FICHA TECNICA © Edigdes Universitdrias Lusofonas Tftulo: A Lusofonia e os Lusdfonos: Novos Mitos Portugueses Autor: Alfredo Margarido 1." edigao: Edigdes Universitdrias Lusofonas, Maio 2000 Serie: Africanologia Capa: VT Design Fotocomposi9ao: Jacinto Macau Impressao e acabamento: Produgdo Principal, Lda. Deposito Legal: 152397/00 ISBN: 972-8296-63-0 Todos os direitos desta edicao reservados por Edicoes Universitdrias Luscjfonas, Lda. Av. do Campo Grande, 376 - 1749-024 LISBOA Telef.:217 515 500 • Fax: 217 577 006 E-Mail: edicoes.lusofonas@ulusofona.pt A Lusofonia e os Lusofonos: Novos Mitos Portugueses Edigoes Universitarias Lusofonas A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS: NO VOS MITOS PORTUGUESES Subtil mas constantemente, sente-se perpassar na atmosféra política nacionál um sopro gélido, muito necrofílico, que ä forca de exaltar o passado, compromete o presente, e mais ainda o futuro. A criagäo e sobretudo a perenidade da Comissäo encarregada de comemorar os descobrimentos, constitui certamente um desses sintomas. O país foi remetido para o século xv-xvi, e só aí encon-traria razôes para existir. Os séculos subsequentes, e mais particularmente o nosso, näo fariam mais do que confirmar a "decadéncia", que o século xix instalou com toda a pompa no panteäo nacionál. É com um cuidado de cirurgiôes que os ideólogos desta gesta evitam fazer as perguntas indispensáveis e que foram enunciadas nos anos 30 por SanťAna Dionísio: quais as razôes que impediram os peninsulares de participar no esforco científico que criou a modernidade em que esta-mos inseridos? Seja qual for o campo epistemológico, o de Popper ou o de Khun, a verdade é termos falhado as dife-rentes "revolucôes" científicas. É certo que chegaram até nós, mas de rastos e constantemente deformadas pelas intervencôes brutais do poder: o político e o religioso. 5 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A nossa modernidade, criada pelas independéncias africanas, obrigou o pais a cortar uma parte substancial dos seus lacos com o Atläntico, que foi sempre o oceano das nos-sas grandes incursôes, mesmo se o índico näo pode ser afas-tado desta reflexäo. A verdade, contudo, é que a partir dos anos 60, devido por um lado ä guerra colonial, pelo outro ä emigracäo, o pais rompeu os la?os que o tinham mantido unido ao Atläntico, e mais particularmente ao Atläntico sul. A guerra colonial há-de ser vista no futuro como a grande tragédia nacional, que o regime ditatorial soube criar com o seu nacionalismo racista, naturalmente arcaico. A invencäo da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaco. Decidi analisar com a crueza - que näo é crueldade - necessária, alguns mecan-ismos internos dessas operacôes. A maior parte dos missionaries da lusofonia agem como se näo tivéssemos atrás de nós uma longa história de relacôes polémicas com aque-les que escolheram falar portugués. Ora convém medir com o rigor indispensável, utilizando os instrumentos mais sofisticados, a soma de fobias provocadas por uma história que näo pode evitar as marcas da violéncia exercida sobre os Outros. Näo faltará certamente quern me acuse de falta de "patriotismo". Algumas dessas acusagôes confundem patriotismo e patrioteirismo, embora näo sej a esse o aspec-to mais preocupante da questäo. Bašta considerar com atencäo o pereurso dos acordos ortográficos, para encon-trar a mesma inquietacäo, a republicana de ontem ou até de anteontem, a fascista e agora demoerática: assegurar o con-trole da lingua, obrigar os demais locutores a aceitar as regras portuguesas. A lingua nasceu em Portugal e per- tence aos Portugueses. Nao se consegue aceitar o princípio simples de que a lingua pertence aqueles que a falam! Ouve-se actualmente um lamento, que denuncia a expansao da lingua portuguesa do Brasil, que cada vez mais locutores designam como sendo a lingua brasileira. Esta operacáo desespera os linguistas Portugueses, mas pode prever-se que um dia proximo seremos ultrapassados pelo brasileiro, entre o mais por uma razao fonética: o brasileiro com as suas vogais abertas, a sua lentidao, a sua capacidade erotica, atrai mais auditores do que o portugués, cada vez mais "cerrado e ligeiro". Quer dizer, cheio de consoantes e sempre falado com uma rapidez que repugna aos brasileiros e a náo poucos africanos. Sejamos por isso o mais realista possível, rejeitando a auto-complacéncia, ou os paternalismos, que náo sao mais que formas de colonialismo atrasado. Aceitemos a leitura critica do passado, o que será sempre ocasiao para impedir que alguns dos nossos melhores vicios se transformem em virtudes. O exemplo mais característico reside no delirio das "descobertas", como se os Outros só tivessem existido por obra e graga da nossa intervene^ maritima ou terrestre. É tarde para recomendar uma lingua mais consentanea com a verdade científica e humana, mas deviamos por termo a tais operacoes, tanto mais que nenhuma autoridade portuguesa pediu perdao aos africanos pela nossa participa?ao no tráfico negreiro. Tal como nenhuma autoridade pediu perdao aos Indios americanos pela destruicao dos homens e das suas estruturas sociais no que é hoje o Brasil. Eis a razao desta escrita: procurar proceder ao inventário das feridas e das cicatrizes, tanto mais que os corpos man-tern, como é sabido, memória das violéncias que lhes foram 6 7 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... infligidas. Aprendemos, gracas ao sindroma de Estocolmo, que os antigos torturados conservam durante toda a vida estigmas das violéncias, físicas ou psiquicas, que lhes foram infligidas. Assim acontece também com os povos, que näo podem deixar de se dar conta das marcas das agressöes. Há séculos que os Portugueses se sentem agredidos pela "ocu-pacäo" dos Filipes. Mas queremos, em contra-partida, que os Outros se esquecam da nossa "ocupacäo", tal como pre-tendemos limpar o passado, eliminando agressôes e violéncias! Santa ingenuidade a nossa, que ao acreditarmos na história, recusamos a memoria dos "vencidos". Näo há, no texto que näo passa neste momento de um embriäo de reflexäo mais ampla, o menor traco de amar-gura. Näo posso contudo ignorar que este inventário das torpezas nacionais me preocupa há já vários anos, e mais particularmente a partir do momento em que, nas antigas colónias, pude ver em acq&o a nossa especial maneira de "civilizar". Já em outros momentos e em outros lugares fui contando alguns aspectos dessa dura experiéncia, tal como pude contabilizar as violéncias que me foram infligidas pelas falsas vestais do templo colonial. Embrionário em-bora, o texto näo procura seguir a via de Boxer ou de Bender, de Buarque de Holanda ou de Mario de Andrade. Basta-lhe ser uma reflexäo inquieta, indispensável neste período em que näo poucos antigos carrascos se apresen-tam como defensores da democracia e da liberdade! O nosso século xix foi obrigado a proceder a um inventário difícil, no que se refere a algumas colónias africanas. Näo faltaram aqueles que se propunham vender algumas, operacöes que näo chocavam ninguém: Napoleäo vendera a Luisiana aos americanos, e depois os russos venderam o Alaska aos mesmos americanos, tendo os espanhóis vendi-do as Filipinas. Náo havia por isso razao para escándalos: náo foi de resto Oliveira Martins que provou o carácter pouco humano das populacoes africanas, a quern náo valia a pena ensinar fosse o que fosse? Um dos amigos e companheiros de Oliveira Martins, o romancista Eca de Queiroz, também participou nessa polémica. Replicando a uma crítica de Pinheiro Chagas, o famoso "Brigadeiro Chagas" - que náo se limitou a esta agressáo- Eca de Queiroz evocou com formulas abruptas mas irrecusáveis, o mito da domina§ao portuguesa sobre as antigas colónias: "Mas agora vejo com evidéncia que Portugal náo necessita uma forte cultura intelectual, nem educa?ao cientifica, nem elevacáo de gosto; nao precisa ter escolas, nem mesmo saber ler: esses esforcos sáo para a Franca, a Inglaterra, a Alemanha, países náo privilegiados; Portugal, esse, tern tudo garantido, a sua grandeza, a sua prosperidade, a sua independéncia, a sua riqueza, a sua forca - desde que, como voce, afirme com a autoridade do seu saber, há nos mares do oriente uma ilha onde, debaixo de um coqueiro, á beira de um arroio, estáo quatro indíge-nas, de carapinha branca e tanga suja, ocupados de cócoras a respeitar Portugal"1. O texto de Eca de Queiroz foi redigido em Bristol, há pouco mais de um século (a 14 de Dezembro de 1880), mas devia continuar a funcionar, quer dizer náo só a ser lido, mas sobretudo a fornecer ou a impor uma base reflexiva: o manifesto delírio dos historiadores da expan-sáo portuguesa que continua a afirmar que a dominacáo 1 E?a de Queiroz, Notas contemporáneas, in Obros completas deLisboa, Cfrculo de Leitores, 1981, vol. XV. 9 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... portuguesa dura há cinco séculos, devia ser corrigido com algumas referencias a este texto, que continua a dizer ver-dade terriveis, embora comecemos enfim, sob a pressäo da Europa e da modernidade, a reduzir o numero dos nossos analfabetos, depois de termos passado alguns séculos a impedir a alfabetizacäo de continentes inteiros. O que näo podemos é esquecer que este conceito entra errrchoque com o conceito mitico anterior, o da "portuga-lidade", que nos mantivera unidos aos espanhóis durante quase oito séculos. Apoiando-se também em Oliveira Martins, Antonio José Saraiva sublinhava ainda há pouco que a portugalidade se opöe ä hispanidade, embora este conceito inclua marginalmente uma oposicäo ä Europa. Para Antonio Jose Saraiva, nesse aspecto fiel discipulo de Oliveira Martins, "Portugal etimologicamente é relativo ä Espanha; como a parte é relativa ao todo", embora näo se possa deduzir uma forma de dominacäo, mas sim de com-plementaridade, porque "sem Portugal näo há Espanha". Estas observacöes teóricas complementam-se no piano lin-guistico, dado que o portugués e o castelhano "nasceram como dois dialectos da mesma lingua"2. 2 Antonio José Saraiva, "Portugalidade", Via Latina, orgäo da Associacäo Académica de Coimbra, s. d. A relacäo com a Espanha foi sempře, no discurso de Saraiva, uma das chaves míticas, quando näo místicas, da propria nacionalidade portuguesa, näo se esquecendo de pör em evidéncia a violéncia irremediável do contraste: "há no génio portugués o quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano". Mau grado essa situacäo, salienta ainda Saraiva que, saídos da insur-reicäo contra o mundo, "continuaram (Portugal e Espanha), essa fraternidade na expansäo ultramarina quer na America quer na Ásia". Esta visäo da geografia históri-ca portuguesa tornou-se muito corrente entre os ofíciais superiores das Forcas Armadas que foram auditores do Prof. Jorge Borges de Macedo, que tanto sublinhou o facto de Portugal estar submetido a um "cerco estratégico" organizado pelos diri-gentes politicos espanhois, associados aos militares, com o apoio da NATO e dos Estados Unidos. Podem encontrar-se os suportes principals desta ameaca nas obras nas quais o capitäo-de- mar-e-guerra Virgflio de Carvalho banaliza as ideias centrais Creio que Saraiva era demasiado optimista, ou que näo conhecia muito bem a literatúra espanhola. A leitura de um romance de Pio Baroja, o basco que acabou por se subme-ter ä hegemónia do castelhano, havia talvez de o alertar: Baroja considera que o fado é elegíaco, expressäo de um povo que só pode comparar-se com "el pueblo judío". E conclui, é certo que pela voz de urna personagem, técnica que fornece a heteronomia dos romancistas: "La outra noche, paseando por la plaza, me decia con cierta pena: "En Portugal näo habrá nunca anarquistas. Este es um pueblo blando e indolente. En Espana hay más viveza, más fibra" anadia él. Y es verdad. Son tipos lánguidos que pare-cen criollos, sin la exasperación de los americanos. Es una gente de sangre gorda, que no tiene nada dentro"3. A criacäo da lusofonia parece destinada a interromper o diálogo polémico com os espanhóis, mesmo se esta invencäo procura evitar os choques: a lusofonia é apenas o resultado da expansäo portuguesa e da lingua que esta da (pré)-visäo de Jorge Borges de Macedo. Mas sobretudo, importa salientar que o projecto portugués näo está em condicöes de se furtar ao peso castelhano, que teria sido a única forca verdadeiramente decisiva nas nossas relacöes connosco e com o mundo. É evidente que, se aceitarmos esta visäo que nos faz depender de Espanha, näo poderemos organizar nenhuma lusofonia e ainda menos um espaco lusófono, fatalmente condenado a castelhanizar-se. Por outro lado, os brasileiros consideram que a colonizacäo portuguesa se revelou sentpre inferior a outras colonizacöes europeias, sobretudo a espanhola e a holandesa. Sergio Buarque de Holanda, nas suas Raizes do Brasil. Rio de Janeiro, Jose Olympio, 1936, pöe em evidéncia o que deveria ser considerado a superioridade generosa da colonizacäo espanhola. De resto, säo Iegiäo os brasileiros que, sobretudo no nordeste, lamentam näo ter sido colonizados pelos holandeses, o que fez do conde Maurício de Nassau uma das figuras míticas desse Nordeste centrado em torno de Pernambuco. 3 Pio Baroja, La Dama Errante, Paris, Nelson Editores, 1952, pp. 275-276. A primeira edicäo data de 1908. Permita-se-me que acrescente o desejo de que alguém - um candidate a doutoramento em estudos ibéricos- proceda a um inventário sistemático, ou quase, das referencias a Portugal na literatúra espanhola, mesmo se esta nos considera pouco. Quando os Portugueses näo säo invisfveis ou transparentes, como o famoso licenciado de Cervantes, como säo eles descritos, julgados, analisados, maltratados? 10 1 11 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... opera9äo teria espalhado generosamente pelo mundo fora. Ou seja, seria menos o resultado de um projecto, do que a consequéncia inesperada de uma maneira particular de circular pelo mundo. Nesse aspecto, a portugalidade opoe-se certamente ä lusofonia: a primeira é o resultado de uma oposicäo constante aos espanhóis - entendendo-se por esta expressäo todas as nacionalidades colocadas sob a dependéncia do governo central dominado pelos castelha-nos - ao passo que a lusofonia seria a consequéncia quase passiva da expansäo e da banalizagäo da lingua. A criacäo da lusofonia, quer se trate da lingua, quer do espaco, näo pode separar-se de uma čerta carga messiäni-ca, que procura assegurar ao Portugueses inquietos urn futuro senäo promissor, em todo o caso razöes e desrazöes para defender a lusofonia. A independéncia das nacöes africanas, obrigou os teóri-cos da colonizacäo portuguesa a modificar de maneira sub-stancial o seu vocabulário. Tal se verificara já no caso francés, que já nos anos 1962 comecou a banalizar a nogäo de "francofonia"4. Respeitando um velho movimento de submissäo cultural, näo puderam os Portugueses furtar-se ao modelo tradicional, tendo criado, após 1974, a lusofonia. Uma parte deste esforco teórico baseia-se na lingua: a utilizacäo do portugués seria a prova da existencia de uma "comunidade lusófona". Outros, mais argutos, sublinham a 4 A francofonia apareceu pela primeira vez em francés, em 1887, na escrita teónca do geógrafo Onésime Reclus, mas näo no sentido que lhe é hoje dado. Reclus propunha uma classificacäo dos grupos humanos com base nas linguas faladas. Tratava-se, neste caso, de uma opera?äo destinada a classificar as rajas humanas. Näo é este o sentido actual, que visa manier o espírito colonial, salientando a importäncia do cimento linguístico. V. Xavier Deniau, La Francophonie, Paris, PUF, 1983, assim como Jean-Pierre Péroncel - Hugoz, "Les Vingt cinq ans de francophonie", Le Monde, 16 de Marco de 1995. importäncia do "espaco lusófono". Dependendo embora da lingua, seria também, quando näo sobretudo, a consequéncia de uma "história comum", mesmo se esta foi fre-quentemente maculada pela violéncia do "facto colonial". Näo foi necessário criar entre nós, como fazem os teóricos europeus, na maior parte maus conhecedores das teses do conde de Gobineau, a necessidade de mesticagem: essa fora introduzida na vida cultural e política portuguesa pelas teses luso-tropicalistas de Gilberto Freyre. Deve con-tudo registar-se a banalizagäo de formulas "revolu-cionárias", como aquela que, num grande jornal diário, anunciava sermos "todos mulatos"5. Ora o modelo social e económico dos dias de hoje depende da propria evolucäo de economia-mundo, tal como Emmanuel Wallerstein, na esteira de Karl Marx e de André Gunder Frank, com uma pitada de Fernand Braudel, a definiu. A primeira grande potencia que conseguiu alcan§ar alguns dos objectivos do capitalismo, foram os Estados Unidos, que a partir já de 1815, impöem algumas regras ao mundo capitalista que se formara sobretudo a partir da expansäo comecada no século xiv. Esse modelo assenta na existencia de grandes espacos económicos, onde a producäo e a circula§äo das mercado-rias näo é controlada por uma miriade de autoridades estatais. A livre circulacäo das mercadorias constitui um ele-mento fundamental na organizacäo deste sistema, que pouco a pouco pretende transformar o mundo num falso "império". 5 Título publicado pelo Publico (suplemento "pop Rock", 14 de Junho de 1995, p.4). Trata-se de uma integracäo na moda da mesticagem, mas o autor, Luis Maio, desco-nhece a carga pejorativa que sempře esteve associada aos mulatos e ao mulatismo. 12 13 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... O choque actual regista-se entre os defensores de um projecto de carácter amplo, embora regional, e aqueles que defendem as qualidades das pequenas nacöes, que já eram caras a Aristoteles e a Montesquieu. E que também näo foram rejeitadas pelos socialistas utópicos, como Charles Fourier, nem pelos combatentes da Comuna de Paris, ou das diferentes comunas francesas desses anos 1871. O internacionalismo tem sido confundido com o cos-mopolitismo, sendo o primeiro a consequéncia da uniäo necessária dos trabalhadores, como a encararam já os rev-olucionários franceses em 1791, ao passo que a segunda depende da vagabundagem artístico-literário da burguesia enriquecida. O internacionalismo assenta no reconheci-mento do trabalho, como se pretende entre Saint-Simon e Karl Marx, ao passo que o cosmopolitismo depende das rendas que a burguesia pode conseguir gracas aos capitais acumulados. Nos dias de hoje multiplicam-se as zonas de livre circu-lacäo dos homens e das mercadorias, quer seja na Europa, quer seja nas Americas do Norte e do Sul. O objectivo é sempře o mesmo: procurar organizar as condicöes que per-mitam que estas unidades possam enfrentar ou imitar os Estados Unidos. Tal fora já o sonho de José Estaline quan-do organizou o primeiro piano quinquenal. A hegemonia do capitalismo americano impöe as suas regras, e a Europa dos dias de hoje, cada vez mais dirigida pela burocracia de Bruxelas, procura dar ao capitalismo europeu (mas haverá realmente capitalismo europeu?), a forca capaz de lhe asse-gurar alguma autonomia. Nessas condicöes verifica-se que o proteccionismo continua a ser uma arma decisiva, mesmo se ela deixou de pertencer aos governos nacionais, para se transformar em arma da burocracia bruxelense. O resultado näo podia deixar de ser o que é: os particularismos nacionais säo denunciados, considerados como urna agressäo ao espirito "europeu", que todavia ninguém- fora do simples piano da economia - está em condigôes de definir. Pode, dados estes preliminares, encarar-se a possibili-dade de organizar outros espacos, como a francofonia, a lusofonia e a hispanofonia, cujas características näo podem deixar de contrariar a "preferencia europeia"? E evidente que näo: as condicôes em que se constrói a Európa impe-dem a afirmacäo dos particularismos nacionais ou cultur-ais. De resto, os tratados que, sob pressäo da Európa do norte, condicionam a circulagäo das pessoas e dos bens, säo organizados como máquinas destinadas a impedir o acesso dos Outros ä Európa. Näo bašta ser "lusófono", nem "francófono", nem "his-panófono" para ter o direito de aceder ä Európa do capitalismo burocratizado. Só urna leitura mítica pode ainda pretender construir um "espago lusófono" quando as regras europeias näo prevéem que baste falar portugués para se poder circular livremente. O mesmo de resto se verifica no que se refere ao francés e ao espanhol. Parece-me por isso conveniente, quando näo indispensável, proceder ä revisäo de alguns conceitos e de alguns acontecimentos históricos, para recusar tanto o mito como a mística da lusofonia. 14 15 A LONGA DURAgÄO DO ESPÍRITO COLONIAL O discurso colonial portugués foi estruturado no sécu-lo XIX, dada a necessidade de replicar äs pretensöes das demais poténcias europeias que pretendiam organizar "impérios" coloniais, única maneira de completar o seu percurso histórico. Perante esta situacäo, os Portugueses, profundamente traumatizados pela independéncia do Brasil, em 1822, procuraram afirmar com paixäo os seus direitos singulares aos territórios e äs populacöes. Esta tarefa revela-se indispensável, pois que o Brasil fizera aparecer uma orientacäo inedita na vida política colonial portuguesa, gracas ä criagäo do "nativismo", discurso mítico-nacionalista, com o qual os brasileiros procuraram reforgar os seus direitos ao território e ä sua propria independéncia. Muitos incidentes entre brasileiros e Portugueses foram provocados pela generalizacäo das ideias "nativistas", äs quais se opunham os colonos Portugueses, que como já tinham feito face ä Inconfidéncia de 1789, recusavam todo e qualquer direito ä independéncia aos brasileiros. A história portuguesa cobriu com um véu hiper-púdico a inevitabilidade da independéncia, considerando que ela 17 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LONGA DURAgÄO DO ESPÍRITO COLONIAL näo fora uma decisäo autenticamente brasileira, mas sim o resultado de urna operacäo astuciosa do principe herdeiro portugués que se antecipara ä burguesia nativista brasileira, para recuperar o Brasil para a Casa de Braganca. Esta tentativa de escamotear a independéncia brasileira constitui certamente uma das operacôes politicas mais sin-gulares do século xix, que de resto modificou substancial-mente a política portuguesa, levando os diferentes min-istérios a recusar reconhecer a independéncia do Brasil. Eca de Queiroz denunciou de resto com muita veeméncia 0 surto teórico do nativismo brasileiro, considerado como urna agressäo arcaica1. Na verdade os brasileiros -Freud ainda näo tinha aparecido - sabiam que para alcancar a independéncia 1 E?a de Queiroz, "A propósito da doutrina de Monroe, e o Nativismo", Cartas fami-liares de Paris, 30 de Marco - 5 de Abril de 1896. É mais do que evidente que Eca de Queiroz estava perfeitamente informado destas duas questôes por intermédio de Eduardo Prado, que de resto foi obrigado a refugiar-se no sertäo da Bahia, quando procurado pela justica brasileira para responder pelo seu ataque frontal ä doutrina de Monroe, que só podia dar vantagens aos americanos do norte, em detrimento de todos os mais. Registe-se a capacidade de previsäo política de Eduardo Prado, acompa-nhado neste aspecto por Ega de Queiroz. Näo esquecamos contudo que Eca já registara na sua vida de escritor alguns inci-dentes com os seus leitores brasileiros, ao narrar de maneira burlesca a visita do Imperador Pedro II a Portugal. As suas crónicas, na série d'As Farpas, provocaram incidentes anti-portugueses, tanto em Pernambuco como na Goiänia. V. a este respeito Ernesto Guerra da Cal, Lengua y estilo de Eca de Queiroz, apéndice consagrado ä bibliografia, Coimbra, por ordem da Universidade, 1975, que sugere que a transformacäo do conteúdo de alguns artigos anti-brasileiros se deve a uma simples estratégia do autor, que queria continuar a gozar da preferencia e da admiracäo brasileiras. Guerra da Cal esquece simplesmente que as relacoes de amizade, estabelecidas em Paris, entre Eca e alguns intelectuais brasileiros, entre os quais Domicio da Gama e Eduardo Prado, tinham levado o consul portugués a modi-ficar de maneira substancial os seus jufzos abruptos sobre os brasileiros. Foi em parte por essa razäo que Eca deu outro conteúdo ao "brasileiro" que, na sua escrita, como na maior parte dos autores Portugueses, passa a ser o torna-viagem. Contudo, esta correccäo näo eliminou a importäncia dos conflitos, mesmo se estes passaram a exprimir-se por via de "histórias" de portugués e de "anedotas" de brasileiros. Freud explicou, alguns anos depois, qual a carga patológica destas formas falsamente jocosas. deviam matar o pai, como já anteriormente o tinham feito os norte-americanos e os haitianos. A maneira como os Portugueses tern considerado o Brasil, como estado-filho ou como estado-irmäo mais novo ou cagula, implica a existencia de um parentesco que deve manter unidos os dois países, mesmo se o percurso brasileiro, cada vez mais americano, tem pouco a ver com as opgôes portuguesas. Outros mitos vieram durante este ultimo século acres-centar-se aos anteriores, entre os quais avultava o da filia-gäo, que procurava impor ao Brasil urna menoridade quase eterna, que a independéncia se encarregara de quebrar. Os brasileiros elevaram contra os Portugueses algumas acusacöes fundamentais, atribuindo-lhes a responsabili-dade da fraqueza do tecido urbano no século xix, acusan-do-os de näo terem criado as Universidades indispensáveis ä formagäo das elites e dos quadros brasileiros e last but not least, de sérem os responsáveis pela criagäo dos mulatos, que tanto incomodaram os brasileiros no século xix e depois, até hoje. Os teóricos do nacionalismo brasileiro, grandes con-sumidores das teses antropológicas francesas, alemäs e norte-americanas, multiplicaram as demonstracöes da infe-rioridade dos mulatos. A escola da Bahia, que reuniu alguns dos maiores conhecedores da antropológia física brasileira, multiplicou as intervencôes e Nina Rodrigues -que muitos consideram ser o Broca brasileiro- procurou provař de maneira definitiva a inferioridade psíquica dos mulatos, e mais latamente das populacöes de cor2. Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, S. Paulo, Companbia Editora Nacionál, 1932. 18 19 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LONGA DURACÄO DO ESPÍRITO COLONIAL O Brasil viveu sempre profundamente incomodado por esta situagäo, dado que, e ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, as populacôes de cor eram demografica-mente dominantes. No famoso estudo consagrado a Os sertôes, Euclides da Cunha multiplica as análises do carác-ter neurológico dos mestigos, concluindo pela sua parca utilidade social, dada a instabilidade nervosa que os carac-teriza3. Mais grave ainda: os mestigos näo pertenciam ä invengäo brasileira, sendo antes urna pura criagäo lusitana. Esquece-se, nos dias de hoje, e ainda bem para as relagôes entre os dois países, a veeméncia do discurso anti-portugués que caracterizou o ano de 1922. A história cultural reteve apenas a impojlaneja da semana de arte moderna, assim como o discurso antropofágico que lhe está directamente associado. Valia a pena mergulhar nas publi-cagoes que entäo denunciaram a violéncia colonial por-tuguesa, e mais particularmente no Estado de Minas Gerais. De resto, esta violéncia anti-portuguesa encontra a sua plena afirmagäo no manifesto antropofágico de Oswaldo de Andrade. Com efeito, a vítima simbólica, que serve para por em movimento a antropofagia é o bispo Sardinha, e podemos perfeitamente compreender que o nome do bispo desem-penha nesta operagäo um papel fundamental. Pois näo säo - ou näo eram - os Portugueses grandes comedores de sardinhas, a ponto de urna metafora comparar a mulher desejável ä sardinha: a mulher e a sardinha querem-se 3 Euclides da Cunha, Os Sertöes, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1902, A verdade e que os intelectuais brasileiros participam todos nesta maneira de julgar os mulatos, e estas teses, que se inspiram tanto em Gobineau como em Vacher de Lapouge, säo reforcadas pelo eugenismo deste ultimo. pequeninas? Os antropofágicos, que säo sobretudo Os intelectuais urbanos de S. Paulo, apoderam-se do bispo e da antropofagia para os transformarem em momento singular de ruptúra, que séria o do auténtico nascimento do Brasil. Compreende-se facilmente que assim tenha de ser: os Portugueses eram a potencia colonial que, de resto e obsti-nadamente, procurara assegurar a dominagäo do Brasil e dos brasileiros. Parece hoje täo absurdo como ontem que a historiografia portuguesa pretenda adulterar as situagoes. Elas traduzem a violéncia que há-de sempre caracterizar - antes e depois de Hegel - as relagôes entre o senhor e o escravo. Ou seja também, em termos de história cultural: näo há nenhum vestígio de valorizagäo dos Portugueses ou dos africanos, ou sequer dos índios, mau grado o romantismo e José de Alencar, nesta primeira fase do nacionalismo brasileiro. O lusotropicalismo só comegou a aparecer nos anos 20, após a primeira guerra mundial e sobretudo após a primeira grande tentativa revolucionária de Luis Carlos Prestes. Com efeito, se este processo "revolucionário" permitia a afirmagäo dos "tenentes", autorizava também a maiori-dade do "povo", entendido como categoria colectiva indis-pensável ä formagäo da consciéncia nacionál brasileira. Creio que a melhor afirmagäo dessa pulsäo interna, reside näo nas afirmagôes dos teóricos, mas sim no poema no qual Manuel Bandeira evocava o Recife, sublinhando a importäncia da "lingua errada do povo". Esta formidável recuperagäo do "povo", sejam quais forem as incertezas que rodeiam o recurso a este substan-tivo colectivo, constitui um passo mais importante do que o antropofagismo, sobretudo se enteridermos que se prevé uma mobilizagäo geral das forgas nacionais. Embora, con- 20 21 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS.., A LONGA DURACÄO DO ESPÍRITO COLONIAL vém também näo perder de vista esse elemento, essa recu-peragäo e essa exaltagäo tenham servido de alimento ao populismo varguista. Só nesta conjuntura se pode verificar o aparecimento de uma série de trabalhos consagrados ä sociologia históri-ca brasileira, que faziam depender o Brasil näo dos europeus, ou das elites brancas importadas, mas de uma caldeamento que proviria do formidável apetite sexual dos colonos Portugueses, que näo repeliam nenhuma espécie de relacäo com os povos "inferiores". O luso-tropicalismo é a consequSncia da superioridade genésica dos brancos, criadores sobretudo de mulatas, como salienta entre outros Raul Bopp4. 4 Convém lembrar que a tese do comportamento excepcional dos brancos nas redoes com os grupos dominados, foi também enunciada pelo conde de Gobineau, que con-tinua a ser o grande teórico da mesticagem francesa: (o negro) "para valorizar as suas faculdades deve aliar-se a uma raca diferentemente dotada. Neste himen, a raca mela-niana aparece como personalidade feminina, e se bem que os seus diferentes ramos apresentem, neste particular, do para mais ou do para menos, sempře, nesta alianca com o elemento branco, o princípio macho é representado por este ultimo. O produ-to que daí resulta näo reúne as qualidades totais das duas racas. Há a mais esta propria dualidade que explica a fecundacäo ulterior. Menos veemente na sensualidade do que as individualidades absolutas do princípio feminino, menos completo na sua forca int-electual do que as do princípio macho, goza de uma combinacäo das duas forcas que lhe permite a criacäo artística, proibida a uma e a outra das razoes associadas". Gobineau, Essai sur 1'inégalité des races humaines, Paris, Didot & C. e, 1853-1855. Cito a 4a edicäo, vol. I. p. 362-363. Esta interpretacäo das relacöes humanas, que faz dos brancos o princípio masculino das sociedades, é reforcada pela exaltacäo da beleza dos produtos mesticos: "deve observar-se que as misturas mais felizes, do ponto de vista da beleza, säo formadas pelo hímen dos brancos e dos negros". Ob. Cit., vol. I, p. 155. V; também referéncias no Vol. II, cap. 7. Näo cabe no quadro desta nota, mas vale a pena certamente comparar as teses de Gobineau com as de Gilberto Freyre, tanto mais que o teórico francés salienta o facto de näo haver, no Canada, família francesa que näo tenha algum parentesco mesmo se ténue, com a "raca india", embora, mais a sul, os mesmíssimos Franceses considerem os mulatos como auténticos "abortos rejeitados". Se näo se pretende fazer depender Freyre de Gobineau, embora a tentacäo seja grande, näo podemos deixar de pór em eviděncia o evidente parentesco existente entre os dois teóri-cos, lembrando também o carácter pioneiro das análises e das propostas de Gobineau. Roger Bastide, que Florestan Fernandes acusa de ter atenuado os resultados dos inquéritos realizados em S. Paulo para permitir a análise das relacöes entre brancos e negros5, encontrou a melhor maneira de definir estas opera-göes: os Portugueses teriam renunciado ä cruz e ao gládio, confiando ao sexo as tarefas da colonizacäo6. É nesta conjuntura que os universitários - Freyre formado no pragma-tismo antropológico dos Estados Unidos, o protestante Roger Bastide provindo da boa licäo durkheimiana - criam o luso-tropicalismo. Foi já mais tarde que, comentando a obra de Roger Bastide, Florestan Fernandes evo-cou a maneira de trabalhar do sociólogo francés, censurando-lhe o pendor para os "meios tons" e para aquilo a que se poderia chamar a "verdade redentora", que exige por parte do negro o "perdäo mútuo, "(...) o esquecimento, a superacäo pelo negro das "injusticas". Esta maneira de falsificar os dados obtidos no terreno sempre desagradou a Florestan Fernandes, que se confessava "crianca de origem lumpen", que vivera em porôes e corticos, situacäo que o obrigara a comecar a trabalhar com pouco mais de seis anos. O texto, datado de 1979, foi incluido no pequeno volume, Significado do protesto negro, S. Paulo, Cortez editora/ Autores Associados, 1989, p. 103. Saltando por cima da sua condicäo de analista e de teórico, Florestan Fernandes, vítima do "racismo social", denuncia a falsa purificagäo teórica do protes-tante branco e francés. A esta reflexäo, acrescenta Florestan Fernandes urna severa condenacäo das teses de Gilberto Freyre, o que deve ser também contabilizado no débito teórico de Bastide, que sempre foi um defensor apaixonado do antropólogo de Apipucos. Para Florestan Fernandes, Gilberto Freyre séria o responsável por traduzir "o problema da sociedade brasileira como urna equacäo linear, pela qual a solucäo dos problemas raciais brasileiros procederia da mesticagem. Falando chulamente, passado e presente fluiri-am em uma síntese: a solucäo viria da "pica", com fusäo de Portugueses e africanos - o mesticaniento desenvolveria a igualdade racial". Ora, salienta o Prof. Florestan Fernandes, a demonstracäo de Antonio Cändido arruina este belo monumento socio--antropológico, pois a "miscigenacäo se processava na periféria da família patriarcal, näo em seu nücleo". O.e., p.89-90. Acrescente-se que o ultimo grande ensaio pretensamente cientffico consagrado ao luso-tropicalismo, é de autoria do Prof. Jorge Borges de Macedo, "O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. Metodológia, prática e resultados", Revista do ICALP, n°25, Margo de 1989, pp. 131-156. Näo possuindo a menor competéncia socio-antropoló-gica, o Prof. Borges de Macedo decidiu ignorar as reservas cn'ticas feitas a esta pro-posta teórica de Gilberto Freyre, pelo que se trata de um artigo simplesmente encomiástico, que nunca consegue dissimular a sua sub-jacéncia racista. Roger Bastide, Anthropologie appliquée, Paris, Payot, 1971. 22 23 A LUSOFONIA E OS LUSÓFONOS... A LONGA DURACÄO DO ESPÍRITO COLONIAL Podemos aceitar como data de cria§äo os primeiros tra-balhos de Gilberto Freyre, embora os seus grandes estudos sejam mais tardios7. Convém todavia saber que estes estudos näo encontraram eco em Portugal, onde a sociologia näo existia, a näo ser por via de algumas intervencöes pon-tuais, como foi a de Paul Descamps, um discípulo de Frederic Le Play na Universidade de Coimbra, acompan-hado ou reforcado por Francois Perroux, no periodo em que este era ainda näo só hörnern da direita, mas sobretudo salazarista ferrenho. Ou sej a, näo se pode pensar em luso-tropicalismo em Portugal senäo após 1945: José Osório de Oliveira conta ter procurado contactar Gilberto Freyre no Brasil, durante uma das suas viagens estipendiadas pela Agencia Geral das Coló-nias, sem ter encontrado a menor receptividade por parte dos seus superiores ministeriais. Gilberto Freyre faz intervir na reflexäo brasileira o peso da licäo de Franz Boas, sublinhan-do a importäncia da contribui9äo cultural dos povos ágrafos8. Os Portugueses, como de resto o proprio Roger Bastide, amputam severamente a gama das propostas freyrianas, mas a verdade é que a importacäo desta teoria permitiu robuste-cer a consciéncia e a prática coloniais portuguesas. 7 Gilberto Freyre, Social Life in Brazil in the middle of the nineteenth century, Nova Iorque, Colombia University, 1922. Esta primeira abordagem é constitufda por um feixe de histórias de vida, centradas em torno dos Freyres galegos de Apipucos. Record ä traducäo brasileira, Vida social no Brasil nos meados do século xix. O livro embriäo de Casa-Grande & Senzala, Recife, Fundacäo Joaquim Nabuco, Editora Massangano, 1985 (3a edicäo). 8 Näo podemos repelir as páginas em que Ferdinand de Saussure denuncia o que podemos considerar como sendo o feiticismo da escrita, exaltando do mesmo passo a oralidade, gracas ä qual a humanidade estaria em condicöes de estruturar a sua propria existencia. Todavia, do meu ponto de vista, como ignorar que a escrita suscita operacoes culturais que a oralidade näo autoriza, como mostrou entre outros Jack Goody? V. La raison graphique. La domestication de la pense sauvage. (The domestication of the sauvage mind), Paris, Les Editions de Minuit, 1979 (1977 para a edicäo inglesa). Nao há muito, um antropólogo cabo-verdiano - Mes-quitela Lima- náo hesitava em afirmar que o colonialismo portugués nao dispunha de bases teóricas, quer dizer de um projecto. Mesquitela Lima nao foi capaz de ver que os administradores Portugueses souberam sempre desencan-tar na vasta gama das propostas antropológicas e colonia-listas aquela ou aquelas que lhes podiam servir para asse-gurar a sua hegemonia colonial. A nossa modernidade colonial está toda empapada em Gilberto Freyre. Seme-lhante situacao serve apenas para sublinhar por um lado a fragilidade teórica dos colonialistas, enquanto pelo outro deve servir para mostrar que esta operacao permitia refor-car o la