', como um pe no deserto. Do massacre, nao fora testemunha, contudo ras-gavam-se-me os olhos de me sentir coabitando com a vida, em mutua privanga e mesma geografia, sem que surgisse o meio de vingar-me. Torci a boca. Ansioso, gorgolejava o sangue no ago da razao, e podia medi-lo claramente. Ou ja era o luar que chegara das anharas para germinar tenro sobre os cadaveres do meu pai, da minha mae. Violento, o horror atingiu-me, tentei soerguer-me, agarraram-me as duas maos de Muatangue. As maos de Muatangue percutiam algo, arbores-cendo as direcgoes do meu comego, detendo as formas circundantes que fecharam a terra e sabiam da morte. 62 OLGA GONCALVES RUDOLFO 63 Voltei-me, afundei o rosto nesse apoio que me puxava e logo apertava contra o corpo. O tempo humano caminhando no meu trilho, Negro sabe dar amor. XXI Negro sabe dar amor. Negro o convenceu de algo indemonstrável em palavras e apenas nossa sombra reconhece: que existe o tempo todo para nascer de novo. Que desde o prin~ cípio está sendo necessário levantarmo-nos, fugir á seducao da fraqueza, da clausura, está sendo> impor-taňte construirmos distintos alicerces para um já outro abrigo. RUDQLFQ 6,5; XXII Näo se podiam saldar contas. Nem Cachapulula o deixaria. Recolhidos por urn camionista, fugimos para S. Salvador, onde estava um mini-destacamento formado por quarenta militares. Proximo, haviam estoirado as pontes. A partir da meia-noite, comecou a aparecer a Pide. Bichanavam. Mas pouco tempo foi. Desataram logo a seguir a falar da revolucäo dos pretos. Chegaram reforgos do Toto. Nos, acompanhando tudo com os cinco sentidos, porque tudo ameagava aniquilar-nos. Näo se esperava senha ou contra-senha, a lingua elementar nos indicava a saida urgente daquele local. Digo como foi: No escuro de uma esquina, cruzan-do-nos com gente em confusäo, saltämos para a via- 66 OLGA GONQALVES RUDOLFO 67 tura que no processo de afrouxar a corrida nos rece-beu, e nos levava agora directos para o Uige. f . XXIII Sim, o Uige, a que chamam tambem Carmona. Marcha para contar depressa. \ As populacoes esbracejavam, corpos baleados, pes- soas arranjando gestos de matar. Trinta quilometros percorridos, procurando enten-der o enigma de tanto ardil e de tanto meandro, raja-das consecutivas, o ultimo ronco do motor deixou-nos em Quiteche. [ Esqueci dizer que todo o percurso o fizemos escol- I tados por coluna de tropa, ja que somente assim se podia seguir em picada. [ Quiteche arfava no recesso dos seus massacres. Central de ödio e terror, ali se violava, apunha-i lava, esquartejava, e decepavam orgaos, e se vivia no perigo da pior emboscada. Bala traz assobio. Zeniam milhares por cima das nossas cabecas. Indescritivel o tiroteio, a explosäo de 68 OLGA GONCALVES RUDOLFO 69 rebentamentos dificultando a nossa passagem, nem tempo havia para correr lágrima ou para limpar lá-grima. Quase nao lembro como rodámos fora dessa infer-neira, Í \ XXIV Era ao entardecer. Era abominável e baca a claridade porque havia odores de animais erectos com mirada felina. Havia odores que subiam do lugar dos mortos para o lugar que vivos habitavam. Atrás, na camioneta apinhada, devia eu ter nos olhos maior desordem que gazela perseguida por ca-cador. Com dificuldade, Cachapulula aproximou-se, to-cou-me no braco. Queria restaurar minha coragem, jurar se possivel que um outro dia muito melhor vinha despontando. íamos embora. Saiamos de Quiteche. Com gento preparado para defender. RUD0LF0 71 XXV íamos a sair de Quiteche. Parámos. Julgou-se que o motivo fosse a falta de gasolina. Olhando todos ä nossa volta, depois em frente, vimos. Estava a estráda cortada, haviam cavado bu~ racos enormes e disfarcaram-nos tapando-os com ca-pim. De súbito, um pedregulho bateu na chapa da ca~ mioneta. Escondido por trás das árvores, mostrou-se o ini-migo. Caiu em cima de nós com as catanas. 'Vao matar-nos!' —, gritei. Caohapulula deitou-me ao chao, rolou sobre mim, cobrindo-me com o corpo. 'Fica quieto!' —, disse ainda. E eu obedeci. 72 OLGA GONCALVES RUDOLFO 73 Nesse instante, um de entre nós mandou uma gra~ nada. Outro, também prevenido com arma, abriu fogo. Mas a accao foi interrompida por um rebentamento nas cercanias que pos em fuga os assaltantes. XXVI Alto e espadaúdo, Cachapulula. Alagado em suor, sentia medo, achei-me a suportar mal o seu peso. Devagarinho, ia primeiro desembaracar-me daquele brago, que vi depois chegar ao horizonte pela vereda de travessia única. Uma catana lhe retalhara as costas e atingira o cránio. Perdi-lhe a hora, perdi-lhe o dia do més, E mais até: desde entao, nem sei como posso olhar duas vezeš no espelho: o comprovar que existo. Esse homem dei-xou-se matar para me proteger. I RUDOLFO 75 XXVII Disse que lhe perdi a hora. Mas lembro que pas-sou alto um pássaro de grande envergadura. Baixou para sobrevoar o local enquanto eu, olhando o meu amigo, descobria que pode a dignidade caber toda num corpo. Mas lembro que estava sentado no chäo, encostado ao pneu da camioneta, e me dei conta do relógio de ponteiros luminosos no seu pulso. Deve trabalhar ainda! —, cogitei. Ergui-me, atirei-me a ele como um possesso, arran-quei-lho, e espezinhei-o. Queria parti-lo em mil pe-dacos. Ponteiros luminosos sem que eu o visse cami-nhar, sem que jamais tenha Cachapulula me esperando ä porta de casa? Abracei-me ao preto, quente ainda, e ouvi os meus solucos. Queria desesperadamente poder tapá-Io com bandeira vermelha e negra. RUDOLFO 77 XXVIII De catorze homens, cinco haviam escapado vivos. Urn destes dias, pessoalmente, Rudolfo contar--me-ia da Jornada ate encontrarem uma povoacäo-, de como surgira a alternativa de se juntar a outros ja decididos a seguirem para Luanda com uma coluna militar. Far-me-ia o relato. Da partida de Luanda para Benguela, onde chocara com aquele hörnern que ven-dera mäquinas para a serragäo do pai. Dera-lhe de comer. Abrig-ara-o. Mudando, porem, a sua condigao para a de escravo. Aturou. Mas foi so ate certa manhä. Certa manhä, desperto muito cedo, largou tudo. Se era maltratado, näo lhe devia fidelidade. Partiu para a zona do Cavaco, äs portas de Benguela, e por ali ficou a trabalhar numa plantagäo, na agricultura de bananas. 78 OLGA GONQALVES RUDOLFO 79 Pudera entáo gostar novamente de ver asa de bor-boleta, fruto de tambarino escorrendo mel, cacho de acácia doirando ao sol, de ver semeňte, e caule bro-tando. Pudera tocar raiz. XXIX Fizera a tropa em Nova Lisboa, aí cumprira trinta e seis meses. Jamais falou da sua idade, vagamente aludindo á dos companheiros do grupo, rapazes entre os vinte a vinte e cinco anos. Nao faziam mal, assegurou-me, Ninguém nos dá que fazer, entretemo-nos por aqui pelo bairro. Paramos muito na esquina, mesmo ao pé do Snack, será possível que nao reparasse em nós? Nao, quando vou para o carro já estou apenas a pensar no meu horário —, assegurei um pouco tímida. Respondeu-me com um siléncio que soava a reserva e a desconfianga. Do outro lado, ao telefone, espreitava-me como por um postigo, desencadeando uma relagao de forcas. Se as conversas com Rudolfo eram por vezeš lon-gas, a minha adesao a elas firmava-se no interesse 80 OLGA GONCALVES RUD0LF0 81 pela sua biografia, e pensava ganhar-lhe a confianca, a ponte čerta que faltava para poder vir a ajudá-lo. Andava atenta ao que se dizia dos retornados, entabolei conversa com um que abriu um restaurante nesta mesma rua, talvez algum dia me fosse permitido apresentar-lhe o jovem. Comprei no alfarrabista da Trindade um mapa de Angola, e também um livro muito curioso sobre urna rainha negra, de nome Jinga. Sim, Jinga, rainha de Matamba. Poderosa, bonita e cruel. Mas Rudolfo näo conhecia, disso nunca soubera. XXX Sugeriu que nos encontrássemos. Que me näo falara ainda do que passara na altura da independéncia para chegar em traineira a Luanda, dez pessoas numa pequena embarcacäo, fóra necessá-rio deitar carga ao mar. Descreveria isso de que por aí se falava, da ponte--aérea, em 75. Dos dias e das noites que teve de espe-rar no aeroporto no meio de uma multidao que sabia de massacres, de criangas degoladas, de cordas que enforcaram, e de homens ofegantes com as tripas na mäo. De cabegas espetadas nos postes e no alto das árvores. Coisas muitas, reais, que decidira esquecer. No aeroporto doera-lhe o estômago, a cabeca, tivera paludismo, e outro aviao chegara, e outro aviäo partira. A espera, pertencendo a todos, apontava a direc-gäo do f u tur o. 6 82 OLGA GONQALVES Como uma máquina fotografka, ajustavam-na ao olho, seguravam-na, fixando ä uma o mesmo ponto. RUDOLFO 83 XXXI Ao sugerir que nos encontrássemos, fiquei per-plexa, apesar do fasrinio de tal projecto. Queria afinal viver sob o signo da seguranca, e a idealizacäo da nossa amizade fora atingida. Estava sentada num sofa da sala, cruzei a perna, apertei a mäo ao auscultador. Näo encontrando uma desculpa amável para adiar por uns dias a data do que Rudolfo já planeava. Nervosamente, mudei de lugar o telefone sobre a mesinha baixa. E, sem querer, devo ter desligado o aparelho. 'Está lá?!... Está?' Ninguém responde. O siléncio é de chumbo. Pico ä espera, mas nao cháma de novo. Automaticamente deve ele ter percebido estar perante um caso de ino-portuna distracgao. RUDOLFO 85 XXXII Durante mais de quinze dias corri para o aparelho ao primeiro toque. O facto parecia-se a uma execugao porque era sempře outra pessoa, e näo Rudolfo, quern me falava. Talvez pensasse que desliguei propositadamiente. Humilhei-o, concluira desde o início. Com certo custo, dei-me ä tarefa de aceitar aquele siléncio. Fora em siléncio que eu julgara 'haver entre nos uma jura de lealdade. Que por causa disso, e a pouco e pouco, receberiamos um do outro os verda-deiros ecos. Por causa disso, a nossa amizade ou mesmo a nossa existéncia comegava a existir. Eu recomegava. Recomegar é comego, nao? RUDOLFO 87 XXXIII Em breve chegaria o Natal, mudei de ideias, pi-e-parando-me para conhecer Rudolfo a despeito das recomendacoes do Antonio que estava ao corrente do projecto1. Ainda te vais meter em sarilhos! Olha, o melhor é trazé-lo para casa, tomam aqui café, depois despeja-te a mobilia, mas näo te forca a porta e poupa-te a des-pesa de nova fechadura! Eu ria. Serena. O Rudolfo voltara a chamar, näo estava magoado, compreendera o caso do telefone, mas achara-se muito ocupado. Um companheiro fora metido dentro, nao conseguiram safá-lo, disse. Mas fechou-se no maior mutismo quanto a pormenores, o que facilitou o nosso diálogo, visto um certo pudor me impossibilitar de considerá-lo como um ladrao. De resto, a palavra 'ladräo' nunca mais surgiu nas nossas 88 OLGA GONCALVES RUDOLFO 89 conversas. Bern no intimo, eu queria desconhecer esse lado do seu universo. firamos amigos, relagäo que traduzia no melhor que tinha ao seu alcance. Por exemplo: Fez questäo em me prometer que jamais algum dos companheiros tocaria em algo que me pertencesse, guardava-me ate o carro, e aconselhou-me a estacionar na rua de cima. Eu näo cedia. Rejeitava comprovar a especie em que ele se ia tornando. Alguma vez, alguma noite, ele viria ä tona. E limpido, Naquele rapaz um tal caso de mobilidade nao seria eterna. Esgotara os pedidos para lhe encontrar emprego. Mesmo assegurando que se tratava de pessoa honesta, com vontade de se dntegrar. Os estudos na escola primaria eram insuficientes, e para alem do trabalho da serracäo ele apenas conhecia a aventura da caca. Tinhamos o Natal proximo. Comprei-lhe uma ca-misola beige (pareceu-me que falara em torn aprecia-tivo na cor da minha capa), fiz um lindo embrulho num papel em que estamparam azevinhos, passei-lhe fita vermelha com que dei grandes lagadas. Chegara o momento. Esforcei-me por parecer natural quando o convidei para urn cafe no. Snack. A ideia de me encontrar com ele pessoalmente obce-cava-me, a verdade e que por causa de Rudolfo ja comecara a escrita de outro livro. — Desco por volta das onze e meia, — sugeri. —. Estä certo. — Como voce me conhece, podera dirigir-se a mim quando eu chegar. — Acho bem. — Entao que dia podera ser? — Escolha, voce escolhe. — Qualquer manha... Veja la... — Vou pensar. Vou pensar e depois telefono-lhe. —■ Mas e assim tao complicado marcar um dia? (Nao da resposta.) — Esta a pensar? — Sim. Que e muito bonita. — Que disparate! (Vai abusar!) — Que o pessoal nem vai crer! — Deixe-se de brincadeiras. — Desculpe, desculpe, eu sou assim as vezes... Podemos tomar uma bica logo que voce diga. Tele-fono. amanha. RUDOLFO 91 XXXIV Fiquei desmotivada. E, uma vez, porque tinha de correr para uma reu-niao, outro dia porque ele estava ocupado ou nao telefonava, chegou a véspera de Natal e o embrulho da camisola para o Rudolfo continuava sobre a cadeira do meu quarto. A campainha retiniu, logo de manha, no dia 23. Finalmente, havia-se marcado essa data. Eu entra-ria no Snack, sentar-me-ia a uma mesa, enquanto do seu posto ele escolheria a ocasiao de se aproximar. Levantei o auscultador. Do outro lado do fio, uma voz ensaiando um tom estranhamente jovial: ■— Daqui fala o ladráo! — Está lá? —, repetí, sem poder acreditar que se tratasse de Rudolfo. — Sou eu, sou. Rudolfo! — Entao, posso descer? (Náo percebo, mas soa 92 OLGA GONCALVES RUDOLFO 93 qualquer coisa a [also.) Está aqui na rua? — Estou. Pode... Näo, näo desca. — Como? (Algo se passava de novo, algo se ca~ Ihar insólito.) — Näo desca. — Mas, entäo, näo combinámos? Quero dar-lhe um presente de Natal. —< Näo posso. — Também näo pode hoje? (Fez-se siléncio.) — Está?... Rudolf o? (Agora comegou a rir.) — Näo percebo esta brincadeira... — Pronto. Eu digo-lhe. Digo-lhe já e desligo. — Estou ä espera. ■—- Näo vou ao Snack, näo nos vamos conhecer. — Näo nos vamos... Näo vai... E porqué, pode saber-se? —■ Decidi. — Näo quer dizer-me a razäo? — Voce sabe-a,.. — Eu?... Eu sei a razäo? — Agora é vocé quem está a brincar comigo. — A brincar, como? — Este encontro... Vocé quer é entregar-me ä Polícia! Desligou. Perante a minha enorme surpresa e o horror de que tal pensamento atravessasse a mente de Rudolfo. XXXV Só passado algum tempo, no siléncio da noite, quando eu buscava uma interpretacao para a persona-gem que de tal modo entrara na minha vida, e que fora pessoa, e se centrara num facto, o telefone retiniu e a voz de Rudolfo transbordou como transborda a onda em magnifica praia. —Está lá? — Sim!... Rudolfo?! — Nao' esperava por esta?! ■—^Sim... Bern, nao esperava. — Zangou-se no! outro dia? — No outro dia?... (Ponho um tom disiratdo.) — Ah nao! Por onde tem andado? — Por ai. Julguei que estivesse arreliada... — Nao, nao estou. (Quero ganhar a confianga de Rudolfo.) — Claro que me pareceu incrivel que tivesse pensado que eu... 94 OLGA G ON CALVES RUDOLFO 95 — É isso. Coma é que voce quer que eu tenha a certeza de que näo vai entregar-me ä Polícia? — Ó Rudolfo! Voce sabe que eu até pensava en-contrar-lhe algum dia um emprego! — Um emprego? Coisa que näo existe! Além disso, já tenha... — Já tern? (Enervo-me.) — Sim, a que voce sabe... — Ó Rudolfo! Como pode falar assim? — Oica, estou com pressa. Olhe, nao valto a falar-lhe, — Mas, espere ai... — Um destes dias, garanto-lhe, dou-me a conhe-cer. Um destes dias, quando menos o espere, há-de saber quern sou. ■— Um destes dias? — Sim, antes de mudar de bairro. — Está a falar a sério? — Há-de saber, hei-de mandar-lhe um sinal. — E porque diz que vai mudar de bairro? (Dentro de mim deambula a esperanga de que alguém o estará salvando.) — Bom, eu... Näo sei se fico em Lisboa, se deixo isto e vou para a provincia. — Parece-me uma optima ideia! (Acho que no campo the acharäo um ttabalho capaz.) — Bern, tenho de ir. — Rudolfo... Voce...? — Adeus. Hei-de mandar-lhe um sinal. XXXVI Era ainda Inverno. Era quarta-feira. Era o primeiro tempo depois dessa ausencia. Ou da perda do que ja soava como indispensavel. Eu caminhava em direccao ao passeio onde habi-tualmente estaciono o carro, apesar das recomendacoes de Rudolfo. Tinha de estar no trabalho as duas. De subito, junto ao Snack, um grupo de jovens parados na esquina aponta-me o luxo que e viver na superficie milenar da liberdade. Vestem jeans e camisas de algodao. Sigo-lhes os movimentos. Um, de entre eles, del-gado e muito alto, deixa os outros e aproxima-se. Tem o andar flexivel. Estou a escolher, no molho das chaves, aquela com que possa abrir a porta do Honda. 96 OLGA GONCALVES RUPOLFO 97 Agora chegou junto de mim, quase me toca. Agora estou com medo porque me fixo no instante, e o instante parece maior do que o mistério da nosisa relacäo. Volto-me, e dou com uns olhos verdes num rosto de pele dourada. Näo consigo pór um ar solto, indi-ferente. Sorri. Descubro-lhe a timidez. Nem um nem outro percebe afinal o que nos domina, mas será algo a emergir de um fio de água, e que amanhä é cheia a ameacar dilúvio. Dobra-se um pouco, e oico-lhe: 'Tem lume?' Vejo-o segurar no cigarro que leva ä boča, 'Näo, eu näo fumo.' Nem fumava nem conseguia reconhecer a minha voz, pois que parecia outra, chegando do assombro. Fita-me demoradamente. No fundo desse olhar, uma interioridade que pertence aos dois, de ambos um dado histórico, 'É ele!' —, penso, 'Nesta abordagem manda-me o sinal prometido.' Ligo a ignicäo. O carro dispara. Cortado o cordäo umbilical, as pontas dos dedos que seguravam a aven-tura. XXXVII Tenho de fazer uma repeticäo e cuidarei de ser mais minuciosa. No principio deste conto eu estava em casa, estava no meu quarto. Estendida na cama, sentia-me febril e avisara que näo ia trabalhar. A um dado momento, levantei-me e fui ä cozinha, tirei um copo do armärio, enchi-o com ägua do Luso (raramente me chega a sede, e o ter de tomar um comprimido era pretexto optimo para ingerir algum liquido, cumprindo assim as recomendacoes medicas). Embora haja värias correntes, pensava eu. A Helena e macrobiotica, segue outras regras que ate certo ponto se ajustam mais a mim. Pousara o copo. Andava cansada, e o Antonio passara por aqui hä pouco, no regresso do St." Maria. Olhou-me e disse: 'Trabalhas de mais. Ä Primavera puxa por nos'. Em seguida, tirou do bolso do 7 98 OLGA GONQÄLVES RUDOLFO 99 casaco urna caixa com as tais bombas eficazes que säo as multivitaminas. E convenceu-me: 'Ve lá se tomas isto.' Conheco o António desde crianga. Foi ele quern naquele dia me trouxe a noticia do acidente. Quern tratou de tudo. Ficou ali a noite inteira, diante de mám, sentado no maple. Sem discursos inúteis, sabe dar a imagem inteira da sua amizade. Urna vez, lancei-lhe um desafio: 'Devias ser mrs-sionárioľ. Ao que respondeu, serenamente: 'Para que? Para ir para a India? Para as Áfricas? Olha, a India e as Áfricas andam por ai.' Encolheu os ombros, depois de apontar a rua. Tern um reportório incrível das desgragas que exis-tem por esses bairros: a promiscuidade, a doenga, a prostituigäo, a droga, o alcoolismo', os piolhos, numa série de histórias que nos trazem ao sono uma tripu-lagao de pesadelos. Voltemos a essa manha. Äs nove e meia vieram da Chaves do Areeiro para arranjar a fechadura da porta. Tudo feito com grande rapidez, e ainda me de-ram um jeito ä da cozinha, nas traseiras, j á que os bombeiros tiveram de forcá-la pelo lado da varanda a fim de poderem entrar. Voltei depois para a cama, näo me sentia bem. Pousei o copo e fiquei a olhar para ele. Näo tinha bebido a água toda. Ao mesmo tempo, ouvia o vento, lä fora o vento era parte da tempestade. Traz temporal, diria o Antonio, que nasceu na Nazare e e säbio em coisas sobre o mar, os barcos, as lendas dos Pescadores. Nao poderei dizer quanto tempo estive assim, tal-vez tivesse dormitado, ate que tocou o telefone e surgiu a voz de Rudolfo. Neste conto, o Rudolfo e real. As multivitaminas e que foram transformadas em Lorenin. E o narrador, ä partida, necessitou criar um situagäo dramätica que servisse de pano de fundo' ä cena em que na sua vida entrara o retornado. O qual nao tinha o estofo de ladräo, presumo, e quase disso estou segura. Ser ladräo era um estado transitorio, enquanto procurava entender literalmente esse novo discurso onde cada palavra conhecida chegava distinta, bem outra, com um distinto conteudo. Rudolfo e real. O gravador que tenho na memoria (e que ligo, instintivamente, quando em espaco sa-grado) nao deve ter traido em muito o importante das nossas conversas. RUDOLFO 101 XXXVIII Um livro de ficcao que me trouxe a nostalgia do tempo. Sou tentada a revelar que para criá-lo fui as mi-nhas raizes, lá onde o nojo nunca nos chega á boca, e é tépido o hálito, e o leite se derrama em inter-troca. Mas, explico: Assentando numa história verda-deira, cresceu esta em importáncia, tornou-se impres-cindível o eu contá-la. Posso também dizer desse inferno ou regozijo. Dessa hora. Ela mesma, descendo soberbo desfila-deiro, prolonga-se em campo adestrado por mil som-bras, acerca-se com éxtase — a hora de dar nome a uma personagem é hora de fogo e de iminéncia. Lembramo-nos bem da primeira conversa de Ru-dolfo. Reconhecemos-lhe o nome fabulado, uma grande corola no imaginário do jovem arrancado ao chao Angolano, jovem dado á alegria de espiar a senhora 102 OLGA GONCALVES RUD0LF0 103 daquele prédio, telefonar4he durante mais de um ano, chegando até a violentar a sua porta, porque tal porta era uma luz que se acendia, era o inocente contacto necessário, um real esvazeado de perdas e auséncias. Assim, deixemo-lo com este nome de Rudolfo. O fio do telefone nem sempře representou uma estráda. Foi também muro. Do lado de cá, ouvi-o (senti-o?) muitas vezeš manejar a escultura no atelier, quem sabe se tornando-a polida e pronta para novas perspectivas. Do lado de lá, o seu existir seguia a pé, sozinho, com um requiem repetido á altura do sol, e o sol ba-tendo nele tinha dedos e tinha raiva, a convincente mecánica do processo que nao é coisa alguma e que porém é tudo. XXXIX Entao, deixemo-lo. Rudolfo driblou seu proprio nome. Talvez em luta corpo a corpo, ideando a trans-mutacäo, a promessa, a verdade que ha no mito, a posise de outra identidade, o prazer inaudito de ser outro. Compreendo que me falta dizer o essencial. Gastou-se o läpis, entornou-se a tinta para escre-ve-lo. Eu procurava, ao mesmo tempo, näo referir o inü-til, o que todo o mundo sabe. Mas sou eu exactamente que preciso desta lei: Nenhum ser humano deve ser apartado da sua ficgäo.