fo gAgua litotes Ida. Rua Sylvio Rebelo, n.° 15 1000-282 Lisboa Telef.: 21 8474450 Fax: 21 8470775 Internet: wwwjelogiodagua.pt e-mail: relogiodagua@relogiodagua.pt Titulo: Fascinacäo (de Helia Correia) seguido de A Dama Pe-de-Cabra (de Alexandre Herculano) Revisäo tecnica: Sofia Graca Moura Capa: Fernando Mateus © Relögio D'Ägua Editores, Outubro de 2004 Composicäo e paginacäo: Relögio D'Ägua Editores Impressäo: Rolo & Filhos, Artes Gräficas, Lda. Depösito Legal n.°: 214753/04 Fascinagäo Helia Correia seguido de A Dama Pe-de-Cabi Alexandre Herculano Ficgäo Portuguesa índice Fascinagäo 9 A Dama Pé-de-Cabra 23 ísq nc?ředni knihovna MU Z - ' Solls-lo FASCINACÄO Luas medonhas. Dona Sol, que amava mais o irmäo do que o marido, nem queria ouvir as vozes que se levantavam. Deveria dormir, a populaca, de via descansar, a criadagem. Tudo o que era pertenca do Senhor, almas cristas e animals diurnos, se retirava ao retirar-se a claridade. Tudo trata-va de fechar os olhos, deixar caminho äs criacöes da noite, que iam bater nas täbuas dos portais com a ondu-lacäo de um mar de breu. Mas, na excepcäo daquele entardecer, em que enormes luzeiros esvoacavam sobre os montes impuros do sudoeste, um terror, uma especie de alegria que levava a uivar e a erguer as saias, mudava a discricäo dos habi-tantes. Bern tentaram dizer os mais prudentes que era festa dos mouros, os vencidos, os expulsos do burgo, os que veriam cair de podres suas pröprias mäos nos trabalhos 1 de enxada contra a neve. Uma festa de mouros acordaria nos aldeôes de Deus um coracäo saudoso de assassínios colectivos. O tinido das armas nos celeiros, mais que o dos sinos, encheria os ares. Os homens soltariam das gargantas roncos de alívio, mais voluptuosos do que os roncos de amor, ao exibi-las, limpas, e amolgadas de ou-tras guerras. E atirar-se-iam para a encosta, antecipada-mente perdoados, sob a salivacäo dos frades bentos que tropecavam para os acompanhar. As luas elevavam-se no céu, vermelhas, primeiro duas, depois quatro, semelhantes a olhos de alcateia. E certo que a mourama o venerava, esse crescente que tra-zia nas bandeiras, cornos de besta, lingua de serpente. Mas näo tinha maneira de pregar tantos astros no céu e, em consciéncia, ninguém os acusava de tal feito. Assim, a energia da matanga circulava entre as casas, sem ob-jecto. O medo de que o mundo se acabasse, de que as campas se abrissem revelando as ultimas misérias, po-dridôes esperancadas em Deus que as limparia, tomava os corpos como um vinho novo. Dona Sol levantou um pouco a saia, mas a luz que caía do tocheiro näo tinha forca para a esclarecer. Curvou-se até poder tocar os pés que, apesar do inverno, estavam nus. Afagou os dez dedos, um a um, como se já tivesse envelhecido e o enregelamento lhe doesse. Sus-pirou, encostando-se ä parede, cuja rugosidade, täo real, täo dura para a carne, a fez tremer. Näo era, pois, ainda, a sua mäe, a Dama Pé-de-Cabra, quem mandava, com essas luas, a informacäo de que Sol também estava transformada em livre criatura dos infernos. Evocava essa mäe, bela e cantante, que enfeiticara D. Diogo Lopes e o levara a pedi-la em casamento, ao que ela logo ali tinha acedido, na condicäo de ele nunca se benzer. Ela, esquecida de seus pés fendidos, ele, esquecido do sinal da Cruz, viveram anos de harmónia täo capaz que lhes nasceram filhos, como nascem aos matrimónios para que Deus olhou. Inigo e Sol, tais éram os seus nomes, näo se ocultavam nas cozinhas do solar e mostravam o rosto aos visitantes. Tinham da mäe aquela espécie de fulgor que torna os ruivos alvo de fascínio e, ao mesmo tempo, de desconfianga. Das suas cores que, no entanto, pertenciam a um tipo humano que existia em toda a parte, é que emanava, numa refracgäo, o sinal de que havia dentro em casa uma falta, a desgraga de infiéis. Comen-tavam os que iam e os que vinham, sentados junto äs fontes do caminho, benzendo-se, eles, e nunca suspei-tando que D. Diogo Lopes se näo benzia. De certo modo, a história do desastre, quando correu, aliviou as almas, dando um sentido äquilo que os intri-gava. Nos casebres, nos adros das ermidas, junto das vendedeiras de aguardente que chegavam bem perto da cidade, as vozes conquistavam os ouvidos da mais difí-cil das assembleias, relatando como a mulher do grande cagador se tinha transformado num demónio. Em hora 12 13 má havia o cavaleiro, enfurecido mais do que de via pela morte do cäo seu favorito äs fauces da cadela que era grande favorita da esposa, e até entäo vivera como bicho mole, em hora má, diziam, qualquer coisa de imprudente fizera que mudara täo gentil dama em negra, e cabeluda, e esticada figura que subia, e ia deitando as garras para os filhos. Que fora aquilo? Contavam uns criados que o ouvi-ram jurar, contavam outros que o viram persignar-se, um exagero frente a um caso entre animais sem culpa, ainda que täo potentes carniceiros. Era como se a mäo se des-prendesse e se pusesse a desenhar a cruz num furor proprio e quase independente, aproveitando a distraccäo do dono. Uivou sua mulher o mais horrendo dos uivos que um cristäo testemunhou. E, como se puxada para o alto, di-recgäo que levou muitos ouvintes a encolherem ombros, duvidosos, pois se sabia que os demónios näo se ele-varn, subiu a dama, agora enegrecida, abrindo-se o te-lhado ao seu tamanho. Mas ai: ou fosse o coracäo de mäe, que em plena treva anseia pelas crias, ou fosse ordern do amo Belzebu, que cobicava os corpos inocentes para qualquer servico inconfessável, lancou ela para os filhos suas mäos que nada tinham já de feminil, antes pareciam pincas de tarantula. O aterrado pai deitou-se ao filho com toda a robustez do seu abraco e assim o reteve contra o chäo. Näo irei eu, discreta narradora, comentar esta escolha do fidalgo, feita em arrancos de aflicäo ta-manha. Talvez se achasse proximo de Inigo e, cagador experiente com era, medisse as boas probabilidades. G)s relatores do caso näo descrevem convenientemente a po-sigäo das quatro personagens envolvidas. Do mais fiá-vel, que a passou ä escrita, temos informacäo de que já estava Dona Sol afastada do soalho quando Diogo Lopes reagiu e impediu o rapto do filho. Porém, quem sabe se escolhendo perder um, sendo ágil a escolher nas mon-tarias, näo lhe pesou na decisäo a diferenca entre manter na casa o seu varäo e o somenos proveito da donzela. O facto é que ficou Inigo Guerra e vemos como ascende Dona Sol, täo estupefacta, täo paralisada que a saia lhe rodava, feita péndulo, como ä gente acabada de enforcar. Nada dizia, nem um choro ouviram. O seu cabelo de crianca, solto, brilhava rubramente contra a mäe. E o seu olhar caia, desolado, no olhar desolado do ir-mäo. De Inigo Guerra muita história é conhecida. Tudo se disse sobre a ferozia que toda a vida o empurrou para as matas, rosnando mais que os próprios bichos rosnadores. Achava, no cravar da sua faca, no despejar do sangue dos pescocos, fosse de gamos ou de cacadores furtivos, outro prazer que näo achou seu pai. Porque seu pai ama-va a Dama Pé-de-Cabra, e todos sabem que näo há dišputa maior do que a do leito com a montada. Mas a Inigo, em sua inteira vida, jamais o viram a amar mulher. Era homem soturno e mesmo aquela claridade de rui-vo no seu corpo dissuadia as aproximacôes como se de 14 15 uma sombra se tratasse. Episödios de aberta fantasia, co-mo te-lo ajudado sua mäe a libertär o pai das prisöes mouras, circulam, sem emenda, a seu respeito. O que ate hoje permanece omisso, ainda que o sou-besse eu, näo vos diria. E que vida levava Dona Sol, arrancada a seus cäes e a seus brinquedos, roubada ä companhia do irmäo que tu-do para ela tinha sido? Pendurada nas garras dessa mäe, cortou os ares tres dias e tres noites, vendo, do alto, os vales e o casario como jamais algum mortal vera, excep-to se o demo inventar obra que o consiga. De que modo cresceu a rapariga, näo fica ao nosso al-cance imaginär. Se foi na terra negra dos infernos, se na cinza das zonas espectrais, ou num eden pagäo que o Criador se tivesse esquecido de esmagar, nunca ela a cristäo o revelou. Decerto se passou entre mulheres a sua aprendizagem, pois sabia pentear-se e bordar na per-feicäo. Onde quer que vivesse, definhava. E a pobre mäe, es-timada entre os danados pelos grandes poderes de que dispunha, nada podia para estancar as lägrimas que bri-Ihavam nos olhos da menina. Nem festas, nem bailedos, nem mil söis armando uma grinalda em plena noite; nem as fadas do bosque ou o geral da caprina irmandade em alvoroco conseguiam levar-lhe o riso ä face. Pois, apesar de ruiva, Dona Sol conhecia o tormento dos mo-renos, da gente das Hespanhas, e amava. Amava Inigo, seu irmäo de sangue. No turbilhäo de danca e gargalhada em que consistiriam os seus dias, a julgar pelos sabates que vemos em livros no entanto mais tardios, erguia ela, como se ergue um espelho, a imagem paráda do rapaz preso ao pai, cujo impulso os derrubara. Ele olhava-a, entre os restos de comida e os cadáveres dos cäes, e ela subia. E, a ligá-los, esse fio do olhar, no seu poder elástico, durando, alcancando distän-cias sem medida. Crescia Sol, sofrendo as leis do corpo humano, pois nada nele se reconhecia da infernal composicäo da mäe. Os seus pezinhos róseos, com dez dedos, chamavam de tal modo a atencäo que lhe inspiravam uma espécie de pudor. Estava entre estranhos. Curiosamente, o que lhe dava a forca de sentir-se uma cristä roubada ä sua igreja, refiro-me ä saudade do irmäo, era a única coisa que a tornava um tanto diabólica também, pelo bruto apetite do incesto. Nisto já se parecia com a mäe que, para go-zar da carne de D. Diogo, se comportou, em todo o tempo de casada, como a mais baptizada das esposas. Para lá das leis de um mundo e de outro mundo, ficava ainda o seu amor materno. Sentindo Sol suspensa no vazio, ela sofria um sofri-mento de aldeä que olha de lado, e suspirando, para a fi-1ha a quem algum namoramento ensimesmou. Sendo, porém, a Dama Pé-de-Cabra, um pouco mais podia 16 17 aquela mae. E avistou, no fim dos olhos da donzela, o rosto aflito de seu proprio filho, o que, ha que confessa--lo, a envaideceu. Pois nao so se tratava de um amor em tudo adverso as convencoes da cristandade como se es-tava ela amando a ela mesma, nas duas formacoes de si pandas. E resolveu que os dois se encontrariam para que os seus ventres desfrutassem do encontro. Devolveria Sol ao dia e a terra. — Vai, entao — disse. E atirou-a para o castelo onde fora feliz com D. Diogo e onde agora mandava Inigo, o filho. Porem, um outro braco, o do Senhor, desviava o ca-minho a rapariga. Ela aparecia vinte leguas mais a sul, onde andavam os ultimos cristaos no seu confronto com o inimigo. Eram lugares dourados, pobres de agua, em que mais nao havia que coelhos e burros bravos para se cacar. Sobre uma ribanceira de arenito, junto de defi-nhados aloendros, e que pousava Dona Sol os pes. E, tendo soerguido a sua lira, cantava a mais dorida das cancoes. Bern tinha ela sentido o soco irado que lhe impedira a direccao de casa e a arremessara para ali. A solidao cercava-a como um vidro. Chamava pela mae e ela vi-nha, mais negra, se possivel, de furor. Duas, tres vezes empurrou a filha com o seu bafo, que era o bafo de um dragao, para o leito de D. Inigo Guerra. Duas, tres vezes Deus se intrometeu e com um bofetao a afastou. Dona Sol encontrava-se de novo na paisagem macia e ensonada onde chispava äs vezes uma lamina ou o que a ilusäo por tal tomava. Sua sina obrigava a que cantasse. Mouros e cristäos ouviam-na cantar e uns e outros tapa-vam os ouvidos, temerosos dos cantos de täo amävel canto. Passou ali um dia Afonso Pena, lidador fatigado de li-dar. la um pouco afastado dos criados, sonhador, contra o que era seu costume. O pd colado ao sangue e ao suor dava-lhe a aparencia de um leproso. Vinha ele de matar dez inocentes, que fora o que encontrara no caminho. Eram criancas e mulheres que lhe tentavam fugir, gritan-do, num perigoso alerta. Se bem que näo passassem de infieis com cuja execucäo Deus exultava, tinham, nesse momento de morrer, olhos täo tristes que ele se como-veu e sentiu o seu braco fraquejar. Depois matara obe-dientemente. Por momentos pensou que essa tristeza, täo densa e vergonhosa, de matar, era o que lhe soava nos ouvidos como uma bela voz de cantadeira. Depois olhou para ci-ma e avistou-a, täo branca e ruiva que isso deveria ter servido de aviso, e näo serviu. Como D. Diogo se casara com a Dama, assim Afonso se casou com Dona Sol. Mas ela näo lhe impunha condi-cöes. Faziam limpa vida de cristäos, curvando as costas ä 18 19 passagem dos priores, deitando, em peniténcia, todo o corpo sobre as lajes dos tumulos das freiras. Dona Sol ti-nha apenas um defeito que era gostar de cavalgar sozinha, deixando para trás os escudeiros, incapazes de tanta velo-cidade. Viam-na a afastar-se e duvidavam dos próprios olhos, já que a castelä, na dištancia, parecia esvoacar, co-mo se levantada pelo ar quente. Ela voltava äs vezes mui-to tarde, suja do lodo das paragens de água, e a lealdade deles enraivecia-a. «Como regressaríamos sem vós?», perguntavam, de lágrimas nos olhos. Éram ou muito no-vos ou já velhos, näo conheciam grandes atitudes. Leva-vam a senhora a D. Afonso e ele sacudia-os logo para as cozinhas. Ela tinha um deitar-se turbulento e o marido deixava-a com as aias. la sofrer de amor para o seu quarto. Nunca veio a saber que Dona Sol procurava o irmäo e näo o achava, porque ela näo falava do assunto. Tinha a boca cozida pela luxuria e nada de fraterno a conduzia. Inigo Guerra näo vivia longe e era famoso entre mou-rama e cristandade. Revelava um perfil aterrador a todo o que com ele se cruzasse. Cacava as bestas e os infiéis com o mesmo silencio comprazido, e até mesmo os padres censuravam um servico de Deus täo solitário. Po-rém, näo dava escändalo e por isso näo servia para terna de conversa. Nem despertava curiosidade, apesar de vi-ver semioculto e entregue a expedicôes muito intrigantes. Näo se pode afirmar que o receavam, já que o receio é um motor da lingua e a seu respeito nada se dizia. Dona Sol demorava-se entre os servos, mas fala algu-ma lhe levava informacöes. E ela näo se atrevia a per-guntar, temendo que a pergunta revelasse a quantidade de pecado que continha. Ninguém lhe conhecia a ela irmäo, nem pais, nem bens, nem recomendacôes. Disse-se preša pelos mouros desde crianca e escapada, sozinha, no momento em que grande matanca acontecera e as mulheres tinham descui-dado a guarda. Era caso vulgar. E D. Afonso dispensou dote e alianca de famílias, pensando que levava nessa ruiva todo o ouro do mundo para o seu leito. Deus impedia o encontro dos irmäos que, a suceder, os amantizaria. Estavam äs vezes próximos, täo próximos nas suas correrias pelos bosques que os seus cavalos se empina-vam e riscavam com as patas da frente no vazio. E digo bem: vazio. Pois o Senhor mandava a sua legiäo dos an-jos rarefazer os ares com as suas asas, tornando o sítio terra de ninguém. As vezes, a mais grossa escuridäo caía entre eles e, no entanto, era meio-dia. Muito ä dištancia, a Dama Pé-de-Cabra esticava os negros beicos e uivava. Porém, näo conseguia competir. — Só te acharás junta com ele, filha — disse ela a Sol durante um dos encontros que tinham, altas horas, nos terracos —, se te mudares em Dama Pé-de-Cabra. O que 20 21 nós, as danadas, praticamos, näo é nada da conta daque-le Outro. — E que esperais para me mudar, mäezinha? — per-guntou Sol. Olhava os pés descalcos cujas dez unhas re-brilhavam ao luar. A mäe usava sempre uns escarpins com um ligeiro salto cor de vinho. Tomava muito belas aparéncias para as suas conversas com a filha. Essa mu-lher com olhos de safira e com pele de alabastra é que urna vez prendera a alma de Diogo Lopes. — Säo precisos empenhos que nem sonhas — respon-deu ela, e logo se sumiu. Éram tempos de veräo e as fei-ticeiras folgavam sem rebuco pelos céus, com os seus pé fendidos voltejando, pontapeando as luas amarelas. Do-na Sol regressou ä sua cämara, onde as aias dormiam em tapetes. Elas, espreitando, viam-na tremer, ajoelhada, como se um perigo lhe ameacasse a alma. D. Afonso já a temia entäo de tal maneira que näo a procurava. Sem que nada de facto acontecesse, os via-jantes passavam ä dištancia, evitando as paragens do castelo. Urna mulher cantava nas muralhas. Diziam que ela olhava para os pés como se já tivesse endoidecido. A DAMA PÉ-DE-CABRA Rimance de Um Jogral (Século XI) 22 TROVA PRIMEIRA 1 Vós os que näo credes em bruxas, nem em almas pe-nadas, nem nas tropelias de Satanáš, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia. E näo me digam no fim: «Näo pode ser.» Pois eu sei cá inventár cousas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho, quase täo velho como o nosso Portugal. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus canta-res. É urna tradicäo veneranda; e quem descré das tradi-côes lá irá para onde o pague. Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E nao sei se eu estarei de animo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou. Silencio profundissimo; porque vou principiar. 2 D. Diogo Lopes era um infatigavel monteiro: neves da serra no Inverno, sois dos estevais no Verao, noites e madrugadas, disso se ria ele. Pela manha cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco-montes, que, batido pelos cacadores, devia sair naquela assomada. Eis senao quando comeca a ouvir cantar ao longe: era um Undo, Undo cantar. Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quern cantava. O porco fica desta vez livre e quite, porque D. Diogo Lopes nao corre, voa para o penhasco. — Quern sois vos, senhora tao gentil; quern sois, que logo me cativastes? — Sou de tao alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia. — Se ja sabeis quem eu seja, ofereco-vos a minha mao, e com ela as minhas terras e vassalos. — Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas sao para seguires tuas montarias; para o desporto e fol- gancas de bom cavaleiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos säo eles para te bate-rem a caca. — Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu ofere-cer digno de vós e de mim; que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado? — Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras cousa é de pouca valia; mas, apesar disso, näo creio que mo concedas; porque é um legado de tua mäe, a rica-dona de Biscaia. — E se eu te amasse mais que a minha mäe, porque näo te cederia qualquer dos seus muitos legados? — Entäo, se queres ver-me sempre ao pé de ti, näo ju-res que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra. — A la fé de cavaleiro, näo darei uma; darei milhen-tas palavras. — Pois sabe que para eu ser tua é preciso esquece-res-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recor-dava. — De qué, de qué, donzela? — acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes. — De nunca dar tréguas ä mouris-ma, nem perdoar aos cäes de Mafamede? Sou bom cris-täo. Guai de ti e de mim, se és dessa raca danada! — Näo é isso, dom cavaleiro — interrompeu a donzela a rir. — O de que eu quero que te esquecas é do sinal da Cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te. 26 27 — Isso agora é outra cousa — replicou D. Diogo, que nos folgares e devassidoes perdera o caminho do Céu. E pos-se um pouco a cismar. E, cismando, dizia consigo: «De que servem benzedu-ras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Sanťlago. Ela por ela. Um presente ao apóstolo e du-zentas cabecas de caes de Mafamede valem bem um grosso pecado.» E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ter-nura, exclamou: — Seja assim: está dito. Vá, com seiscentos diabos. E, levando a bela dama nos bracos, cavalgou na mula em que viera montado. Só quando, á noite, no seu castelo, pode considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra. 3 Dirá agora alguém: «Era, por certo, o demónio que entrou em casa de D. Diogo Lopes. O que lá náo iria!» Pois sabei que náo ia nada. Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e uniao. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai. Um dia de tarde, D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regál ar de ver a excelente preia que havia preado. Seu filho assentou-se ao pé dele: ao pé da máe Dona Sol; e comecaram alegremente seu jantar. — Boa montaria, D. Diogo — dizia sua mulher. — Foi uma boa e limpa cacada. — Pelas tripas de Judas! — respondeu o baráo. — Que há bem cinco anos náo colho urso ou porco-montés que este valha! Depois, enchendo de vinno o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe á saúde de todos os ricos-homens fragueiros e monteadores. E a comer e a beber důrou até á noite o jantar. 4 Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um aláo a quem muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e, até, com os servos de casa. A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais náo havia di-zer, e dela náo menos prezada. O aláo estava gravemente assentado no cháo defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olnos semicerrados, como quem dormitava. A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e in-quieta, pulando como um diabrete: o pělo liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado. O baráo, depois da saúde urbi et orbi feita aos montei-ros, esgotava um quírie comprido de saúdes particulares, e a cada nome uma tága. 28 29 Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senäo dormir, beber, comer e cacar. E o aläo cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava. O senhor de Biscaia pegou entäo de um pedaco de os-so com sua carne e medula e, atirando-o ao aläo, gritou--lhe: — Silvano, toma lä tu, que es fragueiro: leve o diabo a podenga, que näo sabe senäo correr e retoucar. O canzarräo abriu os olhos, rosnou, pös a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado. Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio mor-to: a podenga, de um pulo, lhe saltara ä garganta, e o aläo agonizava. — Pelas barbas de D. From, meu bisavö! — exclamou D. Diogo, pondo-se em pe, tremulo de cölera e de vinho. — A perra maldita matou-me o melhor aläo da matilha; mas juro que hei-de escorchä-la. E, virando com o pe o cäo moribunde mirava as lar-gas feridas do nobre an i mal, que expirava. -- A la fe que nunca tal vi! Virgem bendita. Aqui an-da cousa de Beizebu. — E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se. — Ui! — gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O baräo olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos ericados. E ia-se alevantando. alevantando ao ar, com a pobre Dona Sol sobracada debaixo do braco esquerdo; o direi-to estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia. E aquele braco crescia, alongando-se para o mesqui-nho, que, de medo, nao ousava bulir nem falar. E a mao da dama era preta e luzidia, como o pelo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras. — Jesus, santo nome de Deus! — bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumacas do vinho. E, travan-do de seu filho com a esquerda, fez no ar com a direita, uma e outra vez, o sinal da Cruz. E sua mulher deu um grande gemido e largou o braco de Inigo Guerra, que já tinha seguro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhi-nha que muito chorava. Desde esse dia nao houve saber mais nem da máe nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguém no castelo lhe tornou a por a vista em cima. D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborrido, porque já nao se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir á caca dos cerdos, ursos e zevras, sair á caca de mouros. Mandou, pois, alevantar o pendao, desenferrujar e po-lir a caldeira, e provař seus arneses. Entregou a Inigo Guerra. que já era mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com lustrosa mesnada de homens 30 31 de armas para a hoste de el-rei Ramiro, que ia em fossa-do contra a mourisma de Espanha. Por muito tempo nao houve dele, em Biscaia, nem novas nem mensageiros. TROVA SEGUNDA 1 Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava ä mesa, mas näo podia cear, que grandes desmaios I he vinham ao co-racäo. Urn pajem muito mimoso e pri vado, que, em pé diante dele, esperava seu mandar, disse entäo para D. Inigo: — Senhor, porque näo comeis? — Que hei-de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo está cativo de mouros, segundo rezam as cartas que ora dele säo vindas? — Mas seu resgate näo é a vossa mofina: dez mil peöes e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras de mouros: seräo os cativos resgate de vosso pai. — O perro de el-rei de Leäo fez sua paz com os cäes de Toledo e säo eles que těm preado meu pai. Os condes e potestades do rei tredo e vil näo deixariam passar a boa hoste de Biscaia. 32 — Quereis vós, senhor, um conselho, e näo vos custa-rá nem mealha? — Dize, dize lá, Brearte. — Porque näo ides ä serra procurar vossa mäe? Segundo ouco contar aos velhos, ela é grande fada. — Que dizes tu, Brearte? Sabes quem é minha mäe e que casta é de fada? — Grandes histórias tenho ouvido do que se passou čerta noite neste castelo: éreis vós pequenino, e eu ainda näo era nado. Os porqués destas histórias, isso Deus é que os sabe. — Pois dir-tos-ei eu agora. Chega-te para cá, Brearte. O pajem olhou de roda de si, quase sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obediéncia e, ainda mais, certo arrepio de medo que o faziam chegar. — Ves tu, Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha mäe fugiu. Como e porque, aposto que já to häo contado? — Senhor, sim! Levou vossa irmä consigo... — Responder só ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te. O pajem pös os olhos no chäo, de vergonha; que era humildoso e de boa raca. 2 E o cavaleiro comecou o seu narrar: — Desde aquele dia maldito, meu pai pös-se a Cismar: e cismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os 33 BPH»» monteiros velhos se, porventura, tinham lembranca de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um näo acabar de histó-rias de bruxas e de almas penadas. «Havia muitos anos que meu senhor pai se näo con-fessava; alguns havia, também, que estava viúvo sem ter enviuvado. «Certo domingo pela manhä, nasceu alegre o dia, co-mo se fora de Páscoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e tri ste, como costumava. «Os sinos do mosteiro, lá em baixo no vale, tangiam täo lindamente que era um céu-aberto. Ele pôs-se a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar. «— Irei ter com o abade — disse ele lá consigo. — Quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda é tentacäo de Satanáš? «0 abade era um velhinho, santo, santo, que näo o havia mais. «Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer mea culpa, contou-lhe ponto por ponto a história do seu noivado. «— Ui! filho — bradou o frade —, fizeste maridanca com uma alma penada! «— Alma penada, näo sei — tornou D. Diogo —; mas era cousa do diabo. «— Era alma em pena: digo-to eu, filho — replicou o abade. — Sei a história dessa mulher das serras. Está es-crita há mais de cem anos na última folha de um santoral godo do nosso mosteiro. Desmaios que te vém ao cora- qäo pouco me espantam. Mais que änsias e desmaios costumam roer lá por dentro os pobres excomungados. «— Entäo, estou eu excomungado? «— Dos pés até ä cabeca; por dentro e por fora; que näo há que dizer mais nada. «E meu pai, a primeira vez na sua vida, choráva pelas barbas abaixo. «0 bom do abade amimou-o, como a uma crianga; consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois pôs-se a contar a história da dama das penhas, que é minha mäe... Deus me salve! «E deu-lhe por peniténcia ir guerrear os perros sarra-cenos por tantos anos quantos vivera em pecado, matan-do tantos deles quantos dias nesses anos tinham corrido. Na conta näo entravam as sextas-feiras, dia da Paixäo de Cristo, em que seria irreverencia trosquiar a vil ralé de agarenos, cousa neste mundo mui indecente e escusada. «Ora a história da formosa dama das serras, de verbo ad verbum, como estava na folha branca do santoral, rezavá assim, segundo lembrancas do abade: 3 «No tempo dos reis godos — bom tempo era esse! — havia em Biscaia um conde, senhor de um castelo posto em montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebra-das de larguíssimo soveral. No soveral havia todo o gé-nero de caca, e Argimiro o Negro (assim se chamava o 34 35 rico-homem) gostava, como todos os nobres baroes de Espanha, principalmente de trés cousas boas segundo a carnalidade: da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que tudo isso, gostava de montear. «Dama, possuía-a formosa, que era a linda condessa; vinho, náo havia melhor adega que a sua; caca, era cou-sa que na selva nao faltava. «Seu pai, que fora cacador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe: «— Hás-me de jurar uma cousa que nao te custará nada. <