cutdado com as algas verdes falso conto policial Durante dezasseis anos trabalhei no Instituto Nacionál do Ambiente Industrial e da Seguranca Sanitaria no Trabalho, sentada ä mesma secretária, no mesmo gabinete, e reportando-me sempre ao mesmo chefe. Os meus dias passavam-se a ler relatórios, con-ferir dados, instruir processos, dar pareceres, e pre-sumo que o fizesse bastante bem pois era raro que o meu superior hierárquico e Director do Service) tives-se dúvidas a esclarecer antes de dar o despacho final. Digo-o sem qualquer espécie de orgulho: ele con-fiava em mim mais do que nele proprio, o que perde toda a importäncia se tivermos em conta que näo passava de um homenzinho tristonho e banal, esma-gado por uma vida cheia de preocupacöes medioeres numa familia em que achava que näo era respeitado. Eu tratava-o com deferéncia e evitava as conver-sas pessoais e aproximacöes escusadas para que nin-guém, se fössemos interrompidos, pudesse insinuar 27O TERESAVEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 2JI que nos vira numa atitude comprometedora. Děste modo, frustrada a expectativa de eu Ihe servir de con-solo como amante ocasional, ele habituara-se a ver cm mim a máquina de pensar que Ihe permitia viver imerso nas suas estéreis cogitacóes e eu, quando era admitida no seu gabinete, tinha a impressáo de estar a ver uma grande ave empalhada que alguém coloca-ra sobre a secretária e aí esquecera ao limpar o pó da estante. Um dia chamou-me pelo telefone interior a uma hora pouco habitual. Em cima da secretária estava um jornal aberto, e náo era na página desportiva. Quando entrei, ele estava a abanar a cabeca, com os lábios contraídos num rictus de indignacáo, e a dar pancadas com o punho sobre uma notícia qualquer, que se percebia logo ser o motivo desta pequena rábula em que aplicara o melhor do seu talento his-triónico. Perguntou-me se já estava ao corrente e eu limitei-me a acenar negativamente, pretendendo de-monstrar-lhe que achava a pergunta estúpida e inútil uma vez que nem sequer sabia a que assunto se refe-ria. Virou entao o jornal ao contrário e recostou-se no assento enquanto eu corria rapidamente os olhos pelo texto. Tratava-se da mořte de um adolescente numa praia da costa atlántica (o melindre da questáo obri-ga-me a ser evasiva quanto aos lugares e datas destas ocorrčncias), vitimado por um ataque cardíaco que relacionavam com a inalacáo de hidrogénio sulfuro-so, o qual se devia á proliferacao de algas verdes, por sua vez resultante da criacao intensiva de porcos que os partidos verdes tém vindo a denunciar como pe-rigosa para a saúde da populacäo. Trés anos antes, a Associacáo da Luta contra as Algas Verdes cavalgara a crista da onda ao publicar uma extensa reportagem sobre a hecatombe de um rebanho de ovelhas que se tinha ařundado na lama verde, atirando-se, como que num suicídio colectivo, de uma escarpa que avancava sobre a mesma praia. Efectivamente, parece estar provado que a proliferacao de algas verdes se deve ao azoto e ao fósforo provenientes dos dejectos dos porcos, usados como adubo, que se infiltram no solo e acabam no mar. Par-tir-se daí para concluir pelo extermínio das ovelhas devido a gaseamento tem, quanto a mim, qualquer coisa de ficcáo científica, sem esquecer que ovelhas säo ovelhas, e assim também o entendera o lobby do porco que, no entanto, se apressara a calar o dono das ovelhas com uma choruda indemnizacao. Mas agora a questáo adquirira outros contor-nos pois estava em causa uma vida humana e o que comecara como um fait-divers ameacava tornar-se a íaúlha incendiária que ia desencadear um longo pro-cesso acusatório. Só faltava apontar o dedo ao Insti-tuto que tutelava esses assuntos, como se fóssemos autores morais do crime por náo termos tirádo todas as consequéncias dos indícios que apontavam para as probabilidades de um tal desfecho. Claro que a Associacáo dos Amigos do Porco i a reagir com a viruléncia habitual, e na batalha verbal 272 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 273 contra os Verdes era de prever que saíssem no rnínimo empatados. Safara (nome fictício), a cidade sede do concelho com o mesmo nome a que pertence a praia tornáda tristemente célebre por causa destes even-tos, sobrevive economicamente (e consta que muito bem) ä custa da criacäo de porcos, dez porcos por habitante, o que, se pensarmos na baixa demografia e reduzida area do concelho, se presta a comentários irónicos que, neste momento e neste contexto, sao perfeitamente desadequados. Portanto, näo custa a perceber que contra os brados indignados dos Verdes se erga a muralha de siléncio dos munícipes, habituados a um nível de prosperidade muito acima do dos concelhos vizinhos. Näo esqueco o que ouvi a um funcionário do Instituto que lá fbi de passeio com a família e voltou a dizer que, se näo fosse ter a sua vida organizada em Lisboa, mudava-se já de armas e bagagens para aquele paraiso hospitaleiro. Quando lhe falei nos porcos interrompeu-me logo: queria lá saber dos porcos!, rodeado de porcos vivia ele em Lisboa. Ali havia bons ares, boa comida, ruas limpíssimas, paisagens repousantes, gente c alma e ci-vilizada. Ali näo ouvira uma palavra contra os criado-res de porcos que tinham dado empregos e riqueza ä regiäo mas em contrapartida, a propósito de qualquer assunto, havia sempře alguém a louvar o empenho e a capacidade de realizacao do Presidente da Cámara. A morte do adolescente, porém, ressuscitava ve-lhas querelas que queríamos esquecidas. De repente, o meu melancólico Director transformara-se num Chefe autoritário e pragmático que queria a todo o custo e ra-pidamente deslindar a mealha e ver resultados, como se fosse só escolher entre as duas versóes, homicídio por negligéncia ou acidente, em vez de gerir com pincas um caso de contornos intrincadíssimos. Disse-me que ia mandar alguém investigar o que se passava no local e que, passando em revista todos os funcionários dos departamentos sob a sua juris-dicáo, só uma pessoa lhe parecia á altura da tarefa: eu. Nao duvidava de que a missáo tinha os seus riscos e, sob esse prisma, um horném habituado a manejar uma arma seria a escolha mais óbvia, mas esses riscos, paradoxalmente, era a sua conviccáo, quase se anula-vam se o agente anónimo fosse uma mulher. Sorri interiormente da candura da lisonja que de qualquer modo vinha ao encontro do que eu pensa-va sobre a minha prudéncia e sagacidade. Na minha decisáo pesou também, nao nego, a curiosidade de conhecer Safara, as suas propaladas belezas naturais e nao só a duvidosa riqueza que lá se respirava, e já agora o seu herói local, o Presidente da Cámara, nim-bado de uma fama náo menos duvidosa e que tudo indicava estar no cerne da questao. Combinámos que a minha missáo nao teria ca-rácter oficial e que só poderia contar com os meus olhos e ouvidos, os quais, subentende-se, tinham de ser capazés de ver muito mais do que a face visível das coisas e ouvir muito mais do que as ondas acústicas captadas pelos ouvidos do comum dos mortais. Para náo levantar suspeitas e por conveniéncia dos servicos, 274 TERESA VEIGA dispunha apenas de quatro dias incluindo o fim-de-se-mana e pagaria as despesas do meu bolso, mas a minha disponibilidade náo seria esquecida quando surgisse a hipótese de uma promocao. Parti, portanto, para Safara, urna viagem sem história, cento e cinquenta quilómetros de auto-estrada e mais quarenta por uma estráda secundaria de Optimo piso que corria em linha recta através de uma pai-sagem de olivedos e montados. Levava comigo duas moradas: a da casa de turismo de habitacáo onde re-servara um quarto e que dava pelo nome de Horta das Pedras Juntas e a do Clube do Amigo do Porco, onde só entravam sócios ou amigos dos sócios, pelo que te-ria de travar conhecimento prévio com alguém que se propusesse levar-me nessa qualidade. Levava também um mapa detalhado da cidade e uma lista teleŕonica subtraída de urna estacäo de correios, pois continuo a achá-las um instrumento de pesquisa utilíssimo que as modernas tecnologias näo conseguiram substituir. Cheguei a Safara ao princípio da noite, precisa-mente ä hora em que os candeeiros de iluminacäo publica, dispostos ao longo da extensa avenida que fóra recentemente construída para dar um acesso digno ä cidade, comecavam a irradiar urna claridade leitosa dos seus globos brancos. Era impossível náo pensar no montante exorbitante da factura energética e ex-trair conclusóes sobre a megalomania do homem que estava há dezassete anos ä frente da Cämara de Safara, mas tive de reconhecer que uma cidade que se apresenta assim escolheu fugir ao destino mesquinho CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 275 das pequenas cidades do interior e só por isso merece alguma indulgéncia. A avenida acabava numa rotunda projectada a uma escala grandiosa, cujo centro era ocupado por uma escultura monumental em ferro de duas figuras, um homem e uma mulher em posicöes vagamente acrobáticas, com aquele caracteristico alon-gamento das formas, reduzidas ä sua essencialidade, que fez escola desde Giacometti e já näo se estranha encontrar seguidores no mundo rural. Da rotunda partiám quatro estradas iluminadas como se fossem pistas de aterragem e uma rua ascen-dente que rasgava a colina onde a cidade nascera ä sombra tutelar do castelo, o quäl, gracas aos prodi-gios da luminotécnica, parecia elevar-se no ar e ŕicar em suspenso, como uma projeccäo cinematográfica estranhamente fixa e sem revérbero. A minha ideia iniciál tinha sido dirigir-me direc-tamente para a casa de turismo de habitacáo onde re-servara alojamento mas, na altura de tomar a direccáo que me afastava do perímetro urbano, uma curiosi-dade irreprimível fez-me voltar atrás, contornar a rotunda e subir a tal rua ascendente que me conduziria ao casco antigo, com as suas ruas centenárias e o bem conservado centro historko que no Veräo atraía tan-tos forasteiros ä cidade. Quando já estava perto esta-cionei o carro numa praceta, tendo o cuidado de me certificar de que näo havia nenhum sinal de proibicao ä vista, e pus-me a caminhar com passo determinado, para que os raros transeuntes com quern me cruzava me tomassem por uma habitante da cidade e náo me 276 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 277 olhassem com desconfianca. Felizmente para mim, a hora favorecia o anonimato. A noite descera, fria, quase gélida, o comércio fechara as portas, quem tra-balhava já regressara a casa e ainda era cedo para co-mecar a animacao nos locais de divertimento noctur-nos. Encontrei facilmente a rua principal, vedada aos carros, e abrandei o passo para observar demorada-mente as casas de janelas quinhentistas, algumas com portais em ogiva e insígnias heráldicas, que vém assi-naladas no roteiro de que me munira antes de partir. Fosse qual fosse a sua antiguidade estavam quase to-das impecavelmente recuperadas á excepcao de duas ou trés, excepcao tao aberrante que parecia sugerir que era intentional e se devia a qualquer coisa de irregular e errado, com a casa ou o dono, que as mantinha reféns das decisoes da Cámara. Reparei também que na maior parte das casas náo se viam luzes acesas no interior, sinal de que estariam desabitadas e a popula-cáo se concentrava nas avenidas largas e arborizadas, perto dos hipermercados e da zona comercial, de que tivera um rápido vislumbre antes de me embrenhar no coracáo da cidade. Precisamente quando comeca-va a interrogar-me sobre se a cidade antiga náo seria apenas um cenário magnífico recriado para satisfazer as ambicoes desmedidas do Presidente da Cámara, řui surpreendida pelo som melodioso de um «boa-noite» que desceu sobre mim vindo de uma dessas casas es-curas e silenciosas. Olhei para cima e vi um menino dos seus oito anos a olhar para a rua de um terraco minúsculo apinhado de vasos com flores. Como náo tivesse tido resposta imediata repetiu o «boa-noite» num tom de voz cordial e cantante que faria qualquer pessoa alegrar-se intimamente e sentir-se reconcilia-da com o universo. Saudei-o, imitando sem querer o tom festivo, e enderecei-lhe o meu melhor sorri-so, que ele deve ter visto porque o vi sorrir também. Ti ve, no entanto, de resistir ä vontade de parar e en-tabular conversa, retida pelo receio de que a crianca fizesse a mais simples e natural das perguntas: quem és tu?, ä qual eu näo poderia responder, täo certa es-tava de que ela sabia que naquela rua e naquela cidade eu era uma intrusa. O receio assaltou-me de novo quando me cruzei com uma mulher de uns cinquenta anos, singular-mente bem vestida e bem penteada, que fez gala de ignorar-me para logo a seguir virar a cabeca e cravar o olhar nas minhas costas. (Näo me perguntem como soube, alias é uma intuicao comum a muita gente mas que em mim se desenvolveu como urn sexto sentido.) Continuando a andar na direccäo do centro fui dar a uma praca que me fez lembrar cidades italianas visitadas em sonhos, pois a verdade é que nunca se me proporcionou a ocasiao de sair do meu pais. Num dos topos a igreja matriz, assente num piano sobree-levado, com o seu escadório ladeado de renques de pilastras. No lado oposto um imponente palácio oi-tocentista onde funcionavam os services da Cámara e onde näo era difícil imaginär o senhor da cidade, contemplando do seu gabinete a obra feita e congemi-nando na que estava por fazer. Um precioso chafariz e 278 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 279 um tanque com um gracioso grupo de anjinhos bo-chechudos que projectavam das bocas repuxos de água que mais acima se convertia em trémula nebli-na, colocados em posicöes assimétricas em relacäo ao centro da praca, transmitiam um frémito de beleza a que náo podia ficar insensível a mentě mais embru-tecida e vulgar. Como se nao bastasse, a praca era fe-chada a toda a volta por um anel de edifícios de traca antiga, alguns deles brasonados, que deviam ter sido residéncias afidalgadas dos maiores proprietaries da regiäo e que, depois de restaurados, albergavam agora aqueles legados culturais, só aparentemente fúteis, que hoje se reconhece sérem parte integrante da propria Memoria e História dos lugares. Lá estavam o Museu do Vinho, o Museu do Relógio, o Museu da Bolota (denominacao que tinha sido preferida ä mais trivial de Museu do Porco), mas náo faltavam tam-bém a Biblioteca Municipal, com o seu Centro Multimédia, o Teatro Laertes e, denunciado pelos com-passos repetidos e hesitantes de uma peca para piano tocada por um aprendiz, o Conservatório de Música Erudita e Popular. A auséncia do elemento humano, que criava uma atmosféra única de secretismo e inti-midade, insinuava também uma ténue nota de des-conforto, e foi com algum alívio que vi numa das es-quinas da praca o que me pareceu um café de amplas montras envidracadas que projectavam na calcada dois grandes rectángulos de luz. Aproximei-me com a intencáo de descansar uns minutos e beber um chá quente mas no ultimo instante faltou-me a coragem e parei diante da porta giratória a olhar para o interior, lutando contra um sentimento de indecisäo que in-felizmente deixei que se prolongasse tempo demais, até sentir que, se queria ser coerente, tinha de aceitar que perdera a oportunidade de entrar. Do ángulo em que estava só conseguia ver uns cinco ou seis homens de costas, sentados nos bancos diante do balcao, ou antes, as suas possantes omoplatas acentuadas pelo corte quadrado dos casacóes de pele de ovelha que säo o abafo masculino tradicional nestas terras de extremadas temperaturas, que se diria adormecidos näo fosse o copo que a espacos levavam a boča e esva-ziavam lentamente sob o olhar impassível do extático empregado que segurava uma garrafa em cada mäo a espera de os servir. Täo absorvida estava a olhar para o grupo e a imaginär qual teria sido a sua reaccäo se eu tivesse entrado e ocupado uma das mesas, que näo pude evitar um sobressalto ao ser interpelada por um hörnern com um fato escuro e camisa branca, que de repente se postou ao meu lado e abriu para mim uma boca de dentes de vampiro prateados pelo neon do anúncio luminoso que dizia Com Tradicäo: a senhora procura um restaurante para jantar? Perante a minha negativa, acompanhada do sor-riso tímido e esquivo que uso para me pór a salvo cle insoléncias, ele entregou-me acto contínuo uma tira de papel onde estava impresso em caracteres Arial Black: «Restaurante Origem Profunda. Aberto até äs 24 horas. Voce tem que o conhecer.» Agradeci e fiz questáo de abrir a carteira e guardar a folha no lugar 28o TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 281 reservatio a documentos, dando tempo ao homem de se afastar em busca de outros potenciais clientes. Estava novamente sozinha na praca deserta mas as exigéncias do corpo comecavam a sobrepor-se aos refinamentos do espírito e pus-me a desejar ardente-mente o conforto do hotel, a cama quente, a comida e a bebida. Confiante no meu sentido de orientacao, apressei-me a fazer o percurso até ao carro, cortan-do em diagonal sempře que podia. Dali até ä Horta das Pedras Juntas contei sete quilómetros, os trés Ultimos a rodar por uma estráda secundaria em pleno campo, atravessando um deserto de breu onde só me fazia companhia o ruído do motor, pelo que o alari-do dos cáes, quando passei sob o areo de tijolo que assinalava a entrada da propriedade, me pareceu um acolhimento caloroso. Parei o carro e vi, na semiobs-curidade envolvente, uma correnteza de casinhas de um só piso, cada uma com uma única janela e uma porta de postigo protegida das intempéries por um pequeno alpendre inclinado, sobre o qual um lan-ternim, no seu casulo de ferro gradeado, derramava uma luz frouxa. A ultima das casas encostava-se a uma casa grande, projectada com os mesmos elementos mas em escala maior, a típica moradia rural de gente abastada. A porta da casa grande abriu-se e saiu um homem baixo e forte, com um casaco de la grosseira sobre a camisa abotoada até acima. Deu-me as boas--vindas e indicou-me um canto do terreiro onde podia estacionar o carro. Nao tive dúvida de que era o meu hospedeiro em pessoa a receber-me e a informali- dade da recepeáo pareceu-me de bom augúrio para os meus intentos. Pegou na minha mala e encaminhou--se para uma das pequenas casas, abriu a porta, pousou a mala na entrada, entregou-me a chave e despediu-se dizendo que o jantar estava quase pronto e entretan-to podia aproveitar para íigar o aquecimento e ver se havia alguma falta que ele pudesse resolver. Efecti-vamente a atmosféra da casa era mais fria do que o ar da rua, como se o frio tivesse procurado refúgio dentro de quatro paredes, e na casa de banho, em vez do kit habitual de artigos de toilette, só encontrei uma amostra de sabonete, mas o meu sentido prático fez-me simpatizar imediatamente com a pequenez e simplicidade do alojamento e, nao tendo mais nada a fazer, depois de ligar o aquecedor e ver que funcio-nava, nao demorei a sair da casa e ir bater á porta do meu hospedeiro. Do hall de entrada passei para uma sala extremamente acolhedora, alias um saláo em termos de area, embora todos os móveis tivessem um aspecto rústico e usado. Como é usual em hotelaria, o mobiliário estava disposto em pequenos núcleos, de maneira a formar vários espacos agradáveis. No mais vasto, junto á lareira, estava uma mulher, que só podia ser a esposa do meu hospedeiro, sentada num sofa a tricotar uma peca de lá, e táo bem agasalhada e enroscada que nem fez mencao de mudar de posi-cao, limitando-se a dirigir-me uma olhadela amigá-vel por cima dos óculos. Mal eu tinha tido tempo de estender as máos para a lareira e debitar os lugares co-muns obrigatórios em tais cireunstáncias, o marido 282 TERESA VE IGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 283 voltou á sala e anunciou que o jantar estava pronto, convidando-me com um gesto a segui-lo. Pelo cami-nho explicou-me que, por ser eu naquele momento a única hóspede, iria ser servida na salinha onde ele e a família tomavam habitualmente as refeicóes e, antecipando alguma pergunta que eu pudesse fazer, acrescentou que ele e a mulher, ambos com excesso de peso, substituíam o jantar por uma refeicáo ligeira ao princípio da tarde, e a filha, engripada, deitara-se cedo, mas que no dia seguinte esperava que já pudesse fazer-me companhia. Confesso que senti algum mal-estar ao ser servida pelo dono da casa e perceber que aqueles pratos tinham sido descongelados exclusivamente emmi-nha intencáo, mas mesmo assim náo perdi de vista o objectivo que me levara até ali e, entre repetidos louvores á exceléncia da comida, lá fui recolhendo alguns dados que para já náo passavam de materiál em bruto mas poderiam vir a ser úteis á investigacao. Por exemplo, parecia um pouco estranho que ele, a mulher e a filha tivessem vindo trés anos antes passar umas férias em Safara e logo fossem convidados pelo Presidente da Cámara a tomar conta daquela unida-de de turismo abandonada e decadente que, pelo que eu podia ver, continuava a náo atrair hóspedes e se convertera numa residéncia familiar em sentido es-trito, a dos seus moradores. E certo que estávamos no Outono, mas como podia eu acreditar na afluéncia de turistas no Verao se náo havia empregados e sozinho ele dava conta do recado com a ajuda da mulher e da filha que naquele momento estava a fazer um estágio remunerado no Arquivo Municipal? Sobre mim falei o menos possível, insistindo sobretudo no sedenta-rismo da minha profissao (era tradutora), que tornava aqueles passeios de fim-de-semana táo aliciantes. Depois do jantar demorei-me ainda algum tempo na sala a ver os folhetos e brochuras postos á dis- t posicáo dos clientes, para que ele náo duvidasse de que o meu interesse pelo património cultural da ci-dade era genuine Tencionava dedicar o dia seguinte \ a visitar os monumentos mais notáveis da cidade e arredores, como náo poderia deixar de fazer qual-quer visitante minimamente interessado, e a verda-de é que cumpri á risca o programa sem um minuto de cansaco ou aborrecimento. Safara, forcoso é que o diga, reúne em si tantos atractivos que só quem lá nasceu pode conviver em paz com a sua beleza. \ Os outros, ou nem sabem a sortě de náo a ter co- j nhecido ou tém de carregar o peso de se sentirem amantes frustrados o resto da vida. Ao dizer isto náo esqueco o problema da contaminacáo das algas nem me passa pela cabeca absolver o infractor, estou ape-nas a colocar-me num piano puramente abstracto e a tentar imaginar o paraíso que podia ser a existéncia numa sociedade ideal. Regressei ao hotel descontente comigo mesma, » com a sensacáo de me estar a desviar do caminho certo, embora tivesse feito exactamente o que tinha de ser feito, e decidida a arrancar ao meu hospe-deiro, quando lhe contasse em ditirambos exaltados 284 TERESA VE IGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 285 as minhas descobertas, a promessa de me arranjar um salvo-conduto para ser admitida no Clube dos Amigos do Porco no dia seguinte, o primeiro sábado do més, escolhido para a festa mensal. A sorte ajudou-me, fa-zendo com que a filha, curada da gripe, se sentasse a jantar comigo e descobrisse em mim uma aliada ines-perada contra o ultra-proteccionismo a que a sujei-tavam os pais. Foi uma noite difícil, em que andei aos tropecóes, sentindo-me a pisar cháo resvaladico, enquanto tentava fazer a ponte entre as duas gera-cóes sem pender demasiadamente para um dos lados. Salete tinha dezanove anos e queria tirar a carta de conducáo. Os pais, antevendo exigéncias e aborre-cimentos, adiavam. A conversa acabou com Salete a propor-me ir com ela á festa do Clube, poupando aos pais o incómodo de a ir levar e buscar uma vez que iríamos no meu automóvel. Antes de aceitar tive a delicadeza de mostrar alguma hesitacáo e interrogar o casal com o olhar e só dei o sim definitivo quando uniram as vozes para me incitar a ir, «pois se ainda era tao jovem...». Passei o dia seguinte sentada á beira da piscina, a ler e a apanhar sol, aproveitando o tempo singu-larmente ameno. Á tarde dediquei também bastante tempo a arranjar-me e, á falta de um espelho em con-dicoes, medi o resultado dos meus esforcos pelo ar de desagradável surpresa que vi estampado no rosto de Salete quando lhe apareci. Pelo meu lado náo Ihe regateei elogios nem tentei fazé-la mu dar de ideias quando, ao deřxarmos para trás a Horta das Pedras Juntas, me declarou que näo estava com disposicäo para ir ä festa do Clube, que marcara encontro com o namorado e que eu näo ia ter nenhuma dificulda-de, com as suas indicacoes, em me orientar. Tirou do pescoco um cordäo preto com um pendente a imitar um pequeno azulejo, que eu me lembrava de ter visto entre as quinquilharias vendidas no Museu Arqueológico, e enfiou-mo pela cabeca. Era a senha de identificacäo. Limitei-me a dizer que devia ter uma conversa com a máe e chegar a um acordo sobre os seus direitos e deveres, enfim, conversa fiada que mostraria isencao e distanciamento se o meu nome viesse a ser envolvido nas discussóes familiäres. Que näo valia a pena falar com a máe, disse, que ficara perturbada da cabeca desde que a irmäzinha morre-ra em dois dias, sem que se pudesse fazer nada para a salvar. Crivei-a de perguntas, justificadas pelo espan-to e a consternacäo perante desgraca tamanha, mas pouco mais adiantou senao que tinham vindo passar férias a Safara e menos de uma semana depois acon-tecera aquilo. Impossível arrancar-lhe pormenores, via-se que ficara amarrada a uma promessa, a de nao falar, e que tencionava cumpri-la. Se näo parecesse cruel, eu diria mesmo que, ultrapassada a dor pela mořte da irmä, só recordava o triste acontecimento como a data fatídica e o ponto de viragem a partir do qual a mäe se tornara um peso e um obstáculo na sua vida. Despedimo-nos ä beira da estráda e dois quiló-metros depois, já em pleno campo, reconheci a antiga 286 TERESAVEIGA coudelaria cedida pela Cämara para instalar condig-namente o Clube. Entrava-se por um corredor de tec-to abobadado e laješ gastas onde, com alguma boa vontade, ainda era possível ouvir o ressoar do trote de imaginários cavalos, e caía-se na realidade prosaica de uma divisao de pequenas dimensoes e tecto baixo, es-pécie de posto fronteirico de vigiläncia, em que näo faltava o inevitável balcáo das bebidas de um lado e algumas talhas de azeite a servir de mesas, para des-canso e entretenimento dos ŕuncionários de servico. Cinco ou seis homens, de pé ou sentados, entre-tinham-se numa conversa pachorrenta e mal olharam para mim quando passei por eles, mas os casacos de pele de ovelha, a compleicäo acima da média, as gran-des cabecas tosquiadas, lembravam tanto os frequen-tadores do Com Tradicäo que näo tive dúvida nenhu-ma de que éram os mesmos e, se näo fosse a rapidez com que os acontecimentos se desencadeavam, teria encontrado matéria para reflectir. Depois de passar por um outro corredor e mais urna porta vi-me re-pentinamente num salao de restaurante bem ilumi-nado, com a atmosféra quente e trespassada de bons odores e animado pelo burburinho comedido das vo-zes e o tilintar de vidros e metais característicos das festas ainda no comeco. Como ainda havia várias mesas vagas escolhi urna das mais pequenas e afastadas do centro e sentei-me de costas para a parede de forma a abarcar com a vista a sala e o maior numero possível de pessoas sem que se pudesse dizer que estava a olhar para alguém em particular. Näo tardei, porém, CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 287 a reparar que se passava exactamente o contrario, ou seja, eu e que era alvo da atencao geral, e se alguns se davam ao trabalho de dissimular outros interrogavam--me com os olhos abertamente. Level a mao ao pes-C090 para ter a certeza de que o pendente ainda la estava e, tranquilizada sob esse aspecto, a minha in-quietacao recrudesceu. De repente ocorreu-me que a razao so podia ser o facto de eu ser a unica mulher sozinha num dia em que essa circunstancia se presta-va a interpretacoes pouco lisonjeiras. Felizmente que a expectativa e o mal-estar nao duraram muito. Um empregado fardado, com ares de mordomo, abeirou--se respeitosamente da minha mesa para me informar que a mesa das senhoras era mais ao fundo do salao, apontando um lugar semiescondido atras de umas coronas. Levantei-me prontamente, maldizendo Salete que nao me informara que em Safara ainda se cultiva-va o habito provinciano das ladies nights ou algo similar, pois nao faltavam homens entre os comensais, embora, pormenor que so registei naquele momento, as mulheres que eu via, com raras excepcoes, ja tives-sem ultrapassado a idade em que ainda e possivel dis-farcar as rugas. Encontrei-me assim diante de uma mesa preparada com baixela de dia de festa e uma profusao de arranjos florais, ocupada exclusivamente por mulheres (contei vinte quando tive tempo para conta-las), que me acolheram com sorrisos rasgados e mantiveram as cabecas viradas para mim enquanto me instalava numa das extremidades da mesa, num lugar vago que parecia estar a minha espera, e logo 288 TERESA VEIGA GUI DADO COM AS ALGAS VERDES 289 voltaram a fahr entre si naquele registo de vivacidade efervescente, tipicamente feminino, que faz pensar numa leve bebedeira com espuma de champanhe. Pude assim observá-las tranquilamente e concluir que devia estar perante a fina flor da safra de Safara em materia de mulheres, tanto no que dizia respeito aos dotes físicos como äs capacidades intelectuais pois, pelo que ouvia, todas elas tinham cursos médios ou superiores e profissóes na administracao camará-ria ou no ensino, quando nao geriam o seu proprio negócio na area da estética ou da moda, o que expli-cava aquele ä vontade nos modos que dá a indepen-déncia finaneeira. A maior parte delas tinha uma alianca no dedo mas, solteiras ou casadas, sentia-se um espirito de competicao que as galvanizava e trans-cendia, como se posto ao servico de uma causa nobre. Em comum tinham os cabelos compridos e negros e o tom muito mořeno da pele mas mesmo aqui verifi-cavam-se todas as variantes permitidas pela imagina-cao e o bom gosto, do negro-negro ao negro azulado ou avermelhado ou a dar para o violáceo do cabelo, enquanto, pelo seu lado, os pós, os cremes, os subtis retoques a pincel numa paleta variegada de cores, bronzeavam, embranqueciam, acendiam resplendo-res de fogueira nas faces de contornos perfeitos. Re-parei também que as unhas pontiagudas eram obriga-tórias mas havia total liberdade na escolha das cores embora predominasse o azul-escuro e o vermelho, o que me fez pousar as máos na beira da mesa e adoptar a curvatura de dedos de quem toca piano como se fosse a minha propria maneira de estar á mesa, enquanto elas nao paravam de brincar com os compridos colares de contas para que se pudesse apreciar o espléndido trabalho de manicure. Abandonada a mim propria, fingi-me entretida a observar o vasto tecto em abóbada caiada, do qual pendiam, suspen-sos por correntes, candeeiros feitos de rodas de car-ros de bois e engrinaldados de lámpadas que se balan-cavam lentamente como gigantescos aranhóes presos por um fio á teia, contente por nao estar por baixo do seu centro de gravidade. Tive tempo de sobra, também, para apreciar a decoracao das paredes, em que os quadros a óleo com motivos paisagísticos da regiáo e da fauna campestre alternavam com a exposicáo de alfaias agrícolas, sem chegar a uma conclusao sobre o valor estético do conjunto a nao ser a de que dificil-mente com os mesmos recursos se faria mais e me-Ihor. Um alvoroco súbito á volta da mesa e eis-me a comparticipar da excitacao geral, por um curioso efeito de mimetismo. Mesmo ao meu lado, um homem, vestido de escuro, curvou-se sobre a mesa, apoiou as manápulas na toalha e cumprimentou de-moradamente as senhoras, brindando-as, uma após outra, com uma palavra amigável e um gesto coniven-te. Era um homem feio, sem nenhuma feicáo agradá-vel, no auge da forca física, ainda com um certo ar de rapaz e já a caminhar para a meia-idade. Usava um fato cinzento-escuro e gravata berrante sobre a cami-sa negra mas a formalidade do traje era desmentida pelo ar desleixado do rosto propositadamente mal 290 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 291 barbeado, com um bigode fino de pélos emaranhados sobre o lábio superior, um leque ridículo de pélos rí-gidos em posicáo invertida sob o lábio inferior e tufos de cabelo invadindo as faces e prolongando-se em li-nhas onduladas á frente das orelhas. Talvez julgasse que assim distraía o olhar do nariz torto, com uma pequena cicatriz na ponta, e escondia a fenda arrepa-nhada da boča onde assomavam os denies agucados rebrilhantes de muco, forcando a atencáo a concen-trar-se na testa alta e boleada, iluminada por dois lu-zeiros negros debruados a bistre que falavam de noi-tes mal dormidas, esforco, vício e uma vontade tenaz. No conjunto, porém, tenho de reconhecer que a sua fealdade tinha qualquer coisa de exótico e picante, que lhe vinha, segundo me disseram, de uma costela zíngara. Dito isto, náo posso negar que se encaixava perfeitamente no perfil do Presidente da Camara de Safara, tal como eu o tinha imaginado a partir dos dados dispersos que recolhera mas sobretudo da minha intuicáo. Sentou-se numa das cadeiras livres e ali fi-cou um bom quarto de hora a fazer rir as ladies com trivialidades táo absurdas que eu mordia os lábios com vontade de o mandar calar. O bumerangue das perguntas e respostas, o tom desenfadado, os grace-jos no limite da impertinéncia e que náo distinguiam ninguém em especial, davam a medida do seu sucesso junto daquelas mulheres que náo queriam mais do que espanejar-se uma vez por més em homenagem ao macho que as tratava como corifeus da sua corte sem pór em risco o seu estatuto de filhas-família e esposas fieis. A mim perguntara-me se estava a gostar de Safara, deixara-me falar sem me interromper e sem desviar de mim os olhos imóveis enquanto a boča sorria inex-pressivamente, e no fim rematara com um surpreen-dente e lacónico «muito bem» que me soou como a voz de um professor ao avaliar o exame de uma aluna. Durante o resto do jantar fiz várias tentativas para trocar impressöes com as minhas vizinhas de mesa, com pouco éxito, näo porque parecessem alimentär qualquer tipo de má vontade mas porque, es-tando eu de passagem, deviam achar que náo valia a pena dar-me falsas ideias sobre coisas que eu náo podia perceber. Ao ouvi-las falar do baile, quando já nos soavam aos ouvidos notas desgarradas de uma guitar-ra e doutros instrumentos, disse que ficaria a ver uma vez que näo vinha acompanhada, mas elas declararam com alguma frieza, como se fosse uma benesse ime-recida, que em Safara o costume era todos dancarem com todos e que o Presidente da Cämara se encarre-gava pessoalmente de que nenhuma senhora ficasse sem par. O saláo de baile era ainda maior do que o restaurante embora com as mesmas caracteristicas: tecto em abóbada e cupulas que delimitavam uma espécie de naves, deixando livre o centro para a enorme pista de danca. As mesas eram de madeira em bruto a dar o tom rústico, mas pequenas, redondas, rodeadas de cadeiras estofadas de cores claras, e a iluminacao cruzava vários focos de intensidades diferentes que, no limite, nos faziam piscar os olhos como sob o sol 292 TERESA VEIGA do meio-dia ou orientarmo-nos pelo tacto na quase escuridáo. A orquestra, numa bancada a que se acedia por trés degraus, compunha-se de trés músicos que tocavam guitarra, baixo e bateria, e um vocalista de melena e calcas apertadas á Elvis. Perguntei quem eram e disseram-me que eram gente da terra, forma-dos no Conservatório local e já com discos editados, táo bons ou melhores do que a maioria dos músicos de pop rock que inundam os mercados, como eu ia poder constatar. Alem disso Safara orgulhava-se de ter um coro com vozes excelentes e entre a assistén-cia havia pessoas que cantavam muito bem, pelo que mesmo durante o descanso dos músicos a festa pros-seguia sem quebra de ritmo até o Presidente empu-nhar o microfone e cantar uma balada que anunciava que a festa chegara ao fim e era altura de dispersar. Tinha uma voz linda, confidenciou-me uma rapariga que a bebida tornara mais loquaz, e as letras da sua autoria punham toda a gente louca, a gritar a plenos pulmóes, sem se saber bem porqué. A verdade é que, sendo um poeta menor, táo menor que acredito que os nossos poetas encartados se sentissem ofendidos por partilhar com ele a de-signacáo, havia na sua poesia um lirismo sóbrio e por vezeš um tom arruaceiro, eminentemente popular, que náo me admira que tivesse conquistado a ade-sáo dos seus conterráneos, sem excepcáo de sexo ou idade. Era vé-los a dancar ao som de «Que coisa é o amor, pergunta-o ao vento, que lanca o seu lamento, sobre as ondas do mar...» e o ritmo frenético dos bai- CUIDADO COM AS AI.GAS VERDES 293 larinos mais jovens quando ele lancava o seu desafio do palco, bem direito e de maos nas ancas, com ares de flibusteiro: «Sou o rei da cantina, sou o vampiro da vinha, sou pastor e sou boémio e tenho a cabeca apremio...» Eu ainda tentei marcar as distáncias mas em breve desisti e comecei a aceitar automaticamente qual-quer hörnern que se recortasse no meu campo de visáo e a deixar-me arrastar sem opor resisténcia para as dancas de roda, debatendo-me entre pensamentos táo antagónicos como «Que diria o meu chefe...» e «Esta gente sabe tirar partido do que há de bom na vida», neutralizados pela certeza de que näo tinha alternativa se näo queria dar nas vistas, já näo digo cap-tar a simpatia geral. Näo esperava é que o prémio chegasse täo cedo. Ele, o Presidente da Cämara, depois de me ter conce-dido a honra de uma danca, veio buscar-me segunda e terceira vez, quando já näo se podia falar de um dever de cortesia. Na primeira tentara, sem éxito, pôr-me a falar, a velha táctica de que pela boča morre o peixe. Na segunda apostara na adulacäo e perdera. Safara orgulhava-se das suas lindas mulheres, disse, e eu vinha acrescentar mais uma ao rol, com a vantagem de introduzir uma ponta de exotismo. (Neste caso o exotismo era ter o cabelo claro e encaracolado e uma pele que, de täo branca em comparacäo com as delas, parecia pálida e doentia). E entäo, na terceira vez que me veio buscar, comecaram as revelacóes. E que revelacóes! O mcnino que me dera as boas-noites era 294 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 295 seu filho e fora a correr contar-lhe de uma senhora muito bonita que andava a passear sozinha e a ver as casas. E o solícito empregado do seu restaurante, o Origem Profunda, era ele mesmo, prevenido pelos seus homens de confianca, os que eu vira ao balcao do Com Tradicao, de que andava por ali uma jovem que talvez quisesse conhecé-lo. Ainda tivera esperan-cas de que náo resistisse ao convite para provař umas especialidades suínas mas náo insistira ao perceber que eu era mais do tipo intelectual. Como o demons-travam alias as visitas que fizera ao castelo, á ermida da Senhora da Pena e aos museus. E, a confirmar um perní de sucesso, conseguia ser simpática e entrar no coracáo das pessoas. Salete, um caso difícil que ele tratava com muito cuidado, ficara minha amiga. Era ver a facilidade com que me emprestara o seu berlo-que, embora, para ser franco, achasse que eu merecia ornamentar o altar com jóia mais vistosa. E, ao dizer isto, voltejava pelo saláo, multiplicando os requebros com que gostava de parodiar os passos de danca, ao mesmo tempo que me apertava contra si mais do que o pudor e o bom gosto aconselhariam, a coberto da esbatida claridade de aurora boreal criada por dois feřxes de luz rosada que, muito a propósito, varriam o espaco junto ao solo deixando na sombra os corpos reduzidos a vagas silhuetas sem rosto. Se ele pensava que o efeito de surpresa me ia dei-xar paralisada e incapaz de encontrar as respostas ade-quadas, enganara-se redondamente. No fundo acho que já estava á espera de algo semelhante e foi até com algum sentimento de trřunfo que confirmei que náo me tinha enganado acerca da nebulosa de cumplicida-des que se řormara em redor de Safara e do seu destine Portanto, acompanhei-o sem dar parte de fraca até ao fim da danca, fingindo nao sentir o seu entusiasmo crescente e procurando opor-lhe a voz da inocéncia e da razao. Era bom saber que, enquanto os muníci-pes dormiam ou se reřugiavam no conforto do lar, o seu Presidente pensava continuamente na maneira de tornar a cidade mais segura, agradável e hospitaleira. Ordern, calma, paz! No meu passeio nocturno no dia da chegada, náo vira nenhum agente da autoridade, nenhum vulto suspeito, nenhum pedinte, nenhum pobre aleijado ou simplesmente andrajoso, náo me cruzara com nenhum exemplar daquela gente a quem náo takou o páo nem a instrucáo básica e mesmo as-sim nao sabe comportar-se em publico sem contami-nar o ar com o eco dos seus disparates. Percebia agora que náo era por acaso e queria agradecer-lhe, nao só por isso mas por tudo o resto. A verdade é que sou-bera fazer de uma bela e vetusta cidade, que dormia ä sombra das suas divícias arquitectónicas, uma pe-quena metropole auto-suficiente, em que o moderno e o antigo contribuíam harmoniosamente para uma vivéncia exemplar. Riu-se e deu-me os parabéns por ter lido com proveito o roteiro editado pela Cámara mas acho que no rundo ficou lisonjeado e acreditou na sinceridade das minhas palavras, o que nao era difícil pois, até certo ponto, eu acreditava no que estava a dizer. «Voce náo foi a primeira nem será a ultima 296 TERESA VEIGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 297 pessoa que se apaixona por esta cidade. Felizmente que, como sempře acontece com as grandes paixóes, tem a vantagem de durar pouco. Isto nao é propria-mente a terra prometida e eu preocupo-me em náo criar ilusóes as pessoas que se sintam tentadas a mu-dar para cá. Sei que náo é o seu caso mas também sei que é tradutora e uma tradutora pode trabalhar em qualquer lado.» Garanti-lhe que náo estava a pensar nisso, alias as minhas curtas férias estavam a chegar ao fim, e depois náo sei que demónio me impeliu a acrescentar, «mas náo partirei sem ver as praias que me dizem que sáo das mais pitorescas do litoral». Nesse momento as luzes reacenderam-se, a música parou, os pares dispersaram-se e eu aproveitei a con-fusáo para voltar para o meu canto e esperar pelo momento propício para uma retirada estratégica, pois já náo via razóes para continuar ali. O meu pensamento centrava-se agora, obsessivamente, na visita as praias e só queria que a noite acabasse depressa para ao nas-cer do novo dia me pór a caminho. É certo que uma das razóes da minha viagem fóra ver com os meus próprios olhos a praia contaminada, estranho seria que um investigador se abstivesse de visitar o local do crime, mas, depois de ter declarado o meu propósito ao Presidente da Cámara, esta diligéncia aparecia-me náo só indispensável mas de uma urgéncia přeměňte, como se ele, com a sua astúcia e a sua rede de contac-tos, tivesse podereš para frustrar as minhas intencócs. O mapa de que me munira no posto de turismo náo sinalizava nenhuma praia no concelho, precau- cáo inútil pois, logo que terminava a estráda de alca-träo e comecava o carreiro areento entre campos ra-sos, percebia-se que a costa estava perto e que aquela nudez desértica, sendo natural, tinha qualquer coisa de premeditado. O carreiro sumiu-se na terra e eu tive de deixar o carro e fazer o resto do caminho apé. Nao se podia dizer que o acesso as praias estivesse inter-dito ou dificultado. Um exercício de paciéncia no meio do nada era o único obstáculo que os visitantes tinham de vencer até se aproximarem da linha da costa e depois bastava descobrir a entrada do caminho que descia em linha sinuosa até ao areál. E vi entáo as algas, em manchas compactas e escuras, flutuando a superfície da água e formando uma enorme planície negra que se estendia até onde a vista podia alcancar. Era como se o mar ali fosse pasto de monströs descon-formes, que avancavam e recuavam enrolando-se nas suas patas movedicas, e que ao morrer se arrojariam para a praia onde ficariam a liquefazer-se e a espalhar o fedor da putrefaccáo. Espantava, pelo contraste, a praia de areia branca e finíssima, que se crispava em ondulacóes suaves a passagem do vento, e que nenhum destroco, nenhum tufo de ervas, nenhum sinal de presenca humana, maculava. Sentei-me com a cara virada para o sol e saboreei o prazer intenso de me sentir inundada de luz e calor enquanto enchia os pulmóes com o ar forte e iodado e ouvia os gritos das gaivotas e dos corvos marinhos. Táo bem me sentia que, quando consegui acordar do torpor em que mer-gulhara, o sol come?ara a descair para poente e uma 298 TERESA VE IGA CUIDADO COM AS ALGAS VERDES 299 ponta de tristeza insinuara-se no ar transido. Ao con-sultar as horas vi que já era tarde e levantei-me apres-sadamente para partir, mas do alto das arribas ainda lancei um ultimo olhar sobre a imensidáo do mar e admirei-me de ter ficado tanto tempo naquele lugar belo e perverso. De regresso á Horta das Pedras Juntas tive a surpresa de encontrar um bilhete metido por baixo da minha porta. O Presidente da Cámara propunha que nos encontrássemos na ermida da Senhora da Pena para dali seguirmos para um sitio que me queria mostrar. Náo era muito explicit o mas a mensagem pareceu-me clara: ele desejava aquele encontro e eu, se queria saber mais, náo podia faltar. O dia já comecara a arrefecer e a luz a tornar-se mais fluida e espectral quando estacionei o carro na orla do cerro. Vi-o ao volante de uma carrinha de cai-xa aberta e, tratando-se de uma viatura de trabalho, achei natural que me pedisse que fosse atrás dele no meu carro durante os oito quilómetros que iamos percorrer. Lá fomos, através de estradas secundárias e caminhos coleantes que nos levaram até á beira do rio, num troco particularmente pitoresco em que uma pequena ponte faz a ligacáo entre as margens alcanti-ladas. Descemos dos carros e ele apontou para a mar-gem oposta, onde se via uma pequena casa solitária empoleirada sobre a escarpa, ainda em bom estado e com alguns arrebiques arquitectónicos mas insólita sobretudo pela sua localizacáo imprevisível, espécie de sentinela vigilante entre a terra e o céu. Fora duran- te muitos anos uma casa de cantoneiros e ele estava a pensar transformä-la numa residencia de artistas ou cede-la a quem quisesse refugiar-se ali para produzir algum trabalho de interesse para a comunidade. Näo se exclufam tradutores, claro, acrescentou, rindo-se do seu dito espirituoso. Achei a ideia interessante e, depois de percorrer a casa e espreitar de cada ja-nela a paisagem circundante, encorajei-o vivamente a avancar com o projecto, pois para aqueles fins era um sitio de eleicäo. Pediu-me que olhasse ä volta e imaginasse o que gostaria de encontrar ali. Era um häbito seu, auscultar as opmioes das pessoas comuns antes de ouvir o parecer dos tecnicos. Levei o pedi-do a serio e pensei no que faria daquela casa se fosse minha. Atraca era de uma simplicidade desarmante, quatro divisoes em cruz, duas janelas em cada divisäo, todas debrucadas sobre o leito do rio que ali corria apressadamente, com os veios de ägua atropelando--se e formando redemoinhos, e uma escada suspensa que fazia a ligacao ate ao nivel da ponte. Tomei nota mentalmente das sugestöes que me ocorriam, ja a pensar passä-las para uma folha de papel: ali a lareira, um mezanino na sala para rentabilizar o espaco, um väo amplo rasgado na parede virada a sul, ate que de subito me aflorou o cerebro um pensamento fugidio e evanescente: e se ele... e se a casa... e se o convi-te... Näo cheguei no entanto a tomar consciencia de nada porque sofri de repente como que um bloqueio mental e deixei de saber o que e que estava a fazer ali. A minha memoria fugia-me e recuava ate um ponto 300 TERESA VEIGA em que eu já näo conseguia alcancá-la, cada vez mais longe e mais rundo, submersa em profundezas onde só chegava uma luz amortecida, como a do sol coada através de camadas de água densa e negra. Comecei a ter dificuldade em respirar, queria mexer-me e näo podia, era como se uma forca desconhecida me en-redasse em sucessivos filamentos, apertando mais e mais até produzir a asfixia. Uma formacäo de patos em vé passou a grasnar em frente da janela, deslocan-do uma massa de ar, e elevou-se nos ares logo a seguir, desaparecendo atrás das árvores. Cuidado com as algas verdes!, ouvi gritar, mas para mim o aviso jávinha dema-siado tarde. Teresa Veiga nasceu em Lisboa em 1945. Licenciada em Direito e mais tarde em Literaturas Románicas, exerceu por um breve periodo de tempo a actividade de conservadora do Registo Civil. É autora de seis livros, entre volumes de contos, novelas e romances: Jacobo e Outras Histórias (1980), O Ultimo Amante (1990), História da Bela Fria (1992), A Paz Doméstica (1999), As Enganadas (2003) e Uma Aventura Secreta do Marqués de Bradomťn (2008). Gente Melancolicamente Louca marca a estreia da autora na Tinta-da-china.