Indice Para uma revisitagao improve vel...................................................- • ■ ■ 11 Breve esclarecimento...........................................................-.............. 17 Psicanálise mítica do destino portu gués....................................... 23 Repensar Portugal............................................................................... 67 Da literatura como intetpretacao de Portugal.................................... 80 A emigracao como mito e os mitos da emigracao............................ 118 Somos um povo de pobres com meníalidade de ricos..................... 127 A imagem teofiliana de Camoes........................................................ 136 Camoes no presente........................................................................... 148 Sérgio como mito cultural................................................................. 158 Psicanálise de Portugal....................................................................... 173 O autor e a obra................................................................................. 181 Para uma revisitacäo improvável Há vinte c dois anos, quando publiquei O Labirinto da Saudade, Portugal acabava de perder o seu velho império. E com cle — pensava eu — uma čerta maneira de imaginär o seu passado através de uma mitologia responsável pelo fim da nossa história de naeäo colonizadora. Parecia, entäo, que o aparente fracas so da nossa mitologia imperial oferecia uma boa ocasiäo para «repen-sar Portugal», para pôr a nu as raízcs de um comportamento colectivo que nos 1 e vara, näo áquele lim de império, que era ine-vitável, mas a uma guerra absurda, politicamente anaerónica e eticamente contraria á mitologia mesma do nosso colonialismo «excmplar», com o seu ťamoso humanismo cristäo a servir-lhe de referencia e de caueäo. Näo fui a única pessoa, em Portugal, que pensou, entäo, que era urgente relbrmular o nosso discurso histórico e cultural. O grande ensaísta e jesuita Manuel Antunes pensou o mesmo. Creio que ambos nos enganámos e eu, pelo radicalismo do exame de consciéncia que propunha, mais do que ele. Passado um momenío, brevíssimo, cm que pareceu possível diseutir, meditar, interrogar, a nossa mitologia cultural, mitica-mente épica, paráda na idade de ouro a que Vase o da Gama e 11 Camöes conferiram os sous títulos de nobreza, caímos na mesma tentacäo onirics e irrealisía que se denunciava no Labirinto, E agora por conta de uma grandeza e de um império que näo existeni. Em si, a revolucäo de Abril näo é responsável por este regresso recalcado. O futuro-outro que cla prometera, ä parte (e näo é pouco...) o triunfo e consolidacäo, na metropole, da democracia de tipo europeu que näo conhecéramos durante meio século, näo se cumpriu. Pelo menos näo insíituiu ou contribuiu para instituir uma nova cuítura democrática desvmculada da antiga cultura arcaico-imperialista. Sern dúvida porque é impos-sível. Seria absurdo que nos desfizéssemos, por milagre, de um pas sado, de uma memoria, de uma identidade que se forjou ou se exaltou precisamente com os Descobrimentos e de que a aventura colonial foi a consequencia. Mas, näo sendo possivel nem dcsejável fazer tábua rasa do passado, mesmo na particular visäo acrítica que sustentara o regime de Salazar, era natural que esse passado fosse revisitado, rcexaminado, situado e lido na perspective de uma consciéncia mais exigents e crítica, realista, que devia ter sido o natural complemento de urna revolucäo libertadora. Nos Ultimos anos, uma intensa actividade historiográfíca, aproveitando a atmosféra de liberdade trazida pela revolucäo, manifestou-se interessada em tracar uma i magern de Portugal mais con forme com a sua histórica experiéncia, reatando o fio da grande historiografia liberal do século xix. É ainda ccdo para ihe apreciar os frutos e saber se sim ou näo o nosso quase fatal pendor para o «irrealismo» está íinalmente a contribuir para urna nova visäo da nossa cultura no contexto da mundializacáo. Na aparéncia, o pais que há vinte e do is anos podia justificar um livro como O Labirinto j á näo existe. Nestas duas décadas näo mudámos apenas de estatuto histórico-político, de civiliza-cäo e de ritos sociais que julgávamos, lamentando-o, caracterís-tícos de urna sociedade quase marginal em relacäo aos padröes europeus. Mudámos, litcralmente falando, e sem quase nos dar-mos conta disso, de mundo. Mudámos porque o mundo conhe- ceu urna metamorfose sem precedeníes, näo apenas exterior, mas de fundo. Já näo habitamos o mesmo planeta, e näo apenas porque nos fins da década de 80 caiu o muro de Berlim e com ele findou o conflito entre duas concepcöes da economia, da história e da sociedade que julgávamos destinadas a um futuro sem fim ä vista. Deixámos de ser, como durante séculos, urna pluralidade de nacöes ou povos, potencialmente ou imaginariamente senho-res dos seus destines, embora a ilusäo de o ser sej a mais forte do que o desmentido permanente que a forca das coisas Ines inflige. Sem surpresa, esta avassaladora dissolueäo das entidades clássicas a que chamávamos nacöes compensa-se com a rei-vindicaeäo de microidentidades virulentas ou superidentidades simbólicas de que o Pais Basco, a Irlanda, a Flandren, os novos Estados balcänicos, a Catalunha, a l.ombardia, säo exemplos. E ninguém sabe se säo apenas vestígios de arcaísmo tribal de nova espécie, se anúncio de um mundo ao mesmo tempo g 1 obalí zante e intimamente fragmentado. Que nos aconteceu a nós? Em Portugal como destino, que é a possivel revisitaeäo do Labirinto, tentei responder á questäo. Nos seus já longos oito séculos de existencia — formula, no fundo, pouco pensável, pois näo tem em conta a permanente reciclagem de si mesma que é a vida de qualquer povo — Portugal nunca sofreu metamorfose comparável á dos Ultimos vinte anos. Näo foi apenas uma mudanca exterior, uma dilataeäo comparável ä do tempo em que se tomou pais das Descobertas, mas urna alteracäo ontológica, se isto se aplica a um povo. Estamos täo dentro dela que a näo po demos pensar. Que mais näo fosse, caracteriza-a o facto de tal metamorfose näo ser obra sua, ou emineníemente sua, como o foi noutras épocas. Trata-se de um fenómeno mais vasto, o ti m da civilizacäo europeia sob paradigma cristäo e iluminista, se é licito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa. Näo há jubileu, alheio ou nosso, que possa mascarar, näo o mero fim de um conflito que marcou o nosso século, mas o esgo-tamento, näo apenas na eabeca e na sensibilidade de urna elite 12 13 como no século xix, mas no coracao e na inteligéncia do cidadao comum, de uma cultura com dois mil anos de passado. Em pouco mais de vinte anos, o Ocidcníe, mas sobretudo a Europa, entrou, com mais facilidade do que os Judeus no mar Vermelho, na idade pós-crista. Muitos enconírarao o diagnostics alucínatório, sobretudo os que mais contribuem para Ihc dar vida. O future o dirá. Alguns lembrar-me-ao que o folclore eristao continua iníacto, como se o do paganismo alguma vez tivesse socobrado. Outros pensaräo, como já no fim do século xix julgava Eca de Queirós, que uma rcligiosidade vagamente ecuménica. vagamente budista. substi-tui c retina a clássica mitologia crista. Poucos defenderäo, como Kierkegaard, que a derrocada do eristianismo e da cultura que ele animava é apenas fictícia, po is esse eristianismo nunca foí mais, salvo para raros, do que a máscara de um paganismo eter-no e inexpugnável. Sem se problematizar tanto, como é sua tradieäo, o nosso Portugal — podíamos dizer a nossa Espanha, a nossa Itália, sem falar da Europa há muito protestante — saiu do seu eristianismo, que entre nós era e foi sempře catolicismo. como se nunca lá tivesse entrado. Saiu por tlentro, näo por fora. Talvez o pais nunca tenha sido täo sociologicamente, tao consensualmente, «catolico». Já ninguém diseute esse tipo de catolicismo, como se viu por ocasiäo da consagraeäo dos trěs pastorinhos. Pedimos a té, ostensivamente, perdäo de termos sido os maus cristäos que fomos a quem näo nos pediu contas de termos sido, através de continentes, os «exemplares» portadores do Evangelho. Embar-cámos, cantando e rindo, na Nave qui va... de Fellini, contempo-räneos do Satyr i con, como ontem o éramos dos «autos de fé», donde recebíamos o estímulo vital da ortodoxia. Tudo na mais perfeita felicidade televisiva, convertidos nos big brothers uns dos outros, afinal castica vocaeäo nossa de familiäres do Santo Oficio por conta do Senhor do amor universal Onde estamos, afmal? Simbolicamente, näo num sitio muito diverso do que era o nosso há vinte anos, mas desta vez e para sempře näo sos, Como todo o Ocidente. tomámo-nos «todo o mundo e ninguem». A nossa visceral «hiperidentidade» nada tem de irónica, tai como era deserita no Labirinto. Somos, enfím, quem sempře quisemos scr. E todavia, näo estando já na Africa, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrá-mos todos, coleetivamente, para Timor. E lá que brilha, segundo a eterna idcologia nacionál veiculada noite e dia pela televisäo do Estado, o ultimo raio do impériu que durante séculos nos deu a ilusäo de estarmos no centre do mundo. E, se calhar, é verdade. Věnce, 23 de Outubro de 2000 14 15 Breve esclarecimento [...] tambem esse (Antero) consultou Charcot. De nada Ihe vaieu, diga-se de passagem, pois a sua doenija continua ainda hoje a ser para nos um misterio. Armando da Silva Carvalho, Portuguex No pais vizinho existe há muito uma reflexao täo generalizácia e täo obsessiva em torno da temática do «ser espctnhob), e doperfil do destino hispanico, que uma ensaísta pôde organizar uma nutrida antológia subordinada ao título de Preocupación por Espana. A primeira vista, os diversos ensaios e artigos deste livro parecem relevar dessa mesma temática, transferida para Portugal. Tal näo foi, nem é, o pensamento que articula as nossas consideracôes. Essa famosa «preocupacao com Espa-nha» de ressaibo unamuniano e muito século xix, como diria Ortega, tern qualquer coisa de suspeito pelo egotismo e o clima de ressentimento de queprocede. Por outro lado, a Espanha tern problemas de autodefini^ao nacionál, dada a célebre invertebra-lidade diagnosticada por Ortega. O nosso caso é outro: tivemos sempře uma vertebra supranumerária, vivemos sempre acima 17 das nossas posses, mas sem problemas de identidade national propriamente ditos. A nossa questao é a da nossa imagem en-quanto produto e reflexo da nossa existencia e projecto históri-cos ao longo dos séculos e em particular na época moderna em que essa existencia foi submetida a duras e temíveis privacöes. O assunto proprio do nosso livro é pois menos o da «preo-cupacáo por Portugal», preocupacäo que está inclusa por defi-nicäo em todas as tentativas de autognose, embora sem o relento narcisista de saber ou sofrer ä Unamuno pelo «lugar» que ocu-pamos no mundo, que o de urna imagologia, quer dizer, um discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos fori ado. Essas «imagens» säo de duas espécies: uma diz respeito äquilo que, por analógia com o que se passa com os individuos, sepoderia chamar «esquema corporal», imagem condicionante do agir colectivo cuja leitura só ä rebours pode ser feita, pois säo os actos decisivos dessa colectividade que permitem induzi--la; a outra é de segundo grau e constituem-na as múltiplas perspectivas, inumeráveis retratos que consciente ou inconscien-temente todos aqueles que por natureza säo vocacionados para a autognose colectiva (artistas, historiadores, romancistas, poe-tas) väo criando e impondo na consciéncia comum. Por gosto, por vocagäo, mas também por decisäo intelectual fundamen-tada, este nosso primeiro esboco de imagologia portuguesa é quase exclusivamente centrado sobre imagens de origem literä-ria e em particular para a época moderna, naquelas que por uma razäo ou por outra alcancaram uma espécie de estatuto mitico, pela voga, autoridade e irradiacäo que tiveram ou con-tinuam a ter. Embora o meu Interesse pela imagem de Portugal — e se se quiser, em particular, a «preocupacäo» pelo estatuto cultural que nos é proprio — ten ham estado sempre presentes ao longo da minha reflexäo avulsa, desde o primeiro volume de Hetero-doxia, a decisäo de exumar uma boa parte das consideragöes deste novo livro prende-se, por um lado, ä mudanqa histörica dos Ultimos quatro anos, como é óbvio, por outro, ä circunstän- 18 cía aleatória da leitura recente de livros de indole diversa, mas todos exprimindo uma vontade de renovacáo da imagerie habitual da realidade portuguesa. Citarei ao acaso e sem hierarquia de assunto ou valor os livros de José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, Portuguex, de Armando da Silva Carvalho, este ultimo centrado com uma acuidade e uma originalidade manifestos, como o ainda inédito e proximo romance de Almeida Faria, na subversao a todos os niveis da mitologia cultural lusiada e na tentativa de reformula-cao em termos simbólicos, os únicos próprios da escrita roma-nesca, de uma imagem interna da aventura nacionál e, para lá, ou a par dela, da descoberta de uma nova e sempre possível passagem do Nordeste capaz de unir os incomunicáveis conti-nentes que tempo, opressdo e destino criaram no interior do nosso táo ingénuo e fabuloso diálogo mudo de nós connosco mesmos. E com esta irresistível vontade de redescoberta, ou mesmo de pulverizacáo das imagens sobre que tdo preguigosa-mente temos fundado as nossas apostas ou encolher de ombros — sem esquecer as mais incisivas do nosso jovem cinema—, que me sinto sintonizado, enquanto herdeiro e caminhanteparalelo de outras tentativas, acaso menos radicals, mas significati-vas da vontade de repensar a sério e a fundo uma realidade táo dificil de aprender como a portuguesa}. Que outra oferece ao mais desprevenido exame esta dupla e, na aparéncia, insolúvel pariicularidade: a de nos parecer a todos ao mesmo tempo táo simples, táo desarmante e aproblemática, a pontos de corresponder á ideia idílica da vida e da sociedade portuguesa, tantas vezeš ilustrada por nationals e estrangeiros; e táo labirintica e complexa apesar ou por causa dessa rasura impos- 1 Também näo deixa de ser sintomática a revisita^äo do «sebastianismo» através de reflexöes ou obras literárias de diversa indole, desde Joel Serräo e Joäo Medina a Natália Correia, e recentemente, em termos esotéricos, alias, de bem diversa confíguracäo, visôes do itinerário pátrio como no de António Telmo e Dalila Pereira da Costa. 19 sivel, mas täo bem sucedida, de uma auséncia de tragédia, res-sentida a cada geraqäo como a mais refinada e incomunicável das tragédias? Embora pensado e escrito fora de Portugal este livro näo vem do que é moda designar como diaspora e muito menos de qualquer lugar ou situaqäo que o autor ressinta como exílio. Da diaspora näo procede porque nunca houve nem há diaspora alguma que toque os Portugueses. Nenhum Tito incendiou jamais o Templo-Portugal obrigando-nos á forca a dispersar-nos pelos quatro cantos do universo. A nossa dispersäo ao longo dos séculos e em particular o éxodo contemporäneo säo de nossa exclusiva responsabilidade, determinados pela pressäo secular de urna indigéncia patria a compensar, ou por urna vontade bandeirante de aceder ä custa de outros a melhor vida. Tudo o res to é fabula. A única diaspora da nossa história f bi aquela que porpressäo da catolicíssima Espanha impusemos em tempos aos nossos judeus, diaspora atroz e relativamente benígna para que séculos mais tarde os herdeiros das vítimas se orgulhem dianie de Voltaire da sua antiga condigäo de Portugueses. Diaspora miraculosa também; pois deu ao mundo Beneditus Espinosa... Também este livro näo ě de exílio nem de exilado que a nenhum título o seu autor foi nunca. Digamos que é o discurso de um ausente por motivos que só a ele dizem respeito, mas que nada těm a ver com as exalacoes de exilados imaginários de urna patria näo menos imaginariamente ingrata. Os auténticos exilados, em. Portugal, á parte o momento da reaccäo miguelista, foram sempre poucos, exceptuando aqueles combatentes da som-bra que por natureza se destinavam a sé-lo, sem pensar mais tarde em dependurar o duro exílio aceito na lapěla da alma. Exílio verdadeiro, o autor destas reflexôes só o conheceu no interior do seu pais, como muitos outros seus camaradas e con-temporäneos, e dessa experiéncia procede sem dúvida a raiz ultima do interesse obsessivo para ver claro na realidade do povo a que pertence e para compreender a estrutura desse silén-cio que periodica, se näo em permaněncia, coage do interior o diälogo sempre precärio da cultura portuguesa consigo mesma. Felizmente que os ventos mudaram, e que a muralha visivel desse silencio orgänico ruiu, embora as pedras mortas dessa resistente Jericö tenham encontrado ja cabouqueiros ävidos de as reutilizar na construcäo de um outro ou similar silencio. Pela forca das coisas, todos os textos deste livro foram escri-tos e pensados fora de Portugal, se e que este «fora» tem algum sentido pertinente em relaqäo ao objecto que nele se aborda. Talvez por isso, e uma vez mais, as boas almas baptizem estas consideraqoes com o labeu de estrangeiradas. Näo e apodo que as humilhe, mas näo o crelo exacto. Se o for, serä sobretudopelo excesso de fixaqäo numa temätica que subentende tudo quanto escrevi, mas que a ausencia porventura terä reforcado. De qualquer modo, näo escrevi estes ensaios para recuperar um pais que nunca perdi, mas para o «pensar», com a mesma paixäo e sangue-frio intelectual com que o pensava quanto tive a felici-dade melancölica de viver nele como prisioneirro de alma. Menos os escrevi ainda para me justificar de um amor pätrio que näo pertence ao genero dos que se cantam ou descantam pedindo recompensa. Uma Pätria näo deve nada a ninguem em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camöes, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa. Devia--Iho o rei a quem mecenaticamente fez apelo e Ihe pagou como entendeu e os tempos consentiam. Do que Portugal näo Ihe devia e o seu amor por ela exigia, so ele mesmo se podia pagar pelas suas pröprias mäos, confundindo num so canto a erräncia pätria e a sua mortal peregrinaqäo. Que mais alta recompensa? Vence, 25 de Abril de 1978. 20 21