O FIXADOR DE INSTANTES A Guilherme de Santa-Ria O Instante! O Instante! í Náo sei como os outros que desconhecem o meu segredo, a minha ar-• te, podem viver da vida. Náo sei. ÍEu morria de saudade quando uma noite de quimera věnci, realmen-te věnci á forca de ánsia, achando a mais bela das artes perdidas. Por-. que eu náo creio ter de sc ober to a minha arte. Apenas a reedifiquei. Foi , uma reminiscéncia longinqua — donde, ignoro—, de muito longe, de além-sonho talvez, que me ensinou o segredo. Acordei-o, nao o fui. E te-nho, é bem certo — posso gritar —,tenho nas minhas mfios a vida que a íodos, aos mais felizes, aos mais ricos, esguiamente foge, se desfaz sem remédio dor após dor. Viver momentos radiosos, ter corpos áureos, bocas imperiais, e a gloria ungir-nos em auréolas que ascendem — é isso ser feliz? Mentira! . Pois tudo passa, esvoa táo rápido como o tempo. E sofremos da sauda-'í de: da saudade do que foi, a menos cruel porque já passou, da saudade do futuro — que desconhecemos —, da saudade do presente, que senti- I' mos bem o que é, e por isso se nos torna a mais contorcida de angústia. O homem felicíssimo, em verdade, é um pobre recebedor de contas pelas má os do qual, diariamente, milhóes se precipitam e que ho entan-to vé os seus filhos morrerem á fome. Assim por entre os dedos do homem venturoso a beleza ca min ha, é certo, mas náo permanece: minuto a minuto se esgueira em rodopio alucinante. E mesmo que a beleza volte, se esse homem tiver alma, for um artista, os olhos de sombra se Ihe marejaráo de lágrimas — saudoso do que passou e náo mais tornará, só porque já foi. A vida, sim, a vida é uma estrela eiicantada e multicolor da lanterna-: -mágica da minha infáncia. No lencol que estendiamos e sobre o qual o . meteoro fantástico se projectava inconstante, golfando novas formas, novas cores, eu, náo podendo crer na sua mentira, enclavinhava as mi-; nhas máos fascinadas, tentando embalde fixar sobre o pano, palpar, en-trelacar a maravilha que vertiginosamente se escoava, e era só luz a tingir-me os dedos, luz movedica - ilusáo desfeita... ; Tal como a vida. A vida náo se pode tactear: é brilho só, imagem fu-j gjtiva apenas. Pois o que foi náo se pode reproduzir: nem com os mes-- mos beijos, o mesmo sol, os mesmos estrebuchamentos. E um segredo náo se repete. 187 Como seria grande aquele que lograsse realizar a vida!, dar forma, persistěncia, a todos os momentos belos, fulvos de angústia — em t odo o caso grandes. sensíveis —■ que alguma hora existisse!... Para tal a vida criaria novas dimensôes; seria altura, vertigem, ela que é só superfí- cie... Erguer a vida, sim, ergué-la em ameias de ouro e bronze, engrinaldá--la de mirtos, se quiséssemos, e podé-la enfim tocar... dar resisténcia ás bo Íha s do gás fantástico, á espuma loira do champanhe — ter tido e ter! Glória maxima! Apoteose! Pois bem — voos de triunfo! —, eis no que reside o meu segredo; é es-sa a minha arte, a arte perdida que admiravelmente venci! Sim!, eu acastelo a vida em ánsias eternizadas. Ergo dela aquilo que me sentiu — ou belo ou doloroso, ou real ou falso! E se urna tarde me várou esmaecidamente a sensacäo de ter esqueci-do um grande amor que nunca sofri — esse instante bizarro, perturba-dor de errado, eu soube-o fixar: esculpi-o, tenho-o. Sei vě-lo, ressenti-lo, como quem folheia um livro já lido, mas que pode tornar a ler. Gracas ao meu segredo eu folheio a existencia —, mas folheio real-mente; näo evoco apenas, morto de saudade vaga, as suas páginas ras-gadas. Que para os mais, os dias da vida säo páginas rasgadas logo de-pois de lidas. — E como erguer o instante, volvé-lo perdurável? De mil formas, como de mil formas o artista de génio executa a sua arte. O artista de génio — näo disse: o Deus. O Deus, esse, cria. E a s sim, tristemente acentuo, se a minha arte edifica a vida, näo a sabe entanto viver: O momento dourado, eu posso palpá-lo, revé-lo, tornar a beijá-lo em cháma, mas näo — ah!, mas näo! — fazer-lhe brotar outras asas de fogo. Apenas os mais tudo perderam — alma e corpo das horas. Eu, se perdi as almas, tenho os corpos para mais frisantemente as recordar. Embalsamei o instante. Eis tudo. Näo ressuscito. Petrifico. Uma das minhas obras melhor trabalhadas; näo digo das superiores — entanto das mais conseguidas — foi a fixacäo dum ano duma grande capital, dentro de mim, para sempře. Eu sentia, eu a máva täo lucidamente aquele solo ultracivilizado! Se me descia uma grande amargura, um tédio mortal, ao constatar a perda irremediável e definitiva da minha existencia — atentava para fóra de mim, e, em face do rio latino que se esgueirava sob as pontes, tu-multuantes de luzes, em face do ruido urbano e longínquo que era a partitura do movimento, olhando o s candelabros esguios, litúrgicos por ilu-minarem aquela vida imensa — um orgulho enlevado todo me possuia, e um j ubilo infinito, por viver também na capital assombrosa. Mais. Por-que, numa ampliacäo ďalma, era em verdade eu que a vivia — tamanho amor, no fundo talvez só puerilidade, me subtilizava por aquela terra, nostalgicamente. E como era fatal uma noite vir a perdé-la, logo diligenciei constrai-la inalterável para mim e eterna. Assim a comecei fixando, emocäo após emocäo — pouco a pouco, : pois ela era enorme—, como quem pregasse com alfinetes, lentamente, : cuidadosamente, uma grande peca de linho. Petrifiquei-a, sim, no meu coracäo, a capital das ánsias; enchi-a para o meu sentir de pontos de referenda, de rastros áureos através maravi-' lhas! Tenho-a!... Tenho-a!... E eis como me guiei: i Para um bairro tradicional morava um meu amigo que muitas noi-tes, premeditadamente, eu visitava. Na mesma pensäo viviam algumas raparigas do Nořte, daquelas ra-?as louras do Norte que eu tan to sin to, e entro elas, uma de quem eu ti-nha mais saudade, loura também e eslava — dessa Russia onde, estra-nhadamente, vive qualquer coisa de mim. ; Falávamos os dois, longínquos e ba na is, numa converse entretanto ■ fácil e lisonjeira gracas a os nomes dos mesmos artistas queridos, das ' mesmas obras admiradas que, momento a momento, nos faziam reco-; nhecer. Essa criatura gentil, täo heráldica para a minha vibratilidade, era-; -me preciosa como um dos muitos vertices em que assentaria a capital deificada. E entäo uma noite mandei-a ler versos meus: A sua voz de encantamento vibrou por instantes uma lingua misteriosa para ela — uma lingua do Sul que a li só eu podia compreender... Ela falara só para mim, e nunca mais, nunca mais, repetiria as pala-vras que murmurara só para mim, E os meus versos eram dourados... E a sua boča também era dou-rada... Mas näo foi tudo: Um dia o meu amigo veio-me visitar com uma rosa na mäo, dizendo-■me que se fora despedir dela que partira para nunca mais eu a ver. E quando saiu, deixou a flor que a sua camarada lhe dera ao saltar esbelta e ágil para o grande expresso. Meti a rosa esquecida mim jarro de água... Na tarde seguinte, como o meu amigo näo a vies se reclamar, ungida-mente eu cortei o caule da flor — que os seus dedos eslavos decerto ha-viam apertado — e algumas pétalas fanadas. Encerrei estes pobres věstí gios num grande sobrescrito, que lacrei, escrevendo por fora o seu no-me sonoro, fluidamente ruivo. Quem me visse diria: «Uma recordacäo de amor», e quern me ouvisse contar o pormenor explicaria: «Voce procedeu assim, ora, meu amigo, por urna ternura inconfessada. No fundo, creía, foi que anion um pouco essa rapariga dístante, passageira fugaz da sua vida. Enternecimento, mégoa es bati da, saudade — e mais nada, juio-).he.-> 188 189 Engano! Engano! Para mim, essa criatura näo fora ma is do que uma personagem, acariciadora, é verdade, mas espiritualmente anóni-ma no turbilhao — uma estranha como tantas outras. Valera-me apenas como figurante gent.il dum cenário, dum tempo da minha vida que, por embelezadores, eu quis fixar. E mais tarde, revivendo a pobre história da rosa — enternecidamente, é certo —, recitando os meus versos que a sua b oca de harmonia soou, indo ás minhas gavetas procurar o sobres-crito a onde existia alguma coisa dela — alguma coisa que eu posso pal-par, que eu posso destruir—. tudo isso eu referirei á cidade magnifica. E uma noite, se quiser, rasgarei o sobrescrito — abaterei u m instante da minha cidade. A maior prova de que o vivi, de que o tinha: só quem possui pode despedacar. É da soma dum grande numero de instantes fixados que resulta o edificamento perdurável duma época, duma paisagem, dentro de nós — e por outros detalhes como estes eu logrei construir de momentos a rna-ravilhosa escultura urbana: lendo letreiros de mas, decorando-os, e bei-jando as árvores dos jardins, palpando a terra dos bulevares, olhando recantos ignorados, ascendendo ás altas colunas... Mas tive que lutar com a realidade demasiada e o excesso das coisa s aprendidas. Residindo largo tempo no solo admirável, eu aprendera alguns locais táo pormenorizadamente que amanhä, longe deles, näo os poderia sen-tir — de tal forma nitidamente os reveria! E näo os sentindo á forca de os ver, eu näo saberia estremecě-los. Por isso, assim como o pintor esfu-ma a sua tela para a tornar mais emotiva, mais sensivel, também eu precisei esfumar a minha cidade. E fui percorré-la em bairros que desco-nhecia. nas minhas horas de grande vibracäo — horas que, com o cenário, pararam, ficaram bem presas para mim, pois durante elas eu oscilei sensacôes intensas e me perdi em sonhos geniais que, nas minhits obras, mais tarde realizarei. Bem fixado o instante, igualmente o panorama se deteve. Mas esse panorama é-me vago porque nunca mais lá regressei. E pertence á grande cidade. Logo, amanhä, eu posso recordá-lo sentindo-o. Näo, vendo-o apenas. Eis como emprestei ao total a bruma que uma obra destas precisa para ser eterna. Enfim! Enfim! Desfolho rosas, esparzo aromas, tilinto oiro sobre as horas belas que existo, e assim as enlaco!... Riram-se os meus amigos quando a čerta rapariguinha indecisa que eu nunca tive dei um colar de safiras e beijos... É que ela me apertaraos dedo s numa tarde de amor. E eu precisava guardar a luz dessa tarde, a sombra daqueles olhos mordorados, a frescura dos seus dedos — todo o aroma rutilante da hora que fugia... Gente sem alma! Gente sem alma! 190 j Tantas coisas da minha vida que ninguém compreende, tantas, säo ! apenas utensílios da minha arte... Assim as tristes cartas da dancarina I nua. i Ai, como eu me envaideco, como deiiro das minhas estátuas!, como i sou rico ao percorré-ks nas galerias infindáveis!... Porque eu tenho um J passado, sim, eu tenho o passado! '. Fixei a hora, guardei-a, posso tornar a vé-Ia. : Haverá triunfo mais alto? j ■1 j Ao lembrar-me do futuro, ás vezeš, para sossego do meu anseio, i vem-me um de sej o quimérico de o fixar também, de antemäo. Mas isso, i daramente, é impossível... E sofro muito. E o meu sofrimento tarde a j tarde se exacerba. I Amo-a tanto... tanto... I Quando ela me surgiu, a resvalar longínqua e fulva, eu tive a sensa-,i fäo de näo ser um habitant* da vida. Pois algum dia essa carne, essa j voz, essa luz — que eram, sim, realmente da vida pelo tablado nocturno 1 do grande teatro cosmopolita — saberia eu beijá-las, entendé-las, como j outros, vivos esses decerto?... \ Porém, com a saudade que depois me veio dela, a estranha sensacäo i esvaiu-se e constatei, ah!, que existíamos bem no mesmo mundo... ii ............................________________________ ; Era toda de mistério a encantadora. Ungiam-na ao andar sombras j aureoladas, transparentes ďalma, sombras que ela mesma, da sua I carne-luz, suscitava em miragem velada. E era oiro golfado a sua voz a I enclavinhar-se em luxúria, oiro esbraseado por um sol desconhecido, j loHgínquo e disperso... J Aromas capitosos a ilhas misteriosas pintavam-lhe a carne, I macerando-lha, crepusculizando-lha em ánsia esbatida — a temperar o j desejo talvez, ah! mas sem důvida contorcendo-a em requintes perver-j sos de esfinge saudosa a luar e morte... Toda ela enfim se esculpia de j cháma, e era oscilacäo, sonoridade e pásmo, estrebuchando a louca do j poema medonho, denso como uma bebedeira roxa após uma noite de i amor e estrangulamentos... 1A aureola que a envolvia fora agora mais seducäo, e a toda nua rede-moinhava sempře. Espasmo a espasmo, em insidia, os véus tinham so-* pobrado. As pernas vibravam, perniciosas, uma friagem húmida, es-I guia; o ventre frutificava. Só as pontas dos seios prosseguiam o seu 1 mistério... j Ebánicas, as trancas tinham-se-lhe desprendido; e era já só perver-I säo e loucura a grande viciosa, quando, ao arquear-se sobre a cisterna I alucinante, morta num éxtase — os próprios seios lhe golfaram nus, es-I pectrais de roxidäo, heráldicos de crime... 1 I 191 ... E quando por ultimo caíram sobre ela, a esmagá-la, os sons finais da partitúra, que os tambores fechavam sobre a fera — eu tive medo, ah!, s im, medo, que s e náo erguesse mais, consumado o poéma, morta do amor, morta do d esej o que em mim suscitara, ou — pelo menos — morta de amor de si mesma... Mas näo... Kesplandeceu tranquila, descomposta e banal, sempre linda, curvando-se do proscénio sob os aplausos infames... Mais tarde conheci-a. E o sonho continuou... H oj e vivo dela... e am-da näo a beijei... e tremo tanto de a beijar... tan to... A sua alma é como o seu corpo vibrando no poéma alucinado. A sua alma anda também nua e é toda oscilacäo, misticismo sonoro, perí ume arrepiante. Ai como eu a quero... como eu a quisera num espasmo sem fim... ,........................... E a maior agónia é que ela me quer também. Urna noite, fatalmente, os nossos corpos se häo-de embaracar... Mas depois... depois... Meus Deus, quando a tiver possuído em éxtases de cor e ánsias dľ harmónia — saudade! — vivi o mais dourado instante: o maior do pas-sado, o maior de Amanhä! Embalde... Poia como encerrá-lo, como pará-lo, esse instante divino, se ele é também orgulho?... Até hoje eu soube edificar as coisas belas que fremi. Tristes coisas... Mas amanhä? Amanhä... Maravilha! Sou todo medo, subtil quebranto, em face á obra genial que devo a!-tear — que altearei se for. Um poeta assombrado do seu génio, receoso de o näo envolver nos seus versos, difuso de cansaco, disparou-se um tiro esta aurora. E como ele, eu tenho a lembranca de morrer, de desertar perante a minha obra, cego dela... cego dela... Mas näo! É precise ter forca. Eu posso. liei-de vibrar, hei-de sangrar, hoi-flí sonhar — e por fim acharei a vitória de esculpir também o momento.ini gualável da posse. A posse! Possuir-lhe-ei a carne muita noite, fria e nua — mas nunca a terei tanto de quimera como a vez primeira que a beber... Ontem passeámos os dois, täo unidos... E ela pendurava-se-me num. 192 jenlevo, a oscilar, a flébil. Receei até que morresse de mim... E depois ,separámo-nos. Só ferindo-nos as bocas... • É que ela também me deseja... também třeme de mim... j A grande fera!... ,1 .................................................................................................................. Se eu pudesse arquitectar o futuro, estaria agora mais tranquilo. I Iria para a noite assombrosa, bem certo de a saber fixar, mesmo com ela já fixada. Assim, alem de todos, um pavor me alucina: se depois de '•• viver o Instante eu vir que ele é ainda mais áureo do que posso ultra-} passar?... Tudo perdido! Tudo perdido!... '■; Mas náo importa! Hei-de vivé-lo. Embora. Terei sido luz! A vitória! A vitória! .J Em frente de mim, no leito de esplendor, enrodilhava-se-me a grande' 4 cobra, votivamente oferecida. E foi só entao, em verdade, que eu pude Jdescer a altura do instante, medir a ascensáo infinita da minha obra ir-.J real. Pois como fixar tudo quanto me excedia... Seguindo-lhe o corpo nu, ;mbaralhava-me iludido: a sua beleza, de ilimitada, era um labirinto. Náo findava nunca, contorcia-se. E os meus olhos de esforco tinham ;medo dela num transviamento... Depois, em face do assombro, escapava-me a riqueza que me envol-■| via e eu precisava também reter: a Cor do ar, o seu perfume revolto, o •m timbre leonino... e as sedas, as peles, as rendas... as tacas de cris-'iX os candelabros d'oiro... as folhas de amaranto... os gumes dos pu-■ithais... Perdido, foi como se me lancasse ao oceano que me lancei sobre o •6M corpo. I E em verdade houve um marulhar de vagas... :1 A glória fora excedida! O instante que eu delirara näo era só o I maior, era mais alguma coisa: em face dele, todos os momentos que vi--;vera já se abatiam como espuma. Sim! Sim! Por terra, derrocadas, jariam todas as minhas horas! E sob as ruinas, esmagava-me eu sem nun-I ca mais me poder ressurgir — excepto se lograsse, á forca d'alma, fixar jo instante sublime que me ha via agitado: o Instante da minha vida, agora e para sempre, era irremediável... Senti abismar-se dentro de mim a derradeira amargura. Fui todo ^:Eas partidas. Mas revoltei-me, condensei-me em esforco... Quando ela I'idormeceu, surgira-me enfim a ideia genial. E venci-a! Venci-a!... Primeiro tive medo. Em face da maravilha todos tém medo. Mas depois fui audacioso... ■i i i L, B. 426 — 13 j 93 Ritualmente, bem lúcido, avancei sobre as rosas desfolhadas... Se ela o soubera havia de me abencoar... Numa ternura a descobri. Houve uma vertigem... Iriado, o seu corpo litúrgico platinava-se sombriamen-te pelo leito fantástico... Um arrepio de beleza se me eternizou... Aconcheguei-lhe as trancas e, de mansinho — näo a fosse desmoronar — cravei-lhe no peito um estilete áureo... Os cabelos sonorizaram-se-lhe, logo volvidos siléncio outonal... toda a carne ondeou n u m arqueamento de luz... E nem mäis uma vibraeäo... Trinquei-lhe as pontas dos seios mortos. Fugi... Glória! Glória! Tenho-a para sempre! Aü, como eu sofro... como eu sofro... Ninguém nunca sofreu o que eu sofro! Sou todo o horror de mim proprio, ternura inútil, confrangi-mento... Que importa, se, éxtase a éxtase, eu sei percorrer em triunfo, guiado pelo remorso do meu crime, tudo quanto na noite inigualável preei-ilru o meu crime?... Tinha a maravilha, e quebrei-a!... Mas, quebrando-a, esculpi-a eternamente em saudade. Assim '.• quv eu a tenho, assim é que eu a dobro! Se näo a despedacara, destruira-i sem remédio — tamanha a sua luz, tamanha a sua altura... E perdé-la fora o maior sacrilégio. Infame aquele que, tendo vivido täo admirével sonho, o deixasse esvair. Matei-a para näo a acordar dentro de mim. Há maravilha s que só devem ser sonhadas. E eu sonhar-te-ei sempre, meu amor!... Vitória! Vitória! Nunca mais esquecerei os teus beijos, pois logo os perdi; nunca mais olvidarei os teus seios, pois mal os conheci. Fundi a saudade universal na saudade do teu corpo — saudade que só eu edifiquei, pois fó eu o detive. Tu perdoas-me!, perdoas-me! Foi para te rezar que te dourei de morte. Ó estátua da hora!, ó minha cor, ó meu som, ó meu aróma — si-'irpu te hei-de sentir, e fremir, e divagar... Ves tu: Nem teve f im a n os sa vitória. Pois eu näo fixei apenas o instante luminoso. Fiz mais: desci da vida — hoje sou eu proprio essa aureola. Sou o Instante. Estilizei-me em tempo. Parei. Que delírios, o resto? RESSURREigÄO A grande sombra!, a grande sombra!... Llsboa — Julho de 1913. 194 A Vitoriano Braga