OS TRÉS REINOS Era urna vez um rei — que, naturalmente, governava um rei-no: o reino do rei. Além disso, o rei tinha dois filhos gémeos. A müe-rainha morrera para os dar ä luz. Importa saber que esse era o reino do rei, e que os dois filhos do rei cram gémeos. Tam-bém desde já convém acrescentar que o rei tinha ainda um filho adoptive, ou coisa que o valha. Igualmente morrera a mäe deste, já viúva, deixando fama de um pouco ligeira de costumes (näo de mais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesäos favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse no palácio, brincando familiarmente com os principes, e receben-do educagäo quase igual ä sua. Toda a gerne, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas, associando vários factos, muito ä boca pequena murmuravam os maledicentes que näo só era bonito como compreensivel, natural... Adiante se esclarecerá este caso. Evidente se torna que, dos dois principes gémeos, um havia de ser con-siderado mais velho, — coisa que pertencia aos fisicos determinar — ou, como quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono, da coroa, do ceptro, do título de Majesiade. O tempo foi passando, e os dois irrnáos crescendo. Vieram os melhores sábios indígenas, e até estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o filho adoptivo, que, como é natural, também ia crescendo. 317 HÁ MAIS MUNDOS Ao herdeiro do trono se dispensavam cuidados especiais, porque reinar näo e coisa fäcil; nem de fäcil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem principe revelava aptidöes de excepgäo. Todos os Mestres contavam ao rel a sua paixäo pelos livros e a sofreguidäo da sua curiosidade. Mesmo nas horas de , recreio o principe se recreava folheando os cartapäcios de perga- : minho; e a sua cabeca loira dobrava sobrc os alfarräbios — Oo amorosamente como sobre um seio. Quando tal näo sucedia, caia ■■ o principe numa especie de alheamento, ou parecia merguihar em abstraccoes, meditacöes, cogitacöes talvez näo muito pröprius 1 dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas näo: O Mestre de esgrima, o de equitagäo e o de danca eram mais reservados nos seus louvores. [ Por esse tempo, o velho rei decidiu firmar um tratado de ; amizade com o rei do reino vizinho. Longos anos se haviain guerreado. Agora, estavam ambos velhos. A proximidade da se-pultura restringe as ambicöes e faz embotar os impulsos belicos. Nesse tratado ficou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria com o säbio principe. Ora u princesa noiva era feia, triste, cega de um olho, e ate ja falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem principe — assim sacrificado a ra-zöes de Estado. O proprio pai algoz a lamentava. Por lim, todos sorriram maliciosamente: Na corte da noiva feia, triste, cega de um olho e mistica, havia donzelas c donas muito belas, de que falavam com entusiasmo os embaixadores. Hörnern experimentado, El-Rei sorriu tambem e deixou de lastimar o filho. So o jovem principe parecia indiferenic ao que se passava: Era como se nada daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabeca loira pendia sobre os alfarräbios — täo amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarräbios, era para olhar näo as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe. Finalmente, deu em fechar-se na sua cämara. Dizia-se que anda-va a escrever um grande livro. E saia de lä com olhos de cego, um ar quase de estätua, um sorriso alheio, feliz, idiota. A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselha-lo: Sua Aiteza näo devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os livros; mas o trato dos homens tambem; tambem as experiencias pessoais e vivas. Alias, quase perigava a saude de Sua Aiteza nessa vida sem ar que Sua Aiteza levava. Convinha que Sua Aiteza se prendesse mais aos .. costumes da corte, aos jogos e folguedos proprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia de governar. Nisso tomas- : se exemplo em seu irmao; ate naquele que, nao sendo seu irmao, mats ou menos fora educado como tal, c tao ladino se mostrava na curiosidade por tudo que a sua volta decorria... O moco prin-cipe ouvia-o como se o nao ouvisse, fitando-o, sem o ver, com os seus esplendidos olhos de cego. Nesse mesmo dia, ao fim da tar-de, estava-se a mesa, era na rica sala de j an tar. O Mestre caiu na imprudencia de uma breve alusao ao que, de manha, dissera a seu educando. Entao, o principe herdeiro levantou-se e respon-deu: «0 meu reino nao e deste mundo.x Lera isto num livro que fora de sua mae. Todos ficaram primeiro atonitos, depois cons-trangidos. O rei ncm repetiu os seus pratos favorites. Tentou-se fa'ar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem principe herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com flores perigosas que havia na cstufa. Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite. Mais tarde se viu que era um grande livro, Claro que houve gritos, espantos, chores, exequias magnifi-cas, exposicao de grandes veludos negros e galoes de oiro. A noiva do morto sempre se mcteu monja. «Era o que tinha a fazer!» comentou o seu ex-futuro cunhado. «Com aquele olho vesgo...» E comegou ele, o irmao gemeo do mono, a ser preparado para o dlficil oficio de reinar. Nao. nao empalidecia este sobre alfarrabios de pergaminho! Aos catorze anos, ja comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas donas um pouco ligeiras de costumes (nao de mais), so as nao comprometia por ja estarem com-prometidas: pclo menos, com os respectivos maridos; pelo menos. Morrer virgem — nao era com este. Como para a sua pessoa sc haviam transferido, agora, aquelas particulates atencoes que sempre se lixam sobre o herdeiro dum trono, ate certos porme-nores da sua infancia eram agora recordados, repetidos com sorri- JOSE RBGIO 318 319 IIA MAIS MUNDOS de rite complacéncia: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias de chůva; e lá iam dar com cle descalgo, patinhando nas pogas, ou estendido na relva, a apanhar a água do céu. Ou que v misturava com os rapazes da rua para assaltar ninhos, ou jogar á pedrada. Agora, perdia-se por cacadas. Bailava táo bem que nem parecia um principe. Conversava familiarmente com os pajens, os criados, os viloes. Certas noites, escapulia-se disfargado para ir' correr aventuras. Ás vezeš, fazia-se jardineiro: podava as roseii.A ; cantando can goes da arraia-miúda (nem sempře muito decentes) e até chegava a cavar com uma sachola! Dava esmola. aos mernli-gos por sua propria máo. Duma vez, trouxera ás costas um m:-serável que achara desfalecido no caminho. Era mořeno, ágil, tinha : bons músculos, um esplčndido apetite. E ninguém como ele para divertir as dam as com histórias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e beliscoes á socapa. Os seus Mestres resolveram limá-lo, podá-lo como fazia ele ás roseiras. Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se--ia fazer um rei como se quer. Todos diziam: «Desta vez, temos homem!» Pelo contraste, um certo dó humilhante recaía sobre a memória do irmáo suicida... O principe comecou a apurar a sua educagáo intclectual; e, fclizmente, o novo herdeiro revelava também aptidóes de excep-cao. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixáo pelas coisas e a vivcza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres? Mas náo: O Mestre de línguas mortas, o de matemáticas e o de protocolo eram mais reservados nos seus louvores. Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu íilho herdeiro do trono. Estava cansado, e sentia que a vida se lne ia apagando. Mas, durante as cerimónias, o principe herdeiro teve excentricidades, liberdades insólitas, saídas de humor que chega-ram a provocar o riso na ilustre assembleia, — pouco dignas da solenidade do acto; de modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a aconselhá-lo: Sua Alteza náo devia abusar da originalidade de seus espíritos. Atitudes há do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciáveis em um qualquer, mas nem sempře convenientes mim principe real. Urgia que Sua Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamen-to, cm atencáo ao alto Papel que fora Deus servido distribuir--lhe... O principe ouvia-o sem nada dizer. A expressáo do seu rosto é que era ambígua, como respirando uma irónia que ne-nhum dos seus tracos acusava. Nesse mesmo dia, ao lim da tar-de, estava-se ä mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Entäo, o principe real ergueu-se e respondeu: «0 mcu reino é deste mundo.» Náo lera isto cm parte alguma. Todos ficaram sem compreender, e pouco ä vontade. Tratou-se de coisas várias, com uma naturalidade fingida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia seguinte, o jovem principe herdeiro tinha de-saparecido do palácio. Em váo se fizeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais tarde que fugira nu m a carroga de saltimbancos nómadas. Claro que houve consternagäo geral. O rei caiu de cama; já todos temiam que náo resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos, habilissimamente retivera nas máos a governagáo do seu reino táo policiado, táo submetido, táo dirigi-do, agora se via sem herdeiro natural que lne sucedesse, e Ihe continuasse a obra. Dois filhos legítimos ti vera: gémeos e táo di-ferentes, senhores de extraordinários dons. Ambos como que o haviam renegado. renunciando ä heranga para que os preparara. E agora já no seu reino táo disciplinado fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam alastrar. Já as massas pressentiam a senilidade do pulso que táo energica-mente as havia refreado. Neste desconsolo, perdidos os seus dois filhos legítimos, ainda foi o tal adoptive que principiou a fazer-lhc companhia. Já quase o náo podia dispensar o rei. Também o mogo parecia náo se poder afastar do seu leito. Sempře que lne era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, — nessas práticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o mogo instrugáo idéntica ä dos príncipes, tendo sido educado quase no mesmo pé. Em certos assuntos, porčm, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que nenhum dos príncipes mos- JOSÉ REGIO 320 321 HÁ MAIS MVNDOS trara. Na história política do reino, por exemplo; na sua geografia humana; nas suas actuais relacčes com o estrangeiro; na dis-cussäo das suas Leis, etc. E a inteligencia que no tratamento destas-questóes manifestava —áridas, como geralmente sáo, para jo-vens — por atrevido que seja afirmá-lo, näo ficava atrás da c;uc noutras haviam manifestado os príncipes. Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, che-gado El-Rei ao ultimo quartel da vida, vários pretendentes ao mes-mo disputavam entre si seus direitos. Já, no palácio, fervia a intriga na sombra. J á os pretendentes e partidários rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lábios, o verdete do ódio nos cora-gôes. Um ponto único havia em que todos se entendiam: a rnal-queren§a äquele mogo que táo visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um, cada um procurava desacreditar no espírito do velho rei o seu jovem amigo. Decerto näo passava isto despercebido do' jovem. E o resultado foi näo ser este, mas eles, que éram pessoas da família real, quem o rei afastou da sua cärnara, até do seu pago. Por maquinacôes do jovem? Sustentavam os escorracados que sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vingangas futuras, — atribuindo äquele mogo uma täo diabólica intuigáo na intriga que suplantava toda e qual-quer experiéncia. A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do mogo passar incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque é velho; e a debilidade física do rei näo se manifestava mentalmente. Dado o que depois se passou, poder-se-á admitir que «a velha raposa astula» (como, depois. lhe charnavam os seus parentes escorragados) apreciara, até, o engenho com que o moco ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes scnhores que por seu turno o procuravam desprestigiar a elc. Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao f im da tarde, estavam reunidos na cämara real os Importantes da cone. O rei para aí os convocara, pois há algum tempo dava grandes sinais de melhoras. («Ainda näo é desta!» lameniavam os seus parentes tornados seus inimigos.) E diante de todos, que estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegído, dizendo: «Tive dois filhos legitimus, que um apös outro sonhei me sucedessem. 0 reino dum näo era deste mundo. O do outro era-o por de mais. Tu, qua! e o teu reino?» Um süencio pänico se fez, pois todos achavam estranhissima esta cena. Talvez o mogo hesitasse um niomento; näo mais que um morneiitu; logo res-pondeu: «Que reino pode ser o meu senäo o vosso?» Entäo o rei chamou-o a si, apertou a sua cabega contra o peito. Como ja näo podia fugir ä seesibilidade dos velhos, teve de fazer um esforco para näo solucar. Mais tarde declarou que sempre esse fora, secretamente, o mais am ado dos seus filhos, embora fdho natural; que esse ia ser perfilhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria no filho o poder real, pois näo so estava cansado, como temia ver-se constrangido a fazer por forca o que desde ja faria de vontade... Isto disse tie sorrindo. Olhava complacentemente o filho. Im-possivel, porem, destrincar ate que ponto, no seu espirito de velha raposa astuta, esse conhecedor dos bomens brincava ou näo. E assiiH se disse, assim se fez. De nada valeram as conspiracies dos pretendentes despeitados. Com a satisfacäo de ter um digno su-cessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pode viver alguns anos. Morreu de muito avancada idade. Laus Dev. JOSE REGIO 322 323 HÁ MAIS MUNDOS