Semántica 6 Periodo Roberta Pires de Oliveira Renato Miguel Basso Luisandro Mendes de Souza Ronald Taveira Letícia Lemos Gritti Florianópolis - 2012 Governo Federal Presidenta da República: Dilma Rousseff Ministro de Educacäo: Aloizio Mercadante Secretário de Ensino a Dištancia: Carlos Eduardo Bielschowsky Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa Universidade Federal de Santa Catarina Reitora: Roselane Neckel Vice-Reitora: Lucia Helena Martins Pacheco Pró-Reitora de Graduacäo: Roselane de Fatima Campos Pró-Reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy Filho Pró-Reitorde Extensäo: Edson da Rosa Pró-Reitora de Pós-Graduacäo: Joana Maria Pedro Pró-Reitor de Planejamento e Orcamento: Luiz Alberton Pró-Reitor de Administracäo: Antonio Carlos Montezuma Brito Pró-Reitora de Assuntos Estudantis: Beatriz Augusto de Paiva Curso de Licenciatura Letras-Portugués na Modalidade a Dištancia Diretor Unidade de Ensino: Felicio Wessling Margotti Chefe do Departamento: Rosana Cássia Kamita Coordenadora de Curso: Sandra Quarezemim Coordenador de Tutoria: Josias Hack Coordenadora Pedagógica: Cristiane Lazzarotto Volcäo Comissäo Editorial Tänia Regina Oliveira Ramos Silvia Ines Coneglian Carrilho de Vasconcelos Cristiane Lazzarotto-Volcäo á UFSC S471 Semäntica : 6° período / Róberta Pires de Oliveira ...[et.al.]. -Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2012. 182 p. Inclui bibliografia Curso de Licenciatura Letras-Portugués na Modalidade a Dištancia 1. Semäntica. 2. Análise linguística. 3. Metalinguagem. 4. Gramática. I. Oliveira, Róberta Pires de. CDU: 801.54 Sumario Unidade A..........................................................................................13 1 Semantica e pragmatica: delimitando os campos...........................15 1.10 vasto dominio do significado...................................................................15 1.2 O Significado linguistico................................................................................18 1.3 A nocao de significado....................................................................................23 2 O conhecimento semantico e os nexos de significado: acarretamento, contradicao e sinonimia....................29 2.1 Conhecimento semantico (implfcito)........................................................29 2.2 Condicoes de verdade....................................................................................32 2.3 Composicionalidade........................................................................................34 2.4 Nexos semanticos.............................................................................................38 2.5 Consideracoes finais........................................................................................41 3 Metalinguagem............................................................................................43 3.1 Teorema-T............................................................................................................43 3.2 Analisando uma lingua...................................................................................44 3.3 Consideracoes finais........................................................................................57 4 Pressuposicao................................................................................................59 4.1 Caracterizando a pressuposicao..................................................................59 4.2 Os gatilhos...........................................................................................................62 4.3 Acomodando pressuposicoes......................................................................65 4.4 Consideracoes finais........................................................................................67 Unidade B...........................................................................................69 5 As descricoes definidas..............................................................................71 5.1 O papel semantico das DDs: o comeco do debate...............................72 5.2 Como capturar a reacao das DDs aos contextos A, B e C semanticamente?.............................................................................73 5.3 Falsas nos contextos A e B.............................................................................74 5.4 Nem falsas nem verdadeiras nos contextos A e B.................................78 5.5 A funcao textual das DDs...............................................................................81 5.6 Consideracoes finais........................................................................................85 6 Negacao...........................................................................................................87 6.1 As varias maneiras de negar.........................................................................87 6.2 0'nao'....................................................................................................................90 6.3 Escopo...................................................................................................................92 6.4 Negates escalares..........................................................................................94 6.5 Os itens de polaridade negativa..................................................................96 6.6 Negacao metalinguistica...............................................................................98 6.7 Consideracoes finais........................................................................................99 7 Quantificacao.............................................................................................101 7.1 Introducao.........................................................................................................101 7.2 A quantificacao nominal ............................................................................103 7.3 Interacao de quantificadores: as relacoes de escopo........................109 7.4 Consideracoes finais......................................................................................111 8 Comparacao (ou a semantica das sentences comparativas).....113 8.1 A gramatica da comparacao.......................................................................114 8.3 Consideracoes finais......................................................................................126 UnidadeC........................................................................................129 9 Tempo e aspecto verbal.........................................................................131 9.1 Referenda temporal.......................................................................................131 9.2 Aspecto verbal.................................................................................................136 9.3 Acionalidade.....................................................................................................141 9.4 Consideracoes finais......................................................................................144 10 Progressao temporal.............................................................................145 10.1 Referenda temporal e progressao temporal......................................147 10.2 Mecanismos de progressao temporal..................................................149 10.3 Regras-padrao e outras..............................................................................153 10.4 Consideracoes Finais...................................................................................155 11 Modalidade - os auxiliares modais..................................................157 11.1 Introducao......................................................................................................157 11.2 Auxiliares modais.........................................................................................159 11.3 A semantica dos modais............................................................................162 11.4 0 tempo e a modalidade...........................................................................167 11.5 Consideracoes finais....................................................................................169 Coda..................................................................................................171 Referencias......................................................................................175 Glossario..........................................................................................177 Apresenta^áo E ste manual introduz uma série de tópicos em Semántica, uma disciplina que pouco entrou nos ensinos medio e fundamental e que só muito recentemente aparece em currículos de cursos de Letras (mas náo em todos!). O maximo que vemos de semántica na escola diz respeito aos conteúdos referentes a antónimos e sinónimos. E mesmo as versóes mais mo-dernas de ensino de portugués, que tém se baseado no texto, pouco utilizam os conceitos da Semántica que, no entanto, sáo absolutamente fundamentais. Por exemplo, o conceito de anáfora, táo essencial na construcáo de um texto, vem da Semántica. Curioso é que já contamos, desde 2001, com pelo menos uma publicacáo que traz propostas de ensinar semántica na sala de aula, trata-se de Introducáo á semántica, brincando com a gramática (2001), de Rodolfo Ilari. Mas, talvez a auséncia da Semántica na sala de aula possa antes ser explicada por uma čerta "fobia" da gramática: uma leitura equivocada do movimento de questionamento da gramática tradicional levou a entender que o estudo da gramática estava banido da escola. Náo há dúvida alguma que é parte da nossa tarefa de educadores ensinar a ler e a escrever, mas certamente estamos perdendo muito se essa for a nossa única tarefa do professor de portugués. Perde-se dessa maneira a dimensáo de se aprender algo sobre as línguas, de criar conversas com outras areas do saber, como a biologia e a matemática. As línguas humanas sáo um objeto muito interessante, extremamente com-plexo e ao mesmo tempo facilmente acessível: afinal, todos falamos. É por isso que o estudo das línguas humanas tem sido adotado, em várias universidades no mundo (dentre elas o famoso Massachusetts Institute of Technology), em cursos introdutórios de metodologia científica para todas as áreas. É muito fácil aprender como construir hipóteses e refutá-las usando as línguas natu-rais - e, como hoje sabemos, lidar com hipóteses, construí-las, submeté-las ao crivo da empiria e refutá-las é parte fundamental do fazer científico. Mas, esse movimento exige que observemos a lingua em si sem nos preocuparmos com o fato de que ela é o veículo para apreendermos o pensamento dos outros (via leitura ou via escuta) e para veicularmos o nosso pensamento (ou ainda para dissimular o que pensamos, para enganar, via oralidade ou via escrita). Mas, olhar a lingua, sua estrutura, sua gramática, ficou quase que proibido de-pois que se decretou o fim do estudo da gramática - joga-se fora o bebé com a água do banho. É claro que náo estamos propondo um retorno ao velho esque-ma de ensinar gramática normativa, ainda mais a gramática que é praticada nas escolas, uma gramática que nem é da nossa lingua. E que náo se confunda esse olhar cientifico para a lingua com negar sua importáncia social, ideoló-gica, na constituicáo do sujeito (da psicanálise). Trata-se na verdade de uma posicáo também política de permitir que as diferentes variedades de portugués entrem na escola. O cidadáo deve saber sobre a sua lingua, principalmente que em muitos casos a lingua que ele fala náo é a lingua que se escrever. Ninguém no Brasil, com talvez excecáo de uns poucos imortais, fala: "Eu lho trouxe". Isso é portugués europeu! A semántica que voce vai encontrar neste Manual pretende ser uma análise da estrutura do portugués brasileiro atual. A disciplina de Semántica busca construir um modelo para explicar como é possível que nós, seres fmitos, num tempo táo curto, em poucos anos, sejamos capazes de atribuir significado a qualquer sentenca da nossa lingua, mesmo áquelas absolutamente novas, áquelas que nunca ouvimos antes. Essa náo é uma ca-pacidade trivial, embora ela esteja sempře conosco. Um filósofo da linguagem muito famoso, chamado Ludwig Wittgenstein, afirmava que nós somos tanto a linguagem, ela nos constitui de tal forma, que temos dificuldade de nos distan-ciarmos dela para olhá-la. É esse, porém, o movimento fundador do cientista: distanciar-se do objeto para poder entendé-lo. Se vocé se interessar, procure na internete, por exemplo, os trabalhos de Angelika Kratzer, Gennaro Chierchia, Kai von Fintel, Irene Heim, Manfred Kri-fka, para alguns expoen-tes atuais. Essa semántica náo descende da linguistica estruturalista saussureana -Saussure, feliz ou infelizmente, náo é o pai de todos os linguistas -, mas da tradicäo da logica e da filosofia da linguagem, de cunho analítico. Até a década de 70, a Semántica era praticada quase que exclusivamente por fi-lósofos que, de uma maneira ou de outra, estavam respondendo a questöes colocadas por Gottlob Frege (1848-1925) sobre logica, linguagem e mate-mática, e entre esses filósofos podemos citar Bertrand Russell (1872-1970), Donald Davidson (1917-2003), Richard Montague (1930-1971). Na década de 70, Barbara Partee, uma linguista que estudou com Noam Chomsky e Richard Montague, transpös essa tradicäo para a linguistica, que desde entáo só floresce, e náo apenas internacionalmente. Veja o video http:// vimeo.com/20664367 em que Barbara Partee expöe porque a semántica formal e importante. Embora muito recente, ha tambem um grupo de se-manticistas de relevo no Brasil: Rodolfo Ilari, Ana Lucia Müller, Jose Borges Neto, Roberta Pires de Oliveira, dentre outros. 0 que caracteriza a semántica, chamada de formal, náo é, como pensam alguns equivocadamente, sua relacáo com a sintaxe gera-tiva, aquela praticada pelos chomskianos. A semántica se baseia na sintaxe, mas pode escolher sua sintaxe (é muito comum encontrar semanticistas formais que se filiam a uma gramática chamada de categorial, iniciada por Montague e distante em pontos fundamentals da gramática gerativa). Uma das características principals da semántica é ser uma teoria científica e, como tal, amparar-se numa linguagem formal, num cálculo lógico. É exatamente o que os físicos fazem ao empregar a matemática para entender as leis da nature-za. Porém, atencáo, os físicos usam a linguagem matemática para expressar as leis da natureza, mas isso náo signifi ca que eles acre-ditem que a natureza é matemática. Obviamente, alguns tém tal crenca, entre eles o mais famoso é Galileu. O mesmo ocorre com o semanticista: a logica que ele usa é apenas veículo de expressáo das regras formuladas, de suas hipóteses - nenhum semanticista reduz a lingua natural a um sistema lógico. Se voce ouviu tal crítica, certa-mente foi de alguém que náo conhece o trabalho dos semanticistas. Veja mais em: MIOTO, C. Sintaxe do Portugués. Florianópolis: LLV/CCE/ UFSC, 2009. Alfred Tarski, um lögico e filösofo muito importante em varias areas - por-que elaborou, dentre outros, o conceito de metalinguagem -, mostrou que as linguas naturais säo fundamentalmente inconsistentes, elas geram paradoxus. Com isso, ele concluiu que näo era possivel dar a elas um tratamento formal. Posteriormente, um outro filösofo, Richard Montague, demonstrou que podemos descrever formalmente fragmentos das linguas naturais. Essas säo questöes muito complexas e talvez seja preciso investigar mais para po-dermos saber se as linguas naturais säo ou näo, em parte, um cälculo. Essa maneira de ver as línguas naturais é certamente estranha, porque histo-ricamente fomos levados a acreditar que o estudo sobre as línguas é o oposto de ciéncias exatas, o oposto da matemática, dos sistemas formais. Mas, näo é a toa que a matemática é uma linguagem, e talvez seja um equívoco opó-las. Ao longo děste Manual vocé vai se deparar várias vezeš com conceitos da teoria de conjuntos da Matemática. Esperamos que esteja aí um convite para que os professores de Portugués desenvolvam juntamente com os professo-res de Matemática projetos em comum que näo sej am apenas para ensinar os alunos a decifrar os problemas de matemática. Usamos conceitos dessa teoria para entender o significado nas línguas naturais (os semanticistas também utilizam comumente funcóes, mas näo fa-remos isso aqui) sem, no entanto, nos comprometermos em afirmar que há uma identidade entre elas. As línguas naturais se caracterizam por sérem contextuais, por carregarem elementos déiticos, aqueles que só ganham sen-tido na situacäo de fala, que estäo totalmente ausentes das linguagens formais. Isso, porém, näo significa que näo podemos usar uma linguagem formal, arregimentada, como se costuma dizer, para descrever esses fenómenos. Ao longo děste Manual, exporemos as questöes com as quais lidam os semanticistas, e os métodos por eles empregados. Veremos isso nos quatro primeiros tópicos do capítulo Conceitos Básicos. O capítulo seguinte, Operacöes Semän-ticas, que traz os próximos quatro tópicos, lidará com problemas semanticos específicos e com algumas solucöes encontradas na literatura. Por fim, os dois Ultimos tópicos do capítulo Intencionalidade lidará com problemas que tém a ver com o tempo e os mundos possíveis. Por ser um assunto novo ao graduando de Letras, que provavelmente näo viu nada de semantica no ensino médio, e também por ser um assunto re-lativamente complexo, que envolve rigor nos raciocínios e na resolucäo das atividades - afinal, a semäntica usa a logica para se expressar -, é necessário que vocé leia com atencäo todo o conteúdo aqui proposto e se dedique ä resolucäo dos exercícios. É quase como aprender matemática ou física: só sabemos mes- mo quando fazemos os exercícios. Esperamos que ao final voce saiba como trabalham os semanticistas, quais questoes lhes interessam e como eles procuram resolvé-las. Tudo o que está exposto no que segue foi feito em termos de questionamento, com a intuicáo de mostrar como a lingua pode ser investigada de um ponto de vista cientifico e com uma metalinguagem estabelecida. Esperamos que voce goste! Os autores Unidade A Conceitos Básicos Semäntica e pragmätica: delimitando os campos 1 Semäntica e pragmätica: delimitando os campos Neste Capitulo, voce vai conhecer o dominio do campo de investigacäo da Semäntica, diferenciando-o de outros, principalmente da Pragmätica. O termo significado tem uma acep9äo muito mais ampla nas nossas conversas cotidianas do que tem na Linguistica, e ele e ainda mais restrito quando estamos pesquisando em Semäntica. E por isso que precisamos, quando estudamos semäntica, ter clareza sobre o que se entende por esse termo. Por exemplo, no dia-a-dia, conversamos sobre o significado da vida. Essa näo e, no entanto, uma questäo semäntica, porque ela pergunta sobre o significado de algo que ocorre no mundo: enquanto um fenömeno no mundo, a vida pode receber diferentes explicac^öes, nenhuma delas semäntica: a resposta dada pela biologia, pela bioquimica, pelas religiöes, pelo senso-comum. A semäntica, no entanto, nada pode dizer sobre o significado da vida enquanto tal ou de qualquer outra coisa no mundo, porque ela explica apenas um tipo muito especffico de fenömeno: o significado que atribuimos äs sentenc^s e expressöes de uma lingua natural, uma lingua que aprendemos no ber^o, sem aprendizagem formal, sem ir para a escola. O mäximo que a semäntica pode dizer e o significado da palavra 'vida', algo que aparece nos dicionärios. Hä uma notac^o especifica que podemos usar para indicar quando se trata de semäntica e quando se trata do fenömeno no mundo, as aspas simples, como abaixo: (1) Qual o significado da vida? (2) Qual o significado de 'vida'? Na sentenc^ em (1), o que estä em causa e o proprio ato de viver, em que con dickes esse ato faz algum sentido. Em (2), temos uma questäo 1.1 O vasto domfnio do significado 15 sobre o significado da palavra 'vida', algo mais proximo do que aparece nos dicionários. Só que no dicionário que semanticistas constroem, o léxico, se preocupa com palavras ou pedacos de palavras (morfemas) que tem funcáo gramatical, como a flexáo de tempo, por exemplo. Considere outro exemplo. É comum especularmos sobre o significado de um ato. Suponha que o Joáo é o chefe da Maria e ele saiu apres-sado da sala dele em direcáo á sala do presidente da empresa. A Maria pode se perguntar o que significa essa saída brusca de Joáo, o que será que houve para ele sair dessa maneira, algo táo incomum. Porém, mais uma vez, essa especulacáo náo é semántica, porque a pergunta náo é sobre o significado de uma fala ou de uma expressáo linguística, mas de um ato realizado por Joáo. Contraste com a seguinte situacáo: Joáo está expondo as metas da empresa para o proximo ano, e ele diz: O leiaute da nossa empresa precisa ser reformulado. E a Maria se pergunta: O que 'leiaute' significa? Neste caso, sim, estamos diante de uma indagacáo semántica, porque Maria se pergunta sobre o significado de uma palavra, a palavra 'leiaute', e a resposta deve ser um esclarecimento sobre o significado dessa palavra usando outras palavras: leiaute é o projeto do desenho gráfico de uma empresa. Maria aprendeu algo sobre a lingua (e náo sobre o mundo). Assim, uma primeira distincáo a ser tracada, no vasto domínio do termo significado, separa o significado linguístico, que é aquele veicu-lado pelas línguas naturais, e o significado náo-linguístico, que com-preende o significado que atribuímos a objetos (ou fatos) no mundo e a símbolos que náo sáo parte das línguas naturais. Vejamos um exemplo desse ultimo caso. Imagine a seguinte situacáo: numa aula para arquitetos de interior, um instrutor explica o significado de símbolos que devem constar num projeto arquitetónico para prédios, como o que apresentamos ao lado: - Esse símbolo - ele diz apontando para o slide na tela - significa que há acesso para cadeira de rodas. Tal uso do termo 'significa' deve fa-zer parte da linguística? Se voce respondeu negativamente, acertou. De Semäntica e pragmática: delimitando os campos fato, esse uso do termo näo se refere ao significado linguístico, embora na situac^o o falante esteja dando o significado de um símbolo. O pro-blema é que o símbolo em questäo näo é parte de urna língua natural. Ele é um símbolo näo-linguístico, embora convencional. Considere agora outra situac^o. A polícia está procurando um ca-sal que se perdeu numa floresta. De repente, os policiais veem fumac^ no céu e um deles diz: - Essa fumac^ significa que alguém fez urna fogueira. Mais urna vez, esse uso do significado näo é linguístico, porque se está atribuindo significado a um fenômeno no mundo. É o que ocorre quando, ao notarmos que urna crianc^ está com febre, dizemos: significa que ela está doente. Veja que näo se está esclarecendo o significado da palavra 'febre', mas o que ter febre no mundo pode estar indicando. A febre é um sinal de doen»;a, mas 'febre' näo significa, linguisticamente falando, doen^a. Em ne-nhum dos casos questiona-se sobre o significado de expressöes linguísticas, por isso eles näo fazem parte do campo da semäntica, cujo estudo se restrin-ge ao significado linguístico, isto é, äquele veiculado pelas línguas naturais. Chegamos, entäo, a um primeiro quadro, separando o significado linguístico do significado näo-linguístico, para nos concentrarmos adiante no significado linguístico, isto é, aquele que ocorre nas línguas naturais, e que é objeto de estudo da Semäntica. o Semántica 1.2 O Significado linguístico Uma primeira constatacáo é a de que náo bašta separar o significado linguístico do significado náo-linguístico para delimitar o campo da Semántica, porque o estudo do significado linguístico transborda as margens do que fazem os semanticistas, as margens da semántica, ocupando também a pauta das ciéncias cognitivas e, em particular, da Pragmática. Para desde já entendermos um pouco melhor as diferencas e relacóes entre semántica e pragmática, consideraremos a seguinte situacáo: a Maria é a empregada de Joana. Ambas sabem que a roupa está estendida no varal. De repente, Joana profere (3): (3) Tá chovendo. A Maria mais que depressa sai correndo para tirar a roupa do varal, dizendo: (4) Já tó indo tirar a roupa do varal. Veja que os atos de Maria, inclusive o ato linguístico (seu proferi-mento), náo respondem ou náo se relacionam diretamente á sentenca que Joana proferiu, mas decorrem dela. Se atentarmos apenas para o significado da sentenca, notaremos que a Joana afirma que, no momen-to em que ela profere a sentenca, é o caso de que está chovendo e nada mais. Ela náo pede explicitamente para que a Maria recolha a roupa do varal, mas é possível "deduzir" que foi isso que a Joana quis dizer se contextualizarmos a fala de Joana, isto é, se atentarmos para outros elementos dados pela situacáo de fala e que constituem o proferimento linguístico: Joana e Maria sabem que a roupa está no varal, que Maria é a empregada - ela é quem deve cuidar dos afazeres da casa - que chůva molha a roupa, que o que a Joana disse é verdade (a Joana náo está brincando) etc. Todas essas informacóes (e outras) constituem o fundo conversacional no qual o proferimento de Maria se realiza, e esse fundo permite um raciocínio inferencial, como: dada a situacáo, se a Joana disse que está chovendo é porque ela quer que a roupa sej a recolhida do varal. Tanto a resposta quanto os atos de Maria mostram que ela entendeu Qual é a relacáo entre significados linguísticos e o que acontece no nosso cérebro? 18 Semäntica e pragmätica: delimitando os campos Capitulo 01 o pedido indireto de Joana. Esse significado e tambem linguistico, por-que ele depende do que foi dito na situacäo, mas ele näo e propriamente semäntico, porque ele depende de um cälculo inferencial (da esfera da pragmätica) que envolve raciocinar com elementos contextuais a partir do significado da sentenca, este sim objeto da semäntica. Vejamos outra situacäo: Claudia e a mäe de Pedro, e ele estä se preparando para sair para a escola. Ela nota que ele näo estä levando nem capa de chuva, nem guarda-chuva, e ela sabe que estä chovendo. Entäo, ela profere: (5) Tä chovendo. A fala de sua mäe leva Pedro a pegar o guarda-chuva antes de sair. A sentenca (5) diz exatamente o mesmo que a sentenca (3): no momen-to em que o falante profere a sentenca e o caso de que estä chovendo - a semäntica das duas sentencas e a mesma. Mas, as inferencias mudaram, porque mudou o fundo conversacional em que se dä a interacäo lin-guistica. Nesse caso, os elementos na situacäo levam a outro raciocinio: se minha mäe disse que estä chovendo e porque ela quer que eu leve o guarda-chuva, para que eu näo me molhe. Assim, mesmo restringindo a nocäo de significado para a de significado linguistico podemos ainda delimitar dois aspectos de significado: um que estä atrelado ao significado da sentenca, a uma composicäo estrita do significado das palavras, e outro, que depende do significado da sentenca mais informacöes sobre a situacäo em que a sentenca e pro-ferida pelo falante. Essa e a distincäo entre o significado da sentenca e o significado do falante, respectivamente. '-\ Podemos, grosso modo, dizer que ä Semäntica cabe o estudo do significado da sentenca, enquanto cabe ä Pragmätica o estudo do significado do falante. 19 Näo é difícil encontrar na literatura a distin^äo entre significado da sentence e significado do falante sendo estabelecida através da auséncia ou presence do contexto para o cálculo do significado - algo como: a semántica estuda o significado fora do contexto ("fora de uso"). No entan-to, é preciso tomar cuidado com essa definic^o porque a interpretac^o do sentido da sentence muitas vezeš leva em considerac^o o contexto, a situac^o de fala. Por exemplo, o significado da sentence (3) e (5) é: no momento em que a sentence é proferida, é o caso de que está chovendo. Assim, essa sentence é verdadeira somente se, quando o falante a pro-fere, é o caso de que está chovendo, náo importa se no contexto de (3) ou de (5). Note, contudo, que incorporamos o contexto nessa descric^o porque é necessário saber quando o falante profere (3) ou (5): ora, a ver-dade da sentence depende de estar ou náo chovendo quando a sentence é pronunciada, e o quando (data, hora) näo säo linguísticos, mas estáo presentes na determinac^o do significado da senten^a. Vejamos outro exemplo. A sentence (6) Eu estou com fome. Significa que o falante, no momento em que profere a sentence, está num estado de fome. Num mesmo momento, ela pode ser verdadeira para um falante e falsa para outro. Ou ela pode ser verdadeira para um falante num momento e falsa para o mesmo falante em outro momento. Sem levarmos em considerac^o o contexto, näo há como es-tabelecer plenamente o significado dessa sentence (e da maior parte das sentenc^s nas linguas naturais). Uma maneira mais segura de separar a semántica da pragmática é através da no9äo de intenc^o do falante: a pragmática busca reconstruir o que o falante quis dizer ao proferir uma sentence, qual era a sua inten-9äo comunicativa; é importante notár que se trata de intenc^o comuni-cativa, isto é, o falante quer que o ouvinte perceba sua intenc^o ao proferir uma dada sentenc^. Há, evidentemente, outras intenc^es para alem da comunicativa, mas essas näo pertencem ao domínio da linguística. Semäntica e pragmática: delimitando os campos Capítulo 01 Nos termos do filósofo Paul Grice, a Semäntica se ocupa do signifi-cado literal (ou gramatical), da sentenca, enquanto a Pragmática estuda o significado do falante. Nessa visäo, a semäntica tem como objetivo reconstruir o sentido da sentenca, porque a composicäo de palavras for-nece significado ä sentenca. Ambas remetem ao contexto, mas o fazem com finalidades distintas. Como voce pode ter notado, as relacöes entre semäntica e prag- mática säo bastante estreitas e as questöes levantadas pela pragmática Herbert Paul Grice (1913-1988) Observe outro exemplo, com base nesse quadro: Suponha que Maria responda ä pergunta 'Quem quer namorar urn semanticista?' usando a seguinte sentenca: 'A Teresa quer namorar urn semanticista'. Com esse proferimento, e possivel salientar duas interpretacöes semänticas (a e b a seguir) se o proferimento e feito fora de algum contexto especifico, e no minimo quatro interpretacöes pragmäticas (c, d, e, f ) podem ser tomadas, somente depois que escolhermos entre (a) ou (b): a) A Teresa quer namorar urn determinado individuo, que e semanticista. b) A Teresa quer namorar alguem, desde que seja urn semanticista. c) A Teresa quer namorar urn determinado individuo, semanticista: ela sabe quern e, mas näo Maria, porque Teresa näo lhe revelou o seu nome. filósofo da linguagem. Significado do falante (SF). O que o faltante quer dizer com a sentenca que ele profere. 21 d) A Teresa quer namorar um determinado individuo semanticista: tambem disse a Maria como se chama e o apresentou a ela, mas Maria, por precaucäo, näo julga oportuno entrar em particulares. e) A Teresa esta interessada em um determinado individuo e deseja namora-lo, que a Maria sabe quem e. Ocorre que a Maria tambem sabe que e um semanticista. Neste ponto näo e relevante decidir se a Teresa sabe disso ou näo. O fato e que a Maria julga que, como a Teresa esta defendendo uma tese em Sintaxe, os dois näo poderäo nunca se entender e aquele namoro näo vai aconte-cer (suponha que sintaticistas e semanticistas näo se combinam ou säo rivais). Ou seja, a Maria exprime aos interlocutores (que conhecem muito bem as ideias de Teresa) a sua perplexidade. f) A Teresa quer namorar um determinado individuo, que e semanticista; a Teresa terminou com um namorado que estuda sintaxe, assim como ela. Mas, nesse ponto, a Teresa quer fazer ciümes ao ex- namorado, namorando um semanticista. Todos sabem que o ex-namorado de Teresa odeia semanticistas e isto seria muito penoso para ele. No exemplo acima, a sentenca traz duas interpretacöes semänticas, visiveis em (a) e em (b); isto e, a sentenca A Tereza quer namorar um semanticista' e ambigua. Cada interpretacäo pode ainda disparar outras inümeras interpretacöes pragmäticas, como exemplificado de (c) a (f). Percebe-se que na pragmätica outras informacöes säo necessärias, como, por exemplo, as intencöes de Tereza presente na interpretacäo pragmätica (f): ela quer fazer ciümes ao ex-namorado, que o ex-namorado odeia semanticistas etc. Mais uma vez, na pragmätica, o falante mobiliza outras informacöes alem daquelas oriundas do significado da sentenca, como, por exemplo, o conhecimento previo dos interlocutores, as intencöes, o que ja foi dito antes etc. A ideia e que a pragmätica precisa do significado da sentenca, aliado äs intencöes do falante no mo-mento de proferimento da sentenca. Semäntica e pragmática: delimitando os campos 1.3 A noqäo de significado Esta Unidade comecou com a explicacäo da nocäo de significado nos limites da Semäntica. Para a Semäntica, significado se restringe ao que as sentencas de urna língua veiculam, sem levar em consideracäo a intencäo do falante. Mas, mesmo essa nocäo restrita precisa ainda ser melhor compreendida. Essa foi urna das muitas contribuicöes de Gottlob Frege para a semäntica das línguas naturais. Frege, no famoso artigo "Sobre o Sentido e a Referencia" (1892, Über Sinn und Bedeutung), mostra que é preci-so distinguir facetas no conceito de significado, pois se näo separamos esses aspectos näo entendemos as razöes das sentencas (7) e (8) serem semanticamente distintas, tendo em vista que em ambas se estabelece urna identidade entre dois nomes próprios: (7) A Estrela da Manhä é a Estrela da Manhä. (8) A Estrela da Manhä é a Estrela da Tarde. Gottlob Frege foi um matemático e filósofo alemäo que viveu entre 1848 e 1925, e é reconhecido como o pai da semäntica formal. Suas pesquisas influenciaram áreas da lógica, da filosofia e dos estudos do significado. Muitos dos conceitos que utilizamos em semäntica formal säo frutos do seu trabalho, como o princípio da composicionalidade, a formalizacäo dos quantificadores, a distincäo entre sentido e referencia. Com suas pesquisas, Frege praticamente lancou a agenda dos estudos em semäntica, discutindo problemas como a pressuposicäo, atitudes proposicionais, intensäo versus extensäo. A distincäo entre sentido e referencia, crucial em seu pensamento, pode também ser entendida como o que significa exatamente o sinal de identidade '=' e o que ele relaciona. Se retornamos ao nosso par de exemplos. (7) A Estrela da Manhä é a Estrela da Manhä. V_ (w8) A Estrela da Manhá é a Estrela da Tarde. Podemos dizer que vemos relacionado em (7) e em (8) náo referéncias, mas sim sentidos. A identidade do objeto no mundo garante que es-tamos diante de maneiras distintas de atingirmos esse objeto. Por isso, (8) é uma sentenca interessante: ao informarmos sentidos diferentes para um mesmo objeto, aprendemos algo novo sobre o mundo. A sentence (7) é chamada de analítica, porque ela é verdadeira sempře, independente de como o mundo é - ora, se uma sentence é sempře verdadeira, independentemente dos fatos, podemos dizer que ela näo é informativa, ou sej a, näo aprendemos nada com ela. Proferir uma sentence analítica, que é obviamente verdadeira, dis-para imediatamente uma implicatura, uma inferéncia pragmática. Se o falante está dizendo algo que é trivialmente verdadeiro, entäo é porque ele está querendo dizer outra coisa; afinal, por que diríamos algo que (todos sabem que) é sempře verdadeiro? Podemos pensar o seguinte: no caso de alguém dizer'0 Joáo é o Joáo; em que o ouvinte conhece o Joáo e sabe que ele tem uma característica marcante (por exemplo, ser extremamente meticuloso), o significado do falante ao proferir'0 Joáo é o Joáo'é justamente chamar a atencáo para essa característica do Joáo (pense em casos como'Máe é máe'). Voltando ä sentenc^ (7), vemos que ela estabelece uma identidade entre o mesmo nome, 'A Estrela da Manhä'. Por sua vez, a senten^a (8) estabelece uma identidade entre nomes diferentes; como em 'O Joäo e o Joäo Paulo'. Nesse caso, temos uma sentenc^ informativa: suponha que voce sabe quem e o Joäo, mas näo sabe quem e o Joäo Paulo; ao ouvir que Semäntica e pragmática: delimitando os campos Capítulo 01 'O Joäo é o Joäo Paulo' vocé aprendeu algo novo, que o Joäo tem dois nomes: 'Joäo' e 'Joäo Paulo'. É claro que a verdade (ou a falsidade) da sentenca (8) depende de como o mundo é. Näo é necessário que o Joäo tenha os nomes 'Joäo' e 'Joäo Paulo'; podemos pensar em vários mundos parecidos com o nosso, em que Joäo tem apenas um nome. O mesmo se aplica ä sentenca (8): que 'Estrela da Manhä' e 'Estrela da Tarde' sej am dois nomes para um mesmo objeto no mundo - o planeta Vénus - é algo contingente (e näo necessário). Sentencas como (8) säo sintéticas, pre-cisamente porque sua verdade ou falsidade depende de como o mundo é. No nosso mundo, a sentenca (8) é verdadeira. Veja que podemos imaginär um mundo em que (8) sej a falsa: basta que 'A Estrela da Manhä' e A Estrela da Tarde' denotam objetos distintos. A teoria clássica de significado, ä qual Frege se contrapös, entendia que o significado de uma expressäo era o objeto no mundo. Assim, o significado de 'Estrela da manhä' seria o objeto no mundo, no caso o planeta Vénus. Mas, se fosse esse o caso, como é que diferenciaríamos (7) e (8)? Dado que ambas säo verdadeiras, entäo elas denotam o mesmo objeto. Se este é o caso, como percebemos que elas säo diferentes? Como é que descobrimos que 'Estrela da Manhä' e 'Estrela da Tarde' säo dois nomes diferentes se o significado é objeto no mundo? Näo há como. A solucäo proposta por Frege é distinguir aspectos do termo significado: quando sabemos o significado de uma sentenca sabe- mos duas "coisas": a que objeto ela se refere e o sentido da expressäo, isto é, o pensamento que está associado äquela expressäo. O que diferencia (7) e (8) é o fato de que seu sentido é diferente; o pensamento que elas veiculam näo é o mesmo, embora elas denotem o mesmo objeto. Frege mostrou, entäo, que a nocäo de significado comporta duas "facetas", ambas objetivas, porque publicamente acessíveis: o sentido e a referéncia. '-\ A referéncia é o objeto no mundo, enquanto o sentido é o modo de apresentacäo do objeto, como conhecemos esse objeto, o ca-minho que nos leva até ele. 25 Um mesmo objeto pode ser apresentado de diferentes maneiras, por caminhos diversos. Quando nos deparamos com um novo "cami-nho", um novo sentido, aprendemos algo a mais sob re o objeto. Em (8) temos dois caminhos, 'Estrela da Manhä' e 'Estrela da Tarde', para uma única referencia, o planeta Vénus, como mostra o desenho a seguir (ver lado direito), enquanto em (7) temos um único caminho, 'Estrela da Manhä', para a referencia (ver lado esquerdo): Quanto mais sentidos temos para chegar a um mesmo objeto, mais sabemos sobre esse objeto; podemos abordá-lo através de mais entradas. Considere o seguinte Clarice Lispector. Esse indivíduo é alcancado pelo nome proprio 'Clarice Lispector. Mas, podemos alcancá-lo usando outras expressöes que funcionam como um nome proprio, isto é, que permitem alcancar um e apenas um indivíduo. As descricöes definidas cumprem essa funcäo, por isso mesmo Frege também as denomina de nomes pró-prios. Eis algumas descricöes definidas que alcancam o indivíduo Clarice Lispector: 'a escritora ucraniana mais famosa do Brasiľ, 'a autora de A Hora da Estrela'. Se, por exemplo, voce näo sabia que a Clarice Lispector era ucraniana, ao interpretar a sentenca 'Clarice Lispector é a escritora ucraniana mais famosa do Brasil' voce aprendeu algo a mais sobre ela. Aprendemos sobre o mundo através de sentencas sintéticas. Contudo, aqui é preciso fazer uma ressalva: näo se deve confundir o caso de (8) com a sinonímia. Em (8), näo temos um exemplo de sinonimia, porque há dois sentidos que säo identificados, i.e., há duas representacöes para o mesmo objeto. Na sinonímia temos um único sentido (um único caminho) veiculado por expressöes distintas, por isso sinonímias säo sentencas analíticas; mais adiante, no proximo tópico, veremos detalhada-mente a nocäo de sinonímia; por enquanto, nos bašta apenas um exemplo: Estrela da Manhä Estrela da Manhä Estrela da Tarde Semäntica e pragmática: delimitando os campos (9) 'A Maria é mulher de Pedro' é o mesmo que A Maria é esposa de Pedro'. O que caracteriza a sinonímia é expressar o mesmo pensamento (o mesmo conceito), o mesmo sentido, através de expressöes distintas: 'ser esposa de' e 'ser mulher de' veiculam o mesmo conceito através de palavras diferentes. Se é o caso de que a Maria é mulher do Pedro, tem que ser o caso, necessariamente, de que a Maria é esposa de Pedro. Näo é possível imaginär um mundo em que seja verdadeiro que a Maria é a mulher do Pedro e outro em que é falso que ela é a esposa do Pedro. É dife-rente, é claro, usar 'ser esposa de' e 'ser mulher de', mas essa diferenc^ näo é semäntica, näo se dá no piano dos conceitos; essa diferenc^ é sociolin-guística: 'esposa' é urna palavra mais formal do que 'mulher', por exemplo. Nesse caso, esposa' e 'mulher' säo um único caminho. Näo há, portanto, acréscimo de informac^o sobre o mundo: se vocé j á sabe que a Maria é mulher do Pedro, dizer que ela é esposa näo acrescenta informac^o sobre o mundo. O que pode ocorrer é urna aprendizagem sobre a linguagem: aprende-se urna nova expressäo, sem haver acréscimo de sentido. 1.4 ConsideracxĎes fínais Ao fim deste Tópico, vocé já deve estar familiarizado com o campo de estudo da Semäntica. Assim como para quaisquer campos de investi-ga$äo científica, é imprescindível que separemos nosso objeto de estudo dos objetos das demais disciplinas - próximos ou distantes a ele. Para o caso da Semäntica, vimos que ela estuda o significado da sentenc^; num segundo momento, isolamos esse significado do uso que fazemos dele, o qual é, por sua vez, o campo de estudo da Pragmática. Comec^mos a ver também as primeiras ideias de Frege e o ferramen-tal básico do semanticista, como os conceitos de sentido e de referencia. Nos tópicos a seguir, exploraremos cada vez mais essas ideias e conceitos. O conhecimento semántico e os nexos de significado Capítulo 02 2 O conhecimento semántico e os nexos de significado: acarretamento, contradi^áo e sinonímia Voce vai ver aqui o que é e como é o conhecimento semántico. Ele é nosso objeto de estudos e se caracteriza por delimitar as condicoes de verdade de uma sentenca, pela composicionalidade e pelos nexos semánticos, entre eles o acarretamento, a sinonímia e a contradicáo. 2.1 Conhecimento semantico (implfcito) O objeto de estudo da Semantica nao e propriamente o significado das sentences, mas a capacidade que um falante tern para interpretar qualquer sentence de sua lingua. Esse conhecimento implicito nao se resume no conhecimento do significado das partes de uma sentence, mas na capacidade de combina-los recursivamente e de a partir dele deduzir outros significados. A pergunta da semantica e: o que um falante (de uma lingua natural) sabe quando sabe o sentido de uma sentence qualquer de sua lingua? Responder a essa pergunta e construir uma teoria sobre um tipo particular de conhecimento: o conhecimento que um falante tern do significado das sentences (e palavras) de sua lingua. Evidentemente, esse conhecimento e implicito, isto e, o falante tern esse conhecimento e o utiliza nas suas interacts cotidianas, mas nao sabe descreve-lo, nao o conhece conscientemente. Ele e como o conhecimento implicito que temos e que nos permite caminhar: sabemos caminhar, mas sao poucos (se e que ha alguem) os que sabem todos os passos que permitem que caminhemos: quais articulac^es se movem ou quais musculos e nervos sensorials estao envolvidos, por exemplo. O mesmo ocorre com o conhecimento que temos do significado das sentences: sabemos o que as sentences da nossa lingua significam, mas nao sabemos descrever e explicar cientificamente esse conhecimento. Este e justamente o objetivo do semanticista: descrever e explicar esse conhecimento semantico que um falante tern. 29 Neste Töpico, vamos responder, parcialmente, essa questäo: o que um falante sabe quando sabe o significado de uma sentenca qualquer de sua lingua? Certamente, ele sabe em que condicöes uma sentenca qualquer de sua lingua e verdadeira, e em que momentos ela e ou näo verda-deiramente usada. Ele tambem sabe compor e interpretar sentencas que nunca ouviu antes. Finalmente, ele sabe deduzir de uma sentenca outras sentencas. Antes de lidar especificamente com cada um desses conheci-mentos, vamos exemplificä-los rapidamente. Suponha que alguem peca para voce dizer o que a sentenca 'Tä cho-vendo' significa. Voce certamente sabe a resposta e uma maneira muito frequente de explicar e dizer quando a sentenca 'Tä chovendo' e verdadeira: a sentenca 'Tä chovendo' e verdadeira se estä chovendo quando o falante a profere. Esse seu conhecimento näo se restringe, obviamente, a essa sentenca, ele se aplica a qualquer outra; ate mesmo a uma sentenca que voce nunca ouviu antes. Muito provavelmente, voce nunca ouviu ou leu a sentenca a seguir: (1) Uma nuvem alaranjada tomou devagarzinho o quarto de Sara. Voce näo tem qualquer problema em imaginär como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, certo? Como voce sabe isso? Ora, voce sabe o que as palavras em (1) significam e sabe combinä--las, por isso voce pode interpretar um nümero infinito de sentencas. Veja que se voce sabe que a sentenca (1) e verdadeira, voce sabe outras sentencas, como: (2) Hä um ünico quarto que e de Sara. (3) O evento (a nuvem alaranjada tomar devagarzinho o quarto de Sara) ocorreu no passado. Esse outro conhecimento e derivado do fato de que voce entendeu a sentenca (1). Assim, quando sabemos o significado de uma sentenca, sabemos, inevitavelmente, o significado de muitas outras sentencas que estäo "enredadas" nela. O conhecimento semäntico e os nexos de significado Capítulo 02 Faz parte desse conhecimento a capacidade de parafrasear. Ini- Tradicionalmente, a pará-frase é entendida como alternatíva de expressäo que mantém o mesmo sentido. (5) Maria é mais gorda que Joana ~ Joana é mais magra que Maria. (6) Maria atravessou a Avenida Paulista ~ Maria cruzou a avenida paulista. (7) A casa de Maria fica atrás do Hospital ~ O hospital fica na fren-te da casa de Maria. Há ainda a paráfrase desencadeada pelas sentenc^s, que é a que nos interessa aqui. Algumas operaijóes sintáticas permitem que algumas sentenc^s derivem o mesmo sentido. Certas operaijóes fazem esse papel de conservar o mesmo sentido, como a nominalizac^o, a substituic^o de formas verbais (finita x infinita) ou o a^amento de verbos, como nos mostram as sentenc^s a seguir, respectivamente: (8) Os gafanhotos destruíram a cidade ~ A destruic^o da cidade pelos gafanhotos. (9) Nas férias, era comum eu estudar semäntica ~ Nas férias, era comum que eu estudasse semäntica. (10) Em época de eleÍ9Ôes, foi preciso que a Polícia Federal inter-viesse em algumas cidades ~ Em época de eleÍ9Ôes, a Polícia Federal precisou intervir em algumas cidades. Como esse conhecimento pode ser explicado? Como descrever esse conhecimento através de urna teória do significado? A ideia é a de que, quando interpretamos qualquer sentenc;a em nossa língua, de algu-ma forma, construímos um esbo<;o de como o mundo deve ser para que a sentenc;a sej a verdadeira, suas condii^óes de verdade. cialmente, é preciso diferenciar entre urna paráfrase desencadeada pelo léxico daquela que a propria sentence opera. Eis alguns exemplos: (4) Joäo é vizinho de Pedro ~ Pedro é vizinho de Joäo. 31 2.2 Condicóes de verdade Como dissemos, um primeiro aspecto do conhecimento semäntico de um falante e que urna teória semäntica deve capturar é o fato de que ele sabe em que condicóes o mundo precisa estar para que urna sentenca sej a verdadeira. É por isso que na semäntica se afirma que o significado de urna sentenca säo as suas condicóes de verdade. Sublinhe-se que se trata de condicóes de verdade, isto é, o falante pode näo saber se a sentenca é efetivamente verdadeira ou falsa; o que interessa é que ele com certeza sabe em que condicóes ela pode receber um ou outro valor de verdade: o verdadeiro ou o falso. Por exemplo, podemos dizer preci-samente em que condicóes a sentenca (11) pode ser verdadeira (suas condicóes de verdade) sem que possa- mos verificar se ela de fato é verdadeira: (11) Tem 531 insetos no meu jardim neste momento. A Semäntica näo lida com o uso da sentenca, mas com a sentenca em sua potencialidade de uso. As condicóes de verdade expressam o conhecimento mínimo que um falante tem quando ele sabe o que urna sentenca significa: o potenciál de uso dessa sentenca. O mínimo que ele sabe, se ele entende urna sentenca, é separar, através dela, o mundo em dois blocos: de um lado, as situacóes em que a sentenca é verdadeira; de outro, aquelas em que ela é falsa. Ao ouvir a sentenca 'tá chovendo', um falante do PB delimita dois "esbocos" de mundo: 'Tá chovendo' é falsa 'Tá chovendo' é verdadeira O falante sabe que a sentenca 'Tá chovendo' é falsa nos mundos ä esquerda do quadro; e é verdadeira nos mundos ä direita. É nesse sen-tido que urna sentenca desenha um esboco de como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, o que significa que ela também desenha os mundos em que é falsa. Assim, urna sentenca estabelece urna relacäo entre linguagem e estados de mundo (ou mundos), deixando espaco 0 conhecimento semäntico e os nexos de significado Capitulo 02 para muita vagueza e indeterminacäo, dois fenömenos semänticos bem interessantes, por isso falamos em esboco. O significado de uma sentenca e sempre (e necessariamente) in-determinado, precisamente porque ele recobre inümeras situacöes (no nosso exemplo, situacöes em que estä uma chuva fraca, chuva com sol, chuva forte, chuvinha...) em que ela e verdadeira. A indeterminacäo deve ser distinguida da vagueza, o fato de que muitas vezes näo temos certeza se a sentenca e verdadeira ou näo em uma dada situacäo. Por exemplo, se no momento em que 'Tä chovendo' e proferida falante e ou-vinte estäo numa situacäo em que estä uma chuvinha bem fininha pode-ria ser dificil de definir se estä ou näo chovendo, ou se eles estäo numa forte maresia, por exemplo. Estamos, nessa situacäo, num caso limite em que tanto e possivel afirmar que estä chovendo, quanto que näo estä. A indeterminacäo vem do fato de que uma mesma sentenca e verdadeira em muitas situacöes diferentes, sem que o falante tenha düvida sobre se a sentenca se aplica ou näo ä situacäo. Por exemplo, estamos numa situacäo em que nenhum de nös tem düvida sobre se estä ou näo chovendo; estamos de acordo que estä chovendo. Mas, säo inümeras as situacöes em que isso ocorre: estä chovendo e frio; estä chovendo e ca-lor; estä chovendo forte, muito forte, e uma tempestade etc. O significado de uma sentenca estabelece, entäo, em que condicöes no mundo ela e verdadeira e, portanto, em que condicöes ela e falsa. Esse modelo permite entendermos como se dä a troca de informacäo atraves da linguagem. Suponha que um amigo seu telefone de Säo Paulo e pergunte: (12) Como estä o tempo ai? '-\ A palavra 'ai'e um deitico, isto e, uma expressäo linguistica cujo significado sö e plenamente determinado (interpretado) se se levar em consideracäo a situacäo de fala.Trata-se assim de um elemento variävel cuja interpretacäo depende do contexto: se o ouvinte estä k_J 33 '-N em Salvador, 'aí'significa Salvador; se ele está em Manaus, significa Manaus, e assim por diante. Os exemplos claros de déiticos säo os pronomes pessoais, como 'eu' e 'vocé': quando eu falo 'eu' refiro- -me a mim, que sou o falante, e o 'vocé' refere-se ao ouvinte, vocé; quando vocé fala, 'vocé' passa a ser eu e 'eu' passa a ser vocé. Con- fundiu? Entäo leia aten- tamente prestando atencäo na presenca e auséncia de aspas simples que indicam a língua-objeto, isto é, a língua que estamos explicando. V__J Suponha que o ouvinte, a quem foi enderec^da a pergunta (12), esteja em Florianópolis. Nesse caso, 'af significa Florianópolis, o lugar onde o ouvinte está. Logo, o falante pergunta sobre o tempo em Florianópolis, urna informac^o que o ouvinte tem, já que ele está em Florianópolis. Se o falante näo sabe como está o tempo em Florianópolis, entäo seu estado de conhecimento inclui mundos em que chove em Florianópolis e mundos em que näo chove em Florianópolis; é por isso mesmo que ele faz a pergunta sobre o tempo. Ao ouvir 'Tá chovendo' como resposta, há urna mudanc^ no estado de conhecimento do falante: agora ele sabe sobre o tempo em Florianópolis. Quando dizemos que o falante tem conhecimento semäntico, que-remos dizer que ele sabe em que condi<;öes urna sentenc^ qualquer de urna língua pode ou näo ser verdadeira. Um semanticista procura des-vendar esse conhecimento, construindo urna teória do significado. Para tal empreendimento, ele utiliza o que se denomina metalinguagem, que iremos discutir no próximo Capítulo. 2.3 Composicionalidade Urna outra característica do conhecimento semäntico de um falante e que, portanto, deve ser apreendida por urna teória do significa- do linguístico, é a composicionalidade. Quando um falante sabe o significado de urna senten9a, ele sabe näo apenas suas condi<;öes de verdade, 0 conhecimento semäntico e os nexos de significado ele sabe tambem "compö-la" e "decompö-la". Se o falante entende a sentenca 'Tä chovendo', ele sabe o significado de 'estar' e 'chovendo' e, na verdade, sabe que 'chovendo' se decompöe em 'chov(e)-' e '-ndo'. Sabe ainda que essas "unidades" mantem o mesmo significado em infinitas sentencas nas quais elas podem ocorrer. Por exemplo, veja que 'chov(e)-' da a mesma contribuicäo nos diferentes contextos em que aparece - de passagem, urn falante tambem sabe que o significado de 'chover' estä relacionado com chuva: (13) a. Vai chover. O falante sabe ainda qual e a contribuicäo do progressivo, represen-tado em 'Tä chovendo' pela perifrase verbal 'estar V+ndo' ('estou can-tando', 'estä falando'). Ele sabe que no contexto em que 'Tä chovendo' e proferida, a perifrase indica progressividade, isto e, o evento descrito, o evento de chuva, estä ocorrendo simultaneamente ao momento de fala, como aparece no esquema a seguir: A composicionalidade expressa o fato de que urn falante sabe com-por o significado de uma sentenca a partir do significado de partes mi-nimas, isto e, o significado de uma expressäo mais complexa e o resul-tado de uma composicäo de suas partes. No caso de 'Tä chovendo', o falante "soma" o significado de 'chov(e)-' mais o significado da perifrase 'estar + -ndo' e calcula o significado da sentenca 'estä chovendo.' b. Choveu ontem. c. Choveria, se näo estivesse ventando. Semäntica A composicionalidade explica a criatividade, a capacidade de es-tarmos a todo instante construindo e interpretando sentencas que nunca ouvimos antes. É muito provável que ninguém que esteja lendo este Manuál j á tenha encontrado a sentenca a seguir, mas nenhum de nós tem qualquer problema em interpretá-la, isto é, todos nós sabemos em que condicôes ela é verdadeira: 13) O gato azul está de ponta-cabeca. Essa sentenca é verdadeira em todos os mundos em que há um úni-co gato saliente no contexto e esse gato é azul e ele está de ponta-cabeca. Näo temos problema algum para interpretá-la porque conhecemos o significado de cada um dos termos que a compóem. Chomsky foi o primeiro, na linguística, a chamar a atencäo para o Com a obra Syntactic Structures (1957) fato de que os falantes säo criativos, porque produzem e inter- pretam sentencas que nunca ouviram antes. Esse fato, aparentemente täo trivial, refutou tanto as teorias comportamentais da aprendizagem (que acreditam que as linguas humanas säo aprendidas por estimulo e res-posta) quanto as teorias estruturalistas sobre a linguagem humana (que entendiam, grosso modo, que a linguagem era um conjunto "fecha- do" de sentencas). Chomsky mostra que a linguagem e aberta, infinita, in-determinada, mas previsivel no sentido de que podemos "calcular" o novo, porque sabemos "construir" sentencas a partir do significado de unidades minimas (ätomos) e regras de combinacäo, que säo recursivas, isto e, se aplicam repetidamente, em diferentes situacöes. Segundo Chomsky, Hauser e Fitch (2002), a recursividade e a proprie-dade que distingue a linguagem dos seres humanos da linguagem dos demais animais. Somente na linguagem dos seres humanos e 36 O conhecimento semäntico e os nexos de significado Capítulo 02 '-\ possível "calcular"o novo. Se uma abelha tem de comunicar a outras abelhas que o inimigo vem chegando, ela se utiliza de um conjunto de fatores, a danca, a batida das asas, o zumbido etc., que devem ser desempenhados de uma única forma, senäo as outras abelhas näo väo entendé-la. Ou seja, há um único caminho para se chegar ao ob-jetivo. Em outras palavras, as abelhas näo tém capacidade de fazer paráfrases, nem de criar novos proferimentos. Já na linguagem huma-na säo possíveis infinitas maneiras de se alcancar tal objetivo, ou, nos termos de Frege, diferentes sentidos para se chegar a uma referencia. V_) Na sentenca "la chovendo', combinamos o significado de 'chov(e)-' com o significado do progressivo, atraves de uma regra que permite combi-nar radicais verbais com a perifrase progressiva, estar -ndo'. Essa regra de combinacao e a mesma que recorre em inumeras outras sentencas da lingua (como em esta nevando', esta chuviscando^ esta amando', esta falando' etc.). Evidentemente, um dos problemas que o semanticista enfrenta é determinar quais säo as unidades mínimas e como elas säo adquiridas pelo falante. A determinacäo das unidades mínimas para constituir o léxico de uma lingua é uma tarefa bastante complexa e que se dá na interface com a morfológia. Considere, por exemplo, a sentenca: (14) O Joao saiu apressado. Certamente, o lexico deve conter um item para 'sair', uma raiz como 'sa(i)-', que se combina com diferentes flexoes, cada uma delas conglomerando significados: '-u' indica terceira pessoa do singular do preterito perfeito do indicative Compare com: Recapitule algumas nocôes de Morfológia em: MARGOTTI, FelicioW. Morfológia do Portugués. Florianópolis:LLV/CCE/ USFC, 2008. (15) O Joäo saía apressado. As sentencas (14) e (15) náo tem o mesmo significado e a diferen-9a, neste caso, está no aspecto: o primeiro é perfectivo; o segundo, imperfectivo. 37 Veja que no léxico estäo o radical e os sufixos tempo-aspectuais. Já 'apressado' é mais complicado: vamos colocá-lo no léxico nessa forma? Ou será que no léxico deve aparecer apenas 'pressa' e 'apressado' deve ser gerado via urna regra de derivacäo morfológica que passa do adje-tivo 'pressa' para o verbo 'apressar' e, finalmente, a forma de particípio passado do verbo ou de adjetivo 'apressado'? Esses säo problemas de quem estuda morfológia e também do semanticista que determina os átomos de significacäo. 2.4 Nexos semanticos Outra propriedade que caracteriza o conhecimento semäntico de um falante é sua capacidade de deduzir sentencas de outras sentencas. O falante näo sabe apenas em que condicóes uma sentenca é verdadeira e como (de)compô-la, ele sabe outras sentencas quando ele sabe uma sentenca. Por exemplo, suponha que a sentenca 'Tá chovendo' seja verdadeira . Nesse caso, o falante também sabe que a sentenca (16) é falsa, e que a sentenca (17) é verdadeira: (16) Näo tá chovendo. (17) Tá caindo chuva. Se 'Tá chovendo' for falsa, obtemos um resultado oposto e com-pletamente previsível: (16) é verdadeira e (17) é falsa. Sabemos isso simplesmente porque entendemos o que uma sentenca significa e esse entendimento envolve conhecer outras sentencas que estäo semantica-mente relacionadas ä sentenca conhecida. O par 'Tá chovendo' e 'Näo tá chovendo' exemplifica um caso de contradicäo: se a primeira é verdadeira, a segunda tem que ser (necessa-riamente) falsa e vice-versa. Em outros termos, suponha que A e B säo sentencas quaisquer de urna lingua, e que V e F estäo por "verdadeiro" e "falso", respectivamente; assim, urna contradicäo ocorre quando: O conhecimento semäntico e os nexos de significado se A é V, B é F (e vice-versa) Sentenc^s contraditórias säo sentenc^s que näo podem ser simulta-neamente verdadeiras: se está chovendo näo pode ser o caso de que näo está chovendo (e vice-versa). Alguém pode replicar o seguinte: mas äs vezeš a gente diz 'tá e näo tá chovendo'. É verdade, mas, em geral, esses säo casos em que o falan-te está criando uma implicatura - raciocínios pragmáticos - ou casos de limites vagos para os quais näo há certeza sobre o uso da sentenc^. Em geral, é muito estranho afirmar contradi<;öes como 'Joäo é e näo é hörnern' e, por isso mesmo, elas tendem a disparar implicaturas: o que o falante quer ao proferir uma sentence contraditória é implicar que algumas características do predicado se aplicam, enquanto outras näo se aplicam. Assim, ao proferir a contradicěo acima o falante está impli-cando que em alguns aspectos Joäo é hörnern e em outros näo. Mas, essa é uma maneira de resolver a (aparente) contradicěo. A relacěo entre 'Tá chovendo' e 'Tá caindo chůva' é, ao mesmo tempo, de acarretamento e de sinonímia, que nada mais é do que um duplo acarretamento (ou acarretamento em mäo dupla). '-\ Uma sentenca A acarreta outra sentenca (B) se em todos os contextos em que A é verdadeira B também é verdadeira, por isso dizemos que, se há acarretamento, uma sentenca se segue necessariamente da outra. <_> Por exemplo, se está chovendo, entäo é certo que está cain- do chůva, afinal näo é possível imaginär uma situac^o em que es- teja chovendo sem que caia chůva do céu (deixe de lado os usos metafóricos envolvendo 'chover', como por exemplo 'está chovendo pétalas de rosa'). Note ainda que a sentence 'Tá caindo chůva' acarreta a sentence 'Tá chovendo': se está caindo chůva, entäo está chovendo. Quando há duplo acarretamento, temos sinonímia. Acarretamento (de A para B): Se A é V, entáo B é necessariamente V. Sinonímia: A acarreta B e B acarreta A. Note que a relac^o de acarretamento supóe uma "direcionalidade": se A é V, entáo B é necessariamente V. A sinonímia é o acarretamento de máo dupla porque ele vale nas duas direc^es. Mas, nem sempře acontece de termos o duplo acarretamento. Por exemplo, a sentence (18) acarreta a sentence (19), mas o contrário náo é verdadeiro, logo náo há sinonímia: (18) Joáo preparou o almo90. (19) Joáo fez algo. É claro que os mundos em que Joáo cozinhou o almoi^o sáo mundos em que ele fez algo (há, portanto, acarretamento de (18) para (19)), mas os mundos em que Joáo fez algo incluem outros mundos alem daqueles em que Joáo preparou o almoi^o: por exemplo, mundos em que ele fez o jantar, mundos em que ele saiu de casa, em que ele se levantou etc. (portanto (19) náo acarreta (18)). Veja o gráfico de acarretamento a seguir, no qual os balóes indicam conjuntos de mundos: o conjunto de mundos em que a sentence em (18) é verdadeira está incluído no conjunto de mundos em que (19) é verdadeira: \ Mundos em que o 7~ Mundos em que o Joáo preparou o almoco. O conhecimento semäntico e os nexos de significado Capítulo 02 Considere, agora, a relacao entre a sentenca (18) e a sentenca (20): (20) Joao fez o almoco. Suponha que 'preparar o almoco' significa 'fazer o almoco'. Logo, se (18) e verdadeira, (20) tambem e e vice-versa. Nesse caso, o conjunto de mundos em que (18) e verdadeira coincide exatamente com o conjunto de mundos em que (20) e verdadeira. Temos, assim, um caso de sinoni-mia. A figura representando o conjunto de mundos e a seguinte: Há outras relacóes entre as sentencas (muitas vezes chamadas de "nexos" semänticos) que säo objeto de estudos do semanticista, por exemplo, a pressuposicäo e a tautológia, dentre outros. Voltaremos a elas ao longo desta Disciplína, por enquanto vocé deve ter claro o conceito de contradicäo, acarretamento e o de sinonímia. Neste Capítulo tracamos as características do conhecimento que deve ser explicado pela teória semäntica que construímos. Säo elas: (1) O fato de que os falantes atribuem as condicóes de verdade de urna sentenca qualquer; (2) A capacidade que os falantes tém de construir e interpretar sentencas que eles nunca ouviram, porque eles sabem compor; (3) O fato de que os falantes deduzem sentencas de sentencas, säo os nexos semänticos. Mundos em que Joôo preparou o almogo Mundos em que Joôo fez o almogo J 2.5 Consideragóes finais 41 Metalinguagem Capitulo 03 3 Metalinguagem Neste capitulo vamos dar os primeiros passos para explicar como funciona uma semäntica verifuncional. Apresentaremos tambem exemplos de derivacäo semäntica, investigando o papel que argumentos e predicados desempenham nessas derivacöes. 3.1 Teorema-T A maneira mais usual na Semäntica de descrever o fato de que o falante sabe em que condic^öes uma sentence e verdadeira e utilizar o famoso Teorema-T: A sentenca Ta chovendo'e verdadeira em Portugues Brasileiro se e somente se (abreviado sse) estä chovendo no momento em que a sentenca e proferida. (TdeTarski, 1944) Uma senten9a-T pode parecer trivial, mas ela nao e, e e preciso entender o que esta por tras dela. Uma senten9a-T expressa um conhe-cimento: o conhecimento sobre o significado da sentenca. A impressao de trivialidade se explica porque tanto a lingua-objeto, aquela que que-remos explicar (e que sempre aparece marcada formalmente, atraves das aspas simples), quanto a metalinguagem, a linguagem que utilizamos para explicar a lingua-objeto, isto e, para estabelecer as condi9oes em que o mundo deve estar para que a sentence seja verdadeira, sao o portugues. Mas, compare: (1) A sentence 'ich Hebe dich' e verdadeira em alemao se e somente se o falante ama o ouvinte no momento de fala. Nesse caso, a senten9a-T parece menos trivial, porque a lingua-objeto e o alemäo, e damos sua condic^o de verdade usando o portugues como metalinguagem. As senten<;as-T podem ser facilmente generali- 43 Semäntica zadas através do esquema-T, a seguir, em que 'p' está por uma sentenca qualquer da língua-objeto e 'q' por uma sentenca da metalinguagem: Esquema-T: p é verdade na lingua X sse q A língua-objeto näo está sendo efetivamente usada, mas apenas mencionada. Suponha, por exemplo, a sentenca 'eu te amo'. Se ela é efetivamente usada, o falante se compromete com o que ela diz, isto é, o falante está expressando o que sente com relacäo ao ouvinte. Mas, veja que, neste Manual, näo estamos usando essa sentenca -feliz ou infelizmente, näo estamos expressando amor por ninguém quando a mobilizamos aqui. O que ocorre é que mencionamos a sentenca, tratamos dela como um objeto teórico, "fora de uso", para tentarmos entender o significado que ela tem em uso. Já as palavras e sentencas na metalinguagem estáo sendo usadas, isto é, utilizamos o conhecimento implícito sobre seu significado para explicar a lingua- objeto; a metalinguagem remete ao mundo ou a um modelo de mundo. Note a diferenca entre 'lua' e lua nos exemplos a seguir. No primeiro caso, estamos falando sobre a palavra 'lua', porém no segundo estamos usando lua para nos referirmos ao objeto lua no mundo. A sentenca (2) faz sentido, a sentenca (3) näo: (2) 'Lua' tem trés letras. (3) Lua tem trés letras. É por isso que a sentenca (4) expressa um conhecimento: (4) 'Lua' em portugués significa lua. 3.2 Analisando uma lingua Veja novamente, confor-me o Capítulo 1. Antes de mais nada, é importante salientar que todas as expressóes de uma lingua tém sentido e referencia. 44 Metalinguagem Capítulo 03 Na teoria semántica que adotamos, encontramos dois tipos de en-tidades no mundo: os objetos (ou indivíduos), que sáo particulares, e os valores de verdade, isto é, o verdadeiro e o falso. Este ultimo é um objeto muito peculiar e é comum os alunos térem muita dificuldade em enten-der as razóes de precisarmos desses objetos, mas isso se deve em parte a uma concepcáo muito "concretista" de objeto. Por exemplo, o numero 2 refere-se a um objeto no mundo, mas esse objeto náo é concrete É comum encontrarmos a seguinte crítica aos modelos referenciais de semántica: a que objeto no mundo se refere a beleza? Mas, essa apenas que o conceito de "objeto" foi mal compreendido, porque tem forte respaldo no conceito de objeto de senso comum, ou seja, de objeto con- creto. Pórem, náo é esse o caso. Os mundos do semanticista sáo modelos formais, constituídos por objetos entendidos matematicamente: valores para uma variável, como os números ou expressóes que preenchem os 'x', 'y' e 'z' das equacóes. É apenas por questóes didáticas que, em geral, esses modelos sáo apresentados através de exemplos de objetos coneretos. Assim, no modelo semántico, os elementos da lingua se referem ou a indivíduos (e conjuntos de indivíduos e conjuntos de conjuntos de indivíduos) ou a valores de verdade. Nessa proposta, cuja base é Frege, há dois tipos de expressóes na lingua: expressóes saturadas (ou completas) e expressóes insaturadas (ou incompletas). '-> As expressóes saturadas caracterizam-se por se referirem a um único objeto em particular no mundo, um indivíduo ou um valor de verdade. Um nome próprio, por exemplo, é uma expressáo saturada, porque se refere a um único indivíduo. Já um predicado, como'ser feliz', é insaturado, dado que ele náo se refere a um indivíduo em particular, mas sim a um conjunto de indivíduos: os indivíduos que sáo felizes. V_> É bastante intuitivo entender que os nomes próprios, como 'Joáo 'Maria', 'Luis' etc., se referem a um indivíduo em particular. Menos intuitivo é o fato de que, na Semántica, os nomes próprios tem sentido, porque o sentido é precisamente o que permite acessarmos um referente Estamos aqui trabalhan-do com um modelo bem simples, em que só há um indivíduo chamado 'Joáo'. E, de fato, na nossa vida é só aparentemente que há dois indivíduos chamados 'Joáo', porque no fundo o nome próprio inclui o sobrenome. 45 no mundo. Quando alguém diz 'Clarice Lispector' imediatamente acio-namos uma referencia, o indivíduo Clarice Lispector. Essa ponte da pa-lavra para o mundo é o sentido. No caso das expressóes saturadas, como os nomes próprios, essa ponte é entre uma expressäo da linguagem e um único indivíduo no mundo. Linguagem c . , Referencia (Mundo) Clarice O sentido é, pois, urna funcäo que associa a cada expressäo da lingua urna única referencia no mundo. A maneira usual de implementar-mos essa ideia na semäntica é através de urna funcäo de interpretacäo, normalmente representada por colchetes duplos [[ ]]. Assim, temos: [[Clarice Lispector]] = Clarice Lispector Lingua objeto MUNDO Entre os colchetes duplos temos a língua objeto, já do outro lado da equacáo temos um indivíduo. Note que estamos retornando á distincáo entre língua-objeto e metalinguagem. O sinal de igual é precisamente a funcáo de interpretacáo. Assim como os nomes próprios, as descricóes definidas ('o menino de azul', 'o atual presidente do Brasil' etc.) também sáo expressóes saturadas, porque se referem a um único indivíduo específico no mundo; por isso, para Frege, elas também sáo nomes próprios. Uma descricáo definida é uma expressáo complexa que se compóe de um artigo defini- Metalinguagem Capítulo 03 do e um predicado, e se refere a um e apenas um individuo no mundo. Na sentenca (5) Dilma é a atual presidenta do Brasil. Temos uma sentenca de identidade entre um nome proprio, 'Duma', e uma descricäo definida, 'a atual presidenta do Brasil'. Trata-se, ob-viamente, de uma sentenca sintética, porque é uma contingéncia histó-rica que a atual presidenta do Brasil seja a Dilma. Tanto o nome proprio quanto a descricäo definida se referem ao mesmo individuo no mundo, mas o fazem através de sentidos distintos (de funcöes diferentes): [[a atual presidenta do Brasil]] = Dilma [[Dilma]] = Dilma O ultimo caso de expressäo saturada säo as sentencas, como 'Joäo estuda', 'Maria trabalha', 'Pedro ama Joäo' etc. Sentencas obviamente näo se referem a um individuo em particular no mundo, mas a um valor de verdade. Sentencas säo verdadeiras ou falsas. Uma sentenca é uma expressäo saturada porque ela expressa um pensamento complete e permite alcancarmos um objeto em particular: ou a verdade ou o falso (enquanto objetos matemäticos!). Uma expressäo como 'O menino que estä de azul' näo expressa um pensamento completo, mas serve para apontar um individuo em particular no mundo - trata-se, portanto, de uma descricäo definida. Note que näo conseguimos ava-liar se é verdadeira ou falsa. Compare com 'O menino que estä de azul caiu da escada'. Nesse caso, temos uma sentenca, porque ha um pensamento completo e podemos, em confronto com um estado no mundo, afirmar se ela é verdadeira ou falsa. Como as descricöes definidas, as sentencas säo estruturas "complexas" e podem, portanto, ser decom-postas em ele- mentos menores. Essa decomposicäo é também objeto de estudo deste Manual. Por enquanto, basta entender que sentencas säo estruturas complexas saturadas que tem como referenda um objeto em particular: ou a verdade ou a falsidade. 47 Semäntica 3.2.1 Predicados e argumentos A partir de agora, vamos decompor sentencas. Decompor uma sentenca em suas unidades mínimas e mostrar as regras de composicao é um trabalho árduo que tem sido realizado pelos semanticistas ao lon-go de geracoes. Náo é possível apresentar essas conquistas de uma única vez, porque há várias questoes que sáo, muitas vezeš, bastante comple-xas. É por isso que essa decomposicao é feita por etapas. Vamos iniciar apresentando os conceitos básicos de argumento e de predicado, que sáo os paralelos na sintaxe dos conceitos de expressáo saturada e insatu-rada, respectivamente. Considere a sentence em (6): (6) Joáo estuda. Sua forma sintática pode ser grosseiramente representada por: A representacäo arbörea de uma sentenca visa a mimetizar uma pro- priedade fundamental das linguas naturais: o fato de que os elementos lingufsticos se combi-nam hierarquicamente e näo line-armente, como poderfamos jul-gar se nos contentässemos com a nossa percepcäo da linguagem em que, aparentemente, um ele-mento se segue a outro. A ideia de hierarquia de constituinte, grosso modo, os elementos a partir do qual uma sentenca e "montada" e no qual ela pode ser reduzida, e fundamental para a sintaxe como mostrou Noam Chomsky (1928-). A ideia, contudo, de que hä hierarquia na sintaxe e de usar repre-sentacöes arböreas e mais antiga. SN N T V Joäo estuda Intuitivamente, o significado da sentenca (6) é funcäo do signifi-cado de suas partes (composicionalidade): 'Joäo' e 'estuda'. Essas partes comportam-se, no entanto, de modo muito diferente. 'Joäo', como vi-mos, é um nome proprio e, como tal, se refere a um indivíduo especifico no mundo, é por isso uma expressäo saturada; em termos sintáticos, 'Joäo' é o argumento do predicado 'estuda'. Por sua vez, o predicado 'estuda' é uma expressäo insaturada porque ela näo se refere a um objeto em particular no mundo (nem a um indivíduo, nem a um valor de verdade). Alem disso, ela näo é uma estrutura completa, porque näo expressa um pensamento. 48 Metalinguagem estuda Sem maiores informac^oes, por exemplo, sobre de quern estamos falando, 'estuda' nao expressa um pensamento e nem e possivel averi-guar se e verdadeiro ou falso. E por isso mes- mo que essa expressao e insaturada, ela precisa de um "complemento" para se saturar. Uma vez saturada, ela vira uma sentence que veicula um pensamento completo e pode se referir a um objeto em particular. A expressao 'estuda' tern uma posiceo aberta, que pode ser preenchi- da por diferentes argumentos, gerando, entao, insaturada pode ser pensada como uma estrutura na qual ha um lugar vazio (uma Valencia), que quando completado gera uma sentence, que pode ser verdadeira ou falsa: estuda + Joäo = Joäo estuda Esse lugar pode ser preenchido por diferentes argumentos; cada argumente satura o predicado diferentemente, gerando sentenc^s diferentes: 'Joäo estuda', 'Maria estuda', 'O menino que está de azul estuda' etc. '-\ 0 resultado de saturarmos uma expressao insaturada é formar uma expressao saturada, uma sentenca, que se refere a um objeto, o verdadeiro ou o falso. <_J Dissemos que todas as expressóes da língua tém sentido e referencia. A que 'estuda' se refere? 'Estuda' é um predicado de um lugar, isto é, com uma posicěo aberta e por isso é chamado de predicado monoargu-mental, ou sej a, exige um único argumento para se saturar. Predicados de um lugar denotam um conjunto de individuos; assim, 'estuda' se refe-re ao conjunto dos individuos que tém a propriedade de estudar. Quando usamos a palavra conjunto, o que temos em mente é a teória de conjuntos, da Matemática. Quando na Matemática se questiona so-bre o conjunto dos números primos, o que se busca é a descricäo de to- dos os números que säo números primos, ou seja, todos os números primos pertencem a um conjunto, o conjunto dos números primos. Na Semäntica, o termo conjunto funciona semelhantemente. Colocamos no mesmo conjunto aqueles elementos que tém a mesma propriedade, por exemplo, no conjunto de 'estudar', temos todos os elementos que compartilham a propriedade de estudar. Entäo, ao usarmos o termo 'pertence ao conjunto de', queremos incluir no conjunto aqueles elementos ou objetos que dele fazem parte. Os nomes comuns, como 'médico; os verbos como'correr; adjetivos como'bonito', säo todos pre-dicados de um lugar que denotam conjuntos de individuos. No primeiro caso, temos o conjunto de individuos que tém a propriedade de ser médico; no segundo conjunto, temos os individuos que tém a propriedade de correr ou, simplesmente, o conjunto daqueles que correm; finalmente/bonito'denota o conjunto de individuos que é bonito. Entäo, na sentenca 'Pedro corre; o que queremos dizer é que Pedro pertence ao conjunto daqueles que tém a propriedade de correr. Vamos compor semanticamente a árvore citada anteriormente. Comecamos pelos nós terminais, isto é, as unidades mínimas que, no caso da sentenca (6), säo 'Joäo' e 'estuda'. 'Joäo' refere-se ao indivíduo [[Joäo]] = T f Metalinguagem Capítulo 03 Observe que 'estuda' denota um conjunto de indivíduos (os que aparecem entre as chaves): [[estudar]] ={ tttt A sentence 'Joäo estuda' tern entäo a forma ao lado e significa que Joäo pertence ao conjunto dos que estudam. Ela é verdadeira se isso de fato ocorre e falsa de outro modo. Semanticamente, podemos parafrasear essa sentence por Joäo pertence ao conjunto daqueles que estudam. Mas, para chegar a tal paráfra-se, precisamos de uma regra semäntica que permita compor o SN (sin-tagma nominal) com o SV (sintagma verbal), para que a sentence (S) seja verdadeira se e somente se (sse) o referente do SN pertencer ao conjunto denotado (SN) pertence ao conjunto dos que estudam (SV). Essa regra se cháma Aplicac^o Funcional e vamos apresentá-la informalmente, por-que uma definic^o formal requer conceitos que ainda näo dominamos. No exemplo anterior (e esse será sempře o caso quando estivermos no nó S), a aplicac^o funcional aplica a func;äo 'estuda' ao argumento 'Joäo'. Há duas maneiras de representarmos urn conjunto: a) Apresentamos os elementos que compöem o conjunto, ou b) Explicitamos a propriedade que os elementos tern. No exemplo anterior, explicitamos os elementos do conjunto. Eis mais urn exemplo: suponha que queremos explicitar o conjunto dos nú-meros naturais maiores que 1 e menores que 4. Podemos enume-rar os elementos desse conjunto: {2, 3}; mas, podemos também dar a definic^o do conjunto: {x/xé maior que 1 e menor que4}. No primeiro caso, damos a referenda; no segundo, damos o sentido. Podemos fazer o mesmo com 'estuda': Leia-se: x tal que x é maior que 1 e menor que 4. 51 [[estuda]] = {x/ xestuda} Em linguagem mais natural: o conjunto dos x tal que x estuda. A idéia da aplicacäo funcional é a seguinte: na extensäo (referencia) do SV temos o conjunto {x / x estuda}. Na extensäo do SN temos Joäo. A aplicacäo funcional permite substituir a variävel (x) por Joäo, obtendo a sentenca 'Joäo estuda', que é verdadeira se e somente se Joäo estuda. Note que explicitamos um cálculo, a partir da combinacäo das exten-söes (um outro nome para referencia) de 'Joäo' e 'estuda'. Note ainda que chegamos äs condicöes de verdade da sentenca e näo a um resultado, ao verdadeiro ou ao falso. O resultado depende de como o mundo é: se Joäo tem mesmo a propriedade de estudar, a sentenca é verdadeira; caso contrario, ela é falsa. Na situacäo (ou mundo) que desenhamos acima, a sentenca é verdadeira porque Joäo de fato tem a propriedade de estudar. 3.2.2 Predicados de mais de um argumenta Até agora olhamos para um tipo especial de predicado, aquele que é saturado por um único argumente Mas há predicados de mais de um lugar. Há predicados de dois argumentos (ou dois lugares), como: 'amar', 'odiar', 'brigar com', 'ser amigo de' 'ser pai de', 'estar ao lado de'; predicados de trés argumentos, como: 'comprar', 'dar'. Em termos lógicos, pode-mos ter predicados de quantos argumentos qui- sermos ou precisarmos; isto é, podemos ter predicados de n-argumen- tos. Mas, näo é esse o caso das línguas naturais, e há debate sobre o terna: Quantos argumentos, no máximo, pode ter um predicado de urna lingua natural? Parece certo que há predicados de trés lugares, como em: (7) Joäo comprou o bolo para a Maria. Mas, e o predicado 'traduzir', teria ele 4 argumentos? É possível tratá-lo como um predicado de quatro argumentos, sublinhados na sentenca (8): (8) Pedro traduziu A Ilíada do grego para o portugués. Metalinguagem O ponto da discussäo é o seguinte: argumentos devem ser essen-ciais para a saturacäo do predicado. Em outros termos, um predicado que näo tem todos os seus argumentos näo estä saturado, näo expressa um pensamento completo; näo é possível dizer se é verdadeiro ou falso. Veja que este é o caso de (9), em que o asterisco indica má-formacao: (9) * Maria brigou com Sabemos que 'brigar com' requer dois argumentos para se saturar, o agente da briga e aquele que sof reu com a acäo: (10) Maria brigou com o Pedro. É claro que podemos ter outras informacöes, mas elas seräo adjun-tos, que se caracterizam por näo sérem essenciais para a saturacäo do predicado, por isso elas podem ser retiradas sem prejuizo: (11) Maria brigou com o Pedro com uma faca. Observe que 'com uma faca' é um adjunto, tanto que podemos su-primi-lo, e o predicado continua saturado, como aparece em (10). Reconsidere, agora, o caso de 'traduzir'. A pergunta é: grego' e 'por-tugués' säo essenciais? A sentenca abaixo é completa, isto é, conseguimos dizer se ela é verdadeira ou falsa? O predicado 'traduzir' estä saturado? (12) Pedro traduziu A Iiiada. Vamos agora olhar mais atentamente para predicados de dois luga-res. Considere a sentenca: (13) Joäo ama Maria. Veja que hä dois elementos saturados, 'Joäo' e 'Maria', que se referem a indivíduos particulares no mundo. Assim, 'ama' é uma estrutura insaturada com dois lugares vazios: ama. A que esse predicado se refere? Recorde que predicados de um lu-gar se referem a conjuntos de individuos. E predicados de dois lugares? Intuitivamente, urn predicado como 'ama' se refere ao conjunto de individuos tal que o primeiro estä numa relacäo amorosa com o segundo. Assim, predicados de dois ou mais lugares estabelecem relacöes entre individuos. E relacöes säo ordenadas, isto e, alterar a ordern dos individuos numa relacäo pode alterar a verdade da sentenca. Por exemplo, suponha que a sentenca (13) e verdadeira, isto e, Joäo de fato ama Maria. Se alterarmos a ordern dos argumentos, obtemos: (14) Maria ama Joäo. Ora, as condicöes de verdade dessa sentenca säo totalmente dife-rentes das condicöes de verdade da sentenca (13), porque em (14) se afirma que a Maria e quem estä numa relacäo de amor com o Joäo. Pode muito bem ser o caso de que (14) seja falsa. Por isso, dizemos que relacöes de dois lugares se referem a urn conjunto de pares ordenados, em que o primeiro membro e o agente ou experienciador do predicado. No exemplo em (13) o Joäo e o experienciador; ja na sentenca (14), Maria e a experenciadora do ato de amar. Pares ordenados säo representados assim: . Essa representacäo diz que Joäo estä numa certa relacäo com Maria. Ja o par diz que e a Maria que estä numa certa relacäo com o Joäo. Hä, e claro, relacöes que säo simetricas, por exemplo 'ser casado com': se A e casado com B, necessariamente B e casado com A. Nesse caso, a ordern dos argumentos näo importa. '-\ Na gramätica gerativa, o 'Joäo' de (14) e chamado de argumenta extemo, exatamente porque ele näo estä regido pelo verbo. 0 termo que e regido pelo verbo, como objetos diretos ou indiretos ou simplesmente os complemento verbais, e chamado de argumento interno, ou seja, interno ao dominio de complemento do verbo. Os argumentos externos säo externos <_> Metalinguagem Capítulo 03 '-\ porque näo pertencem ao domí- nio de complemento do ver-bo. Na sentence'Joäo ama Maria', o termo'Joäo'é o argumento extemo, enquanto o termo 'Maria', o argumento interno. Entäo, quando se responde ä pergunta 'Quem o Joäo ama?', a resposta leva em causa o seu argumento interno, regido pelo verbo, complemento do verbo; neste caso, o termo 'Maria'. Já na sentence 'Maria ama Joäo','Maria'é argumento extemo, e'Joäo'o interno. V__) Essa maneira de descrever a denotacäo (extensäo ou referencia) de um predicado de dois lugares é encontrada nos vários sistemas lógicos (no cálculo de predicados, por exemplo). Ela é uma representacäo "plana", no sentido de que os dois argumentos estäo em igualdade, embora eles estejam ordenados; como se eles preenchessem o predicado 'ama' simultaneamente e näo houvesse diference estrutural entre eles. Sabe-mos, no entanto, que o argumento interno é mais "ligado" ao predicado do que o argumento externo. Há vários indícios dessa assimetria entre os argumentos. Por exemplo, o argumento interno induz leituras meta-fóricas do evento descrito pelo verbo, enquanto o argumento externo näo pode dispará-las: (15) a. Matar uma barata; b. Matar uma conversa; c. Matar uma tarde assistindo televisäo; d. Matar uma garrafa; e. Matar uma audiencia; f. Matar uma aula. Essa assimetria aparece claramente na representacäo sintática, a derivacäo de 'Joäo ama Maria': 55 s Joäo ama Maria SN SV * ama Maria V SV N Joäo X ama Y Maria Note que o argumento 'Maria' (argumento interno) está mais proximo do verbo 'ama'; ele é interno ao verbo. O nó SV é a combinacäo de 'ama' com 'Maria', formando 'ama Maria'; só depois, no nó S, é que o SV se combina com 'Joäo'. Esses passos de interpretacäo näo aparecem cla-ramente quando afirmamos que a denotacäo de um predicado de dois lugares é um conjunto de pares ordenados. Semanticamente, o nó terminal 'ama', um predicado de dois lugares, denota um conjunto de pares ordenados, por exemplo: {, , , , / x ama y} O conjunto de pares ordenados em que x ama y. Realizamos a primeira operacäo semäntica no nó SV, urna aplica-cäo funcional, que preenche o argumento interno, isto é, atribui um valor a este argumento; no caso, o valor Maria. Assim, transforma-se o conjun- to de pares ordenados no conjunto de indivíduos que amam Maria. O resultado é que, no nó SV, temos um predicado de um lugar, o predicado 'ama Maria', cuja referencia é o conjunto de indivíduos que tém a propriedade de amar Maria, ou: Metalinguagem {x / x ama Maria} O conjunto dos x tal que x ama Maria. Em nosso exemplo, trata-se do conjunto {Joäo, Pedro, Joana}. Finalmente, realizamos novamente a aplica-9äo funcional, que preenche o lugar do argumento externo por Joäo e se e somente se Joäo ama Maria. Mas, esse é o resultado de atribuirmos uma denotac^o para os nós terminais e de combinarmos esses elementos da direita para a esquerda (ou sej a, primeiro o argumento interno) através de duas apikales funcionais. Essa apresentac^o da interpretac^o semäntica é informal. Voce deve ter notado que nem mesmo definimos o que é aplicac^o funcional. Nosso objetivo é apenas dar uma ideia de como funciona o processo de interpretac^o. Uma abordagem mais formal, como dissemos, requer uma série de conceitos de que ainda näo dispomos. Os próximos Capí-tulos tém por func;äo apresentar alguns desses conceitos. 3.3 Consideragöes finais A no9äo de metalinguagem pode parecer um pouco complicada ä primeira vista, mas de fato fazemos uso dela em muitas situates cor-riqueiras e topamos com ela diversas vezeš na escola, ao usarmos a ma-temática para entender fisica ou quimica, ou mesmo para entendermos geometria - ou seja, usamos a matemática para descrever o espai^o, fala--se do espa<;o pela matemática. Neste Tópico também vimos o esquema-T, que é a maneira mais comumente empregada pelos semanticistas para exibir as condi<;öes de verdade das sentences e separar a linguagem-objeto da metalinguagem. Ao voltarmos äs nocuješ de predicados e argumentos, agora munidos do esquema-T e da no9äo de metalinguagem, pudemos realizar a derivac^o de sentences simples, explicitando a integrac^o dos components sintá-ticos e semáticos. Pressuposicäo Capítulo 04 4 Pressuposicäo Neste Tópico, vamos nos concentrar num nexo semäntico: a pressuposicäo, apresentando sua definicäo e testes para identificá-la com čerta precisäo. Também veremos dois aspectos desse fenômeno: sua exigéncia contextual e a acomodacäo. 4.1 Caracterizando a pressuposigao Voce viu no primeiro Topico que a Semantica ve o significado das oracoes nas linguas naturais como um calculo: o significado do todo e a soma do significado das partes. Entretanto, ha varios aspectos do significado que estao diretamente atrelados ao contexto e dependem dele para que possamos avaliar se uma sentenca e verdadeira ou falsa. Voce viu no Capitulo 1 que, para determinar o conteudo de diversas sentencas, e necessario computar informacoes do contexto, e muitas informacoes variam de um contexto a outro. A pressuposicao e um feno-meno similar, porque ela impoe restricoes ao contexto de uso, ja que as senten9as em que ela ocorre so pode receber um valor de verdade se ela for verdadeira. Assim trata-se de uma forma de ligar a determinacao do valor de verdade de uma sentenca a informacoes presentes no contexto. A essas informacoes contextuais chamaremos fundo conversational. '-\ Fundo conversacional: conjunto de informacoes, na forma de sentencas, que sao tomadas como verdadeiras pelo falante(s) e ouvinte(s) num dado contexto. k_> Assumir que ha um conjunto de verdades sendo compartilhadas pe-los falantes torna muito mais facil entender o papel que o contexto exerce na atribuicao de um valor de verdade para as sentencas da lingua. A no-cao de contexto inclui os falantes, o local onde eles estao, as condicoes do tempo, o periodo do dia, os acontecimentos importantes da semana etc. Essas informacoes fazem parte do contexto como fundo conversacional. 59 Para algumas sentences, tudo que precisamos saber é quais estados de mundo tornam a sentence verdadeira: (1) Joäo ama Maria. Tudo que precisamos saber para calcular o significado de (1) é se Joäo ama (ou näo) Maria. Ou sej a, ela é falsa se Joäo näo ama Maria; e verdadeiras, caso contrário. Contudo, para outras sentences precisamos de mais informaceo, e essa informaceo nos é fornecida pelo fundo conversacional. Imagine o seguinte diálogo, adaptado do seriado Friends: (2) Rachel: — Eu näo durmo com homens no primeiro encontro. Monica: — Ede, Carl, John, Bill... Rachel: — Näo mais. Claro, uma čerta entonaceo na lista de homens que Monica apre-senta, e na réplica de Rachel, é responsável pelo humor da situaceo. Va-mos considerar que a réplica de Rachel possa ser descrita como em (3): (3) Rachel näo dorme mais com homens no primeiro encontro. Há algo no significado de (3) que permanece constante, e é con- diceo para a sentence ser um proferimento adequado no contexto. Devemos ope-rar com a sentence de algumas formas e tentar entender o que permanece: (3) a. Rachel näo dorme mais com homens no primeiro encontro? b. Duvido que Rachel näo dorme mais com homens no primeiro encontro. c. Se Rachel näo dorme mais com homens no primeiro encontro, entäo ela virou uma mulher dificil. Capitulo 04 Pressuposicäo Que informacäo estä presente em todas as sentencas em (3), sendo que: questionamos (3a), duvidamos (3b) ou colocamos essa sentenca dentro de um contexto hipotetico, usando uma estrutura condicional (da forma 'se A, entäo B', como em (3c))? De todas as sentencas em (3) podemos inferir que: (4) Rachel dormia com homens no primeiro encontro. Dizemos que (4) e entäo tomada como pressuposto para a verdade das sentencas em (3), de outra forma näo faria sentido dizer que "näo e mais o caso que Rachel dorme com homens no primeiro encontro". Ou seja, estä presente no fundo conversacional dos falantes que ela havia ido pra cama com alguns homens no primeiro encontro antes, em momentos passados, por isso Mönica pode listä-los. Tanto faz a operacäo que faze-mos sobre a sentenca, a assuncäo compartilhada permanece constante. Nesse sentido, a pressuposicäo e uma condicäo de felicidade para o profe-rimento de (3). Essa sentenca so e um uso feliz da lingua, se o falante e o ouvinte tomam como certo que a pressuposicäo, (4), e verdadeira. E so a partir dai podemos avaliar se (3) e verdadeira. Afinal para que as sentencas em (3) sejam verdadeiras ou falsas e preciso que (4) seja verdadeira. Ao conjunto de estruturas em (3a-c) chamamos familia pressu-posicional, ou P-familia. Ela e um teste bastante seguro para detectar que tipo de informacäo estä sendo pressuposta em uma sentenca, quais afirmacöes säo tomadas como verdadeiras num dado contexto, o nosso fundo conversacional. Uma forma de definir a pressuposicäo e atraves de uma regra usando a nocäo da P-familia: Uma sentenca A pressupöe uma sentenca B se e somente se A e os outros membros da P-familia acarretam B. Toda pressuposicäo e um acarretamento, mas näo vice e versa. A Vimos a nocäo de acarretamento no Capitulo 2; caso seja necessärio, volte a ela e reveja essa nocäo, ou vä ao Glossärio. sentenca em (5) acarreta a sentenca em (6), mas (6) näo e pressuposta: (5) Joäo foi reprovado em Semäntica. 61 (6) Joäo näo passou em Semäntica. Sabemos isso porque a negacäo de (5), em (7), näo acarreta (6): (7) Joäo näo foi reprovado em Semäntica. Toda vez que a sentenca A for usadá, a pressuposicäo que ela car-rega deverá manter-se constante, se ela for encaixada em um dos mem-bros da P-família: (8) P-família Negacäo: Näo é o caso que A. Pergunta: A? Dúvida: Duvido que A. Condicional: Se A, entäo... Exemplificamos a P-família apresentada em (8) com as sentencas em (3), como vocé pode verificar. A negacäo aparece em (3a), a dúvida em (3b) e a condicional em (3c). Veremos agora dois aspectos particulares da pressuposicäo. Ela pa-rece estar sempře ligada a certas expressóes ou construcóes sintáticas. E, por outro lado, mesmo quando a pressuposicäo näo está no fundo conversacional, ela encontra urna forma de se acomodar, para que o proferimento näo sej a infeliz. 4.2 Os gatilhos Há urna série de expressóes na língua portuguesa cujo significado envolve o que chamamos de gatilhos da pressuposicäo. Essas säo expressóes que quando usadas disparam urna pressuposicäo, urna informacäo Pressuposicáo que é tornáda como já estando no fundo O proferimento da sentenca é feliz no contexto em que é proferida se a pressuposicáo disparada pelo gatilho for verdadeira. Um conjunto dessas expressöes säo os chamados verbos e advér-bios aspectuais. Eies säo assim chamados porque interferem no modo como vemos uma dada situacäo descrita pelo verbo principal da oracäo. Esse conjunto inclui: 'parou', 'ainda', 'continua'. Suponha que Joäo esteja sen do processado por uso de drogas e durante o julgamento o promotor pergunta: (9) O senhor parou de fumar maconha? Se Joäo responder sim ele estará se incriminando: ora, se ele con-firma que parou de fumar maconha, é porque fumava antes, estará afir-mando que ele usava drogas; se responder náo também se incrimina: ora, se ele näo parou de fumar maconha, é porque ele ainda fuma, e se ele ainda fuma, entäo ele já fumou antes, ou seja, ele continua usando drogas. A única saída é negar a pressuposicáo, dizendo algo como: (10) Como eu posso ter parado de fazer algo que nunca fiz? Para mostrar que é esse o caso, que (9) efetivamente pressupöe que Joäo fumava maconha, vamos fazer o teste da P-familia: (11) a. Joäo parou de fumar maconha. b. Näo é o caso que Joäo parou de fumar maconha. c. Joäo parou de fumar maconha? d. Duvido que Joäo parou de fumar maconha. e. Se Joäo parou de fumar maconha, entäo ele tornou uma boa decisäo. f. Joäo fumava maconha. Note que as sentencas de (IIa) a (lle) pressupöem (llf). Näo te-mos como afirmar (1 la) se näo for pressuposto, tomado como certo que (llf) é verdadeira. Alguns verbos também introduzem pressuposicöes como seus complementos. Dois casos tipicos säo: lamentar e 'descobrir'. (12) Joäo lamenta ter traido sua mulher. (13) Maria descobriu que seu marido estava tendo um caso. Faca-mos o teste: (12') a. Näo é o caso que Joäo lamenta ter traido sua mulher. b. Joäo lamenta ter traido sua mulher? c. Duvido que Joäo lamenta ter traido sua mulher. d. Se Joäo lamenta ter traido sua mulher, entäo ha espe ranca de que ele se renegere. e. Joäo traiu sua mulher. Novamente, a P-família nos ajuda a detectar a informacäo que per-manece constante: (12e), ou seja, Joäo traia sua mulher antes. Vimos que os testes säo uma forma segura de reconhecermos o que é pressuposto em uma sentenca, e reconhecer as pressuposicöes é uma competéncia intuitiva que temos enquanto falantes de uma lín-gua. Contudo, näo é fácil ou simples determinar quando as pressuposicöes de certas construcöes säo projetadas e quando elas näo säo. Vimos anteriormente que a sentenca 'Joäo parou de fumar maconha' pressupöe que ele fumava. Pressuposi^äo 4.3 Acomodando pressuposigöes De acordo com o que vimos na Secjäo anterior, a pressuposicěo indica que há informa9Öes prévias, que estäo no fundo conversacional compartilhadas pelo falante e ouvinte. Dessa forma, um proferimento só é feliz se as pressuposi<;öes que ele projeta estäo presentes no fundo conversacional. Entretanto, temos casos em que, mesmo quando essa informacěo näo é compartilhada, ela é acomodada no fundo, sem que o proferimento seja infeliz, ou julgado como falso pelo ouvinte. Suponha o seguinte cenärio: Joäo é seu novo colega de trabalho, vocé conhece pouco sobre ele. Vocés estäo no horário do café, quando ele profere (14), que pressupöe que ele tenha um filho: (14) Hoje vou sair mais cedo, tenho que levar meu filho ao dentista. Näo paramos a conversa porque a informacěo de que ele tinha um filho näo estä no fundo conversacional. Simplesmente adiciona-mos a informacěo nova - Joäo tem um filho -, como se ela já estivesse no fundo conversacional. O que interessa é que (14) näo é um proferimento infeliz. O fato de vocé, ou os outros ouvintes näo saberem que Joäo tinha um filho näo torna a sentence falsa ou estranha, porque essa informacěo é acomodada. Uma forma de capturar isso é através da seguinte regra: '-\ Se no proferimento de A a pressuposicäo B näo existe no fundo conversacional, entäo, para a sentenca ser feliz, B passa a fazer parte do que é compartilhado pelos falantes como pressuposto. <_> Ou seja, B passa a fazer parte do conjunto de sentences toma-das como verdadeiras, nosso fundo conversacional. Conforme uma Semäntica conversa progride, novas informac^öes säo adicionadas ao fundo con-versacional, pressuposicöes podem ser canceladas, como vimos ante-riormente, novas podem ser adicionadas rapidamente. Veja as duas sentences a seguir: (15) Joäo tem filhos, e ele colocou seus filhos pra dormir. (16) # Joäo colocou seus filhos pra dormir, e Joäo tem filhos. O que faz com que (15) seja um proferimento feliz, enquanto (16) Daí o uso do simbolo # para representar anomália semäntica. näo? (16) soa redundante fora de contexto. Contudo, faz todo o sentido se voce näo sabe que Joäo tem filhos, e ele some da festa. Se, procurando por ele, voce pergunta "Cade o Joäo?", quem lhe respondesse usando (15) estaria lhe dando uma informacäo relevante. Sabendo que voce näo sabe que Joäo tem filhos, (15) e construida de forma a primeiro adi-cionar ao fundo conversacional a pressuposicäo 'Joäo tem filhos', para depois fazer um proferimento verdadeiro a respeito dos filhos dele. (16) soa estranha, porque primeiro temos a sentenca que precisa da pres-suposic^äo, e depois a segunda orac^äo, que introduz a pressuposicäo. Ela soa redundante porque 'Joäo colocou seus filhos pra dormir', caso a pressuposicäo 'Joäo tem filhos' näo faca parte do fundo conversacional, ela e acomodada pela sentenca 'Joäo colocou seus filhos pra dormir'; ora, por que dizer novamente, dar mais uma vez a informacäo 'Joäo tem filhos', se ela ja foi acomodada? Dai a estranheza de (16). Até aqui, consideramos que sentencas podem ser verdadeiras ou falsas (excluindo os casos vagos e indeterminados). Vimos neste Tópi-co que certas sentenc^as, para sérem verdadeiras, precisam que certas informacoes sejam garantidas como verdadeiras no fundo conversacional - trata-se das pressuposicoes que certas sentencas carregam. O que acontece, contudo, nos casos em que as pressuposicoes náo sáo garantidas e nem acomodadas? Em outras palavras, qual o valor de verdade de sentencas cujas pressuposicoes sáo falsas? Essa é uma questáo extre-mamente complexa, e nossas intuicoes nem sempře sáo claras quando. 66 Pressuposicäo Tomemos um exemplo: sabemos que Joäo nunca reprovou em Ma-temática, e alguém diz: (17) Joäo reprovou em Matemática. (18) Joäo reprovou em Matemática de novo. A sentenca (17) simplesmente nos dá uma informacäo: a de que Joäo, pela primeira vez, por tudo o que sabemos, reprovou em Matemática, e pode ser verdadeira se ele de fato reprovou, e falsa caso contrario. E quanto ä sentenca (18)? Ora, se Joäo nunca reprovou em Matemática, é verdadeiro ou é falso que ele reprovou em Matemática de novo? Mes-mo supondo que ele de fato tenha reprovado pela primeira vez, estamos inclinados a dizer que (18) é falsa: afinal, ele näo reprovou de novo. Tomemos outro exemplo: Joäo näo é uma pessoa violenta e nunca agrediu sua mulher; nesse contexto, alguém diz: (19) Joäo parou de bater na mulher. A sentenca (20) é verdadeira ou falsa? A literatura em Semäntica, Pragmática e Filosofia se divide quanto ä melhor resposta. Neste Manual, adotaremos a seguinte resposta: sentencas cuja pressuposicäo é falsa näo tém valor de verdade. Alguns gostariam até de afirmar que sentencas nessas condicöes, com pressuposicöes näo preenchidas, nem sequer fazem sentido, mas näo precisamos ir täo longe. Bašta indicar que esse é um terna controverso, cuja resolucäo ainda está por ser estabelecida. 4.4 Consideragöes finais Neste Capítulo, estudamos um nexo semäntico que está diretamen-te ligado ao contexto: a pressuposicäo. A semanticista Irene Heim usa uma analógia para explicar a contribuicäo que a pressuposicäo faz ao significado. Para a autora, quando pressuposicöes säo adicionadas ao fundo conversacional é como se estivéssemos alterando pastas de um grande arquivo (o nosso rundo compartilhado). Cada pressuposicäo adicionada, cancelada, acomodada é uma alteracáo que fazemos em uma pasta. Obviamente isso é uma hipótese de como funciona um as-pecto da interacäo humana através da linguagem (e como toda hipótese científica, pode estar errada). Nossos diálogos cotidianos näo precisam comecar (e näo come-9am) do zero, há sempře algo já em nossos arquivos e pastas, pressupo-sicöes sáo facilmente adicionadas ou canceladas. ■f* Leia mais! Vocé pode consultar o capítulo"Semantica"em Pires de Oliveira (2001a) para uma comparacäo entre a semäntica formal e outros tipos de semäntica. Chierchia (2003) e llari & Geraldi (2002) säo boas introducôes aos objetivos e ä estrutura da semäntica formal. Por fim, vocé pode também consultar Borges Neto (2003), no qual o autor näo só desenvolve passo a passo uma pequena semäntica formal, mas também a acopla a uma teória sintática. Unidade B Operates Semänticas As describes definidas Capítulo 05 5 As describees definidas Neste Capítulo, voce vai identificar alguns dos problemas envolvidos na análise das descricdes definidas. Exploraremos as propostas quantificacional e pressuposicional, e também algumas das suas propriedades textuais. As describees definidas (DDs) sáo terna de intenso debate nos li-mites da filosofia analitica da linguagem, da semántica e da pragmá-tica. As DDs sáo sintagmas encabecados por um artigo definido (a, % 'os', 'as') seguido por um substantivo, como 'o gato', 'a cerveja' etc. A estrutura básica de uma DD pode variar em complexidade. Os trechos em itálico nos exemplos a seguir sáo todos describees: 1) Joáo comprou o carro. 2) O animal mats perigoso do zoológico fugiu de novo. 3) Pedro deu um pedaco de bolo para o menino de verde que náo foipra escola. Esses exemplos mostram que a DD pode ocupar, respectivamente, as posicóes de objeto direto, sujeito e objeto indireto, alem de outras posečeš numa sentenca. Note também que expressoes como 'animal mais perigoso do zoológico' desempenham nas DDs o mesmo que substanti-vos simples, como 'carro' em (1). Neste Capítulo, veremos algumas das razóes de uma estrutura aparentemente táo simples desencadear importantes debates e também as funcóes textuais das describees definidas, contrastando-as com as describees indefinidas. Usaremos as DDs como um exercicio de análise semántica, mostrando como se formula e se avalia uma hipótese nessa area do conhecimento. 71 5.1 O papel semäntico das DDs: o comego do debate Tomemos a sentenca: 4) O menino e esperto. Nessa sentenca hä a DD 'o menino' e o predicado 'ser esperto'. In-teressa-nos aqui investigar a contribuicäo semäntica das DDs, e, para tanto, e necessärio saber quando uma DD pode ser usada. Tomemos os seguintes contextos: Contexto A: näo hä nenhum menino por perto e nada se falou so-bre menino algum; de repente, alguem fala 'O menino e esperto'; Contexto B: hä dois meninos brincando e alguem diz 'O menino e esperto', sem apontar para nenhum deles; Contexto C: hä um ünico menino e uma menina brincando; alguem diz 'O menino e esperto'. O que a sua intuicäo diz sobre esses usos de (4)? Para o contexto A, a reacäo mais normal seria perguntar: mas de que menino voce estä falando? Ora, näo hä nenhum menino por perto nem se falou de menino algum antes... como saber de quem se estä falando? Para o contexto B, a reacäo mais imediata seria perguntar sobre qual dos meninos se estä falando. Sem sabermos identificar o referente näo conse-guimos fazer sentido da sentenca. Os contextos A e B parecem näo ser apropriados para o uso de (4). No contexto A, no qual näo hä nenhum menino, näo podemos saber de quem se estä falando - pode ser qualquer menino do mundo e, sem mais informacöes, näo temos como saber de qual se trata; no contexto B, com dois meninos, simplesmente näo sabemos de quem se estä falando - como diferenciar os dois meninos e saber de qual predi- As describes definidas camos que seja esperto? Finalmente, no contexto C, a sentence (4) tern urn uso adequado: conseguimos saber de quem se está falando. 5.2 Como capturar a reagäo das DDs aos contextos A, B e C semanticamente? Podemos dizer que o contexto A "peca pela falta": a DD 'o menino' näo pode ser usada no contexto A porque näo há ninguém sobre o qual predicar e esperto'; por sua vez, o contexto B "peca pelo excesso": a DD näo pode ser usada no contexto B porque há mais de um menino (há dois, de fato) sobre o qual se pode predicar e esperto' e näo sabe-mos de qual se trata. Finalmente, no contexto C achamos as condicöes adequa- das para usar a DD 'o menino': há um e apenas um menino no contexto C sobre o qual podemos predicar e esperto'. Assim sendo, para que uma DD seja usada apropriadamente (ou com felicidade), há duas condicöes: Deve haver pelo menos um referente capaz de satisfazer o predicado que segue o artigo definido - o contexto A, portanto, está excluído. II) Näo pode haver mais que um referente capaz de satisfazer o predicado que segue o artigo definido - o contexto B, portanto, está excluído. Em resumo, para usarmos uma DD: III) Deve haver um e apenas um referente no contexto em que se usa uma DD que satisfaca o predicado que compöe a DD -como no contexto C. Os itens de (I) a (III) säo apenas uma descricäo do comportamento semäntico das DDs. Nas secöes a seguir, veremos exemplos mais interessantes e duas maneiras de encaixar essas descricöes em quadros teöricos. 5.3 Falsas nos contextos A e B Como já vimos em Tópicos anteriores, o semanticista se pergunta sempře: quais as condi<;óes de verdade de uma sentence? Se apontarmos para uma pessoa qualquer e dissermos: 5) Ela leu Memórias Póstumas de Brás Cubas. Sabemos que (5) é verdadeira se ela de fato leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, e sabemos que (5) é falsa se ela näo leu Memórias Póstumas de Brás Cubas. Do mesmo modo, vamos nos perguntar quando a sentence (4), 'O menino é esperto', é verdadeira no contexto C. Ora, se o menino for esper-to, (4) é verdadeira; se ele näo for esperto, (4) é falsa. E o que nossa intui-cěo nos diz sobre os contextos A e B? A sentence (4) é verdadeira ou falsa? Uma das teorias sobre as DDs, que podemos chamar de teoria quan-tificacional - as razóes para esse nome ficaräo mais claras adiante -, nos responde ä pergunta sobre a verdade ou falsidade de (4) nos contextos A e B com um sonoro "falso". A intuicěo por trás da teoria quantificacional é a seguinte: uma DD qualquer diz, afirma, ou asserta duas coisas: a) Há um referente que satisfaz o predicado que compóe a DD. & b) Näo há mais de um referente que satisface o predicado que compóe a DD. Observe que o símbolo que une as sentences (a) e (b), '&', é um 'e', uma conjuncěo que só é verdadeira se as duas coisas que ela une forem simultaneamente verdadeiras. Se dissermos 'Joäo e Maria vieram ä festa' quando na verdade só o Joäo veio, entäo teremos dito algo falso; do As descricóes definidas mesmo, se apenas Maria veio, também diremos algo falso - em resumo, a única maneira de 'Joáo e Maria vieram á festa' ser verdadeira é se am-bos de fato vieram á festa. Voltando á sentenca (4), podemos entendé-la da seguinte forma: 4) O menino é esperto. a) há um menino & b) náo há mais do que um menino. Ora, agora é fácil entender por que, no contexto A, a previsáo da teoria quantificacional é de que (4) sej a falsa: náo há menino algum, portanto a primeira sentenca unida por '&' é falsa, logo toda a sentenca é falsa. O mesmo ocorre no contexto B, só que agora a sentenca falsa é a segunda unida por '&', ou seja, há mais do que um menino. O contexto C é o único no qual as sentencas (a) e (b) sáo verdadeiras. Resta saber entáo se o menino é realmente esperto para que (4) seja verdadeira. Novamente, para a teoria quantificacional, a sentenca (4) é falsa no contexto A porque náo há menino algum e, no contexto B, porque há mais de um. Em relacáo ao contexto C, diremos que (4) será falsa nesse contexto apenas se o menino em questáo náo for esperto. Para capturar melhor todos esses passos, facamos uma pequena altera- cáo nas condi-cóes de verdade de (4) e somemos a ela mais uma linha - assim, (4) será verdadeira se e somente se: a) Há um referente que satisfaz o predicado que compóe a DD; & b) Náo há mais do que um referente que satisfaca o predicado que compóe a DD; Semántica & c) O predicado da sentence se aplica ao referente da DD. Temos outra '&', portanto uma sentence que tem uma DD só será verdadeira se as linhas (a), (b) e (c) o forem simultaneamente. Voltemos, uma última vez, aos nossos contextos A, B e C e vejamos todas as possi-bilidades - na tabela a seguir, 'V é verdadeiro e 'F' é falso: Contexto a) Há um referente que satisfaz o predicado que compóe a DD. b) Náo há mais do que um referente que satisfaca o predicado que compóe a DD. c) 0 predicado da sentenca se aplica ao referente da DD. Valor de verdade de (4) 1 A F V V F 2 A F V F F 3 B V F V F 4 B V F F F 5 C V V V V 6 C V V F F Na tabela anterior, expomos todas as configurates possíveis da sentence (4) nos contextos A, B e C. Note que o valor de verdade varia para cada contexto no item (c), no qual "o predicado da sentence se aplica ao referente da DD". Veja que os contextos A e B seráo sempře falsos - como já havíamos previsto. A última linha, que torna a sentence (4) verdadeira, é a 5, na qual os trés itens a), b) e c) sáo simultaneamente verdadeiros - como também já havíamos previsto. Agora faz mais sentido entendermos o termo "teoria quantificacio-nal" da DD. Afinal a paráfrase do tipo: existe um e apenas um referente que satisfaz o predicado que segue o artigo. Tal paráfrase é facilmente traduzível em linguagens lógicas. Nesse quadro, uma DD qualquer é, na verdade, uma forma resumi-da de se dizer (a), (b) e (c). 76 As descri^ôes definidas A teória quantificacional é extremamente engenhosa, mas näo é isenta de problemas, e eles aparecem assim que consideramos DDs mais interessantes. Vejamos: 6) A atual presidenta dos EUA näo gosta de andar de aviäo. Näo é difícil ver que a sentenca (6), de acordo com a teoria quantificacional, receberá como valor de verdade, pelo menos no nosso mundo, em 2012, o falso. Ela está justamente num contexto do tipo A, que torna falsa a condicäo (a), ou seja, "há um referente que satisfaz o subs- tanti-vo que segue a DD": ora, näo há presidenta dos EUA em 2012... A pergunta que imediatamente fazem os críticos da teoria quantificacional é: dizer que (6) é falsa está mesmo de acordo com nossa intuicäo? Coloque-se na seguinte situacäo: vocé pega o jornal de manhä e vé escrito numa manchete: 6) A atual presidenta dos EUA näo gosta de andar de aviäo. Qual é a sua reacäo? Para a teoria quantificacional, vocé deveria pen-sar algo como: o jornal está dizendo uma mentira, afinal, näo há pre- si-denta dos EUA - Obama é o presidente dos EUA e ele é um homem. Por sua vez, os críticos da teoria quantificacional preveem que vocé pensaria algo como: Essa sentenca näo tem sentido, porque näo há uma presidenta dos EUA, Pois bem... Qual resposta lhe parece mais adequada? Talvez al-guns outros exemplos ilustrem melhor o ponto de vista dos críticos: 7) O rei do Brasil é jovem. 8) A primeira mulher a pousar em Marte é casada. 9) O tigre voador está em extincäo. Se sua reacäo diante das sentencas de (7) a (9) näo foi a de dizer que todas säo falsas, que todas dizem algo que näo é verdadeiro - como prevé a teória quantificacional -, mas sim se sua reacäo foi algo como: essas sentences näo tém sentido, afinal näo há rei no Brasil, nenhuma mulher pousou em Marte e näo existem tigres que voam - entäo, a teória quantificacional näo está de todo correta. Mais do que isso: imagine que algum chato fique insistindo e obri-gue vocé a responder se voce acha que alguma das sentences de (6) a (9) säo verdadeiras ou falsas. Muito provavelmente vocé responderá espon-taneamente com um redondo "Essa pergunta näo faz sentido!". Essa sua inocente e espontänea resposta invalida a previsäo da teoria quantificacional de que essas sen- tencas deveriam ser falsas. O que fazer entäo? Ora, é preciso formulár uma outra teoria - é a isso que nos voltare-mos na próxima Secäo. 5.4 Nem falsas nem verdadeiras nos contextos A e B Há um aspecto bastante interessante e problemático em responder "Näo sei." sobre o valor de verdade de uma sentencia. A Semäntica considera que tudo o que precisamos saber sobre uma sentencia para interpretá-la säo suas condicôes de verdade; mais do que isso, considera que as sentences säo ou verdadeiras ou falsas. Sentences sem valor de verdade säo, portanto, um problema... Contudo, näo é a primeira vez que nos deparamos com tal situacäo. Se vocé recapitular, vera que no Tópico sobre pressuposicäo nos deparamos com uma situacäo na qual näo sabíamos dar o valor de verdade das sentences, que é justamente quando suas pressuposicôes näo säo preenchidas. Um rápido exemplo pode ajudar a ilustrar esta situacäo: Um amigo diz para o outro: 10) O Joäo parou de fumar. As describes definidas A sentenca (10) carrega a pressuposicäo de que Joäo fumava antes, e diz ou asserta que ele näo fuma mais: ele parou de fumar. Imagine essa mesma sentenca dita num contexto em que todos (inclusive voce) sabem que Joäo nunca, jamais fumou. Nesse caso, a sentenca (10) é verdadeira ou é falsa? Se voce teve dificuldade em responder a essa pergunta, tudo bem. A ideia é que ela näo é nem verdadeira nem falsa porque ele nunca fumou. Pense agora o seguinte: será que näo acontece o mesmo com as sentencas de (6) a (9) quando perguntamos se elas säo verdadeiras ou falsas? A resposta, para quern defende a teória que chamaremos (com muita criatividade!) de pressuposicional, é "Sim!". Essa teória se afasta da teória quantificacional. Lembramos que na teória quantificacional há trés condicóes, as quais säo ditas ou asserta-das por uma sentenca que tenha uma DD, e devem ser simultaneamente preenchidas para que a sentenca seja verdadeira. A teória pressuposicional dirá que as duas primeiras linhas säo pressuposicóes, säo imposicóes feitas ao contexto e que apenas a terceira linha é de fato dita ou asserta-da. Comparemos as duas teorias: Teória quantificacional: urna sentenca com DD diz: a) Há um referente que satisfaz o predicado que compôe a DD; & b) Näo há mais do que um referente que satisfaca o predicado que compôe a DD ; & c) O predicado da sentenca se aplica ao referente da DD. Teória pressuposicional: urna sentenca com DD pressupóe: Semántica a) Há um referente que satisfaz o substantivo que segue a DD; & b) Náo há mais do que um referente que satisfaca o substantive que segue a DD; e diz: c) O predicado da sentenca se aplica ao referente da DD. Se voltarmos para a sentenca (4), que já analisamos exaustiva-men- te, e aos contextos A, B e C á luz da teoria pressuposicional, ob-teremos resultados diferenciados. Agora, (4) náo é mais falsa nem em A nem em B: ela simplesmente náo pode receber valor de verdade nes-ses contextos porque as pressuposicóes de que há um referente (linha (a)) e que náo há mais de um (linha (b)) náo estáo preenchidas nos contextos A e B, respectivamente. Para que a nova abordagem fique ainda mais clara, retomamos abaixo tabela com as mesmas situacóes já apresentadas para a teoria quantificacional. Vamos usar 'INDEF' para indicar que náo é possível definir o valor de verdade da sentenca, porque há pelo menos uma pressuposicáo falsa. Pressuposicóes Assercáo Contexto a) Há um referente que satisfaz o predicado que compóe a DD. b) Náo há mais do que um referente que satisfaca o predicado que compóe a DD. c) 0 predicado da sentenca se aplica ao referente da DD. Valor de verdade de (4) 1 A F V V INDEF 2 A F V F INDEF 3 B V F V INDEF 4 B V F F INDEF 5 C V V V V 6 C V V F F 80 As descricóes definidas Como a tabela deixa transparecer, somente podemos atribuir valor de verdade a uma sentenca quando suas pressuposicóes estäo todas satisfeitas - que é o caso apenas do contexto C. É pela falta de pressuposicóes preenchidas que respondemos "Näo faz sentido." quando nos perguntam pelo valor de verdade de sentencas como 'A atual rainha do Paraguai gosta de pular de paraquedas'. O debate sobre o estatuto de assercäo ou de pressuposicäo do con-teudo da DD näo está resolvido: a) Há um referente que satisfaz o predicado que compóe a DD; & b) Näo há mais do que um referente que satisfaca o predicado que compóe a DD. Além disso, há argumentos a favor de uma ou outra posicäo. Con-tudo, näo seria errado dizer que, pelo menos nos últimos anos, a maio-ria dos pesquisadores em semäntica está mais propenso a adotar a teória pressuposicional. Bom, pode ser que isso mude nos próximos anos -afinal, a ciéncia näo é algo estático e sempře é possível construirmos argumentos melhores e mais refinados, que iluminem aspectos ainda näo vislumbrados, e que ajudem na adocäo de uma ou outra perspectiva. Depois de explicitar a problemática por trás das DDs, nos voltare-mos, na última Secäo deste Capítulo, a um aspecto bastante importante dessa construcäo: o seu papel textual. 5.5 A fungäo textual das DDs Tanto a teória quantificacional quanto a pressuposicional con-side- ram, para a semäntica das DDs, que, ao empregar urna DD, o falante considera que o ouvinte, de alguma maneira, conseguirá identificar ine- quivocamente o referente sobre o qual se está falan- do. No caso da solucäo quantificacional, afirma-se que há apenas um referente do tipo em questäo, e, no caso da solucäo pressuposicional, pressupöe-se que no contexto hajá apenas um referente do tipo em questäo. Devido a essa característica, as DDs estäo sempře associa-das a informacöes já dadas e recuperáveis, desempenhando um interessante papel na tessitura dos textos. Se contrapusermos äs DDs as descricöes indefinidas (Dl) - que tem a mesma estrutura, porém säo encabecadas pelos artigos indefinidos -, veremos que as Dis säo responsáveis por introduzir (novos) referentes num dado texto ou discurso, ao passo que as DDs säo responsáveis por indicar que estamos falando de referentes já conhecidos (velhos, informacäo dada). Quando comecamos uma narrativa qualquer, ao introduzirmos uma personagem o fazemos, na imensa maioria das vezeš, através de uma Dl. Compare: 11) Era uma vez um rei muito bondoso. 12) ? Era uma vez o rei muito bondoso. Mas, se quisermos continuar a falar da personagem introduzida, teremos que usar uma DD e näo uma Dl: 13) Era uma vez [um rei muito bondoso] 1. Mas [o rei]l tinha inimigos. 14) ? Era uma vez [um rei muito bondoso] 1. Mas [um rei] 1 tinha inimigos. O uso do mesmo índice 1 indica que se trata dos mesmos referentes, explicitando a relacäo anafórica que nos interessa. Como muitos argumentam, as DDs säo sempře anafóricas, ou sej a, sempře falam de um referente recuperável no contexto e, portanto, já mencionado. Como num contexto ou discurso em geral há muitos referentes sobre os quais se fala, a DD deve indicar de As describes definidas alguma maneira uma especificidade, ou uma caracteristica distintiva através da qual capturamos apenas um referente. Uma maneira de fazer isso é pensar que a DD indica que há uma restricäo em operac^äo, e que devemos procurar um referente exclusivo que cumpra tal restricäo. Vejamos urn exemplo: Duas mäes conversando sobre a escola dos filhos, e entäo uma comenta: 15) Coloquei meu filho numa escola que todos diziam ser boa. Depois de dois meses, meu filho quis mudar. Aí eu fui ver, e achei que a escola näo era täo boa. 16) ? Coloquei meu filho numa escola que todos diziam ser boa. Depois de dois meses, meu filho quis mudar. Ai eu fui ver, e achei que uma escola näo era täo boa. O exemplo (16) é ruim porque a DI 'uma escola' näo funciona como termo anafórico, e só pode indicar que a mäe está falando de uma segunda escola: uma interpretacäo que torna incoerente o texto como um todo. Por sua vez, no exemplo (15), a DD cumpre seu papel anafórico: sabemos que quando a mäe diz 'a escola' ela está falando da escola já mencionada. Como sabemos isso? Aqui entra a ideia de que as DDs indicam que há uma restricäo em operac^äo, que nos faz buscar um re- ferente já mencionado. Para o caso de (15), sabemos que a mäe näo está falando de uma escola qualquer, mas sim da escola em que ela colocou seu filho, que todos diziam ser boa e da qual o filho em questäo quis se mudar dois meses depois de entrar. É por desempenhar esse papel que as DDs säo täo importantes nas amarras do texto, indicando que estamos falando de um mesmo referente, apenas acrescentando mais informacöes sobre ele. Outra funcäo textual interessante das DDs, que se combina com a funcäo anafórica, é aquela desempenhada pelo predicado que segue o artigo. Ora, urn mesmo objeto pode ser referido por meio de diferentes describees; tomemos, por exemplo, o referente 'John Lennon. Podemos nos referir a ele como: a) o principal vocalista dos Beatles; b) o marido de Yoko Ono; c) o compositor de Imagine; d) o pai de Sean Lennon; etc. Apesar de essas quatro DDs referirem-se inequivocamente a John Lennon, elas obviamente desempenham papéis informacionais diferen-tes. Imagine, por exemplo, que alguém queira saber sobre a banda The Beatles e pergunta sobre a relacěo entre John Lennon e essa banda. Se alguém responder com algo como 'Ora, John Lennon é o pai de Sean Lennon, provavelmente näo ajudará em nada quern fez a pergunta. É fácil imaginar outras situates em que DDs que se referem ao mesmo indivíduo näo podem ser usadas intercambiavelmente. Pense em alguém apaixonado pela música Imagine, mas que des-conhece seu compositor. De repente essa música toca no rádio, e urna outra pessoa diz para a primeira: 'O marido de Yoko Ono é um génio' -esse proferimento näo vai fazer muito sentido para a pessoa apaixonada pela música (e que desconhece quem é seu compositor). Essa propriedade das DDs - ter conteúdos informacionais distin-tos - pode e é muito explorada na área da política. Urna coisa é dizer de Lula que ele é 'o presidente que atingiu 80% de aprovacěo popular', e outra coisa é dizer de Lula que ele é 'o presidente que é um ex-sindica-lista, sem curso superior'. Apesar de ambas as describes se referirem ä mesma pessoa (Lula), a segunda carrega čerta dose de preconceito e será preferencialmente usadá pelos inimigos de Lula. As descricóes definidas Capítulo 05 5.6 Consideragóes finais Como procuramos mostrar neste Tópico, a descricěo definida (DD) é o terna de um intenso debate em semántica. Esse debate, ao tentar es-clarecer a natureza semántica da descricěo definida, aprofunda nosso entendimento de conceitos como pressuposicěo, condicěo de verdade, conjun9áo, e outros. Porém, o interesse nas describees definidas náo se encerra no es-tabelecimento de sua natureza semántica: essa construct desempenha um importante papel textual, seja na manutencěo do fluxo de informa-9áo (a descrÍ9áo definida responde por referentes já introduzidos no discurso), seja na qualificacěo dos referentes. 85 Negacäo Capítulo 06 6 Negacäo Vocé vai conhecer o conceito de operador e algumas das características da negacäo no Portugués Brasileiro (PB). 6.1 As várias maneiras de negar Embora negar seja algo muito corriqueiro, estudar a negacäo en-volve questóes bem espinhosas, algumas das quais veremos aqui, ao mostrarmos alguns aspectos mais gerais da negacäo. A melhor maneira de iniciar tal investigacäo é se perguntar: quais mecanismos ou expressóes dispomos para negar? Claro, a sua primei-ra resposta deve ter sido o advérbio näo', nosso negador por excelencia. Porém, há muitas outras maneiras de negar, e elas nem sempre däo a mesma contribuicäo para o sentido da sentenca em que aparecem. Compare, apenas a título de exemplo, as seguintes sentencas: (1) O Joäo näo saiu hoje. (2) O Joäo nem saiu hoje. Ambas säo sentencas negativas; elas nos informam que, de todas as coisas que Joäo pode ter feito, é certo que entre elas näo está sair. Mas, veja que (2) veicula um algo a mais, de čerta forma diz mais do que (1). Com (2) infere-se que sair é o mínimo que Joäo poderia ter feito, se ele näo fez esse mínimo, entäo ele näo fez mais nada. Podemos pensar sobre o nem' da seguinte forma: imagine que há várias coisas que Joäo pode ter feito: fazer um bolo, lavar roupa, ver um filme etc, e, entre elas, sair. Ora, se alguém diz (2) quer dizer também que, além de näo sair, Joäo näo faz mais nada das coisas que ele pódia ter feito. Faca o teste: sabendo que Joäo pódia fazer as coisas que listamos, o que vocé acha da sentenca 'O Joäo nem saiu hoje, mas ele lávou roupa'? 87 Näo é ligeiramente estranha? Compare com 'O Joäo näo saiu hoje, mas ele lávou roupa'. O contraste entre essas sentencas pode ser explicado pela ideia de escalas. O 'nem' carrega uma escala e indica a posicäo mais baixa nessa escala; se negamos o mínimo, negamos o resto. Isso näo ocorre com o 'näo'. Outro item de negacäo é 'sem', que, como 'nem', näo tem a mesma distribuicäo de 'näo', ou seja, näo ocupa a mesma posicäo que o 'näo' pode ocupar. Podemos dizer 'sem juízo', mas näo 'näo juízo': (3) Ele é sem juízo. (4) * Ele é näo-juízo. Ao mesmo tempo, em termos de significado, parece que 'sem juízo' é o mesmo que 'näo ter juízo': 'Ele näo tem juízo'. Alem de itens lexicais negativos como 'näo', 'nem' e 'sem', temos também uma morfológia para negacäo. Por exemplo, o prefixo 'in-', no seguinte exemplo: (5) O Joäo é infeliz. Mas, a sentenca em (5) näo é sinônima da sentenca em (6): (6) O Joäo näo é feliz. Em que elas diferem? Vamos desenvolver essa discussäo mais adiante, na Secäo 6.3. Outro prefixo que indica negacäo é 'des-', em 'des-leaľ; o mesmo vale para 'a-' em 'amoral'. Mas, note que eles näo tém exatamente o mesmo significado... A expressäo 'deixar de' é também uma maneira de negar, que sempře incide sobre urn verbo: (7) O Joäo deixou de estudar. Nega^äo Capítulo 06 Como vocé deve se lembrar, 'deixar de' carrega urna pressuposicäo que indica a existencia de um estado anterior, em que o evento denota-do pelo verbo no infinito se desenvolvia: só se deixa de fazer algo se já se fazia esse algo anteriormente. 'Deixar de' aŕirma que esse estado anterior cessou. Alias 'cessar de' é outro verbo que carrega urna negacäo e urna pressuposicäo. Como já vimos, no Capítulo sobre pressuposicäo, a negacäo é um "buraco" pressuposicional, isto é, a negacäo deixa a pressuposicäo passar, por isso comparar a sentenca afirmativa ä negativa é um teste para determinarmos a pressuposicäo. Há ainda os chamados "indeŕinidos negativos" como 'ninguém', 'nenhum', 'nadá'. Eles tém uma propriedade curiosa: só ocorrem sob o escopo de urna negacäo (a näo ser em posicäo de sujeito). (8) a. Joäo näo viu ninguém. b. * Joäo viu ninguém. Veja o Capítulo 4 sobre pressuposicäo. Lembra-se do teste da P-família? Discutiremos mais sobre essa propriedade na Secäo 6.5! (9) a. Joäo näo comprou nada. b. * Joäo comprou nada. Näo temos em (8) e (9) urna dupla negacäo, que equivaleria a urna sentenca afirmativa: se näo é verdade que Joäo näo veio, entäo ele veio. Há línguas, como o inglés, em que a traducäo literal de (9a), 'Joäo didn't buy nothing', significa que ele comprou algo, porque há urna dupla nega- cäo. Por isso, se vamos traduzir corretamente (9a), temos que dizer 'Joäo didn't buy anything'. A presenca de duas negacóes em (9a) no portugués näo indica que ele comprou algo. Näo se trata, portanto, de dupla negacäo. Alguns autores tém dito que no portugués temos concordáncia negativa. É certo que cada um desses negadores pede um estudo ä parte, que tenha como objetivo responder ä pergunta: qual é a contribuicäo semäntica que ele carrega? Em que ele difere dos outros itens de negacäo? Mas, näo é possível tratar de todos num capítulo, por isso vamos, aqui, fazer urna apresentacäo das principals propriedades da negacäo. 89 Semántica 6.2 O'náo' Vamos iniciar com uma pequena reflexáo sobre o 'náo'. Para comeco de conversa: o que significa negar? Náo há uma respos-ta imediata para essa pergunta, porque, como vimos, há várias maneiras de negar e nem sempře elas fazem o mesmo semanticamente. Logo, náo é óbvio que hajá uma resposta única para essa questáo. Vamos, entáo, refle-tir sobre a negacáo chamada de sentencial, feita com o 'náo' e exemplifica-da a seguir. Pergunte-se: o que a sentenca (10) significa? (10) Náo está chovendo. Ela acarreta que está fazendo sol? Claro que náo, pode náo estar chovendo e náo estar fazendo sol. Entáo, o que ela significa? Vamos pensar do seguinte modo: uma sentenca divide o mundo em duas partes, uma na qual ela é verdadeira e outra na qual ela é falsa. Isso fica mais claro quando pensamos em sentencas do tipo 'está chovendo'. Separe as situacóes a seguir, tendo em vista que (11) é verdadeira e depois que (10) é verdadeira: Quadro 2 Quadro 4 90 Como vimos, o acarreta-mento é uma relacäo de consequéncia logica, isto é, dada uma sentenca A, outra segue necessaria-mente dela. Veja o Capí-tulo 2 ou o Glossário. Nega^áo Capítulo 06 Voce nao deve ter tido qualquer problema: a sentence (10) e verdadeira no primeiro e no terceiro quadros, e falsa no segundo e no quarto, isto e, ela divide o mundo em dois: aquela parte em que a sentence e ver- dadeira e outra em que e falsa. A sentence em (11) nos da exatamente o inverso: ela e falsa no primeiro e terceiro quadros e verdadeira no segun- do e nas situa9oes em que nao chove. Note que ha um "jogo" entre chover e nao chover: se (10) e verdadeira, entao (11) e falsa e vice-versa. Ou seja, se soubermos o que (11) significa, isto e, o seu valor de verdade, derivamos (10) mecanicamente e vice--versa. Podemos, entao, deduzir composicionalmente o significado de 'nao' a partir do significa- do da sentence afirmativa que compoe a sentence negativa mais complexa. A composicionalidade, ja disse-mos, e a propriedade das linguas naturais de formar unidades mais complexas a partir de unidades menores. Nesse sentido, podemos decompor a sentence (10) em: (12) [s Náo [s está chovendo] ]. Em termos estruturais, estamos afirmando que o 'náo' atua sobre uma sentence e gera uma outra sentence, isto é, ele é um operador, em-bora em termos superficiais ele parece incidir sobre o verbo conjugado. O que dissemos nos baliza para fazermos uma tabela de verdade. Se a sentence constituinte - no caso de (10), é 'está chovendo' - for falsa, a sentence complexa com a negacěo é verdadeira e vice-versa. Vamos chamar a sentence constituinte de p. A literatura em semántica costuma representar a negacěo por '-' ou por '-■'. Assim uma formula como '~p' ou '-ip' significa "náo é o caso que p". Temos apenas duas alternativas para p: ou ela é verdadeira (V) ou é falsa (F); chegamos assim ao seguinte quadro: p ~P V F F V Mas, voce deve estar se dizendo: "Isso é apenas um tipo de funcěo, uma maquininha de derivacěo, e eu quero saber algo mais denso: o que Também em logica, em matemática e em filosofia. Na literatura mais computacio- nal costuma-se representar o verdadeiro por 1 e o falso por 0. 91 Semäntica exatamente significa a negacäo?" Essa é uma questäo metafísica, e näo é trivial. Será que podemos afirmar que a sentenca em (10) indica que houve um evento de näo-chuva? Há eventos negativos? Em nossa com-preensäo, näo; só há eventos positivos. Significa que, ao proferir (10), o falante näo diz que houve um evento de näo chover, mas que houve um evento que pode ser caracterizado como de näo chover, um evento de sol ou um evento de dia encoberto em que näo está chovendo. Ne-gar é dizer de um estado de coisas que ele näo pode ser caracterizado daquela maneira, mas ficamos sem saber como é entäo esse evento. Ao dizermos que näo está chovendo, deixamos em aberto se está fazendo sol, se está nublado, se está frio ou quente... Só sabemos que näo chove. 6.3 Escopo Na Secäo anterior abrimos uma primeira clareira na floresta do 'näo'; é tempo de adentrar na mata. Considere agora a seguinte sentenca: (13) O Joäo näo beijou a Maria. De acordo com a visäo mais simples, (13) significa que o que quer que tenha ocorrido näo foi um evento de beijo na Maria. Mas, note que, se acentuarmos prosodicamente 'a Maria', entäo (i) afirmamos que houve um evento de beijo, mas (ii) que esse beijo näo foi na Maria, o que nega-mos é, na verdade, o constituinte 'a Maria'. Veja que a nossa descricäo anterior näo consegue captar essa relacäo entre a negacäo e um constituinte menor do que a sentenc^a, pois dissemos que o 'näo' opera sobre sentencas. Acentuar prosodicamente um constituinte é uma maneira de indicar onde a operacäo da negac^äo está atuando, ou seja, qual é o constituinte que está sendo negado. Em literatura especializada, o lugar em que um operador atua é chamado de escopo. Na sentenca (13), como a prosódia indica, a negacäo atua sobre 'a Maria'. Considere a sentenc^a a seguir: (14) O Joäo näo terminou a tese por causa da sua mulher. Leia em voz alta a senten-ca em (13) com o acento pro- sódico em 'a Maria'. Esse é um contexto em que'a Maria'é, em geral, a informac.äo já presentejá dada. Como se a informa-cäo de que Joäo beijou a Maria tivesse sido dada e agora ela está sendo corrigida: näo foi a Maria que ele beijou, mas sim a Claudia, ou 'O Joäo näo beijou a Maria, mas sim a Claudia'. 92 Negacäo Capítulo 06 Ela é ambígua, isto é, ela tem duas interpretacöes bem distintas que säo acompanhadas por duas curvas entoacionais bem diferentes. Vocé enxerga as duas leituras? Em uma delas o Joäo näo terminou a tese e ele näo ter feito isso se deve ä sua esposa; a esposa foi a causa de ele näo ter terminado a tese. Na outra, o Joäo terminou a sua tese, mas isso näo ocorreu por causa da sua esposa, ele ter a causa de ele terminar näo foi a sua esposa. Na primeira interpretacao, o 'näo' tem escopo sobre 'terminou a tese', negando esse constituinte. No segundo caso, o 'näo' tem escopo sobre a causa veiculada por 'por causa da sua mulher', negando que essa sej a a causa de ele ter terminado a tese. Trata-se de uma ambigui-dade semantica porque envolve o escopo do operador. Operadores tem escopo porque eles atuam sobre certos consti-tuintes, incluindo toda a sentenca. Quando há mais de um operador na sentenca, em geral, temos ambiguidade, porque um operador pode ter escopo sobre o outro, é o que ocorre na sentenca: (15) A Maria näo cursou semäntica de novo. Cada uma das interpretacoes tern uma curva entoacional particular. Tente ler a sentenca (15) acentuando 'de novo' e isolando-o prosodica-mente do resto da sentenca; que interpretacao foi gerada? Que ela mais uma vez nao fez o curso de semantica, ou seja, o 'de novo' esta fora do escopo da negacao; e ele quern atua sobre a sentenca negativa, indican-do que 'de novo' nao ocorreu algo. Agora leia a sentenca incluindo o 'de novo' na mesma curva entoacional, com uma entonacao quase de sur-presa, de correcao de uma fala anterior. Dessa vez a interpretacao e que ela ja cursou semantica, mas nao fez o curso de novo. Nega-se o 'de novo'. A representacao das duas leituras pode ser a seguinte: Temos que 'p' esta por 'A Maria cursou semantica', 'DN' por 'de novo', e '-' pela negacao. Assim: DN (~p) = de novo nao e o caso que Maria cursou semantica. ~(DN p) = nao e o caso que de novo Maria cursou semantica. 93 Com essa representacěo, fica claro qual operador está sob o es-copo do outro. 6.4 Negagöes escalares Dissemos, no início, que a sentence em (16) tem um significado diferente da sentence em (17), isto é, elas näo säo sinönimas: (16) A Maria é infeliz. (17) A Maria näo é feliz. Dizer que elas näo säo sinönimas é dizer que elas desenham con-di<;öes diferentes no mundo, que elas näo säo verdadeiras (ou falsas) nas mesmas situai^öes. Vocé consegue ver em que elas diferem? Veja que entre 'feliz' e 'infeliz' há um continuum, estamos, portanto, diante de uma escala, em que o topo é ser feliz e a base é a infelicidade; entre elas há inúmeros estados intermediários que podem ser indicados por advérbios como 'muito' ou 'um pouco". Ao negarmos que a Maria é feliz, indicamos apenas que näo é pos-sível colocá-la no topo da escala da felicidade, mas isso näo significa que ela está lá embaixo; ela pode näo ser nem feliz nem infeliz, como a sentence 'Maria näo é feliz e nem infeliz' demonstra. Se afirmamos que ela é infeliz, colocamos a Maria na base da escala, na posicěo mais baixa. Assim (16) acarreta (17), mas näo vice-versa, ou seja, mesmo que Maria näo seja feliz, ela näo é necessariamente infeliz. Mas, nem sempře o prefixo 'in-' se combina com um adjetivo escalar: (18) Esse artigo é inconstitucional. Ora, ou algo é inconstitucional ou näo é; näo há algo mais ou me-nos inconstitucional. Nesse caso, (18) diz o mesmo que (19): Negacäo Capítulo 06 (19) Esse artigo näo é constitucional. Para mais informacöes sobre os adjetivos escala-res, veja o Capítulo sobre comparacäo. (20) O leite näo está quente. Será que ela acarreta que o leite está frio? Certamente näo, e voce já deve ter entendido a razäo: 'quente' é também um adjetivo escalar. Na escala de temperatura, quente está no intervalo superior e frio no inferior, mas há posicöes intermediárias, expressas, por exemplo, por 'morno'. Veja que se o leite está frio, entäo ele näo está quente, mas a recíproca näo é verdadeira. Como já notamos, o 'nem' é um tipo de negacäo escalar, que pode atuar em lugares que o 'näo' näo pode, compare as sentencas abaixo: (21) a. Nem o Joäo veio. b. * Näo o Joäo veio. Veja que näo podemos substituir o 'nem' por 'näo'. Além disso, (21a) diz mais do que Joäo näo ter vindo. De alguma forma, (21a) veicula que também outras pessoas näo vieram. Como isso ocorre? 'Nem' parece ser especializado em atuar na parte inferior de urna escala que é dada contextualmente. Ao negar o ponto mínimo da escala, nega-se todo o resto. Assume-se, ao interpretarmos (21a), que o Joäo certamente viria ä festa, porque o Joäo vem a todas as festas; entäo, no mínimo, era ele o esperado. Mas, se o mínimo esperado näo ocorreu, nada mais ocorreu. Trata-se evidentemente de um raciocínio inferencial. Veja também que o 'nem' é um item que pode tomar diferentes expressôes em seu escopo: no caso de (21a), seu escopo é 'Joäo'; no caso de (2), seu escopo é 'sair'. A negacao escalar nao e, portanto, uma propriedade do prefixo 'in-', antes tern a ver com o tipo de adjetivo com o qual esse prefixo se combina: esse fenomeno ocorre quando 'in-' se combina com adjetivos escalares. Considere a seguinte sentenca: 95 Semäntica 6.5 Os itens de polaridade negativa Já mostramos que os indefinidos negativos, nada', ninguém', ne-nhum', quando näo estäo na posicäo de sujeito, exigem a presenca da negacäo explicita: (22) Ninguém viu o Pedro. (23) a. * Pedro viu ninguém. b. Pedro näo viu ninguém. Esse é um fenömeno curioso que näo se restringe aos indefinidos negativos. Ha na lingua várias expressöes que só podem ser usadas se es-tiverem sob o escopo de um item negativo, por isso elas säo chamadas de itens de polaridade negativa. Veja que interessante o seguinte contraste: (24) a. Ela näo vale um tostäo furado. b. ?? Ela vale um tostäo furado. (25) a. Ela näo deu um pio na palestra. b. # Ela deu um pio na palestra. Vocé sente o contraste? O que ocorre nas sentencas afirmativas? Ha inumeras expressöes que tém esse mesmo comportamento. Voce conse-gue pensar em outras? O que ocorre e que, na sentenca negativa temos uma expressao idiomatica, ja a afirmacao faz com que as palavras sejam interpretadas "literalmente", assim (25b) so pode significar que ela deu literalmente um pio durante a palestra, por isso e uma sentenca estranha . Ja (25a) significa que ela nao disse nada durante a palestra, nao produziu nem o menor barulho e nao que ela nao deu um pio. Veja que, mais uma vez, estamos diante de uma escala, contextualmente produzida, em que 'dar 0 simbolo # nao indica agramaticalidade, mas a necessidade de um con-texto especial para que a sentenca seja interpretada. 96 Negacäo Capítulo 06 um pio' indica o mínimo que se pode fazer. Se ela näo fez o mínimo, näo fez nada mais. Eis mais um exemplo: (26) a. Ela näo abriu a boča . b. Ela abriu a boca. Exatamente o mesmo raciocínio se aplica aqui. A sentenca em (26b) só pode ter leitura literal, tecnicamente chamada de composicio-nal, significando que ela realizou o movimento de abrir a boca. Já (26a) pode ter tanto a leitura composicional, em que se nega que ela tenha feito o ato de abrir a boca, quanto a leitura náo-composicional, em que ela näo disse nada. É claro que abrir a boca é o mínimo que temos que fazer para falar; se ela näo fez nem isso, näo fez nada mais, näo colocou a sua posicäo sobre o assunto, näo discutiu o assunto. Um enigma que cerca os itens de polaridade negativa é o fato de que eles podem ocorrer em alguns contextos que näo tém uma negacäo explícita: (27) Estou surpresa de ele ter levantado um dedo para ajudar. Vej a que, embora näo haja uma negacäo explícita, levantar um dedo' näo tem o significado composicional de levantar um dedo, mas é sinônimo de dar uma mäo, de ajudar. Note, entretanto, que há algo de negativo em (27), a expectativa do falante era que ele näo tivesse ajuda-do. O mesmo vale para a sentenca abaixo: (28) Se ele levantou um dedo para ajudar, eu sou um mico de circo. 6.6 Negacäo metalinguística Um outro tipo de negacäo que recebeu muita atencäo dos linguis-tas é a chamada negacäo metalinguística: 97 Semäntica Mais sobre pólo positivo e negativo no Capítulo 8, sobre comparacäo. (29) Ela näo é bonita, é linda. (30) Eu näo gosto de vocé, te amo. Por que essas sentencas säo problemáticas, embora sejam muito corriqueiras? Veja que mais urna vez temos escalas, bonito está, na esca-la de beleza, abaixo de linda, mas acima de feia. Nos exemplos ante-rio- res, quando negávamos o ponto máximo, deixávamos em aberto as várias possibilidades para baixo na escala: se o café näo está quente, ele näo está pelando, mas pode estar morno. Explicando de outro modo: se alguém é linda, necessariamente é bonita, porque linda é mais do que bonita e os dois estäo no polo positivo. Vocé deve conseguir fazer o mesmo raciocínio para a sentenca (30): na escala de amor, gostar é inferior a amar. Assim, se amamos alguém, necessariamente gostamos dessa pessoa (é evidente que o reverso näo é necessariamente verdadeiro, podemos gostar sem amar). Se é verdade que o falante näo gosta do ouvinte, entäo, por necessidade, ele näo ama o ouvinte. Há aqui paralelos com a chamada comparacäo metalinguística, veja o Capítulo 8. Mas, se for assim, as sentencas (29) e (30) deveriam ser espúrias, incoerentes, mas näo säo, e por que näo? A ideia é que em (29) näo esta-mos efetivamente negando que ela tenha a propriedade da beleza, mas estamos negando que a palavra 'bonita' seja apropriada para descrevé-la; de novo, algo como urna correcäo: Näo é correto caracterizá-la pelo termo 'bonita' porque ela é mais do que bonita, ela é linda. Estamos afir- mando que descrevé-la com o termo 'bonita é inadequado, porque estamos dizendo menos do que devemos dizer, j á que ela é linda. 6.7 Consideragoes finais Ha varias maneiras de negarmos. Neste Capitulo, apresentamos a negacao sentencial, que, no portugues brasileiro, ocorre geralmente com o 'nao' antecedendo o verbo conjugado. Sua principal caracteristica e inverter o valor de verdade da sentenca que a compoe. 'Joao nao saiu' 98 Negacäo é verdadeira se e somente se 'Joäo saiu' é falsa. Mostramos ainda a negacäo escalar - que é aquela que atua numa escala -, e também como a negacäo do prefixo 'in-' näo é o mesmo que a negacäo sentencial: 'Joäo näo é feliz' näo tem o mesmo significado que 'Joäo é infeliz'. Apresentamos rapidamente os itens de polaridade negativa que säo expressöes que ocorrem preferencialmente sob o escopo da negacäo, como por exemplo 'Ela näo é flor que se cheire'. Finalmente, atentamos para a negacäo metalinguística, em que se nega a propriedade de utilizarmos um certo termo para descrever um objeto: 'A Maria näo é bonita, é linda'. Como é possível notár, o domínio de estudos da negacäo é vasto e envolve questöes muito interessantes sobre escalas e sobre inversäo do valor de verdade das sentencas. Esperamos que vocé possa explorar mais a fundo tais questöes. Quantificac,äo Capítulo 07 7 Quantifica^äo Este Capítulo visa apresentar os conceitos básicos para entender a quantl-ficacäo nas línguas naturals. Nele vamos estudar mals afundo a quantlficacäo nominal. 7A Introdugäo Considere o seguinte diálogo: (1) Quantos livros (da lista de Semäntica) o Joäo comprou? O Joäo comprou todos os livros (da lista de Semäntica). Suponha que a informacäo entre parénteses seja dada pelo contexto. A resposta expres- sa uma quantificacäo: näo importa quantos livros estäo na lista, sabemos que o Joäo comprou todos eles, que ele esgotou os livros da lista. Quantificadores tém restric.äo contextual - no nosso caso, trata-se ape-nas dos livros da lista de Semäntica. As línguas naturais tém vários mecanismos para expressar quan-tificacäo. No exemplo em (1), trata-se de urna quantificacäo universal nominal, porque ela ocorre no sintagma nominal: 'todos os livros' que, no exemplo, está na posicäo de objeto (direto, diria a Gramática Norma-tiva, ou de argumento interno, diriam os linguistas). Mas, é evidente que o sintagma quantificado pode ocorrer na posicäo de sujeito e em outras posi<;öes, como mostram estes exemplos: (2) Todos os livros (da lista de Semäntica) säo baratos. (3) Em todos os livros (da lista de Semäntica) há um erro. Também deve estar claro que expressamos outras "quantidades" além da totalidade de elementos, expressa quantificacäo universal. Em (4), o falante informa que o Joäo comprou livros da lista. Talvez ele te-nha comprado dois, trés ou mesmo todos os livros, mas certamente ele comprou mais de um livro, dada a morfológia de plural '-s'. Na sentencia em (5), o numero de livros que o Joäo comprou é explicitamente dado: Informalmente, podemos dizer que a quantificac,äo expressa uma"quantidade": todos, a metade, alguns, dois... Mas, essa maneira de ver, que é conhecida na literatura como visäo"quanti-ŕkaciosa" leva a equívocos. É mais correto afirmar que a quantificac,äo é urna rela-cäo entre conjuntos, como veremos adiante. 101 Semántica (4) O Joáo comprou alguns livros (da lišta de Semántica). (5) O Joáo comprou dois livros (um, trés, quatro,...). Podemos também afirmar que Joáo comprou a metade dos livros da lišta - mas é claro que, nesse caso, para sabermos exatamente quan-tos livros Joáo comprou, precisamos saber quantos livros há na lišta: (6) O Joáo comprou a metade dos livros. Suponha que por 'a maioria' entendemos pelo menos metade mais um: (7) O Joáo comprou a maioria dos livros. Em (8), o falante afirma que, da lišta de livros, Joáo náo comprou nenhum: (8) O Joáo náo comprou nenhum dos livros. Todos esses exemplos sáo de quantificacěo nominal, mas as línguas tem também outros tipos de quantificacěo, em particular a quantificacěo no domínio do verbal: (9) Sempře que o Joáo sai, a Maria chorá. Veja que 'sempře' é uma quantificacěo universal, já que indica que todos os eventos de saída do Joáo sáo acompanhados por eventos de choro da Maria - para cada evento de saída do Joáo (toda vez que Joáo sai), há um evento de choro da Maria (Maria chorá, ou seja, 'Sempře que o Joáo sai, a Maria chorá'). Note como é diferente dizermos 'Algu-mas vezeš a Maria chorá quando o Joáo sai', em que temos uma quantificacěo chamada de existencial. Na sentence em (10), afirma-se que houve dois eventos de corrida: 102 Quantificacäo Capítulo 07 (10) Maria correu duas vezes. Assim, a quantificacäo estä presente na descricäo de värios fenö-menos das línguas naturais. Alem dos nominais, vimos que ad- vérbios de tempo como 'sempre' podem ser traduzidos como quantificacäo so-bre o tempo e 'vezes' como operando sobre eventos. No tópico sobre modalidade, veremos que a ideia de quantificacäo também desempenha ali um papel bastante interessante. Neste Capítulo, vamos nos concen-trar na quantificacäo nominal. Como esperamos deixar claro ao longo děste Capítulo, a quantificacäo é um lugar privilegiado para o professor de Portugués interagir com o professor de Matemätica ou com o professor de Filosofia/Lógi-ca, porque a intuicäo sobre como funciona a quantificacäo é a mesma nessas areas do conhecimento. Por razöes históricas, pensamos que as ciéncias humanas näo tem nada a ver com as ciéncias exatas e menos ainda com a matemätica, mas talvez esse sej a mais um engano; afinal, a matemätica é uma linguagem, assim como as várias linguagens lógicas (o cálculo de predica- dos, por exemplo). Nessa perspectiva, näo é sur-preendente que haja pontos de aproximacäo, e a quantificacäo é certa-mente um deles. Fica, entäo, o desafio de um trabalho em conjunto com o professor de Matemätica! 7.2 A quantificacäo nominal Vamos iniciar refletindo sobre esta sentenca: (11) Apenas uma crianca está chorando. Como já dissemos no Capítulo 3, predicados denotam conjuntos de indivíduos. Na sentenca (11), temos dois predicados; logo, dois conjuntos de indivíduos: o predicado 'crianca' denota o conjunto das crian-cas, e o predicado 'está chorando' denota o conjunto dos que choram naquele momento. Predicado é uma estrutu-ra insaturada, com uma posicäo aberta para ser preenchida por um argumente: 'chorar'pede um argumente para se tornar uma sentenca. Em'O Joäo chora'a valéncia de 'chorar'é preenchida pelo argumente'o Joäo'. 103 Semäntica A visäo que será apresentada é chamada de Quantificacäo Genera-lizada e foi desenvolvida por Barwise e Cooper (1981). Essa visäo procura resolver a questäo de como combinar os elementos em (11). A sentenca em (11) coloca um problema de combinacäo se partir-mos do predicado 'está chorando'. Como já vimos, 'está chorando' é um predicado com um lugar, com uma Valencia; logo, ele pede um argumente para se preencher, para se tornar uma estrutura estável. O problema é que o sintagma quantificado 'apenas uma crianca' náo se refere a um individuo em particular (o Joäo, a Maria...). É possível provař, através de uma série de testes, que, de fato, um sintagma quantificado näo denota urn individuo em particular. Apre-sentamos dois que nos parecem mais intuitivos: Teste da contradicäo: se 'apenas uma crianca' denotasse urn individuo em particular, esperariamos que a sentenca em (12) fosse contradi-tória, como ocorre com a sentenca em (13), em que temos o sintagma 'o Joäo', o qual sabemos com certeza que se refere a urn individuo em particular: (12) Apenas uma crianca está chorando e apenas uma crianca näo está chorando. (13) O Joäo está chorando e o Joäo näo está chorando. Como vimos no Capítulo 2, uma contradicäo é uma sentenca que nunca é verdadeira. Veja também o Glossário. No entanto, com (12) é perfeitamente plausível imaginarmos uma situacáo em que ao mesmo tempo temos uma crianca chorando e uma crianca que näo está chorando. Isso náo ocorre em (13). Sem "deslizar" os sentidos e desconsiderando situacöes em que o Joäo está fingindo chorar, náo é possível uma situacáo em que ele esteja ao mesmo tempo chorando e náo chorando, por isso (13) é uma contradicäo Teste do acarretamento para baixo: para aplicar esse teste, vamos supor que o sintagma 'apenas uma crianca' se refere a um individuo em 104 Quantifica^äo particular. Se esse for o caso, a sentence em (14a) deve acarretar a sentence (14b). E isso que ocorre? (14) a. Apenas uma crianca chegou ontem de manha. Näo! (14a) näo acarreta (14b), porque podemos imaginär uma si-tuacäo em que apenas uma criance chegou de manhä, mas, ä tarde, che-garam muitas outras chances. Por contraste, (15a) acarreta (15b): (15) a. O Joäo chegou ontem de manhä. Esses testes mostram que os sintagmas quantificados nao se com-portam como expressoes que denotam individuos em particular. Retornando: se em (11) 'apenas uma criance' nao denota um indi-viduo em particular, deveriamos esperar que a sentence fosse agrama-tical, porque o predicado 'esta chorando' pede um argumento, isto e, um individuo em particular, mas 'apenas uma criance' nao denota um individuo! O que fazer? A grande contribuicao de Frege foi imaginar que a combinacao e livre de direcionamento. No Capitulo 3, vimos que, numa sentence como 'Joao estuda', combinamos o predicado 'estuda' com o argumento 'Joao', da direita para a es- querda. O que Frege fez foi considerar 'apenas uma criance' - que, como vimos, nao denota um individuo - como um tipo de predicado, e efetuar uma combinaceo da esquerda para a direita, partindo de 'apenas uma criance' e procurando qual expressao servi-ria de argumento para ela. Reflita: o que essa expressao exige para se tornar uma sentence? As combinacoes abaixo sao todas possiveis (e muitas outras que voce deve conseguir criar sem nenhum problema): b. Apenas uma criance chegou ontem. Lembre-se: acarretamento é uma relacáo logica entre as sentencas de forma que uma decorre necessaria-mente da outra! b. O Joäo chegou ontem. 105 Semäntica chorá Apenas uma crianca fala estuda O que essas combinacöes tém em comum? Ora, já vimos que 'estuda' é um predicado de um lugar, o mesmo se dá com 'chorá' e com 'fala'. Assim, o que há de comum nessas combinacöes é o fato de que 'apenas uma crianca' se combina com um predicado de um lugar! Por isso Fre-ge afirmou que o sintagma quantificado é um predicado de segunda ordern: é um predicado que pede outro predicado para se completar. Estamos combinando da esquerda para a direita. Veja que 'apenas uma crianca' näo pode se combinar com argu-mentos - estruturas saturadas -, como em: Joäo Apenas uma crianca o presidente do Brasil Se analisarmos ainda mais a fundo o sintagma quantificado 'apenas uma crianca', veremos que ele pode ser decomposto em um quantifica-dor, 'apenas uma' e um predicado 'crianca' - lembrando que predicados de um lugar, como 'crianca', 'chora' etc., se referem a conjuntos de indi-viduos, ou seja, o conjunto das criancas, o conjunto dos que choram etc. Grosseiramente, temos a seguinte decomposicäo: Apenas uma crianca chora. Maria Apenas uma crianca chora. Apenas uma crianca 106 Quantificacáo Capítulo 07 Veja que temos um quantificador e dois predicados de um lugar: 'crianca' e 'chorá'. O quantificador 'apenas uma', como qualquer quantificador, indica uma relacáo entre esses conjuntos. A questáo agora é: Como é que os conjuntos em (11) se relacionam? Pergunte-se: Em que condicóes o mundo deve estar para que essa sentenca seja verdadeira? Ora, para que a sentenca (11) seja verdadeira, é necessário que um único indivíduo, na situacáo de fala, tenha ao mesmo tempo a proprie-dade de ser crianca e de chorar. Veja que pode haver outras criancas e pode também haver outros que estáo chorando, o que se exige é que apenas um único indivíduo pertenca á interseccáo entre esses conjuntos, como mostra o desenho a seguir: Conjunto das criancas A Conjunto dos que choram Um e apenas um >- dos indivíduos é crianca e chorá Se vocé tem dúvidas bási-cas sobre teoria de conjuntos, faca uma pequena recapitulacáo! É por isso que dissemos, no início, que um quantificador denota uma relacáo entre conjuntos. Vamos, agora, "brincar" de visualizar o que alguns outros quan-tifica- dores denotam, tendo como fundo essa ideia de relacáo entre conjuntos. Faca a seguinte pergunta: O que 'todo' denota? Reflita sobre a sentenca 'toda crianca chorá', depois se pergunte: Para que essa sentenca seja verdadeira, o que é necessário? Pode haver outros indivíduos que choram? Ou essa sentenca exige, para ser verdadeira, que apenas criancas chorem? Vocé deve concordar que, para a nossa sentenca ser verdadeira, pode haver outros indivíduos que chorem; o que precisamos garantir é 107 Semántica que, se algo é crianca, entáo ela chorá. Se pensarmos em termos de conjunto, o que teremos? Teremos que o conjunto das criancas está contido no conjunto dos que choram. Conjunto das criancas A Conjunto dos que choram A relacáo de inclusáo é representada por "c": o conjunto das criancas "c" o conjunto dos que choram, ou seja, o conjunto das criancas está contido no conjunto dos que choram, ou ainda, se algo é uma crianca, entáo esse algo chorá, ou seja, toda crianca chorá! Um caso bem interessante de se pensar é a sentenca: (16) Nenhum homem é sozinho. Temos, mais uma vez, dois predicados: 'homem' e 'sozinho', que de-nota o conjunto dos entes que sáo sozinhos. Pergunta-se: o que denota 'nenhum', que tipo de relacáo 'nenhum' denota? Há várias maneiras de responder a essa pergunta, mas, se pensamos sempře em relacóes entre conjuntos, entáo temos de concluir que esses conjuntos náo se relacio-nam, que náo há interseccáo entre eles. Eles estáo disjuntos Conjunto dos homens Conjunto dos sozinhos 108 Quantificacäo Capítulo 07 7.3 Interagäo de quantificadores: as relagóes de escopo Durante certo período na história dos estudos em sintaxe e semänti-ca, acreditava-se que as sentences ativas e suas equivalentes passivas éram sinônimas, isto é, que ambas veiculavam exatamente o mesmo sentido. Num artigo famoso, Chomsky mostrou que nem sempre é esse o caso, a partir da análise de urna sentence parecida com (17) abaixo: (17) Todos os alunos dessa sala falam duas línguas. Nessa sentence temos dois sintagmas quantificados: 'todos os alunos' e 'duas línguas'. Intuitivamente, em que condi<;oes essa sentence é verdadeira? Vocé deve ter pensado: ela é verdadeira se todos os alunos falarem duas línguas. Correto. Mas, será que é necessário que sejam as mesmas duas línguas? Suponha o seguinte cenário: Na sala em questäo há trés alunos: Berenice, Júlia e Ricardo. Berenice fala inglés e alemäo; Júlia fala karitiana e irlandés; Ricardo fala grego e japonés. A sentence em (17) é verdadeira nesse cenário? Claro que sim! Ela também é verdadeira num cenário em que os trés falam as mesmas duas línguas, por exemplo portugués e inglés. Compare, agora, com a sentence passiva: (18) Duas línguas säo faladas por todos os alunos dessa sala. Uma das interpretac^es desapareceu. Qual delas? Vocé deve ter percebido que agora necessariamente säo as mesmas duas línguas. O cenário em que cada um fala duas línguas distintas está excluído. Apenas a sentence em (17) é ambígua. Que ela o seja é algo espera-do, dado que quantificadores säo um tipo particular de operador. Como vimos, os quantificadores efetuam uma operaceo entre conjuntos. Há, basicamente, a operaceo de inclusäo e a operaceo de in-tersecceo. 'Todo' (e suas variantes, como 'todos os [N]', 'todas as [N]', 109 O karitiana é uma das muitas (por volta de 150) línguas indígenas faladas no Brasil. Semäntica 'tudo'...) indica sempře inclusäo de conjuntos, porque ele (e suas varian-tes) esgota todos os elementos de um dos conjuntos. Por isso, 'todo' é chamado de quantificador universal e é representado em textos de lin-guistica, de lógica, de computacäo pelo símbolo V. Já o 'um ou o 'algum' indica sempre intersecäo de conjuntos e é chamado de "quantificador existencial", porque é parafraseado por 'existe pelo menos um'; é comu-mente representado pelo símbolo 3. Voltando ao exemplo em (17), se um quantificador é um operador, entäo um pode ter escopo sobre o outro: se 'todos os alunos' tem escopo sobre 'duas línguas', o que nos dá a seguinte paráfrase: (19) Todos os alunos säo tais que eles falam duas línguas. Graficamente, temos dois conjuntos em interacáo, só temos cer-teza de que o conjunto dos alunos deve ser esgotado de tal forma que cada um dos elementos se relacione com dois indivíduos do conjunto das línguas. O problema é que há várias maneiras de isso ocorrer, como exemplificado nas duas situacöes a seguir: Situacäo 1: 110 Quantifica^ao Capitulo 07 Mas, por que isso nao ocorre com (18)? Por que (18) so permite uma leitura? Porque em (18) o sintagma quantificado 'duas linguas' ja se moveu para uma6 posicao em que ele tern escopo sobre o sintagma quantificado 'todos os alunos'. Logo, a sentence em (18) so pode ser pa-rafraseada por: (20) Duas linguas sao tais que todos os alunos falam elas. Com isso, exclui-se o segundo cenario. Considere agora a seguinte sentence: (21) Todos os alunos da sala compraram um presente para o professor. Voce ja deve estar preparado(a) para se deparar com uma ambiguida-de, certo? Claro que sim. Em (21) temos dois sintagmas quantificados: 'um presente' e 'todos os alunos da sala'; logo, temos dois operadores, e um pode ter escopo sobre o outro. Que interpretacoes temos da sentence em (21)? (22) Para todos os alunos e verdade que cada um deles comprou um presente para o professor. (23) Um presente e tal que todos os alunos compraram ele para o professor. Dizemos que em (22) temos uma leitura distributiva, porque dis-tribuimos os alunos e os presentes. Em (23), temos a chamada leitura de escopo invertido, precisamente porque houve uma inversao do escopo: 'um presente' passa a ter escopo sobre toda a sentence: existe um presente que e tal que todos os alunos compraram ele. 7.4 Consideragoes finais A quantificacao e um fenomeno pervasivo nas linguas naturais. Ela ocorre nao apenas no sintagma nominal, mas tambem no verbal e, 111 Voce deve se lembrar que ha movimento na sintaxe, certo? Semäntica como veremos no Capítulo 10, na modalidade. Neste Capítulo, mostra-mos o seu funcionamento atentando para o sintagma nominal. Mos-tramos que um quantificador estabelece urna relacäo entre conjuntos dados pelos predicados que compóem urna sentenca quantificada. Em 'Alguns alunos foram mal na prova', 'alguns' é o quantificador que indica que a interseccäo entre o conjunto dos 'alunos' e o dos que 'foram mal na prova' e deve ser maior do que 'um', ou sej a, para que essa sentenca sej a verdadeira é preciso ter pelo menos dois indivíduos que säo alunos e que foram mal na prova. Também mostramos que os quantificadores interagem com outros operadores que estejam presentes na sentenca, gerando ambiguidades. Para poder apresentar essas interacóes que geram ambiguidade, vol-tamos ä nocäo de escopo, apresentado no Capítulo 6. Ainda sobre os quantificadores, esse é, em nosso entender, o capítulo que pode propor-cionar urna conversa com o professor de Matemática. 112 Comparacäo Capítulo 08 8 Compara^äo (ou a semäntica das sentencas comparativas) Voce vai conhecer umpouco sobre a semäntica das sentencas comparativas canönicas no portugués brasileiro. Seräo apresentadas as principais formas de se construir sentencas comparativas. Oracöes comparativas säo estruturas amplamente presentes nas lin-guas naturais. Neste Capítulo, vamos aprender um pouco sobre a se- mänti-ca de algumas delas. Adentrar em sua complexidade estrutural e semäntica é um dos caminhos para entendermos como os falantes do portugués brasileiro constroem significados. Na tirinha acima, temos uma sentenca com-parativa: garotas tém bumbum mais delicado'. Pense no seguinte problema: ela expressa uma proposicäo completa ou estä faltando algo? Que estado de mundo torna essa fräse verdadeira? Muito do que será discutido aqui e muito do trabalho do semanticista preocupado com o estudo das sentencas comparativas é determinar duas coisas: o que estä elidido nessas sentencas e quais säo as condicöes de verdade que podem ser atribuídas a elas. '-\ Elisäo: é um processo linguistico pelo qual säo apagadas expres- söes de uma oracäo complexa. Apesar de näo pronunciadas, essas expressöes podem ser recuperadas dentro da estrutura sintática e na interpretacäo semäntica. Vejamos um exemplo. Em (ii) podemos recuperar o que näo foi pronunciado em (i): V_J 113 /- (i) Joäo comprou um carro e Maria tambem. (ii) Joäo comprou um carro e Maria tambem (comprou um carro). Assim, dizemos que o constituinte entre parenteses em (ii) foi elidi- do ou apagado, mas estä presente na interpretacäo. V_J Veremos que as nossas gramäticas escolares descreveram e enten-deram apenas alguns dos aspectos da comparacäo. Ja de inicio desco-brimos que comparacöes, como a da tirinha, possuem muito conteüdo que näo pronunciamos, que estä elidido, mas que, em nivel semäntico, estä presente. Como voce viu no Capitulo 2, a semäntica entende que o signifi-cado das sentencas das linguas naturais e resultado do significado das partes e do modo como elas se combinam, o principio de composicio-nalidade. Nesse modelo, predicados säo funcöes (no sentido matemä-tico). Com isso em mente, vamos ä pergunta fundamental que segue do principio de composicionalidade: como calculamos o significado de uma sentenca comparativa a partir do significado das partes? E, claro, quais säo as suas partes? A primeira parte deste Capitulo apresenta algumas formas de cons-truir sentencas comparativas e discute o que aprendemos sobre esse tipo de oracäo nas gramäticas escolares. Na segunda Secäo, entraremos na discussäo propriamente semäntica, tentando entender e tornar explicito o conhecimento intuitivo que temos enquanto falantes do portugues. E, como voce jä deve ter aprendido, essa tarefa se faz tentando mostrar que situacöes no mundo fazem uma sentenca comparativa ser verdadeira. 8.1 A gramätica da comparacäo Como inicio, recordemos tres aspectos que as gramäticas nos ensi-nam sobre a comparacäo. Comparacäo Capítulo 08 8.1.1 Os graus do adjetivo A primeira característica apresentada pelas gramáticas é que um dos graus do adjetivo é o comparativo. Temos outros como o superlati-vo, o equativo e o positivo. Vejamos os exemplos respectivos: (1) Joäo é mais/menos alto do que Pedro. (comparativo) (2) Joäo é o mais alto dos seus irmäos. (superlativo) (3) Joäo é täo alto quanto seu pai. (equativo) (4) Joäo é alto. (positivo) '-\ Grau: o grou na tradicäo gramatical e linguística é a propriedade que certas palavras e expressóes possuem de serem modificadas por expressóes do tipo 'muito', 'pouco', e por aparecerem em cons-trucóes comparativas e superlativas. Cognitivamente, é urna forma que as línguas humanas tém de relativizar certas propriedades que podem variar conforme o contexto. V_) Aqui näo trataremos das sentencas superlativas. Outro tipo de comparacäo sobre a qual nada falaremos é a do tipo como esta em (5): (5) Joäo fala como urna matraca. Em certo sentido, ela é urna comparacäo, em sentido lato, mas de cunho metafórico. Seu estudo se insere dentro da metafora e, portanto, estará fora do escopo deste Capítulo. Nosso principál foco seräo as comparativas, como em (1), as equa-tivas, como em (3), e a sua relacäo com a forma positiva, como em (4). As gramáticas também nos ensinam que, para construir urna sen-tenca comparativa em portugués, devemos antepor os elementos com- 115 Semántica parativos (mais, menos, táo, tanto) ao adjetivo, e, depois do adjetivo, a expressáo 'do que' para os dois primeiros, e 'quanto' para os dois últimos: (6) NP é mais/menos Adjetivo do que NP (comparativo) (7) NP é táo/tanto Adjetivo quanto NP (equativo) Acontece que o portugues nao e tao bem comportado assim. Expe rimente fazer uma busca na internete com o Google, digitando 'mais', 'menosbu 'tao'. Voce ira se deparar com um zilhao de dados. Para pou-par o seu trabalho, escolhemos alguns casos de sentencas comparativas que fogem ao padrao acima: (8) Joáo correu mais rápido do que Carlos. (9) Carlinhos comeu mais do que bebeu na festa. (10) Mais professores do que alunos foram á festa. Veja melhor esse conceito em: MIOTO, C. Sintaxe do portugues. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2009. O que estamos comparando nessas sentencas? No que elas diferem de uma comparacao com adjetivos como o nosso exemplo em (1)? A conclusao a que voce deve chegar e: alem dos adjetivos, outras classes de palavras e constituintes sentenciais podem participar de comparacoes. Em (8) comparamos por meio de um advérbio, 'rápido', em (9) por meio de dois verbos, 'comeu' e 'bebeu', e em (10) por meio de dois sintagmas nominais, 'professores' e 'alunos'. A questao que um linguista deve se perguntar frente a esses dados e: a comparacao e a expressao do grau de verbos e nomes, da mesma forma que e para os adjetivos e adverbios? Aposto que voce nao tinha pensado nisso, certo? Afinal de contas, o que os gramaticos estavam intuindo quando nos disseram que adjetivos e adverbios possuem graus? Uma das nossas tarefas sera tentar dar uma resposta a essa pergunta. Mas, antes, vamos a outro aspecto da gramatica das sentencas comparativas. 116 Comparand Capítulo 08 8.1.2 Os elementos comparativos sao adverbios? O segundo aspecto e se os elementos comparativos sao adverbios. Como podemos saber se certas palavras ou sintagmas pertencem a mesma classe? Que tipo de evidencia ou argumentos podemos trazer para dizer que 'mais', 'menos' e 'tao' pertencem a classe dos adverbios? O problema de responder a essa questao e definir o que sao adverbios. Essa classe engloba um conjunto muito distinto de expressoes, cuja caracteristica essencial e modificar verbos, dai o nome ad (= junto) + verbo. Apenas para citar dois trabalhos, os pesquisadores Rodolfo Ilari (ILARI et al, 1996) e Marcio Renato Guimaraes (GUIMARAES, 2007) coletaram a analisaram a ocorrencia e distribuicao de uma serie de dados de fala e dados coletados em buscas na internet. O(a) leitor(a) interessado(a) vai se surpreender com a variedade de comportamen-tos que os diferentes adverbios possuem. Para Mario A. Perini (2004), a questao que comeca seu Capitulo sobre adverbios da sua Gramatica Descritiva e "existe uma classe de adverbios?". Deixando de lado a complexa discussao sobre os adverbios, vol-temos aos exemplos de sentencas comparativas, como (11), na qual os adverbios sublinhados modificam um verbo, 'correr': (11) O Toao correu muito/bastante/mais/pra caramba. Mas, os mesmos adverbios tambem podem modificar adjetivos, como em (12),: (12) O carro esta todo/completamente/mais sujo pra burro. E substantivos: (13) a. Muita/bastante gente estava na festa. 117 Como vocé deve se lem-brar, os advérbios modificam o verbo, o adjetivo e o proprio advérbio. Morfologicamente näo apresentam concordäncia de numero ou género, e isso está cor- reto em čerta medida, mas iremos olhar essa questäo com cuidado. Semántica b. Gente pra burro foi naquela festa. E mesmo outros advérbios: (14) a. Muito mais gente veio na festa. b. O Joáo corre muito mais rápido do que voce. A conclusáo é a de que expressóes como 'mais' e 'menos' podem ser considerados advérbios porque sáo modificados por outros advérbios e aparecem em posii^óes na oracěo que sáo típicas de advérbios. Entretan-to, elas sáo diferentes dos demais. Veja o seguinte contraste: (15) a. *Joáo é mais alto de Pedro. b. * Joáo é menos alto quanto Pedro. c. * Joáo é muito/bastante alto do que Pedro. d. * Joáo é táo alto do que Pedro. O que há de errado com (15)? Lembrar uma regra das gramáti-cas náo vai ajudar. Pense: por que os falantes da lingua portuguesa náo produzem sentences como essas? Os elementos comparativos sáo, na verdade, palavras de um tipo especial, náo podem aparecer sozinhas: (16) a. NP é mais/menos Adjetivo do que NP. b. NP é táo/tanto Adjetivo quanto NP. Nesse sentido, eles diferem, por exemplo, de 'muito' e 'bastante', que podem aparecer sozinhos. O que nos leva para outra assuncěo feita pe-las gramáticas. 8.1.3 As ora^óes comparativas sáo um exemplo de subordinate O terceiro aspecto é que o nexo sintático que temos em uma oracěo comparativa é a subordinacěo, ou seja, 'Pedro' está subordinado á ora- 118 Compara^äo Capitulo 08 cäo principal 'Joäo e mais alto do que Pedro', e a expressäo 'mais do que' e analisada como o elemento que relaciona as duas oracöes. Podemos representar isso da seguinte forma: (17) [Joäo e alto] [mais do que] [Pedro e alto]. Como estamos estudando semäntica, näo entraremos em questöes sintäticas aqui. Claro, como voce ja deve ter aprendido, a interpretacäo semäntica e feita a partir de uma estrutura sintätica, de outra forma, näo hä o que ser interpretado. '-\ Subordinacäo: e uma forma de se unir duas sentencas simples, em que hä uma relacäo de dependencia (causa, consequencia etc.) en-tre elas. (i) e (ii) näo säo sentencas bem formadas no PB porque pre-cisam de um complemento, outra oracäo para entäo expressa- rem uma oracäo completa. (i) * Joäo fugiu porque. (ii) * Carlos duvida que. V_J Vamos resumir o que vimos ate aqui: a) Podemos comparar adjetivos, adverbios, substantivos (nomes), verbos e sintagmas preposicionados - como em 'Joäo fala mais sobre do que com a Maria', e näo e trivial dizer que a compara-cäo e a expressäo do grau dessas categorias; b) Tambem näo e täo simples dizer que as palavras que usamos para expressar comparacäo pertencem ä classe dos adverbios; se säo realmente adverbios, säo diferentes dos demais; c) Vamos entender que temos uma subordinacäo quando temos uma sentenca comparativa. Nosso pröximo passo serä entender como essa caracteristica nos ajuda a interpretar esse tipo de oracäo. 119 Semantica 8.2 Interpretando as ora^oes comparativas Como vimos, as oracoes comparativas sao mais complexas do que as nossas gramaticas escolares nos apresentam. A maneira canonica de se estabelecer uma comparacao na lingua portuguesa pode ser exempli-ficada atraves de alguns dos exemplos que vimos anteriormente, pelos quais se comparam adjetivos, adverbios e verbos. Vamos nos concentrar primeiro no caso mais simples, em (18), uma comparacao adjetival de superioridade. (18) Joao e mais alto do que Pedro. Agora vamos imaginar o seguinte cenario. Suponha que nossa li-nha vertical seja uma regua. Vamos assumir que: Carlos tern 1,80cm; Joao, 1,75cm; e Pedro, 1,70cm. Nesse cenario (18) e verdadeira ou falsa? Escala de altura Verdadeiro, certo? Interessantemente, (18) apresenta algumas pro-priedades curiosas. Sera que podemos inferir de (18) que Joao e Pedro sao altos? (19) a. Joao e alto. b. Pedro e alto. Reveja no Capitulo 2 a no-cao de acarretamento! 120 Comparacáo Capítulo 08 Ou seja, podemos inferir da verdade de (18), que, no cenário anterior, é verdadeira, que (19a) e (19b) sáo verdadeiras? Se voce estava pensando que sim, vamos decepcioná-lo: (20) Joáo é mais alto do que Pedro, mas ambos sáo baixos. O fato de (20) ser uma afirmacáo que náo é estranha e nem contra-ditória é um argumento bastante convincente para dizer que: náo! (18) náo acarreta (19a) nem (19b). Por que isso acontece? Como podemos explicar que (20) náo é uma contradicáo? Há uma forma de explicar isso e ela depende essencialmente da semántica que atribuímos para os adjetivos. Acontece que o que conta como alto varia de um contexto para outro: l,80cm pode ser uma altura normal para alguém ser considerado alto, mas náo conta para um joga-dor de basquete ou vólei. Assim, quando avaliamos a verdade de uma sentenca envolvendo um predicado adjetival, levamos em consideracáo fatores contextuais: o que conta como alto ou baixo no contexto. Será que todos os adjetivos sáo assim? Veja os exemplos abaixo: (21) a. Pedro é brasileiro. b. Maria está gravida. Como julgamos o valor de verdade dessas oracóes? Pedro pode ser mais, menos ou muito brasileiro? Maria pode estar mais, menos ou muito gravida? Aparentemente náo. Agora olhe os pares abaixo. Compare com o adjetivo pátrio 'brasileiro' e o adjetivo gravida': será que eles tem um par? (22) a. alto/baixo; b. gordo/magro; c. inteligente/estúpido. 121 Semantica (23) a. brasileiro/??? b. gravida/??? Se voce pensou em "nao brasileiro" ou "nao gravida" vera que essas expressoes nao funcionam como pares por dois motivos: (1) sao expressoes, ou seja, nao sao palavras; (2) tentar dizer algo como (24a) ou (24b) e claramente contraditorio: (24) a. # Joao e mais brasileiro que Pedro, mas Joao nao e brasileiro. b. # Maria esta mais gravida do que Paula, mas nao esta gravida. Problema que nao ocorre com 'alto', como mostra (20). Entao: qual a diferenca entre os predicados em (22) e (23)? O fato desses predicados terem pares nos diz o que sobre sua semantica? Vamos retomar o exemplo em (18). Numa primeira aproxima9ao, pode-se pensar que predicados adjetivais sao conjuntos. Mas, se for as-sim, entao temos que traduzir (19a) por 'Joao pertence ao conjunto dos altos' e essa traducao nao permite explicarmos nem (20) nem o fato de que 'alto' e dado contextualmente. Mas, sera que essa e uma forma viavel para representar o que esses predicados significam nas sentences com-parativas? Vamos tentar. Vamos representar (19a) como (25) a seguir, assumindo que 'mais' pode ser representado pelo simbolo '>' (maior do que), isto e, seu significado e a relacao matematica. (25) Joao G {individuos altos} > Pedro G {individuos altos}. Observe que (25) pode ser lida como: 'Joao pertence ao conjunto dos individuos altos e maior do que Pedro pertence ao conjunto dos individuos altos'. Sera que esse e o significado de (18)? Nao parece plau-sivel que seja. Assim, temos mais um problema com essa forma de re-presentacao: ela nao da conta da semantica das comparativas. 122 Comparacäo Capítulo 08 Uma forma de interpretar sentencas com predicados adjetivais é dizer que (19a) significa: (26) Joäo possui um grau de altura (que conta como alto no con-tex- to de proferimento). A altura de Joäo no nosso cenário em questäo é l,75cm. Isso pode contar como alto se temos em conta a altura de Pedro, ou a média da altura dos anöes, mas näo conta como alto se contamos a altura dos jogadores de volei. Precisamos explicar por que um indivíduo pode ser alto num contexto e baixo em outro (sem que sua altura mude! Afinal, näo vivemos no Pais das Maravilhas). Veja a escala a seguir. Ela representa uma escala de altura, mas agora ela está na horizontal. (27) Pedro Joäo Carlos Altura -1-1-1-► Vamos criar um contexto e estipular que, pelas alturas que estabele-cemos para os nossos personagens, só Carlos conta como alto a partir de agora. Joäo e Pedro säo baixos. Podemos representar isso graficamente como em (28), usando a mesma escala: (28) Pedro Joäo Carlos Altura je. —v— baixo alto Assim, de acordo com (28), é verdadeiro afirmar: (29) Joäo e Pedro säo mais baixos do que Carlos. (30) Carlos é mais alto do que Joäo e Pedro. 123 Semäntica Assim, perceba que (28) e uma forma de representar que: intuitiva-mente, quando estamos fazendo uma comparacäo usando predicados ad- jetivais, estamos operando sobre uma escala. Isso nos possibilita explicar por que (29) e (30) säo sinönimas. Afinal, elas representam a mesma escala, mas expressa de formas distintas. Quando fazemos afir-macöes comparativas, o que temos e uma operacäo sobre uma escala. Em (28), foca-se sobre a parte da escala que inclui os individuos baixos. Podemos alterar o contexto e dizer que Carlos agora tambem e baixo, como representado em (31): (31) Pedro Joäo Carlos Comparacäo (ou as semänticas das sentencas comparativas) A con-clusäo que podemos tirar e: näo importa o adjetivo que usa- mos: seja baixo ou seja alto, o real significado desse tipo de sentenca e a parte que ficou fora dos parenteses em (26), retomada em (32): 32) Joäo possui um grau de altura. Conforme operamos sobre o contexto, ou melhor, sobre a escala de altura, dizemos que esse grau e o que conta como alto, ou o que conta como baixo. Tudo depende do modo como operamos sobre a escala. Se eu digo 'Joäo e baixo' estou colocando, a partir de dados contextuais, Joäo no trecho baixo da escala de altura - ver (33) -; se digo 'Joäo e alto', estou colocando ele no trecho alto (34), tambem levando em considera-cäo um padräo contextualmente dado: Altura —v— baixo (33) Joäo Altura —v— baixo alto 124 Comparacäo Capítulo 08 (34) Joäo Altura -1— baixo alto Ja que näo podemos fazer como Alice no Pais das Maravilhas, näo podemos mudar a altura de algo dizendo desse algo se ele é baixo ou alto, o que fazemos é mover o padräo contextual: o que se move na es-cala näo é a altura, é onde comeca e termina o que conta como baixo e o que conta como alto. Se (32) expressa o significado das sentencas com predicados adje-tivais, entäo ela deverá acomodar a nossa interpretacäo das sentencas comparativas. Veja que é esse o caso em (35): (35) a. Joäo é mais alto do que Pedro. b. [Joäo possui um grau de altura] > [Pedro possui um grau de altura]. Assim, lemos (35b) como: o grau de altura que Joäo possui é maior do que o grau de altura que Pedro possui. Agora temos urna explicacäo simples e elegante para as duas ocorréncias dos predicados adjetivais que estudamos aqui: nas sentencas simples e nas sentencas comparativas. Além disso, explicamos porque (35) näo acarreta que nem Joäo nem Pedro säo altos, e assim também explicamos a sentenca em (20). Voce consegue imaginär uma generalizacäo importante que pode ser tiráda disso? Os outros adjetivos que formám pares (gordoV 'magro'; 'caroV 'barato', longeV 'perto' etc.) também possuem uma escala: peso, prečo, dištancia etc. E a semäntica atribuída a 'alto' pode ser aplicada a todos eles. Outra consequéncia é a de que, toda vez que interpretamos uma sentenca comparativa, interpretamos também elementos que näo pro-nunciamos, elementos elididos. A estrutura das sentencas comparativas 125 Semäntica pode envolver elisäo de algum elemento (aqui representado pelas ex-pressöes tachadas): (36) a. Joäo é mais alto do que Pedro é alto. b. Carlos é mais gordo que sua mäe é gorda. c. Maria é täo bonita quanto sua mäe é bonita. Outra conclusäo é a de que as sentencas positivas säo na verdade sentencas comparativas, com o padräo de comparacäo apagado, dado apenas contextualmente. Agora estamos em posicäo de responder a pergunta: o que é o grau dos adjetivos? Se o significado de 'Joäo é alto' é 'Joäo tem um grau de altura', podemos concluir que o grau é a altura de Joäo. Se digo algo do tipo 'Joäo é muito alto', estou modificando o grau da altura de Joäo e dizendo que a altura dele é em um certo sentido muito, ou em outros termos, excede o que se considera como padräo de alto. Evidentemente temos escalas para as quais näo é claro qual seja a representacäo desse grau: inteligencia, beleza etc. Excluindo-se as escalas para as quais cons-truimos sistemas de medida (pre<;o, peso, dištancia ou temperatura), to-das as outras envolvem sistemas abstratos de medida. 8.3 Consideragöes finais Vocé provavelmente terä se surpreendido com a quantidade de in-formacäo que esse Capítulo trouxe. A semäntica trata de compreender Comparacäo (ou as semänticas das sentencas comparativas) como combinamos palavras e sintagmas em forma de orac^öes, e como atribu-ímos significados para essas oracöes. Estudar a semäntica das sen- ten-cas comparativas é tentar capturar o que permanece igual em todas as ocorréncias de expressöes como 'mais', 'menos', 'täo', 'tanto', 'quanto' etc., 126 Comparacäo Capítulo 08 quando usadas comparativamente, alem da contribuicěo que os outros elementos dentro da oracěo trazem para o significado do todo. Constru9Öes comparativas säo altamente produtivas e presentes em nosso uso cotidiano da língua. A seguir, (37) e (38) exemplificam como elas podem ser usadas para criar sentidos humorísticos ou poéticos: 37) "Se Chuck Norris tem dez reais, e vocé tem dez reais, Chuck Norris tem mais dinheiro do que vocé." (Piada recorrente na internet) 38) "Caiu das mäos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedac^s do que havia loice no vaso. Asneira? Impossivel? Sei lá!" (Alvaro de Campos, Apontamento) Veja que (37) e (38) näo fazem sentido: se Chuck e vocé tém a mes-ma quantidade de dinheiro, como ele pode ter mais? Ou, como algo que se quebra pode se transformar em mais coisas, em mais matéria do que havia nessa coisa? Como diz o poeta, impossivel? Sim, e justamente por quebrar a relacěo 'maior do que' é que essas sentenc^s produzem os efeitos pragmáticos que produzem. ■f* Leia mais! Se vocé tiver interesse em se aprofundar mais sobre a quantificacäo, suge-rimos que leia o capítulo 7 de Chierchia (2003), e também o capítulo 5 de Pires de Oliveira (2005). Para um aprofundamento sobre questôes relativas aos sintagmas nominais, sugerimos os textos de Müller (2003) e Wachowicz (2003) em Müller et al. (2003). Para urna exposicäo detalhada de como solucionar um problema em se-mäntica, aconselhamos a vocé a leitura de llari e Basso (2004). Finalmente, o ivro de llari (2001) apresenta uma grande quantidade de problemas semän-ticos de maneira clara, e traz também vários exercícios. 127 UnidadeC Intensionalidade Tempo e aspecto verbal 9 Tempo e aspecto verbal Neste capítulo vamos dar urna ideia da semäntica do verbo, refletindo sobre referencia temporal, aspecto verbal e acionalidade. Embora haja sentencas em portugués (e, na verdade, em todas as lín-guas) cuja verdade näo depende de considerarmos um momento no tempo - como é o caso de 'A soma de dois números pares é um numero par' e 'todo homem é mortaľ, que säo sentencas atemporais, generalizacóes que valem para todos os casos -, elas säo a excecäo. Na maior parte das nossas interacóes linguísticas levamos em consideracäo o tempo, nos deslocamos no tempo através da linguagem. Falamos sobre eventos que j á ocorreram e que iräo ocorrer, e sobre eventos que ocorreräo. As línguas diferem muito com relacäo ä expressäo do tempo, embora, até onde saibamos, todas ex-primam passado. Há línguas que diferenciám passado e näo-passado (näo tem a distincäo entre presente e futuro, por exemplo) e há línguas em que o tempo näo é veiculado por urna flexäo ligada ao verbo, como é o caso do portugués brasileiro, mas através de advérbios, como é o caso no japonés. Neste capítulo, nosso objetivo é entender a interpretacäo de sentencas, tais como: (1) Choveu. Como vimos desde o início deste livro, o significado se dá quando estabelecemos urna relacäo entre a linguagem e o mundo. A semäntica do tempo é intensional, porque da verdade da sentenca em (1) näo podemos deduzir a verdade da sentenca que a compóe. Suponha que (1) se decompóe em: Passado (chove). Essa sentenca é verdadeira mesmo que näo esteja chovendo no momento de fala, por isso ela é intensional. 9.1 Referencia temporal 131 Semäntica Davidson (1967) foi quem introduziu na linguistica a nocáo de eventos, abrin-do o que hoje chamamos de Semántica de Eventos. Depois, Parsons (1990) reinterpreta a proposta de Davidson acoplando--a a uma teoria de papéis temáticos. Finalmente, Kratzer (2000) entende que há uma diferenca entre os papéis de agente e tema, reformulando a proposta de Parsons. O que urn verbo denota no mundo? Que entidade no mundo um predicado como 'choveu' denota? A intuicäo, que foi inicialmente de-senvolvida pelo filósofo Donald Davidson, no final da década de 60, é que verbos denotam eventos. 'Choveu' denota um evento de chuva. Mas 'choveu' näo denota apenas um evento de chuva, essa expres-säo nos informa quando esse evento ocorreu. O tempo linguístico loca-liza o evento numa linha de tempo, orientada para o futuro e que tem como äncora o momento de fala. Vamos chamar de referencia temporal a localizacäo de um dado evento na linha do tempo - é importante vocé atentar para a diferenca entre os termos "tempo verbal" e "referencia temporal": tempo verbal é um termo que vem da morfológia e indica a forma de um verbo (o presente do indicativo, por exemplo), e referencia temporal é urna nocäo semäntica, que localiza eventos na linha do tempo. Äs vezeš os termos coincidem, por exemplo, quando um pretérito perfeito (tempo verbal) reporta um evento passado (referencia temporal), mas isso nem sempře é o caso. Voltando a análise da referencia temporal, considere em que a sentenca em (1) difere da sentenca em (2): (2) Vai chover. Certamente voce disse que (1) é passado e (2) é futuro e ambas denotam um evento de chuva. Elas diferem na localizacäo do evento: em (1) o evento antecede o momento de fala (MF), ao passo que em (2) o evento de chuva ocorre depois do momento de fala. Reichenbach (1947) propóe que toda referencia temporal se faz através do estabelecimento de urna relacäo entre o momento do evento (ME) - dado pelo verbo - e o momento de fala (MF), o momento em que a sentenca é proferida, situando, assim, o evento com relacäo ao momento de seu proferimento. Como dissemos, vamos supor que o tempo é urna linha direcionada para o futuro. 132 Tempo e aspecto verbal Passado MF Futuro -► Considere a sentenca em (3): (3) Joáo comprou uma bicicleta. A flexáo de pretérito perfeito '-ou' que aparece no verbo da sentenca (3) indica que o evento ocorreu no passado, isto é, antes do momento em que a sentenca é proferida. Repare que o ME (a compra da bicicleta) está antes do MF (momento de proferimento da sentenca) na linha temporal: -i-► MF (Compra da taldctetci) (proferimento de (3)) /- Reichenbach utiliza o símbolo - para indicar antecedéncia tempo ral. Assim, a notacáo para sentenca (3) é a seguinte: ME-MF. 0 Mo mento do Evento ocorre antes do Momento de fala. V_ Como vamos, entáo, representar a sentenca em (4)? (4) Joáo vai comprar uma bicicleta. MF ME --1--1-► (proferimentode(4)) (Compradablctcteta) -MF -ME Nesse caso, o momento do evento é depois do momento de fala. A sentenca expressa futuro. No entanto, nem sempře é o caso que conseguimos localizar o evento na linha do tempo tendo apenas o momento de fala. Considere as sentencas abaixo: -f- ME Semäntica (5) a. Joäo terá saído quando a Maria chegar. b. Joäo tinha saído quando a Maria chegou. A sentenca em (5a) está no futuro enquanto que em (5b) ela está no passado. Note que nos dois exemplos temos mais de um evento: temos o evento da saída de Joäo e o evento da chegada da Maria e es-ses eventos estäo temporalmente ordenados. Reichenbach propóe que, para dar conta de sentenca como (5a) e (5b), é necessário considerar um terceiro ponto, que ele chamou de Momento de Referencia (MR). Esse momento aparece claramente quando temos sentencas mais com-plexas como é o caso das sentencas em (5). O Momento de Referencia é sempre dado pelos advérbios de tempo. No caso das sentencas em (5) temos oracóes subordinadas temporais que funcionam como advérbios de tempo, situam o momento do evento. Abaixo estäo as representacóes gráficas dessas sentencas. Nessa pri-meira, temos a representacäo de (5b), 'Joäo tinha saído quando a Maria chegou'. Logo, o evento de saída do Joäo é mais passado (daí a terminológia "mais do que perfeito", que é também morfologicamente expresso pela forma sintética 'saíra', urna forma em desuso no portugués falado): -1-1-1-► ME MR MF A representacäo, utilizando o operador temporal, é: ME - MR - ME Considere agora a sentenca em (5a), 'Joäo terá saído quando a Maria chegar'; nossa interpretacäo é que Joäo sai antes da Maria chegar e os dois eventos estäo no futuro. Veja a representacäo a seguir: -1-1-1-► MF ME MR A representacäo é: MF - ME - MR 134 Tempo e aspecto verbal Capítulo 09 Para efeitos de exposicäo, e de modo muito simplificado, vamos considerar que nos tempos simples o MR se encontra junto ao ME. 9.1.1 Adjuntostemporais Como vocé pôde observar pelos exemplos dados acima, o tempo no PB é marcado pela flexäo verbal, através da morfológia. Contudo, a marcacäo de tempo também pode ser expressa pelos adjuntos tempo-rais (o símbolo ',' indica que os momentos säo simultäneos): (6) Joäo se apresenta agora. X (7) Joäo se apresenta amanhä. Repare que quern faz a marcacäo temporal das sentencas (6) e (7) säo os adjuntos temporais 'agora' e 'amanhä', pois ambos os verbos estäo flexionados no presente do indicativo, urna flexäo que em geral näo indica referencia temporal. É talvez por isso que o presente do indicativo possa ser usado tanto para expressar que o evento ocorre simultane-amente ao MF quanto para expressar o futuro. Na verdade, é possível também usar o presente do indicativo para expressar o passado, como no exemplo em (8), mais urna indicacäo de que näo é a flexäo de presente que carrega a informacäo temporal: (8) Em 1500, trés embarcacóes portuguesas ancoram no Brasil. Como já vimos, os adjuntos temporais, incluindo as oracóes subordinadas adverbiais temporais, situam o MR. Veja mais alguns exemplos abaixo: 9) Joäo se apresentou antes de Maria chegar. ► x ► ME,MF,MR MF ME,MR H-► ME MR MF (ApresentacäoaoJooo) (chegada de Marta) (praferimento) 135 Semäntica 10) Vou conhecer primeiro o Brasil, depois pretendo viajar para o exterior. -1-1-1—► MF ME MR (pfofetnerrto) (Conhecer o Brasil) (Vtajar para o exterior) Em ambos os casos, as oracôes introduzidas por 'antes' e 'depois' situam os eventos em momentos especificos. Mas a flexäo verbal näo indica apenas a localizacäo do evento na li-nha do tempo - a referencia temporal -, mas também nos informa sobre a perspectiva a partir da qual o evento está sendo apresentado, o aspecto verbal. Vamos ver o que é isso. 9.2 Aspecto verbal Compare a sentence em (1), repetida abaixo por conveniéncia, e a sentence em (11): (I) Choveu. (II) Estava chovendo/Chovia Há muito o que ser dito sobre a sentence em (11). Em particular a forma com morfológia de imperfeito do indicativo, 'chovia', parece näo mais ocorrer naturalmente no portugués falado para indicar duracäo do evento. Mas esse uso ainda aparece na escrita. A primeira diferencia é que (11) parece näo ter um sentido completo. Veja: (12) Joäo estava lendo seu livro. Parece que falta um 'quando algo ocorreu'. Isso se deve ao fato de que, ao escolher utilizar a forma imperfectiva, seja através da perifrase 'estava chovendo' ou 'estava lendo', seja através da morfológia, 'chovia', o falante apresenta o evento como estando em curso, como se desen- 136 Tempo e aspecto verbal Capítulo 09 volvendo no tempo. Esse é o aspecto progressive Já em (1), o evento é apresentado como fechado, sem que possamos ter acesso a sua estrutura interna. A essa perspectivizaeäo do evento damos o nome de aspecto. As sentencas abaixo mostram algumas outras possibilidades de interpretaeäo imperfectivas, porque o intervalo de tempo está aberto, isto é, os eventos podem ocorrer para alem do ME Essas interpretacöes indicam hábitos ou repeticäo de eventos e precisam de uma semántica mais poderosa para podermos descrevé-las. A literatura considera que hábitos, repeticöes e generalizacöes säo um tipo de imperfeito: (13) Joäo cantava aos sábados. (14) Joäo está estudando/estuda matemática. (15) Seres vivos respiram. Perceba que o que se veicula nessas sentencas näo é que houve um ou vários eventos, mas que há um hábito ou uma generalizacäo. Por isso, para elas serem verdadeiras näo é necessário que os eventos estejam ocorrendo no momento em que as sentencas säo proferidas ou durante o MR: ou eles ocorriam habitualmente, como é o caso de (13); ou eles ocorrem, mas näo necessariamente no momento do proferimento, como em (14). Veja que (14) com a perífrase tem tam-bém uma leitura progressiva na qual o evento de Joäo estudar ocorre durante o ME Mas há também a leitura de um hábito do Joäo, de algo que ele costuma fazer. Em (15) temos uma generalizacäo. É uma lei biológica que os seres vivos respirem. Note que nas paráfrases in-formais que foram apresentadas falamos que as sentencas veiculam que há ou houve um hábito (estado) e que há uma generalizacäo. Logo, essas sentencas näo säo eventivas. O que essas sentencas tem de diferente com relacäo ä (16)? 137 Semäntica (16) Joäo saiu ontem. MR. (ontem) ME (Saida de Joäo) MF Como vimos, a sentenca (13) possui a interpretacäo de hábito, (14) é uma sentenca ambígua, com interpretacäo de hábito e também de progressive (um evento que está se desenrolando naquele momento - Joäo está estudando naquele momento, mas näo comecou naquele momento), e (15) trata de uma lei biológica. Essas trés sentencas säo diferentes de (16) porque essa sentenca veicula um evento pontual: houve, em um certo momento anterior ao MF, o evento de Joäo sair. Vocé consegue também perceber diferenca entre as seguintes sentencas? (17) Maria lavou a sua roupa das 16h äs 18h. (18) Maria estava lavando a sua roupa das 16h äs 18h. A diferenca está no modo pelo qual o falante opta por descrever o evento. Em (18) o falante, através das formas linguisticas escolhi-das, deixa em aberto se o evento está concluso ou näo - é o aspecto imperfectivo - e em (17) o evento é veiculado como concluído, sem uma estrutura interna. Essas interpretacöes podem ser representa-das como nas figuras abaixo: (17) ME MF (18) 16h 17h 18h 19h MF ME 138 Tempo e aspecto verbal Capítulo 09 Mais uma vez, essas diferencas entre as sentencas tém a ver com o aspecto verbal, ou seja, com o modo pelo qual o evento é descrito, säo diferencas que tem a ver com a perspectiva adotada pelo falante ao reportar um dado evento. Há, grosso modo, duas macro-perspec-tivas pelas quais os eventos podem ser descritos: perfectivamente e imperfectivamente. O sufixo verbal do pretérito perfeito '-ou' dá a informacäo de que o evento está dentro de limites do MR, e portanto acabado, ou näo é mais o caso: (19) Joáo correu ontem. .........MR........ -1--1-► ME MF O evento está dentro da referencia ('ontem'), mas näo sabemos em qual momento exato do 'ontem' Joäo correu. Por sua vez, para representarmos um evento imperfectivamente utilizamos outras formas linguísticas, e assim veiculamos que o evento em questäo näo está dentro de limites, mas pode té-los ultrapassado. Podemos pensar na perífrase verbal do verbo auxiliar 'estar' flexionado com o sufixo 'ava' + verbo principál flexionado no gerúndio em (20) e somente verbo flexionado em (21): (20) Joäo estava tomando banho quando a Maria ligou. .........MR........ (Quando a Maria ligou) ME MF banho 139 Semäntica (21) Joäo namorava Maria no ano passado. .........MR........ (No ano passado) ■ Kjxrvrvr^-► ME MF Namofo Em (20), a referencia está dentro do momento de evento, mas näo sabemos ao certo em que momento dentro do evento de banho a Maria ligou, sabemos, contudo, que o evento de ligar está dentro, ou se dá no desenrolar do evento de tomar banho. Em (21), sabemos que o evento de namorar ocorre durante o intervalo do ano passado e o ultrapassa, continuando em direcäo ao futuro, podendo inclusive incluir o ME De certa forma, essas duas perspectivas de descrever o evento po-dem ser representadas da seguinte maneira. O perfectivo indica que o intervalo do evento está fechado, isto é o evento é apresentado sem ex-por a sua estrutura interna. Logo, sabemos que ele iniciou e terminou. Já com o imperfectivo, o evento é apresentado em seu desenrolar. Sabemos que o evento iniciou, mas näo sabemos se ele terminou: Perfectivo--Q-Q- Aspecto Imperfectivo--Q-Q- Contudo, sentencas que estäo no mesmo aspecto verbal, mas com verbos diferentes podem apresentar resultados lógico-linguísticos dife-renciados. Isso se deve ä classe do verbo, assim nomeado pela literatúra como acionalidade ou aspecto lexical. 140 Tempo e aspecto verbal 9.3 Acionalidade A ideia de que os verbos veiculam diferentes tipos de eventos que podem ser agrupados em classes tem suas raízes em Aristoteles. No pen-samento linguístico moderno, a principál fonte para tratar desse assunto é o trabalho do filósofo e psicólogo húngaro Zeno Vendler (1967) que se preocupou em descrever de forma sistemática e linguística o modo como se apresentam os estados de coisas que ocorrem na realidade ex-tralinguística. Para enfatizar essa diferenca linguística, repare como as sentencas em (a) abaixo, embora estando no mesmo aspecto verbal e tenham a mesma referéncia temporal, se comportam de maneiras dis-tintas com relacáo aos acarretamentos que permitem: (22) a. Joáo desenhava um círculo. b. Joáo desenhou um círculo. (23) a. Joáo puxava um carrinho. b. Joáo puxou um carrinho. O esperado era que os pares de sentencas em (22) e (23), com o mesmo aspecto verbal e a mesma acionalidade, tivessem o mesmo padráo de acarretamento, mas náo é isso que acontece. Da verdade de (22a) - desenhava um círculo - náo podemos concluir que (22b) Joáo desenhou um círculo, pois Joáo pode ter parádo no meio do ca-minho e o círculo náo estar concluído. Ao contrário de (23a), se Joáo puxava um carrinho, é verdade que (23b) ele puxou um carrinho, mesmo que ele tenha parádo no meio do caminho. Esses exemplos nos mostram que a classe dos verbos influencia nas relacóes semán-ticas que eles mobilizam, independente da referéncia temporal e do aspecto verbal que possuem. A diferenca entre (22) e (23) é que o verbo 'desenhar um círculo' pressupóe um objetivo, um fim, ou, numa linguagem técnica, um telos, ao passo que 'puxar um carrinho' náo possui esse objetivo e sáo portan- Semántica to atélicos (náo possuem um telos). Foi percebendo essas diferencas que Vendler (1967) dividiu em quatro classes os verbos: accomplishments, achievements, atividades e estativos. Os estados se diferenciam por sérem náo-dinámicos e atélicos, isto é náo tém um final pré-determinado e náo envolvem agentividade ou mudanc^a, mas eles sáo durativos. As atividades, por sua vez, sáo atélicas, durativas e dinámicas. Accomplishments e achievements sáo télicos, porque tém um ponto final dado a priori, mas diferem porque os primeiros sáo durativos, levam um certo tempo para acontecerem, enquanto os segundos sáo instantá-neos, náo precisam de muito tempo. Um teste para fazermos a diferenciacao entre eles é veiculá-los sob diferentes aspectos e relacoes semánticas, tais como o acarretamento, nas sentences (22) e (23). Outro é combiná-los com os advérbios 'por X tempo' e 'em X tempo'; observe a diference abaixo: (24) a. Maria fez um bolo em uma hora. (accomplishment) b. ? Maria fez um bolo por uma hora. (25) a. ? Maria lávou louca em uma hora. (atividade) b. Maria lávou louca por uma hora. (26) a. ? Joáo esteve com dor-de-cabeca em uma hora. (estado) b. Joáo esteve com dor-de-cabeca por uma hora. (27) a. Joáo venceu a corrida em uma hora. (achievements) b. ? Joáo venceu a corrida por uma hora. Perceba que o adjunto 'em X tempo', em que 'x tempo' está por uma medida qualquer de tempo só se combina com accomplishments e achievements, porque eles pressupóem um telos, como mostram os 142 Tempo e aspecto verbal Capitulo 09 exemplos (24) e (27). Ao contrario do adjunto 'por x tempo' que se com-bina com atividades e estados, por nao possuirem um telos, como em (25) e (26). Em exemplos como (28), a interpretacao preferencial e a de que Joao nao cortou a grama toda e, portanto, nao atingiu seu telos. As-sim, o VP 'cortar a grama' aliado ao adjunto 'por x tempo' torna-se uma atividade. 28) Joao cortou a grama por vinte minutos. Uma outra questao muito importante a ser observada e a da intera-9ao do verbo com seus argumentos internos. Nao podemos falar de um verbo em si sozinho, temos que pensa-lo a nivel de VP, pois sua aciona-lidade depende do seu argumento, o que pode ser visto na comparaceo entre (27a) e (29): 29) ? Joao venceu corrida em uma hora. Repare que 'em uma hora' se combina com (27a), nao se combina tao bem com (29) e a diferenca esta somente na determinacao do nominal. Repare que, com a mudance do argumento do verbo, muda-se tam-bem o VP e a classe acional do verbo. O que antes era um achievement (Veneer a corrida'), passou a ser uma atividade (Veneer corrida'). Varios outros exemplos semelhantes podem ser encontrados no PB. 9.4 Consideragoes finais Em suma, voce, leitor, pode observar que referenda temporal, aspecto e acionalidade verbal sao assuntos muito complexos que foram ra-pidamente expostos neste capitulo. Contudo, e necessario ter claro que a referenda temporal indica a localizaceo do evento na linha temporal e que o aspecto e a maneira pela qual o falante opta por descrever o seu evento. Essa ultima categoria esta dividida em aspecto perfectivo e imperfectivo: no primeiro caso, os eventos sao vistos dentro de limites, ao passo que no segundo esses podem ser extrapolados. A acionalidade e outro fator importante que influencia as interpretacoes e as relacoes 143 Semäntica semänticas envolvidas com o sintagma verbal, desde que seja observada a nível de VP, pois a interacäo com os argumentos do verbo modificam a classe a que eles pertencem. 144 Progressäo temporal Capítulo 10 10 Progressäo temporal Vocé vai conhecer alguns dos mecanismos de coesäo e coeréncia textuais que säo mobilizados durante os estabelecimentos de relacôes temporais entre eventos denotados por um texto. Há muitos anos, estudiosos das línguas tém se feito a seguinte per-gunta: o que faz de um punhado de sentencas um texto? Como é possí-vel saber que certas linhas escritas formám um texto e näo simplesmen-te um amontoado de palavras concatenadas? Vamos ilustrar a problemática por trás dessa questäo com um exemplo: Trecho A 1) Um homem chegou em casa cansado. 2) O dia de trabalho tinha sido muito estafante. 3) Para variar, o tränsito também näo ajudava em nada. 4) Se näo bastasse isso, quando chegou em casa, percebeu que ha-via esquecido a chave no servico. 5) O jeito era esperar sua mulher che-gar, e ela só chegava bem mais tarde. 6) E, no meio de tudo isso, a fome apertando. 7) Lembrou que tinha urna chave escondida num vaso, na parte de trás da casa. 8) Agora, o problema era pular o muro. 9) Será que ele ainda conseguia? 10) Já näo era mais täo jovem e nem täo seguro. Trecho B 4) Se näo bastasse isso, quando chegou em casa, percebeu que havia esquecido a chave no servico. 9) Será que ele ainda conseguia? 1) Um homem chegou em casa cansado. 6) E, no meio de tudo isso, a fome apertando. 10) Já näo era mais täo jovem e nem täo seguro. 7) Lembrou que tinha urna chave escondida num vaso, na parte de trás da casa. 2) O dia de trabalho tinha sido muito estafante. 3) Para variar, o tränsito também näo ajudava em nada. 8) Agora, o problema era pular o muro. 5) O jeito era esperar sua mulher chegar, e ela só chegava bem mais tarde. 145 Semäntica As sentencas que compöem o Trecho A e o Trecho B säo exata-mente idénticas, como mostra a numeracäo; porém, só reconhecemos um texto - no caso, uma narrativa - no trecho A, e isso é mais uma propriedade das nossas capacidades linguisticas: somos extremamente hábeis em reconhecer um texto e em preencher lacunas propositais que ele traz, assim como inferéncias que ele permite fazer, como veremos mais adiante. Para que sentencas constituam um texto, é necessário que haj a cer-tas relacöes entre elas, conhecidas pelos termos coeréncia e coesäo. Näo é tarefa trivial definir precisamente coeréncia e coesäo, mas as ideias que embasam essas nocöes säo as seguintes: A coesao textual diz respeito aos elementos gramaticais e lexicais res-ponsaveis por garantir unidade nas diversas sentencas; por sua vez, a coerencia textual diz respeito a concatenacao de ideias e argumen-tos veiculados pelas diversas sentencas, o que urn texto veicula deve ser minimamente coerente para que o reconhecamos como tal. Como exemplos de mecanismos de coesäo, podemos pensar em anáfora e catáfora: (1 a) Joäo comeu um sanduíche. Ele estava uma delícia. Anáfora é, grosso modo, uma mecanismo através do qual continuamos a falar de uma mesma en-tidade ou referente sem precisar repetir o materiál linguístico utilizado para introduzirtal referente no discurso. (1 b) Joäo comeu um sanduíche. Ele estava morrendo de fome. Na sequéncia (la), sabemos que 'um sanduíche' e ele' se referem a uma mesma entidade: o sanduíche comido por Joäo. Por sua vez, sabemos que 'Joäo' e 'ele' se referem a uma mesma entidade na sequéncia (lb), qual seja, Joäo. Ambas as sequéncias säo exemplos de anáfora. Em uma anáfora há pelo menos dois elementos, o antecedente, que denota a entidade introduzida no discursivo, e o termo anafórico, que recupera o antecedente. Em (la), o antecedente é 'um sanduíche' e o termo anafórico é 'ele'; em (lb), o antecedente é 'Joäo' e o termo anafórico também é ele'. 146 Progressäo temporal Capítulo 10 Em (lb), podíamos muito bem trocar 'ele' por 'Joäo' no segundo trecho; porém, bašta fazermos a troca e a sequéncia já nos parece um pouco estranha: 'Joäo comeu um sanduíche. Joäo estava morrendo de fomeľ O mesmo se daria se, ao invés de Joäo, estivéssemos falando de 'O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasiľ: (1b') O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasil comeu um sanduíche. O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasil estava morrendo de fome. A estranheza de sequéncia como (lb') mostra que a anáfora, e os mecanismos de coesäo em geral, näo säo apenas escolhas estilísticas, mas compóem ativamente o texto, desempenhando também um papel cognitivo/processual de grande importäncia. A sequéncia (2) é um exemplo de catáfora. Em linhas bem gerais, catáfora é o contrário da anáfora: na catáfora, introduzimos um prono-me cujo referente só saberemos apenas mais adiante: (2) Acontece que a donzela - e isso era segredo dela - também ti-nha seus caprichos. (Chico Buarque - Geni e o Zeppelin). Só sabemos a que 'isso' se refere depois de computarmos 'também tinha seus caprichos', e entäo sabemos que o que era segredo dela era ela ter seus caprichos... complicado? Pode até parecer, mas ao ler o trecho (2) näo temos nenhuma dificuldade de compreensäo: mais urna prova do papel cognitivo/processual dos mecanismos de coesäo. 10.1 Referencia temporal e progressäo temporal Tomemos os exemplos abaixo: (3) Joäo caiu de bicicleta (ontem); (4) Joäo vai viajar (amanhä); 147 Semántica (5) Joáo está dancando (agora). O momento de fala é quan-do a sentenca é enunciada ou pronunciada. Sabemos que os eventos reportados por (3), (4) e (5) sao, respecti-vamente, passado, futuro e presente. Porem, ser passado, presente ou fu-turo e algo relacional, ou seja, um evento nao pode ser passado e pronto - tern que ser passado em relacao a alguma coisa. Em teoria linguistica, o termo relacional por excelencia, em funcao do qual algo e passado, presente ou futuro, e o momento de fala. Vamos ilustrar com o exemplo (3): o evento de Joáo cair de bicicleta é passado, mas passado em relacáo ao que? Ora, pelo menos em relacáo ao momento em que falamos ou nos reportamos a esse evento: se digo (3), entáo, necessariamente, ele caiu antes de eu falar que ele caiu. Assim sendo, o evento de Joáo cair de bicicleta, se passado, o é em relacáo ao momento de fala. Um raciocinio semelhante se dá em relacáo aos exemplos (4) e (5): em (4), a viagem de Joáo ocorre depois de eu falar dela; e em (5) Joáo danca enquanto eu falo que ele danca. É possivel, pois, localizarmos esses eventos numa linha de tempo, tendo como ponto de ancoragem o momento de fala: Joáo caiu da bicicleta Joáo está dancando Joáo vai viajar MF Para representar a referenda temporal dos eventos, ou seja, se eles acontecem antes, durante ou depois do momento de fala, os lin-guistas usam a seguinte notacáo: F = momento de fala; E = momento do evento; < = antes; , = simultáneo. As sentencas de (6) a (8) tern a seguinte representacáo: (6) Joáo caiu de bicicleta (ontem). -> E < F 148 Progressáo temporal Capítulo 10 (7) Joáo vai viajar (amanhá). -> F < E (8) Joáo está dancando (agora). F, E A progressáo temporal lidará com um ou mais eventos e investiga-rá como se estabelece a ordem de acontecimento entre eles, com relacáo ao momento de fala. Como sempře, vejamos os exemplos: (9) Joáo caiu porque escorregou na casca de banana. (10) Joáo escorregou na casca de banana porque caiu. Alem de sabermos que os eventos em (9) sáo todos passados (an-teriores ao momento de fala), sabemos que eles estáo relacionados tem-poralmente, ou sej a, a ordem em que ocorrem é importante, e sabemos também qual ordem é essa: primeiro Joáo escorregou na casca de banana e depois caiu. Assim, (9) exemplifica uma relacáo de coeréncia textual bastante comum, que é a relacáo de causa e efeito: Joáo caiu porque escorregou na casca de banana, a causa da queda de Joáo foi ele ter escorregado na casca de banana, e é por isso que primeiro ele escorrega e depois ele cai. Essa relacáo é táo forte que o exemplo (10), na qual ela é invertida, apesar de relatar uma situacáo possível - aquela na qual Joáo primeiro cai e depois escorrega na casca de banana -, é ligeiramente estranha. Desta forma, (9) e (10) exemplificam fenómenos de progressáo temporal, e é aos mecanismos de progressáo temporal que nos voltaremos agora. 10.2 Mecanismos de progressáo temporal No caso dos exemplos (9) e (10), podemos argumentar que é a con-juncáo 'porque' que dá ordenacáo temporal (o "um depois o outro"). Alem das conjuncóes, o próprio tempo verbal (entendido como sua morfologia, ou seja, pretérito perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito etc.) nos dá pistas sobre a progressáo temporal, sobre a ordem de ocor-réncia dos eventos: 149 Semäntica (11) Joäo bateu com os dedos na mesa, assobiou, bateu com os pes no chäo e empurrou a cadeira. (12) Joäo batia os dedos na mesa, assobiava, batia com os pes no chäo e empurrava a cadeira. Essas sentencas reportam os mesmos tipos de eventos, descritos na mesma ordern, a ünica diferenca entre elas e que em (11) todos os verbos estäo no preterito perfeito, e em (12), no imperfeito. A interpretacäo mais plausivel que temos para (11) e aquela na qual os eventos ocorreram na mesma ordern em que säo descritos. A essa situacäo - ordern de descricäo dos eventos ser a mesma que a de ocor-rencia - dä-se o nome de isomorfismo. Por sua vez, a interpretacäo mais plausivel a ser dada para o exem-plo (12) e aquela de acöes simultäneas. Nossas intuicöes sobre o papel dos preteritos perfeito e imperfeito na progressäo temporal säo bastante fortes, como mostra a combinacäo desses tempos: (13) Joäo chegou em casal, foi direto pra sala2 e se atirou no sofa3. Estava vestindo o uniforme4 e calcando sapatos5 e desse jeito mesmo pegou no sonoö. Os eventos de 1 a 3 apresentam isomorfia, porque a ordern no qual os eventos säo relatados e a ordern em que os eventos ocorreram no mundo. Porem, os eventos 4 e 5, na perifrase progressiva, näo parecem acrescentar nada do ponto de vis- ta da progressäo temporal. Alias, per-guntas como 'Quando Joäo vestia o uniforme? Antes de chegar em casa? Depois de se atirar no sofä? Enquanto ia direto para a sala?' näo teräo respostas muito precisas, justamente porque com a perifrase progressiva ou com o preterito imperfeito descrevemos o fundo do texto ou da narrativa, e näo os acontecimentos. A rigor, Joäo estava vestido e com sapatos o tempo todo e näo faz senti- do nos perguntarmos quando isso 150 Progressáo temporal Capítulo 10 aconteceu em meio aos eventos narrados. Por sua vez, o evento 6 clara-mente aconteceu depois do evento 3, ou seja, voltamos ao isomorfismo suspenso durante os eventos 4 e 5. Desses poucos exemplos podemos tirar algumas conclusóes. Pode-mos argumentar que pretéritos imperfeitos e perífrases progressivas náo indicam progressáo temporal, mas sim formám o fundo no qual ocor-rerá a progressáo temporal levada a cabo pelo uso do pretérito perfeito. Vejamos o seguinte trecho, de Luis Fernando Veríssimo: [Estavam na casa de campo, ele e a mulher. lam todos os fins-de-se-mana. Era uma casa grande, rústica, copiada de revista americana, e afastada de tudo. Náo tinha telefone. O telefone mais proximo ficava a sete quiló- metros. O vizinho mais proximo ficava a cinco. Eles estavam sozinhos. A mulher só ia para acompanhá-lo. Náo gostava da casa de campo. Tinha de cozinhar com lenha enquanto ele ficava mexendo no jardim, cortan- do a grama, capinando, plantando.] {Foi da janela da co-zinha que ela viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse Ihe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.] (VERÍSSIMO, 1982, adaptado). O trecho entre colchetes está todo no pretérito imperfeito, e compóe o fundo no qual se desenrolará a narrativa, náo tendo internamente ne-nhuma ordem. Prova disso é a reescritura do mesmo trecho como abaixo: [Eles estavam sozinhos. A mulher só ia para acompanhá-lo. Náo gostava da casa de campo. Tinha de cozinhar com lenha enquanto ele ficava mexendo no jardim, cortando a grama, capinando, plantando. Estavam na casa de campo, ele e a mulher. Náo tinha telefone. O telefone mais proximo ficava a sete quilómetros. O vizinho mais proximo ficava a cinco. Era uma casa grande, rústica, copiada de revista americana, e afastada de tudo. lam todos os fins-de-semana.] {Foi da janela da cozinha que ela viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada ti-ves- se Ihe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.] Variacóes estilísticas á parte, as duas versóes do trecho entre col- chetes dáo a mesma contribuicáo, e nada dizem do ponto de vista da progressáo temporal. Por sua vez, o trecho entre chaves é isomórfico, e mudar sua ordem significa mudar a sequéncia de eventos na narrativa; senáo vejamos: 151 Semántica Original = {Foi da janela da cozinha que ela viu ele near subita-mente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse lhe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.} Reescrito = {Ela correu para a porta da cozinha e gritou. Foi da janela da cozinha que ela viu ele near subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse lhe dado um choque.} Obviamente, conseguimos entender e dar sentido ao trecho rees-cristo. Importa notar que, em geral, entendemos que a ordem dos even-tos em relacáo ao original é diferente. Desse modo, podemos também argumentar que, assim como os pretéritos imperfeitos indicaráo o fundo conversacional e a suspensáo do desenvolvimento da narrativa, os preterites perfeitos sempře indicaráo isomorfisme Contudo, isso náo é verdade. Voltando ao exemplo (9), 'Joáo caiu porque escorregou na casca de banana.', que traz dois preterites perfeitos encadeados, vemos claramen-te que náo temos isomorfismo: o evento de cair é descrito antes do even-to de escorregar na banana, mas, como sabemos que Joáo caiu porque escorregou, o evento de cair tern que ter acontecido depois do evento de escorregar, quebrando assim a isomorfia entre a ordem de descricěo e de ocorréncia. O exemplo (10) também náo é isomórfico. A razáo para tanto parece estar na conjuncěo 'porque'. De fato, podemos argumentar que quando temos dois eventos relacionados por 'porque', sempře tere-mos uma quebra de isomorfismo, e o primeiro evento descrito ocorre sempře depois do segundo evento descrito. Isso nos leva imediatamente a um segundo mecanismo de progres-sáo temporal, que chamaremos genericamente de "conjunc^es": (14) Joáo caiu e escorregou na casca de banana. (15) Joáo escorregou na casca de banana e caiu. 152 Progressao temporal Capitulo 10 (16) Joao caiu, depois escorregou na casca de banana. (17) Joao escorregou na casca de banana, depois caiu. (18) Joao caiu, mas antes ele escorregou na casca de banana. (19) Joao escorregou na casca de banana, mas antes ele caiu. (20) Joao caiu quando escorregou na casca de banana. (21) Joao escorregou na casca de banana quando caiu. Podemos, entao, distinguir a ordem linguistica de descricao do evento e a ordem em que o evento de fato ocorreu no mundo. Se usar-mos EDI para nos referir ao primeiro evento descrito, ED2 para o se-gundo, EOl para o primeiro evento que ocorre, e E02 para o segundo, veremos que numa relacao de isomorfismo ED1=E01 e ED2=E02; com essa mesma notacao, podemos analisar o papel das conjuncoes. Como vimos, a relacao expressa por 'porque' e ED1=E02 e ED2=E01; por sua vez, a relacao expressa por V e ED1=E01 e ED2=E02. 10.3 Regras-padrao e outras Vimos tres mecanismos de progressao temporal: o tempo verbal, exemplificado pelas funcoes dos preteritos perfeito e imperfeito; o que chamamos de "conjuncoes", representados por itens como 'porque', 'depois', e' etc.; e nosso conhecimento de mundo, que pode estabelecer cer- tas relacoes entre eventos que impoem ordem a sua ocorrencia. Por exemplo, so e possivel engolir algo se esse algo e colocado na boca. A nossa habilidade de reconhecer textos em sentencas justapostas leva em conta que podemos estabelecer a ordem de ocorrencia entre os eventos reportados por essas, atraves do nosso conhecimento do mun- 153 Semäntica do. Eventos que näo tém relacäo alguma, nem mesmo temporal, näo podem compor um texto - mesmo que se trate de poesias, por exemplo, há sempre um fio que conduz o que está sendo descrito. Assim sendo, diante de tal habilidade täo especializada e também täo geral, porque a aplicamos para qualquer amontoado de sentences, podemos imaginar que, ainda que inconscientemente, sigamos certas regras ao estabelecer as relacôes entre os diversos eventos reportados. Do ponto de vista da referencia e progressäo temporal, podemos pensar em regras-padräo e regras que entram em uso quando essas regras-padräo näo funcionam. Se tomamos a morfológia do verbo (as forma dos pretéritos perfeito, imperfeito e a perífrase progressiva) como indicadores de relacôes de progressäo temporal, podemos chegar äs se-guintes regras-padräo: Regra de Progressao (RP): dois preterites perfeitos apresentam isomorfismo (ou seja, a ordem em que os eventos sao descritos e a mesma ordem em que ocorrem). Regra da Narracao (RN): preterites imperfeitos e progressives nao apresentam progressao temporal, mas formam o fundo da progressao. Contudo, quando usamos o que viemos chamando de "conjunc^öes", a regra-padräo näo funciona e o que estä valendo e a relacäo estabeleci-da pela conjuncäo em questäo, que varia de uma para outra: lembramos que o 'porque' pode ser descrito pela relacäo ED1=E02 e ED2=E01 e o 'e' pela relacäo ED1=E01 e ED2=E02. Alem das conjunc^öes, vimos que a isomorfia tambem pode ser quebrada pelo nosso conhecimento de mundo, atraves do qual estabe-lecemos relacöes que näo säo transparentes nem por conectivos nem pelos tempos verbais. Em geral, tais relates säo de causa e efeito, mas tambem podem ser de explicac^äo, consequencia, dentre outros tipos. 154 Progressäo temporal Capítulo 10 Por träs dessas relacöes estabelecidas pelo nosso conhecimento de mundo, podemos identificar a atuacäo de alguma conjuncäo näo pronuncia-da. Tomemos o exemplo abaixo: (22) Joäo entrou na faculdadel. Resolveu fazer botänica2. Qual e a ordern dos eventos descritos em (22)? Hä ou näo isomor-fia? Näo e claro: pode ser que Joäo tenha entrado na universidade e en-täo tenha resolvido fazer botänica - e aqui temos uma interpretacäo isomörfica; ou pode ser que ele tenha, por um motivo qualquer, resolvido fazer botänica, por isso entrou na universidade - interpretacäo näo isomörfica. De uma forma ou de outra, sabemos que hä uma ordenacäo nos eventos descritos em (22) e, a depender do contexto amplo, sabere-mos claramente se ela e ou näo isomörfica. 10.4 Consideragóes Finais A progressáo temporal, como vimos neste Capítulo, é um recurso extremamente importante para a confeccáo de textos, pois dá ordem ou encadeamento aos eventos veiculados por um texto. Sem a progressáo temporal, náo haveria narrativa, apenas eventos espalhados no tempo. Alem de sua importáncia textual, a progressáo temporal também exemplifica de maneira particularmente clara como podemos capturar nossas intuicóes sobre os eventos de um texto através de regras explíci-tas que interagem entre si. Vem daí a ideia de regras-padráo. Pudemos ver também como as "conjuncoes" - que sáo, em geral, tomadas como termos que unem sentencas ou oracóes - desempenham um papel de relevo na progressáo temporal. 155 Modalidade - os auxiliares modais 11 Modalidade - os auxiliares modais Vamos introduzir a ideia de mundos possíveis e urna breve análise dos Em nossas interacóes diárias näo falamos apenas sobre aquilo que nos é imediato (as coisas e pessoas que nos cercam, a situacäo em que efetivamente estamos, o momento e o lugar em que estamos etc), nem mesmo apenas sobre o mundo em que estamos; falamos sobre tempos que ainda näo vivemos, momentos que j á se foram, sobre o que séria, sobre mundos que näo säo o nosso, mundos em que Papai Noel existe, mundos em que seríamos ricos, ou poderosos: 1) Ah se eu ganhasse na loto... 2) Eu bem que pódia estar na praia... 3) Talvez o Joäo esteja em casa. 4) "Estas histórias do psicanalista de Bagé säo provavelmente apó-crifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada)" (Luis Fernando Veríssimo, O Analista de Bagé). Todos nós já ouvimos falar do Analista de Bagé, sabemos que ele é de Bagé, é analista, e muito mais, mas ele de fato näo existe ou só existe enquanto personagem de ŕiccäo. Falamos sobre o que pode ser, sobre o que poderia ser o caso, mas näo é; sobre o que deveria ser; sobre o que nunca poderia ser; sobre o que nunca deveria ser. Através da linguagem nos movimentamos em auxiliares modais no PB. 11.1 Introducäo 157 Semäntica outras dimensóes (outros espacos, outros tempos, outros mundos). Neste Capítulo, vamos ver com mais detalhe um dos mecanismos lin-guísticos para nos deslocarmos na dimensäo do possível, os auxiliares modais, exemplificados aqui: 5) Ele pode ser solteiro; 6) Ele podia ser solteiro; 'podia' e 'poderia' pare-cem estar em variacäo sociolinguística no PB, isto é, a diferenca entre 'Eu podia ser solteira'e 'Eu poderia ser solteira' parece näo ser semäntica, mas apenas de grau de formalidade.Também 'deveria' e 'devia' parecem estar em variacäo sociolinguística. Como vocé deve lembrar, um operador atua sobre urna proposicäo (urna sentence) e gera urna nova proposicäo, com outro significado, como é o caso do'näo'. 7) Ele deve ser solteiro; 8) Ele deveria ser solteiro; 9) Ele näo pode ser solteiro; 10) Ele tern que ser solteiro. Note que nesses vários exemplos nos deslocamos para além da si-tuacäo "real" em que o falante se encontra, para falarmos sobre possibi-lidades e necessidades. A modalidade trata das diferentes maneiras de falarmos sobre o possível e o necessário. Semanticamente, o possível e o necessário säo operadores que, no PB, se manifestam nos chamados au- xiliares modais, como 'poder' e 'dever', mas também em advérbios como 'possivelmente', 'necessariamente', em adjetivos como 'possível', em ex-pressóes do tipo e necessário que', e preciso que'. Também alguns mor-femas säo modalizadores, por exemplo, '-veľ em 'laváveľ, que significa ser possível de se lavar. Cada um desses mecanismos demanda um estu-do ä parte, o que vai mais urna vez além dos nossos objetivos. Como j á dissemos, neste Capítulo vamos nos concentrar nos auxiliares modais. Embora possa parecer muito estranho, ao menos numa primeira aproximacäo, as sentences condicionais säo consideradas modais -afinal, elas tratam de situacóes hipotéticas. De fato, uma sentence condicional apresenta uma possibilidade como em: 158 Capítulo 11 Modalidade - os auxiliares modais (i) Se Joäo vier, eu näo venho. Note que em (i) näo se está falando sobre urna situacäo real, mas so-bre urna situacäo hipotética, sobre urna possibilidade de arranjo do mundo. A sentenca em (i) é um exemplo de condicional indicativo, porque na sentenca principal,'eu näo venho', o verbo está no indicativo (no presente do indicativo), mas há também os condicionais subordinados (ou contrafatuais) como em (ii): (ii) Se Joäo viesse, eu näo viria. Trata-se, nesse caso, de urna hipótese contra os fatos (contrafatual), porque sabemos que, na situacäo real, o falante veio, e Joäo näo; alias, a vinda do falante ocorreu porque näo houve a vinda de Joäo (teňte imaginär alguém falando (ii) numa situacäo em que Joäo veio de fato, e vera como fica estranho). As sentencas condicionais foram muito estudadas pelos filósofos, lógicos e, recentemente, pelos lin-guistas. No entanto, a bibliografia sobre os condicionais no PB é ain-da muito pobre. Pouco sabemos sobre essas sentencas que colocam problemas extremamente intrigantes. 11.2 Auxiliares modais Qualquer manual de ingles tern uma secao sobre os auxiliares modais como can, could, must e outros, o que nao e verdade para o portu-gues. Se voce procurar nas gramaticas tradicionais nao vai encontrar um topico sobre auxiliares modais, porque tradicionalmente modais foram associados as linguas germanicas (ingles, alemao...). Mas, nao ha duvidas de que temos tais auxiliares. Vamos iniciar refletindo sobre a estrutura sintatica de uma sentenca com auxiliar modal para depois passarmos a sua semantica. E possivel mostrar que 'poder', 'dever' e 'ter que/ de' sao verbos de alcamento, porque eles nao selecionam o Atencäo! Estamos con-siderando que o auxiliar modal é a expressäo'ter que', a qual, em alguns dialetos, se realiza como 'ter de'. Essa já é uma hipótese sintático-semän-tica que precisaria ser demonštrácia, já que temos a presenca do conectivo 'que' (o complementiza-dor) ou da preposicäo'de', mas estamos entendendo que houve um processo de gramaticalizacäo que fundiu o'ter'com o'que' ou o 'de'. Reveja alguns conceitos em: MIOTO, C. Sintaxe do Portugués. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2009. seu suposto argumento externo. Compare as sequéncias a seguir: 159 Semántica 11) a. O Joáo deseja sair. b. O cachorro deseja sair. c. A casa deseja ser pintada. d. A pedra deseja cair. 12) a. O Joáo pode sair. b. O cachorro pode sair. c. A casa pode ser pintada. d. A pedra pode cair. Vocé avalia diferentemente as sentencas que compóem cada uma dessas sequéncias? Observe que (11c) e (lid) só podem ser interpretadas metaforica-mente, já que náo é possível uma casa ou uma pedra desejar algo. Em outros termos, 'desejar' seleciona o seu argumento externo, aquele que está na posicáo de sujeito, porque exige que esse argumento tenha o traco + animado (e talvez + volitivo, nesse caso, mesmo (11b) tem um gosto de metafora). Esse náo é o caso das sentencas em (12): todas elas sáo "literalmente" aceitas, precisamente porque 'poder' náo impóe ne-nhuma restricáo quanto ao tipo de argumento que se pode ter. '-\ Como vocé deve lembrar das aulas de Sintaxe, isso ocorre porque b Joáo' náo é argumento externo de 'poder', que, na verdade, seleciona uma proposicáo (ou uma sentenca), o que pode ser melhor visualizado em: V_> 160 Modalidade - os auxiliares modais '-\ 13) Pode ser que Joäo saia. Note que a sentenca em (13) näo veicula exatamente o mesmo que a sentenca em (12a), porque (12a) pode ser usadá em situacôes em que o uso de (13) está bloqueado: Só (12a) veicula uma permissäo (depois de ficar um tempo de castigo no quarto, o pai de Joäofala'O Joäo pode sair'); já (13) veicula apenas uma probabilidade (o pai e mäe de Joäo näo sabem se ele vai sair de noite ou näo; como Joäo näo saiu na sema-na passada, sua mäefala'Pode ser que Joäo saia').Veremos a questäo da interpretacäo mais adiante, na próxima Secäo. v_/ Assim, a forma logica da sentenca em (12a) é grosseiramente: 14) [sPode [sO Joäo sair]] Veja que 'pode' funciona exatamente como o 'náo': ambos sáo ope-radores, porque tomam uma sentenca e retornam uma outra sentenca com um novo significado. Mas, diferentemente do 'náo', os auxiliares modais parecem mais rígidos em termos de escopo. Como vocé interpreta (15)? 15) O Joäo näo pode sair. Certamente, (15) significa que näo é possível Joäo sair. Veja que apenas o 'näo' tem escopo sobre o 'pode'; a interpretacäo em que 'pode' tem escopo sobre o 'näo' só pode ser alcancada se invertermos a ordem: 16) O Joäo pode näo sair. O mesmo ocorre com 'tem que/de' e 'deve'. Isso näo significa que näo haja ambiguidades com esses operadores. Há, mas elas parecem ter alguma restricäo. Mas, o que esse operador faz em termos de significado? Essa é uma questäo bem complexa sobre a qual iremos nos debrucar na próxima Secäo. Semantica 11.3 A semantica dos modais A primeira caracteristica dos modais e o fato de que um mesmo item lexical, por exemplo 'pode', veicula varios "sentidos", a depender da situacao em que ele e usado. Veja como a interpretacao de 'pode' se modifica ligeiramente em cada uma das situacoes a seguir: * Situacao 1: Estamos numa competicao de natacao e os tecnicos discutem quern tern capacidade para nadar os 3000 m da pro-va. Um dos tecnicos diz: 'O Pedro pode nadar' (essa extensao). * Situacao 2: Estamos num acampamento e o chefe autoriza quern tern ou nao permissao para nadar. Ele diz: 'O Pedro pode nadar'. * Situacao 3: Dois amigos estao se perguntando sobre quern sera o proximo a nadar e um deles diz: 'O Pedro pode nadar'. Na situacao 1, 'pode' expressa capacidade fisica e e sinonimo de 'conseguir'. Ta na situacao 2, ele expressa permissao. Esse uso e conhe-cido como deontico, porque diz respeito a leis e regras. Na terceira si-tua<;ao, 'pode' exprime probabilidade: pode ser o Toao quern vai nadar. O mesmo ocorre com os auxiliares 'dever' e 'ter que/de': * Situa^ao 4: Um pai enfurecido porque sua filha engravidou diz: 'Ela tern que casar'. * Situa^ao 5: Pedro esta pensando sobre como Joao conseguiu chegar tao rapido ate a universidade. Entao ele diz: 'Ele tern que ter vindo de carro'. Observe que 'Ter que/de', assim como 'deve', tern um uso bem particular que a literatura denominou de teleologico, exemplificado a seguir: 17) Para chegar a ilha, voce tern que atravessar a ponte. 162 Modalidade - os auxiliares modais Capítulo 11 Para atingir certo objetivo, um telos (objetivo em grego), como se diz na literatura, e preciso que certas condicoes sejam cumpridas, no caso e preciso atravessar a ponte. Note que nao estamos nem veiculan-do uma ordem, como na situacao 4, nem o resultado de um raciocinio, como na situacao 5. Teriamos, entao, tres 'tern que/de'? Essa e de fato a primeira questao que um semanticista se coloca: estamos diante de varios 'pode' (e varios 'deve' e varios 'tern que/de'), isto e, estamos diante de uma ambiguidade lexical, ou ha apenas um 'pode'? E se ha apenas um item lexical, como explicar essas diferencas de significado? Vamos assumir, juntamente com a maioria dos seman-ticistas, que ha apenas um item lexical e vamos derivar as diferentes modalidades do contexto de fala. Como vimos, a sentenca 'O Joao pode nadar' tern sua interpretacáo atrelada á situacao de fala: se estamos falando sobre regras, ela ganha interpretacáo de permissáo; se estamos falando sobre o que achamos que vai ocorrer, temos uma interpretacáo de resultado de um raciocinio. A determinacáo da modalidade depende, pois, do contexto. Entre as modalidades descritas na literatura temos: de capacidade, epistémica, deóntica, teleológica, bulética (ou de desejo), entre ou-tras. Mas, as duas que tém recebido maior atencáo sáo: a base deóntica, que, como vimos, trata das leis, e a base epistémica, que diz respeito a processos de raciocinio amparados numa base de conhe-cimento (episteme é conhecimento). A ambiguidade se ca-racteriza por sérem dois significados absoluta-mente desvinculados. É o caso de'manga', que pode ser a fruta ou uma peca de vestuário. Essa náo é uma questáo simples, e explicitá-la vai alem dos objetivos děste Capítulo. Se vocé se interessou, veja: Pires de Oliveira e Mortari (no přelo). Podemos entender base modal como aquilo que um falante leva em conta para identificar o tipo de possibilidade ou necessidade da sentenca. Alguém que se atém a uma base deóntica leva em consideracáo certo conjunto de leis e regras. Esse é o chamado fundo conversacional. Se o falante está levando em conta as informacóes que ele tem sobre algo, como na situacáo 5, o fundo conversacional é composto por esse conjunto de conhecimentos. 163 Semäntica Na sentenca a seguir, temos um exemplo de 'pode' epistemico: 18) Pode chover hoje ä tarde. Por tudo o que o falante sabe (por exemplo, ele observou o ceu ou ele ouviu no rädio), ele afirma que hä uma probabilidade de chover. Ciaramente a base para interpretar (18) näo pode ser deöntica porque näo se trata de permissäo ou ordern; ela e epistemica e o fundo conver sacional inclui as informacöes que subsidiam a afirmacäo do falante de que hä uma possibilidade de chuva. Vamos, agora, nos deter na base deöntica e comparar as sentencas a seguir: 19) Joäo pode sair. 20) Joäo tem que sair. 21) Joäo deve sair. Em que elas diferem? A sentenca em (19) expressa uma permissäo, enquanto que aparentemente (20) expressa uma ordern, e (21) pode ser uma ordern ou um conselho. Veja que das sentencas de (19) a (21) näo podemos deduzir que Joäo efetivamente sai, afinal, alguem pode ter a permissäo para sair e decidir ficar, ou ainda pode ter recebido a ordern de sair e resolver ficar. Mas, o que exatamente significa permissäo? A sentenca em (19) veicula que a saida de Joäo estä permitida, isto e, que existe pelo menos uma alternativa de mundo em que ele sai. Vamos entender melhor essa ideia de alternativa de mundo ou mundos possiveis. A modalidade exige que pensemos em alternativas de mundo ou outros mundos alem do mundo em que o falante estä, o seu mundo real. Ao afirmarmos que Joäo pode sair estamos dizendo que entre as configuracöes do mundo hä uma em que ele sai (veja que nada 164 Modalidade - os auxiliares modais Capítulo 11 garante que essa configuracäo é ou será a configuracäo do mundo real). Compare com a negacäo 22) Joäo näo pode sair. O falante estä veiculando que, seguindo aquilo que foi estipulado, seguindo as leis ou regras, näo hä configuracäo no mundo em que Joäo sai. Como ja dissemos, nada obriga Joäo a seguir as leis; o mundo real, numa boa parte das vezes, näo e o mundo "ideal", aquele em que todas as regras e leis säo seguidas e cumpridas. Ao usarmos a modalidade, colocamos em jogo possibilidades, al-ternativas, configuracöes de estados de coisas que podem ou näo coin-cidir com o que ocorre, ocorreu ou ocorrerä no mundo real do falante. A possibilidade indica a existencia de pelo menos um mundo (uma alternativa de mundo) com a configuracäo dada pela sentenca "prejacente", isto é, a sentenca que está sob o escopo do auxiliar modal. Formalmente, auxiliares modais säo quantificadores que atuam sobre uma nova entidade do modelo, os mundos. Nesse sentido, a modalidade é um modo de quantificacäo. Há muitas questöes envolvidas aqui, incluindo discussóes metafísicas sobre a existencia de outros mundos, as quais näo nos interessam neste momento. Para nós interessa apenas entender o mecanismo cognitivo que nos permite interpretar sentencas modalizadas. Nessa perspectiva formal podemos "traduzir" a sentenca em (19) por: O escopo, vocé deve se lembrar, indica onde a opera^äo está atuando. Se achar necessário, reveja o Capítulo sobre quantificacäo! 19') Tendo em vista as regras, há pelo menos um mundo em que o Joäo sai. Observe que 'Tendo em vista as regras' indica a base modal, que se estrutura a partir de um fundo conversacional, em geral dado contex-tualmente, constituído por um conjunto de regras. A possibilidade é a indicacäo de existencia de pelo menos uma configuracäo em que o Joäo sai. Trata-se, portanto, de uma quantificacäo existencial. 165 Semäntica Imagine que vocé tem um dado de seis faces, cada uma delas com um numero de 1 a 6 nas mäos, quantas possibilidades temos? Quantas configuracöes de mundo säo possíveis? O dado pode dar um, ou dar dois, ou dar trés... Cada configuracäo é uma possibilidade, a existéncia de pelo menos um mundo que tem aquele resultado (mais uma vez, nada sabemos sobre como será o mundo real, o numero que de fato sairá no dado depois de o jogarmos). E sabemos que näo é possível dar o numero 7, porque essa alternativa näo existe. Pergunte-se: se adotamos essa perspectiva, o que será que a sentenca em (20) significa? O que ela veicula? Se dizemos que Joäo tem que sair, dizemos que näo há outra alternativa para ele, que todas as configuracöes possíveis säo idénticas: em todas elas, o Joäo sai. Em outros termos, estamos quantificando universalmente: 23) Em todos os mundos que estäo de acordo com as regras, Joäo sai. Mais uma vez indicamos com 'estäo de acordo com as regras' a base modal. Como já dissemos, o mundo real näo precisa se confor-mar äs regras, veja que dissemos, em (20), que Joäo sai em todos os mundos que se conformam äs regras, mas quem disse que o mundo real se conforma äs regras? Suponha agora um dado com seis faces, mas em todas elas está inscrito o numero um. Dado o que sabemos, quando jogarmos o dado, tem que dar um, näo há outro resultado possível. Note que nesse exemplo a base modal é epistémica, porque estamos lidando com o que sabemos sobre o mundo. Embora os estudos sobre as diferencas semänticas entre 'tem que' e 'deve' sejam ainda poucos, aparentemente a sentenca em (20) é mais forte em termos de ordern do que a sentenca em (21), que se parece mais com um conselho. E o que significa ser um conselho? Uma maneira de entendermos um conselho é amenizarmos a forca da quantificacäo universal. Ao dizermos que 'Joäo deve sair', dizemos que em todos os mundos que säo os melhores ou os mais apropriados 'Joäo sai', mas dei- 166 Modalidade - os auxiliares modais Capítulo 11 xamos em aberto a existencia de mundos piores ou menos apropriados nos quais 'Joäo näo sať. Já ao usarmos 'ter que' indicamos que näo há alternativas, que em todos os mundos tal e qual coisa irá ocorrer, por isso temos a sensacäo de que ele é mais forte. 11.4 O tempo e a modalidade Urna outra propriedade dos modais é a maneira como os utiliza-mos para expressar a modalidade no passado, isto é, o modo como eles interagem com o tempo é um pouco diferente do que ocorre com outros verbos. Note que na sentenca em (24) a seguir, embora o modal este-ja no imperfeito do indicativo, que está associado ao tempo passado e também a contrafactualidade, a sentenca indica urna possibilidade no futuro, marcada pelo advérbio 'amanhä': 24) O Joäo pódia casar amanhä. Mas, note que (24) tem também um gosto de expressäo de desejo, ainda mais acentuado em casos como 'Bern que o Joäo pódia casar amanhä!'. A expressäo do desejo está completamente ausente do uso de 'pode', compare com 'O Joäo pode casar amanhä'. O mesmo ocorre com os auxiliares 'dever' e 'ter que' no imperfeito: eles näo indicam necessariamente tempo passado, e também parecem vei-cular algum tipo de desejo do falante ou, no caso de (25) e (26), conselho: 25) O Joäo devia casar amanhä. 26) O Joäo tinha que casar amanhä. É certo que 'podia' pode expressar também urna possibilidade no passado, como mostra a sentenca em (27): 27) Em 1963, o Joäo pódia casar. Voce se lembra da música "Agora eu era herói e meu cavalo só falava inglés"? Como nas estórias da carochinha, usamos o imperfeito para falar sobre outros mundos. Aparentemente, esse uso de'pódia'para expressar desejo ocorre apenas no portugués brasileiro, mas näo no portugués europeu. 167 Semäntica O mesmo vale para 'devia' e 'tinha que'. Assim, parece que a indi-cacäo do tempo näo é dada pelo auxiliar modal (ou pelo morféma '-ia'), mas pelos advérbios 'amanhä', 'em 1963'. Ou seja, o auxiliar no imper-feito parece ser neutro para tempo, enquanto que 'pode' indica sempře uma possibilidade presente, por isso a sentenca em (28) é agramatical: 28) * Ontem, o Joäo pode casar. Para expressar urna possibilidade no passado com o auxiliar 'pode' (ou 'deve' ou 'tern que'), temos que usar o infinitivo pessoal composto: 29) O Joäo pode ter casado ontem. Vej a que, quando usamos o infinitivo pessoal composto com o auxiliar no imperfeito do indicativo, como exemplificado em (30), a seguir, só podemos ter a interpretacäo de passado, o que indica que o passado está sendo veiculado pelo tempo composto e näo pelo auxiliar: 30) O Joäo podia ter casado ontem. Veja o capítulo sobre a distincäo semäntica e pragmática. 31) O Joäo podia ter casado ontem e fez isso mesmo, casou. Ou seja, a combinacäo 'podia' mais 'ter casado' indica apenas urna possibilidade no passado, assim como 'pode' mais 'ter casado', a diferenca parece estar no fato de que apenas a primeira veicula, pragmaticamente, contrafactualidade. Como ela faz isso? Essa é urna questäo em aberto. Mais urna vez, como j á vimos com a negacäo, a modalidade näo apa-rece nas gramáticas tradicionais e muito menos nas salas de aula. Mas, há Note ainda que (30) tem um gosto de contrafactualidade, isto é, o falante parece também indicar que o Joäo näo casou ontem, por isso é contrafactual (contra os fatos). Mas, essa sensacäo de contrafatualidade pode näo ser semäntica, se näo for semäntica, entäo é possível cancelá--la e trata-se, portanto, de uma implicatura. Considere a seguinte se-quéncia discursiva: 168 Modalidade - os auxiliares modais Capitulo 11 muito a ser dito sobre ela, como esperamos ter mostrado brevemente. E apenas arranhamos a modalidade, nada dissemos sobre 'pöde', sobre ou-tros modais como 'precisar' e sobre outros modos de modalidade. 11.5 Consideragöes finais Nas abordagens formais, a modalidade e entendida como a expres-säo da possibilidade e da necessidade. Hä värias maneiras de se expressar modalidade nas linguas naturais, entre elas os auxiliares modais como 'poder' e 'dever', mas tambem adverbios como 'possivelmente', perifrases como 'dar de/para', ate mesmo sufixos como '-vel'. A possibilidade e a necessidade säo entendidas como quantifica-cäo sobre mundos possiveis ou sobre estados de mundo. Quando dissemos 'pode chover' estamos afirmando que hä pelo menos um mundo possivel ou um estado de mundo em que chove. Mostramos ainda que sentencas modais säo altamente indeterminadas porque, sem o auxilio do contexto, näo sabemos se se trata de uma modalidade epistemica ou deöntica ou de capacidade. Mostramos que os auxiliares modais 'poder' e 'dever' interagem de maneira distinta com o tempo e o aspecto. Assim, 'podia' näo significa necessariamente uma possibilidade passada. Para expressarmos o pas-sado temos que utilizar o tempo composto: 'Podia ter morrido'. A pesquisa linguistica sobre modalidade ainda e uma ärea com poucas pesquisas no Brasil e ela levanta muitas questöes. + Leia mais! Os livos de llari (1997) e Coröa (2005) säo interessantes estudos da expressäo do tempoedosequenciamento deeventosem portugues, alem de serem bastan-te didäticos. 0 estudo sobre modalidade em portugues brasileiro, na vertente formal, ainda e incipiente, mas hä um excelente manual em preparacäo que voce ja pode consultar: trata-se de Pires de Oliveira e Mortari (no prelo). 169 Coda Chegamos ao fim de nosso percurso pela semantica, e voce deve ter visto uma serie de novos conceitos, de ideias e olhares sobre a lingua que, como dissemos na Introducao, provavelmente nunca viu antes. Tambem deve ter notado que ha muito mais a ser dito nao apenas sobre o que vimos, mas sobre o que nem mesmo pudemos mencionar, como por exemplo, a semantica de sentencas condicionais como 'Se o Bra sil tivesse sido descoberto pela Inglaterra, nos falariamos ingles' (ou na versao mais coloquial: 'Se o Brasil tivesse sido descoberto pelo Inglaterra, a gente ia estar falando portugues'.) Ha um obvio interesse nisso tudo, e o de aprender mais sobre como o portugues brasileiro e as outras linguas do mundo funcionam. Porem, voce deve estar se perguntando sobre o papel da semantica na sala de aula, na formacao do aluno na aula de portugues. Esse rapido percurso pela semantica procurou sempre deixar claro que ha muito a ser feito na sala de aula do ensino fundamental e medio; que a semantica pode ser um instrumento para melhorarmos nao apenas a leitura e a escrita, mas para permitir a reflexao sobre a linguagem. No Brasil, a obra Semantica. Brincando com a gramatica (2001), do professor Rodolfo Ilari, e o melhor exemplo de como e possivel despertar no aluno o interesse pela semantica que pode efetivamente contribuir para que ele seja um leitor mais perspicaz e um autor menos ingenuo. Refletir sobre o significado, como ele e construido, quais os proces-sos mentais envolvidos, isso retira o aluno do lugar de familiaridade que ele habita na linguagem, produz afastamento da sua lingua, permitindo observa-la como um objeto do qual ele esta desligado. Essa atitude de observar sem estar envolvido e fundamental para que ele possa ser um melhor avaliador de seu proprio texto. Ha muitas maneiras de colocarmos a semantica na sala de aula. Vamos apresentar dois relatos de experiencias de professores que se pro-puseram a discutir aspectos do significado com seus alunos. Semäntica O primeiro caso foi com uma sala de aula de sétima série do ensino fundamental (antes da nova reforma); alunos na faixa etária de 11 anos. A professora fez um projeto de pesquisa sobre propagandas, e os alunos deveriam trazer para a sala de aula aquelas em que eles identificassem ambiguidades. A partir desse levantamento realizado pelos alunos, as propagandas foram discutidas em sala. Dessas, duas säo extremamente interessantes. A primeira é urna propaganda de um sorteio que tinha como lema: a) Todos os ganhadores recebem urna moto. A discussäo gerou em torno da ambiguidade: uma moto para todos ou para cada um uma moto? Evidentemente a interpretacäo que parece ser a mais adequada é a segunda, mas quem garante que quem está pro-movendo o sorteio näo tenha em mente a primeira? E se esse for o caso, o que aconteceria? O segundo caso é conhecido de todos nós, embora, quase com certeza, vocé nunca tenha tornado consciéncia dele: b) Nescau: energia que dá gosto! Essa sentencia tem várias leituras e descrever sua ambiguidade re-quer mecanismos sofisticados: o Nescau é energia que dá gosto ao leite e o Nescau é a energia que dá gosto de ver. Depois de vários encontros em que se discutiu a ambiguidade de propagandas e que se notou um uso positivo - já que através delas é possível veicular mais sentidos com me-nos material linguístico -, os alunos foram convidados a construir suas próprias propagandas, que deveriam ser ambíguas. A fase final des- sa experiéncia foi a avaliacäo dos alunos de suas producôes e a escolha da melhor propaganda. Urna segunda experiéncia, muito produtiva para a escola, acabou resultando inclusive numa dissertacäo de mestrado. A autora se preo-cupou em analisar as questóes de provas elaboradas pelos professores das diferentes disciplinas e verificar as respostas dos alunos. O que ela notou foi que havia questóes ambíguas e que muitas vezes os alunos respondiam a pergunta na interpretacäo que o professor nem mesmo 172 havia percebido. Claro que o aluno errava a resposta, porque ele esta-va respondendo a uma questáo diferente daquela que o professor tinha formulado na sua cabeca. Havia uma diferenca de interpretacáo. Veja o seguinte exemplo, retirado de uma prova de biologia: c) Minhocas sáo anelídeos. Qual é a importáncia disso para a sua vida? O problema aqui é o pronome 'sua', que pode receber pelo menos duas interpretacoes: se ele for um anafórico, entáo ele está recuperando 'minhocas' e a pergunta é qual é a importáncia de ser anelídeo para a vida das minhocas; se, no entanto, ele for um déitico, ele será interpre-tado como referente ao leitor/ouvinte: qual a importáncia para a vida do ouvinte/leitor. Sem se dar conta da ambiguidade presente na sua pergunta, o professor avalia como incorretas respostas que sáo norteadas pela interpretacáo que ele, professor, náo viu. A contribuicáo maior des-sa experiéncia foi retornar os resultados para os professores e alertá-los para problemas advindos de interpretacáo, tornando-os mais sensiveis ás respostas dos alunos, á medida que eles passaram a se colocar a questáo: por que o aluno me deu essa resposta? Seria ela motivada por uma interpretacáo da minha pergunta? Esperamos que este pequeno Manual seja uma inspiracáo para mais pesquisas, para uma prática em sala de aula mais engajada naquilo que de fato constitui a nossa lingua, os modos como organizamos em palavras o significado, sem preconceitos, capaz de mostrar que 'puta' e 'caralho', para alem de sérem predicados, sáo, na fala espontánea, mo-dificadores de intensidade, com um comportamento sintático e semán-tico bem comportado. Que voce tenha a ousadia de refletir sobre a sua lingua, mesmo que ela seja considerada "menor", "pior", por aqueles que pouco entendem sobre o humano. References V& Referencias BARWISE, J.; COOPER, R. Generalized Quantifiers and Natural Language. In: Linguistics and Philosophy, 4,1981, p. 159-219. CHIERCHIA, G. Semäntica. Campinas: Editora da Unicamp; Londri-na: Eduel, 2003. CHOMSKY, Noam. Remarks on Nominalization. In: JACOBS, R.; ROSENBAUM, P. (Eds.). Readings in English Transformational Grammar. MA: Ginn, Waltham, 1970. p. 184-221. _. Syntactic structures. The Hague, Mouton & co, 1957. CORÖA, M. L. M. S. O tempo nos verbos do portugues: uma introdu-cäo ä sua interpretacäo semäntica. Säo Paulo: Parabola, 2005. DAVIDSON, Donald. The Logical Form of Action Sentences. In: The Logic of Decision and Action. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1967, p. 81-95. GUIMARÄES, M. R. Intensificadores como Quantificadores: os Ämbitos da Expressäo da Quantificacäo no Portugues do Brasil. 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Note que a relacao de acarretamento e orientada: mesmo tomando a sentenca 'Joao correu' como verdadeira, nao podemos dela concluir que 'Joao correu rapido' e verdadeira, porque ele pode ter corrido devagar. Ambiguidade: Ambiguidade ocorre quando uma mesma cadeia sonora pode receber mais de uma interpretaceo. A literatura costuma diferenciar quatro tipos de ambiguidade: 1. Ambiguidade lexical, que ocorre quando um termo tern dois ou mais sentidos independentes. Por exemplo:'manga', pece de vestuario e a fruta; 2. Ambiguidade sintatica, que ocorre porque pode haver mais de uma ma-neira de combinar oselementos da sentence. Por exemplo: 'Joao bateu na velha com a bengala'. Sem mais informacoes nao sabemos se era a velha que estava com a bengala ou se a bengala foi o instrumento que Joao usou para bater na velha; 3. Ambiguidade semantica, que se caracteriza por ser produzida pela pre-senca de mais de um operador na sentence. Por exemplo, na sentenca 'Maria nao brigou com a mae de novo'temos duas leituras: a Maria ja brigou antes, mas dessa vez ela nao brigou; mais uma vez ela nao brigou com a mae; 4. Ambiguidade pragmatica, que ocorre porque uma sentence pode ser usada para expressar diferentes usos. O exemplo mais famoso e a ambiguidade entre uso atributivo e uso referencial da descricao definida, como em 'O assassino de Smith e louco'. Argumento: Argumento e uma expressao saturada, isto e, que tern como referenda um unico individuo em particular no mundo. O exemplo mais claro sao os nomes 177 Semäntica próprios como'Clarice Lispector', que é o nome da escritora Clarice Lispector. As descricöes definidas como 'a atual presidenta do Brasil' também säo argumentos, porque referem-se a um individuo em particular. O caso me-nos intuitivo é o das sentencas. Sentencas säo argumentos porque se refe-rem a apenas um unico individuo em particular, ou a verdade ou a falsidade. Aspecto: O aspecto apresenta a perspectiva que o falante quer imprimir ä sua re-presentacäo de um evento no tempo. Há duas maneiras principals de repre- sentar o evento: ou ele é representado sem duracäo interna, como estando"fechado", de maneira que seu desenrolar näo é apresentado, ou como se desenrolando no tempo, estando"em aberto". No primeiro caso, o aspecto é perfectivo; no segundo, imperfectivo. É comum utilizarmos o pretérito perfeito para expressar o aspecto perfectivo, 'Joäo morreu', e a perifrase do progressivo no imperfectivo para o aspecto imperfectivo, 'Joäo estava mor- rendo'. Note que com o imperfectivo näo sabemos se ele morreu ou näo. Esse é o famoso Paradoxo do Imperfectivo. Contradicäo: Duas sentencas säo contraditórias se (e somente se) elas näo podem ser verdadeiras no mesmo mundo. Por exemplo, as sentencas 'Joäo está vivo'e'Joäo está morto'säo contraditórias. Déiticos: Os déiticos säoexpressöes cuja interpretacäo dependecrucialmente de recuperarmos elementos do contexto de fala. Por exemplo, 'eu' indica o falante, mas só podemos atribuir uma interpretacäo no momento em que sabe- mos quem está falando. A interpretacäo dos déiticos muda ao alterarmos o contexto de fala. Note como o 'eu' muda de interpretacäo (e também o Voce') no diálogo: Rose: Eu quero ir ao cinema com vocé hoje. Carlos: Eu näo. Eu quero ficar em casa sem vocé hoje. Derivacáo: A derivacáo indica os nexos sintático-semánticos que estruturam os ele- mentos em uma sentenca. Assumimos, como é corrente na literátu- 178 Glossário ra con- temporanea, que esses nexos sao binarios. Assim, a sentenca 'O me-nino en- tristecido dormiu calmamente' se bifurca primariamente em um sintagma nominal, 'o menino entristecido', e um sintagma verbal, 'dormiu calmamen- te'. Mas, esses sintagmas tambem se bifurcam ate a derivacao chegar aos chamados nos terminals, quando nao e mais possivel "quebrar" a estrutura em pedaoos menores. o menino entristecido dormiu calmamente o menino entristecido dormiu calmamente menino entristecido Escopo: É o alcance da operacäo realizada por um operador. Muitas piadas se ba-seiam em escopo. Como na velha piada em que um hörnern diz para outro: 'Estou com vontade de transar com a Luana Piovanni de novo'.'Nossa! Voce já transou com ela?!', pergunta o outro surpreso.'Näo', diz o primeiro,'mas já tive vontade antes.'A brincadeira depende de atribuirmos diferentes es-copos ao operador'de novo'. Quando ouvimos a primeira fala, tendemos a interpretar'de novo'como atuando (ou tendo escopo sobre) 'transar'. A ultima fala indica que o escopo de'de novo'deve ser sobre'estar com vontade'. Lingua Natural: Qualquer lingua que um ser humano aprende como lingua materna, de ma-neira natural, sem instrucäo formal. Por isso, vários cientistas afirmam que os chimpanzés näo těm uma lingua natural; mesmo aqueles que aprendem inglés näo a transmitem para sua prole. Uma lingua natural é mais do que um sistema de comunicacäo. Abelhas těm sistemas de comunicacäo alta-mente sofisticados, mas näo těm uma lingua natural. A principal caracteris-tica de uma lingua natural é a criatividade, o fato de que interpretamos o novo, tanto o novo recursivo ('Joäo que é jornalista, que está doente, que 179 Semántica mora comigo, saiu apressado') quanto o analógico (por exemplo, quando uma crianca generaliza as regras de concordáncia, dizendo"fazido"e"dizi-do", por analogia a"comido","bebido","pedido"etc). Língua-objeto: É a lingua que o cientista está analisando, estudando. Neste Manual o por-tugués brasileiro é a nossa língua-objeto. Metalinguagem: A linguagem arregimentada que utilizamos para descrever e explicar a língua-objeto. Modalidade: Na abordagem formal, o termo modalidade é a expressáo da possibilidade e da necessidade. Os casos mais prototípicos sáo os auxiliares modais como 'poder'e'dever'. Operador: Formalmente, operador é uma funcao que torna uma sentence e retorna uma outra sentence, com sentido diferente. Por exemplo, a negacao é um operador, já que ela torna uma sentence,'Joáo está dormindo', e retorna a sua nega<;áo,'Náo é o caso que Joáo está dormindo'. Em termos de extensáo, a negacao transforma uma verdade numa falsidade ou vice-versa. Pragmática: Tradicionalmente, a pragmática é entendida como o estudo dos usos que realizamos quando falamos. Quando proferimos uma sentence como'Está chovendo'podemos, ao proferi-la, realizar diferentes usos, entre eles infor-mar que é o caso de que está chovendo. Predicado: Os predicados sáo estruturas insaturadas, isto é, que těm pelo menos uma po-sicao que está vazia e que será preenchida por argumentos. Nas línguas na-turais, há predicados de um argumento (mono-argumentais), como'dormir' (_dormir); de dois argumentos (biargumentais), como'amar'(_amar_); e de trés argumentos, como 'apresentar' (_apresentar _para_). Nesses 180 exemplos, temos predicados que se completam com argumentos que sáo in-divíduos, mastemos também predicados que se completam com sentencas, por exemplo: Joáo disse que p, em que p representa uma sentenca. Assim, podemos considerar'dizer'como um predicado de dois lugares, o primeiro é aquele que diz e o segundo o dito (_dizer_). Pressuposicáo: Uma sentenca A pressupóe uma outra sentenca B se, para que A seja verda-deira ou falsa, isto é, para que A tenha um valor de verdade, é preciso que B seja verdadeira. Por exemplo, para que a sentenca 'Joáo parou de bater na mulher'seja verdadeira ou falsa é preciso que a sentenca'Joáo batia na mulher'seja verdadeira. Progressáo Temporal: A progressáo temporal é a sequenciacáo temporal de eventos ou aconteci-mentos num dado texto. Em geral, é o aspecto perfectivo que"movimenta" a narrativa. Por exemplo, 'Joáo chegou, colocou a bolsa na mesa, tirou o sapato, deitou no sofa e ligou a TV.' Quantificador: Quantificadores sáo operadores que estabelecem relacóes entre conjun-tos. Há dois operadores básicos: o universal,'todos', e o existencial 'algum'. Mas, sáo muitos os quantificadores nas linguas naturais:'sempre','muitos','a maioria'sao alguns exemplos. Referenda: A referenda sáo os "objetos" que compóem o seu modelo de mundo. Em termos simplicados, referenda é o que as palavras capturam no mundo. Por exemplo, a palavra 'Lua'captura no mundo o objeto lua. Esses objetos podem também ser objetos abstratos, por exemplo, '2' captura um objeto abstrato, o numero dois. Referenda temporal ou Tempo: A referenda temporal é a localizacáo do evento numa linha ordenada de pontos no tempo. Em geral, distinguimos trés tempos: o passado, em que o evento ocorre antes do tempo de fala; o presente, em que o Semántica evento é simultáneo ao tempo de fala; e o futuro, em que o evento ocor-re depois do momento de fala. Semántica: A semántica é o estudo da capacidade que todos nós temos de interpretar qualquer sentence da nossa lingua. Sentido: Sentido é a grande invenc.áo de Frege para apreender a diferenc.a entre sentences sintéticas e sentences analíticas. Entre a linguagem e o mundo (a referenda) há uma outra dimensáo que relaciona essas duas: o sentido. Sentido é o caminho para a referenda, aquilo que nos permite apreender os objetos. Por exemplo, o objeto lua pode ser apreendido por diferentes sentidos: Lua, o único satelite natural da Terra, o lugar onde desceu a nave Apollo 1, o lugar onde Armstrong disse "um pequeno passo para um horném, mas um grande passo para a humanidade". Sinonímia: Duas sentences sáo sinónimas se e somente se uma acarreta a outra e vice-versa. Por exemplo, a sentenc.a'Joáo beijou Maria'acarreta a sentence'A Ma ria foi beijada por Joao'e essa, por sua vez, acarreta a primeira. Logo, elas sáo sinónimas, isto é, sáo verdadeiras exatamente nas mesmas situac.óes (e falsas também exatamente nas mesmas situa^óes). 182