O MI LÁGRE Os cascos das mulas percutiam o lajedo do caminho ve-1ho. Fazia frio e, de vez em quando, sentia-se o estalar das počas geladas, com um estreloicar de vidros partidos que corria o dorso da noite como um arrepio. Fora o cabo dos trabalhos para arranjar as mulas. Nin-guém as queria emprestar e duas tinham sido alugadas por bom prego. Quanto aos trajos, tinha sido, afinal, o mais fácil. Bastara iludir a boa-fé da D. Otília, explorar a sua creiuja sincera, tocá-la na sua fibra mais sensível. Contra a pequena resisténcia que opusera, tinham eles apresentado razóes ina-tacáveis: — Foi urna promessa que fizemos, senhora fidalga. Uma pro-messa para remissáo dos nossos pecados. Se Vossa Senhoria näo nos ajuda, mais nos encaminha para as profundas dos infernos. A velha näo quisera ficar com esse peso na consciéncia e até fornecera a graxa com que tinham enfarruscado a cára de Baltasar. Chegara mesmo ao extreme de querer ver se iam bem compostos e a preceito, e eles viram-se forgados a ir ä Casa Grande para se exibirem antes de entrarem em ŕungóes. — Quando a fidalga souber para o que isto serviu, dá-lhe uma pataleta que vai direitinha para o céu — disse Baltasar. — Para o que ela anda cá a fazer... — comentou Bekhior. — Os sobrinhos que estäo ä espera da heranga há trinta anos é que nos deviam pagar alguma coisa — aerescentou cinicamente Baltasar. J5 domingos monteiro Contos do Natal — Cais que? Sao uns unhas-de-fome e ainda por cima ingratos... Se calhar ainda pagam para nos meterem na ca-deia... — E o que temos mais certo — resmungou Baltasar. — Cala-te, preto — disseram os outros dois em coro. — Se tinhas medo nao viesses. Nao fora de boa vontade que eles o tinham associado a empresa. Era um timido, ratoneiro de galinhas, que nao era capaz de ir de cams para um homem... Mas nao era facil encontrar quern se prestasse a deixar engraxar a cara. — E se ele da a dica? — objectou Belchior. — E entao para que serve isto? — disse o Chico dos Asso-bios, maltes de longo cadastre agora Gaspar, exibindo a na-valha. Quern livera a ideia fora o Cosme antiquario. Ha muito tempo que cobi^ava o tesouro da se — aque-le tesouro tao mal guardado, com os seus colares, os seus braceletes, os seus aneis. A custodia e o calice, do seculo xvi, todos de ouro e de pedras finas, eram entao para ele uma lentacao. O desejo de os possuir tornara-se uma mania e ele faria tudo para os obter, mesmo que tivesse de arris-car, para isso, a sua reputacao de homem honesto, tao injusta mas tao laboriosamente conseguida, e mesmo a cadeia. Durante anos estudara o assunto e uma vez que recebera a visita do Chico dos Assobios, que lhe servia de intermedia-rio nas suas traficancias de contrabandista, disparara-lhe a queima-rotipa: — Tu ja viste o tesouro da se?... — Eu, ja... — E sabes quanta vale? — Nao faco a menor ideia. — Pois para cima de cem mil contos. — Cem mil contos? Irra...! — Sim. Aquilo devia estar era dentro de um cofre e nao numa vitrina que nem chave tern. E ainda por cima, guardado a vista. — E acrescentara: — Se fosse na America, ja o tinham roubado. O Chico dos Assobios, pimpáo como era, teve um assomo de patriotismo: — Pois se na America o roubavam por que é que nós o näo havemos de fazer? Os Portugueses náo säo menos do que eles. — De acordo. Mas, apesar dc mal guardado, a coisa náo é táo fácil como isso. De dia náo é possível, com a sé sempre cheia de gente e de visitas. E de noite, com as portas todas fechadas, aquelas portas de castanho chapeadas de ferro — só a dinamite. Tem de se aproveitar uma altura em que a sé abra de noite, o que só acontece uma vez por ano: na véspera de Natal. E ainda é precise distrair o povo com qualquer coisa que lhe chame a atencäo. E para isso é que tu estás bom. O resto — o mais difícil e mais perigoso — é comigo. — E aerescentou: — Eu já pensci em tudo. Durante mais de uma hora, em voz baixa mas de forma convincente, expôs-lhe o seu piano. — Eu, chave da sacristia, tenho uma. Tirei-lhe o molde e arranjei-a. A chave da porta que dá para fora está sempre na fechadura e quem está dentro pode abri-la. O difícil é ter onde pôr as coisas, mas náo é impossível. Bašta que, quando che-gares, ates uma das mulas a argola que está junto da porta e que a mula traga uns alforjes grandes. E, depois de acabada a funcäo, tu vais por ela e pronto. Quanto a mim, ou saio por onde entrei, que era o mais limpo, ou saio para a rua e deixo a porta encostada. Isso depende das circunstäncias e, ao depois, se vera. — E os atafais para o entremés, onde os arranjo eu? — Näo precisas sair da lua terra. Tem-nos a fidalga da Casa Grande: a D. Otília. Eu até já Ihos quis comprar mas ela näo foi nisso. Que por dinheiro nenhum. E que na família dela bavia uma tradicáo: todos os anos, na véspera de Natal, os homens da família vinham ä cidade vestidos de Reis Ma-gos, trazer umas oferendas. Mas a tradicáo perdeu-se porque a família näo tem homens, ou melhor, lem os sobrinhos, que náo säo para fantochadas e só estáo ä espera que a velha morra para lhe comerem os bens... Outros tempos... — E eu, entáo? 16 2 17 DOMINCOS MONTEIRO__ CONTOS DO NATAL — Tu arranjas dois camaradas seguros e tres boas mulas. Depois pedes os trajos emprestados a fidalga — que ate ha-de gostar de ver reatada a tradigao — e apresentas-te no adro da se, com os companheiros vestidos de Reis Magos, rigorosa-mente no fim da Missa do Galo... Depois... — Depois? — Depois fazes umas partes e cantas umas loas, que tens jeito e garganta para isso... So preciso que os entretenhas ran quarto de hora. O resto e comigo. A coisa foi falada e refalada ate assentarem nos mais pequenos pormenores. — E quanto e que eu levo nisso? — Metade para voces e metade para mim. — Combinado. As luzes da cidade viam-se ao longe e projectavam um halo na atmosféra húmida e fria. Gašpar puxou da velha «cebola», levantando a túnica para poder chegar ao bolso das calcas. A operacáo era difícil mas ele tinha habilidades de carteirista. Com a mesma destreza, acendeu um fósforo. — Dez e meia — resmungou. — E daqui ä cidade ainda é mais de uma légua. E preciso apressar o passo. Temos de lá estar ä meia-noite čerta. Com a vara deu uma chicotada na mula e esta reagiu en-cabritando-se. — Raios a partám... Ainda é mais teimosa do que eu. Já vejo que näo dá mais. Mas se náo pararmos, temos tempo. Vamos... A geada brilhava nas bermas do caminho e cada vez fazia mais trio. E, de repente, comecou a soprar o vento. O eterno condenado as galés perpétuas do céu rebentara as suas ca-deias. — Só faltava mais esta — regougou Gaspar. Deu nova chicotada na mula, que obedeceu c partiu ä desfilada. — E para saberes como elas mordem... Desta vez tomaste juízo — vociferou. As outras estugaram o passo e seguiram-na com o mesmo andamento. — Assim, sim. As luzes da cidade eram cada vez mais próximas e cm menos de um abrir e fechar de olhos chegaram ä encruzilha-da, a dois quilómetros do burgo. A silhueta da catedral destacava-se já, nitidamentc, como uma mancha escura no aglomerado branco do casario. Era como uma sombra de permanéncia e de eternidade a domi-nar a vida fugaz dos homens e das coisas. Mas, de repente, as mulas estacaram. Com as orelhas espetadas, as patas dianteiras fincadas, o corpo retesado, nada as fazia mover, nem incitamentos, nem pancadas. — Com esta é que eu náo contava. Grandes estafermos! — gritou Gaspar. — Devcríamos ter trazido um pouco de aveia — murmu-rou Baltasar. — Cala-te, preto! O que nós devíamos ter trazido era um estadulho para lhes limpar o sebo. Redobraram os esforgos, mas inutilmente. As mulas con-tinuavam especadas, como se fossem de bronze. — Ora esta... Olharam em redor, sem sabercm o que fazer. A noitc era agora uma romá negra e aberta, com bagos de ouro. Uma cstrela-cadente riscou o céu, deixando um rastro luminoso. E, de súbito, imobilizou-se. E cada vez aumentava mais e brilhava mais. A luz incidia sobre uma choupana no alto do monte. — Quem mora ali? — inquiriu Belchior. — E Maria, a pastora — informou Baltasar. — Qual Maria? Qual pastora?—perguntou Gaspar. — Uma que náo diz coisa com coisa... Uma que é inocen-te — respondeu Baltasar. — Ah! 18 19 DOMINCOS MONTEIRO Contos do Natal As mulas, com a cabeca levantada, fitavam a estrela e, repentinamente, como se tivessem recebido uma ordem si-lenciosa, comeearam a subir em passo lento em direc^áo á casa. Gaspar retesou as rédeas e os outros fizeram o mesmo. A boča dos animais sangrava, mas náo obedcciam. Com len-tidáo, mas com seguranca, iam subindo o caminho, apesar dos esforcos desesperados dos cavaleiros. Já náo soprava vento e a noite tornava-se tépida e perfu-mada como um pomar de laranjeiras cm flor. — Que é isto? Que se passou?—inquiriu Gaspar. — Náo sei, mas alguma coisa se passou — disseram os outros dois ao mesmo tempo. — Alguma coisa se passou, sim — concordou Gaspar. Scntia-se outro, como se marchasse sobre nuvens, e a sua resisténcia desaparecera. Voltou-se para trás e disse simples-mente: — Vamos... Elas lá sabem para onde nos levam. — Há quanto tempo vimos nós a caminhar? — inquiriu Belchior. — Há muito... Há muito... —ripostou Gaspar. —Há tanto tempo que já nem sei quem sou... — Sim, há muito — concordou Baltasar. — Há muito. Des-de o comeco do mundo... Estavam quase chegados junto da casa da pastora. O bri-lho da estrela era cada vez maior e o caminho refulgia como a Via Láctea. A vinte metros da casa as mulas pararam e, como os camelos no deserto, dobraram os joelhos para os cavaleiros descerem. — Baltasar — disse de repente Belchior, depois de se apear.—Tu és mesmo preto. Preto retinto... Baltasar esfregou a cara e as máos com violéncia. Depois arregacou as mangas e levantou a túnica para observar o corpo. Teve um momento de perplexidade e concordou: — Pois sou... Pois sou. E sempře fui assim. A negridáo que havia dentro de mim passou para fora. Antes trazé-la á flor da pele que dentro da alma...—E acrescentou: — E tu, Belchior, és rei, és mesmo rei... E tu, Gaspar, também és rei... O que voces perderam, como eu, foi o segredo do caminho. Mas talvez hoje ele nos seja revelado. — Talvez... A memória da sua situacäo presente persistia, mas a ela sobrepunha-se a da sua verídica condicáo humana. — O tempo náo existe — murmurou Baltasar. — Só Deus existe, para trás e para diante... Só Deus existe. Vamos bus-car as oferendas... Despejaram os alforjes. As infusas estavam cheias de leite e de mel. Das cestas vinha um perfume de frutas sazonadas. Uma delas refulgia de pedras preciosas, mais numerosas e mais belas do que as do tesouro da sé. Os olhos de Gaspar acenderam-se de um brilho cúpido: — E se nós guardássemos esta?... — Náo, Gaspar — ordenou Baltasar. — Agora mando eu. Tudo o que trazemos é para oferecer... Só assim é que pode-mos encontrar o caminho de regresso. Vamos. Com as máos cheias, dirigiram-se para a casa. As portas estavam abertas de par em par e o fogo ardia na lareira. Sombras confusas agitavam-se e murmuravam no fundo da cabana. Uma ovelha balia. A pastora estava deitada no catre e gemia docemente. No seu corpo humilde. por graga divina, repetira-se o mi lágre da Natividade. No berco, iluminado pela estrela, o Menino agitava as máos, aquecido pelo bafo quente da vaquinha dos presépios. Dc joelhos, os trés reis depuseram as oferendas. Depois rezaram. E n esse momento souberam tudo, mas imediatamente o esqueceram. Acordaram, já o sol despontava no horizonte, inteiricados de frio. A porta da cabana estava fechada como se lá náo vivesse ninguém. A poucos metros, as mulas pastavam pacifica-mente as ervas cobertas de geada. O primeiro a falar foi Gaspar: — E esta? Tive um sonho táo estranho... Sonhei que era mesmo isto, com que estou vestido. — E eu também — disse Belchior. — E eu também — repetiu Baltasar. 20 21 domingos momteiro Gašpar olhou para ele e soltou uma gargalhada: — Estás numa linda figura. No meio da agitacäo do sono, Ballasar sujara com a gra-xa das mäos o trajo com que estava vestido. — E verdade — concordou Baltasar. — Mas que me importa estar sujo por fora se estou limpo por dentro. — Tens razáo — concordou Belchior. — Tens razáo. Eu ti-nha um penedo por dentro e agora náo o sinto. — E eu uma labareda — disse Gašpar. — E agora tenho uma fonte a correr dentro de mim. Dirigiu-se para a mula, montou-a e soltou um assobio que se repercutiu do colina em colina. — Vamos — acrescentou. — Vamos... E com o coracáo liberto, comecaram a descer o caminho, de regresso a casa... UM RECADO PARA O CÉU Quando por toda a serra, até ao fundo do vale, se espa-lhou a noticia de que a velha Gertrudes do Soutelo estava prestes a transpor os umbrais que a separavam, ou da glória divina ou das penas eternas, um alvorogo scm limites percor-reu as aldeias, desde as mais próximas äs mais remotas, pon-do nas almas perturbadas um frémito desconhecido, que par-ticipava, ao mesmo tempo, de tristeza e de alegria, mas em que a nota dominante era a de uma esperanca inconfessável durante longo tempo alimentada. Nunca a morte de alguém fora aguardada com tanta an-siedade, nem nunca, mesmo os que esperam do passamento de uma tia velha, com fartos bens, melhoria de vida e reali-zagao de desejos ocultos, ou os que almejam, com a colabo-racäo do destino, o cumprimento de uma sonhada vinganca, tinham dcsejado o simples tränsito de uma alma deste mundo para o outro com táo despropositada satisfagäo. Isto o sabia a velha Gertrudes e, ao contrário do que possa imaginar-se, náo vira nisso nem ódio, nem mesmo desamor, mas antes uma espécie de homenagem, grata ao seu coracäo enfraquecido, prestada por aqueles sobre quern a sua benéfi-ca influencia se exercera durante tantos anos. Era, também, uma prova de confianca que a enchia de legitime orgulho, um orgulho a que náo faltava uma pontinha de remorso pela duvida que, ä ultima hora, se infiltrara na sua consciéncia de náo ser capaz (nem digna, talvez) de cumprir o que sempre 22 23