ResearchGate See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/356167191 Analise do socioleto dos descendentes lusoafricanos no filme Zona J Chapter - November 2021 CITATIONS READS 0 94 1 author: -^t ±_ Iva Svobodova *£Up Masaryk University 65 PUBLICATIONS 28 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Iva Svobodova on 12 November 2021. The user has requested enhancement of the downloaded file. FICHA TÉCNICA Título: PROVÉRBIOS - UMA LINGUAGEM SEM FRONTEIRAS Autores: Aida Batista, Emmanuelle Afonso, Fernanda Frazäo, Filipe Pires, Irina Zimonyi-Kalínyina, Isabelle Simöes Marques, Iva Svobodová, Luis Cardoso Noronha, Luisa Tiago de Oliveira, Lurdes Patricio, Marinela Soares, Rui Soares; Joäo C.R.M. Silva Caldeira, Maria Helena Carreira Coordenacäo: Maria Beatriz Rocha-Trindade, Rui Soares Concepcäo, Paginacáo: Rui Soares Capa: Nuno Bispo Foto da capa: Rui Soares Foto da capa - Movimento, Diversidade, Comunicaqäo Num mundo em que as diversidades se recortam e onde a mobilidade é permanente, a comunicapäo intensifica a transmissäo de conhecimentos, Apoios / Parcerias: AIP -IAP/CUP-T, SGL Edicäo: Associacäo Intemacional de Paremiologia / International Association of Paremiology (AIP-IAP) Rua da Galena, n° 9 A / 8800-329 Tavira Tel: 281 321 106-Tim: 919629699 Email: aipiap.tavira(S),gmail,com Website: www.aip-iap.org Execucäo Técnica: Tipografia Tavirense, Lda. Rua Maria Campina, Bl. B, Lt. 4, c/v Dta. / 8800-412 Tavira Tel. 281 322 622 Email: geraKSjtipo grafiatavirense, com Dcpósito legal: 490431/21 ISBN: 978-989-53302-1-8 Data: Outubro2021 Tiragem: 150 Copyright © : AIP-IAP Direitos reservados segundo a lei em vigor Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 2 LINGUAGEM DOS DESCENDENTES LUSOAFRICANOS NO ) FILME ZONA JOTA Iva Svobodová Resumo O objetivo da nossa palestra é falar sobre a linguagem dos descendentes dos imigrantes luso-africanos, que formám um grupo populacional muito especial. Trata-se de jovens que, para alem de tudo, vivem como se num terceiro espaco, situado entre dois mundos: entre o lar onde nasceram, cresceram, onde foram educados pelos pais de naturalidade e cultura diferentes, e o mundo que os rodeia e com o qual, também, se identificam dificilmente. Pelos hábitos culturais e linguisticos aproximam-se do estilo de hiphop e de rap, recorrendo, ao mesmo tempo, ao uso de meios linguisticos particulares, compartilhados só pela sua comunidade e que poderiamos definir, igualmente, como socioleto. O nosso objetivo é descrever, o mais exatamente possivel, as especificidades da sua linguagem, a partir do filme Zona Jota. Com base nos diálogos criamos um corpus linguistico que submetemos, ä continuacäo, a uma análise quantitativa e qualitativa. Este estudo revelou-nos uma elevada frequéncia de palavras vulgares, populäres, informais, palavras de origem inglesa, francesa ou afřicana, muitas vezes morfologicamente adaptadas ao sistema da lingua portuguesa (o brother, o people, etc.). Já sou como sou há muitos anos O ego é o maior causador dos nossos danos Nós somos humanos, castigamos e inventamos E perdemos mais do que aquilo que damos (Sam the Kid, Lágrimas, 1999) Ao erguermos a vista, näo vemos as fronteiras Análise do socioleto dos novos luso-africanos no filme Zona J No presente artigo pretende-se demonstrar como a diluicao das fronteiras entre as diferentes culturas pode influenciar a identidade das comunidades étnicas minoritárias. Tal fenómeno pode ser observado, por exemplo, no caso dos novos luso-africanos nos anos noventa do século passado. É, precisamente, a confluéncia das diversas componentes culturais e linguísticas, que origina a sua identidade e o seu socioleto Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 147 como prova o filme Zona J de Leonel Vieira, que foi produzido em 1998. Com base nos dialogos, que acompanham a sua linha argumental, ilustramos a forma como os diferentes espacos, entre os quais passa a vida desta comunidade, se repercutem no carater hibndo da sua linguagem, constituida das mais variaveis camadas lexicais e impregnada de expressoes de diferentes origens culturais. Estas serao, na nossa pesquisa, submetidas a uma analise mais detalhada e isso tanto qualitativa como quantitativa. A cultura hip-hop, o breakdance e o rap, que influenciam, marcantemente, a vida e a lingua desta comunidade, levam, ao mesmo tempo, a afasta-la nao so do resto da sociedade portuguesa, na epoca observada, como tambem dos seus ascendentes familiares. A diversificacao geracional cultural e social dos pnmeiros imigrantes luso-africanos em Portugal e, tambem, urn dos aspetos abordados na nossa analise, e sera justificada pelo contexto da sua integracao na sociedade recetora. 1. Introducäo O filme Zona Jde Leonel Vieira (1998), que trata da vida dos novos luso-africanos, impele, naturalmente, a refletir sobre uma série de aspetos relativos á vida sociocultural desta parte da sociedade portuguesa num momento de viragem da sua história migratória. De facto, é só nos anos sessenta que Portugal recebe os primeiros imigrantes e procura respostas a questoes que nunca tinham sido colocadas. Entende-se, naturalmente, como, alias, muitos estudos provam em relacäo a Portugal (p. ex. Machado 1994, Santos e Faria 2008, Ortiz 2013, Piccini 2016, Pimentel 2006), que a falta das experiéncias com o acolhimento de imigrantes pode ter em consequéncia uma data de problemas de dificil solucao. Entre eles, o racismo, a discriminacäo, a pobreza, a violéncia e a criminalidade, considerados tabu pela sociedade portuguesa ainda nos anos noventa. Mas com tempo e perseveranca, tudo se alcanca. Já em 2016, Portugal, é considerado o segundo melhor pais europeu areceber e a integrar imigrantes, segundo o estudo internacional MIPEX '. Em 2021, O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, assinala o Dia Internacional Contra a Discriminacäo Racial e, no site ofícial de Bělém, exalta o lugar de Portugal como pais de acolhimento aberto, universal e ecuménico2. Ao mesmo tempo, as instituicöes académicas definem a lingua Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 148 portuguesa como lingua de integracäo em contexto de migracäo e como inštrumente de acolhimento (p. ex. O Institute Internacionál da Lingua Portuguesa, em 2017, organizou o evento Em lingua Portuguesa abracamos a integracäo, com que iniciou urna série de conferéncias e workshops intitulados Emino de Portugués como Lingua de Acolhimento 3). Quanto á Zona J, antecipe-se o nome de Samuel Mira mais conhecido como Sam the Kid ou como o herói de Chelas. E um ideal comum dos novos luso-africanos (como mostra o filme Zona J) que passou a vida no bairro de Chelas e, hojeemdia, écoautorde vários projetos da sua revitalizacäo. O seu principal objetivo é valorizar o bairro e os seus habitantes através de atividades desportivas, culturais ou laborais, sugerindo até o rebranding do proprio topónimo, para acabar com os infindáveis preconceitos que existem sobre o sítio, a ser designado, cada vez mais, pelo nome da freguesia de que faz parte, i.e., Marvila 4. Apesar de um evidente avanco na solucäo das questöes-chave associadas á integracäo dos imigrantes, é o nosso objetivo olhar trés décadas para trás para relembrar alguns fragmentos mais complicados da vida dos filhos dos primeiros imigrantes e, ao mesmo tempo, para mostrar o peso que as circunstäncías da vida tiveram no seu modus vivendi, repugnado pela sociedade por vários motivos. Um deles era o afastamento dos estereótipos culturais e sociais, criados, na altura, pela sociedade recetora e decorrentes de urna série de outros fatores pouco favoráveis, como era, por exemplo, a escolaridade näo concluída, a posicao pouco estável no mercado de trabalho e, daí urna maior percentagem de pessoas que ficaram sem emprego. Todas estas circunstäncías levaram a um comportamento social situado fora da norma-padräo e reforcaram a barreira na inclusäo social. Como o título do filme indica, a comunidade por nós analisada provém da parte suburbana de Lisboa denominada Zona J, que faz parte do bairro de Chelas e é conhecido pelos piores motivos como veremos adiante. Compararemos o grau de integracäo das suas duas geracôes e, no caso da geracäo mais nova, referir-nos-emos aos problemas relacionados com a sua adaptacäo social, inclusive com a procura da identidade. Esta questäo, que é, em geral, muito vasta e muito complexa, no caso desta nova geracäo, atinge uma dimensäo especial: como já antecipámos no resumo, a sua Provérbios - Urna Linguagem sem Fronteiras 149 vida se perfila num terceiro espaco em que confluem diferentes valores culturais: näo só os da sociedade acolhedora e do pais de origem (dos seus pais) como também os valores defendidos pelos seus homólogos afroamericanos com quem, estes novos luso-africanos, de facto, partilham as mesmas experiéncias, os mesmos olhares, as mesmas atitudes e, adotando o mesmo estilo de vida. A mistura de todas estas componentes culturais leva a criar, ao mesmo tempo, a sua propria linguagem, que, por possuir propriedades especificas dentro desta comunidade, poderia ser designada pelo termo socioleto 5. O socioleto, enquanto uma variante diastrática da lingua, é utilizado por um grupo ou por uma classe social socialmente homogénea (os seus membros těm, por exemplo, a mesma origem, pertencem á mesma faixa etária, tém os mesmos interesses, etc.) (cf. Trudgill 2003, Hubáček & Krčmová 2017, Beline 2004). As variantes sociolinguísticas da lingua (äs vezeš denominadas também como dialetos sociais) incluem diferentes camadas lexicais estilísticas, sobretudo, as palavras semioficiais ou informais (entre eles, o caläo e a gíria), neologismos, abreviacöes ou alcunhas, isto é, elementos de identifícacao social que podem ser usados pelos falantes, a propósito, para explicitar a pertenca a um determinado grupo social. É o filme Zona J(Vieira, 1998) que deixa bem testemunhado o socioleto destesj ovens luso-africanos, situado nos anos noventa do século passado. Sendo assim, a nossa análise poderia ser considerada como desatualizada, mas, ao mesmo tempo, podemos afirmar que a linguagem desta comunidade apresenta tendéncias muito semelhantes áquelas que se verificam ainda nas décadas posteriores, como, por exemplo, prova o filme Li Ké Terra (Reis, Guerra, Baptista 2010) ou o proprio Hip Hop Tuga - hip-hop portugués. Quanto á metodologia, o corpus por nos estudado consiste na recolha dos diálogos que decorrem entre os membros da comunidade-alvo. Focalizámos, sobretudo, na análise lexical e semäntica do seu vocabulário, abordando, igualmente, alguns aspetos morfológicos que acompanham a adocäo dos estrangeirismos pelos mesmos. Completámos a parte qualitativa da análise pela comparacäo quantitativa das diferentes componentes que perfazem a parte essencial da sua linguagem. Sendo assim, o nosso Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 150 trabalho terá duas partes principais. Na primeira parte descreveremos o contexto da imigracäo luso-afřicana e esclareceremos a posicäo da dita comunidade na sociedade portuguesa. Na segunda parte, apresentaremos os resultados da análise quantitativa e qualitativa, que väo contribuir para uma descricäo mais detalhada da linguagem destes jovens luso-africanos. Comecemos, entäo, pelo tema de evolucäo da imigracäo africana dos países africanos de lingua ofícial portuguesa (PALOP). 2. Imigrantes luso-africanos De acordo com F. L. Machado (2009) e segundo os Servicos de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal, o numero dos imigrantes africanos dos países PALOP era Portugal cresceu entre 1980 e 2007, como mostra a seguinte Tabela 1, predominando, em todos os anos, os imigrantes de origem cabo-verdiana, como prova a Tabela 2. Ano Numero de imigrantes Ano Numero de imigrantes 1980 23 776 1994 68 945 1981 23 835 1995 75 316 1982 24 590 1996 77 114 1983 27 633 1997 77 600 1984 29 998 1998 78 291 1985 32 719 1999 85 200 1986 36 799 2000 93 506 1987 37 665 2001 116 966 1988 38 900 2002 130 562 1989 41 114 2003 135 709 1990 43 297 2004 139 072 1991 45 795 2005 142 321 Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 151 1992 49 713 2006 139 379 1993 52 883 2007 136 694 Tabela 1: Evolucáo numérica da imigracäo africana dos PALOP (1980-2007) Fontes: Servico de Estrangeiros e Fronteiras e Rocha-Trindade (2001) apud Machado (2009, p. 167) Ano —* 1980 1990 1995 2000 2007 Origem j Cabo-Verde (CV) 21 022 28 796 38 746 47 093 63 925 Angola (ANG) 1 482 5 306 15 829 20416 32 728 Guiné-Bissau (GUI) 678 3 986 12 291 15 941 23 733 Säo Torné e Principe (ST) n.d. 2 034 4 082 4 809 10 627 Mocambique (MOC) 594 3 175 4 368 4 502 5 681 Total 23 776 43 297 75 316 92 761 136 694 Tabela 2. Numero de imigrantes dos PALOP em Portugal (1980-2007) Fontes: Servico de Estrangeiros e Fronteiras; Rocha-Trindade (2001); para os anos de 1980, 1990 e 1995; Estatísticas Demográficas para os santomenses, em 1990 e 1995 apud Machado (2009, p. 168) Conforme Machado (2009), no mesmo periodo, os imigrantes dos países africanos da linguaportuguesa constituíram 30% e, em alguns anos, até 40% do total dos imigrantes. Hoje em dia, porém, segundo o Gabinete de Estratégia e Estudos (República portuguesa o seu peso relativo é de apenas 16,95%. Isso devido aos novos fluxos de imigrantes que vém, principalmente, do leste da Europa e do Brasil. Sendo a questao de imigracäo e de integracäo muito complexa, limitar-nos-emos a abordar apenas aqueles aspetos que consideramos essenciais para a descricäo do grupo social que é o objeto da nossa pesquisa. Para a sua melhor descricäo, partimos, nesta fase da pesquisa, dos trabalhos de Machado (1994, 2009) que divide a imigracäo africana em trés fases. A primeira situa-se no periodo anterior ao ano de 1974, a segunda, depois de 1974, e, a terceira, nos anos noventa do século passado (cf. Machado 1994. 2009). Provérbios - Uma Llnguagem sem Fronteiras 152 A primeira fase, que se realizou ainda antes de 1974, i.e., nos anos sessenta, inclui uns pequenos grupos de imigrantes cabo-verdianos, que obtiveram a nacionalidade portuguesa, integraram-se na sociedade, chegando a ocupar lugares médios e altos na hierarquia social em diferentes setores de trabalho, que surgiram com a saida massiva dos Portugueses (1,6 milhöes) entre 1955 - 1974. Machado (1998) recomenda näo utilizar o conceito de imigracäo no caso destes primeiros grupos, e isso pelos motivos da sua integracäo na sociedade e, também, e por eles näo térem o projeto de regresso. A segunda fase, segundo o mesmo autor, corresponde ao periodo de independéncia das ex-colónias africanas e, aos anos 80. Nesta altura, chegam a Portugal familias de origem africana junto com os retornados que viviam em Africa durante o periodo de independéncia. Em 1989, registam-se 23 776 imigrantes luso-africanos, sendo a maior parte deles de origem cabo-verdiana (CV), mas, parcialmente, também, luso-angolana (ANG), guineense (GUI) e mocambicana (MOC) (total: 23 776 - CV- 21 022, ANG-1782, GUI - 678, ST -, MOQ 594). Como vemos, o numero dos imigrantes, nesta segunda fase, aumenta, e, em 1989, chega a atingir a soma de 41 114, o que leva, naturalmente, á sua maior diversificacäo. Quanto á nacionalidade, nem todos conseguem tornar-se Portugueses. Uma čerta vantagem tém-na os que tiveram ascendentes ou familiäres em Portugal ou que ocuparam as posicöes de administracäo nas ex-colónias 1. Nem aqui é, segundo F. L. Machado (1998), apropriado usar o termo de imigracäo, porque a maior parte destas pessoas näo pretende regressar para os seus países, pelo menos, num futuro proximo. A terceira fase inicia-se nos anos noventa e representa os maiores afluxos de imigracäo africana. Como se pode reparar nas Tabelas 1 e 2, em 2007, há 136 694 imigrantes africanos dos países PALOP (total: 136 694 = CV - 63 925, ANG - 32 728, GUI - 23 733, ST - 10 627, MO£ - 5 681), sendo o peso relativo de todas a nacionalidades mais elevado do que nos anos anteriores. Segundo Machado (1998), trata-se de uma fase puramente imigrante, motivada, sobretudo, economicamente. Os setores de trabalho principais säo: a construcäo da obra civil e os servicos de limpeza. Estas pessoas pretendem regressar para os seus países depois de ganharem o dinheiro sufíciente para criarem melhores condicöes de vida. Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 153 Importa salientar que, nas primeiras duas fases, Machado propoe substituir o termo imigrantes pelo conceito luso-qfricanos. O que leva a distinguir os dois grupos säo os seguintes criterios: - Tempo da vinda a Portugal (os luso-qfricanos chegam a Portugal nas primeira e segunda fases). - Portugal como o primeiro destino (dos luso-afiicanos); - Grau de fixacäo (os luso-afiicanos näo pretendem regressar para os seus paises); - Condicöes sociais (os luso-africanos alcancam, na hierarquia social, o nivel medio e alto); Luso-africano Imigrante analfabetismo 12 % 45 % formacäo universitária 10% 0,5 % setor de trabalho construcäo da obra 13 % 50% servicos públicos 42 % - outras profissôes 16 % - morada Centro de Lisboa, Olivais, Lapa, Benfica, Amorais Amadora, Chameca, Chelas - Formacäo (os luso-qfricanos possuem, muitas vezeš, também, para alem da formacäo secundaria, também a universitária); - Analfabetismo (os luso-qfricanos representam uma menor percentagem de analfabetismo); - Lugar de morada (a raaior parte dos luso-qfricanos vive no centro de Lisboa, Amadora, Olivais, Lapa). Uma parte, no entanto, também chega a Chelas, onde se concentram, principalmente, os imigrantes. Veja-se os dados mais aproximados na Tabela 3: Tabela 3: Comparacäo sociológica dos luso-africanos versus imigrantes nos anos noventa Fonte dos dados: Machado (l 998) Pelos motivos citados, o contacto social entre estas duas correntes é pouco fřequente. Para alem disso, segundo Machado (1998, p. 117), os luso-africanos manifestam uma "atitude de superioridade" ou da "sobreposicäo á identidade étnica". Eies näo tém a necessidade de manter relacöes sociais reguläres com os imigrantes porque "tém representacöes de si próprios em que se destaca a afirmacäo do sujeito em detrimento de um qualquer grupo de pertenca. Näo tém a "necessidade de se referirem a um grupo", antes pelo contrario, "reforcam e valorizam a sua individualidade". Também Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 154 por isso era proibido ás criancas de falar o crioulo, considerado "lingua do caläo urbano", para se integrarem melhor na sociedade (cf. Contador, 1998 ,62). Apesar de os luso-africanos serein definidos, geralmente, como uma parte da sociedade homogénea, ao levar a sua divisäo geracional, verifica-se o contrario. Os seus descendentes, cuja linguagem se tornou o objeto da nossa pesquisa, por um lado, nasceram, cresceram e foram criados em Portugal, mas, por outro lado, enfrentam o mesmo campo de problemas sociais que os imigrantes. Machado (1998, p. 119) propöe, no entanto, usar o termo de novos luso-africanos. E digno de nota que esta nova geracäo se tornou o objeto da análise de múltiplas pesquisas (Ortiz 2013, Santos e Faria 2008, Contador 1998, Henriques 2019, etc.). Segundo as análises dos autores supracitados, nos anos noventa, a posicäo destes novos luso-africanos na sociedade, comparativamente com os seus ascendentes, vé-se muito enfraquecida e a sua integracäo na sociedade torna-se muito difícil, o que é causado, sobretudo, pelo problema de escolaridade näo concluída (64% deles näo conseguiram a formacao obrigatória e, 25 %, a secundaria) e, consequentemente, pelas possibilidades muito limitadas no mercado de trabalho naquele periodo que leva a um aumento de percentagem de desemprego. Estas circunstäncias levaram a criar um ambiente muito deprimente e contribuíram, signifícativamente, para a piora das relacöes familiäres. Esquema 1: Fases de imigracäo luso-africana Um dos maiores problemas que os novos luso-africanos apresentam na integracäo na sociedade portuguesa, é a procura da identidade. Trata-se de um problema geral que se Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 155 repete, habitual mentě, no contexto das migracöes, porque a adaptacao ao novo ambiente e a adocäo dos novos principios, implementados no pais de destino, muitas vezes se encontra em ponto de colisäo com os valores em que se baseia a identidade dos imigrantes. Segundo Soysal (2000) e Hall (2003) apud Ortiz (2013, p. 159) "[...] as identidades säo sempře negociadas e ambiguas, invocam uma origem no passado, que continua no presente, mas que simultaneamente acrescenta outras pertencas da sociedade onde resident, da vida quotidiana e ainda dos fluxos da cultura global". Os novos luso-africanos procuram a sua identidade, entre dois polos. No primeiro, encontram-se as suas familias provindas da distante Africa e, no segundo, a sociedade acolhedora. Recorrem, ao mesmo tempo, á subcultura afroamericana, chegando a sua identidade a adquirir a natureza de um caleidoscópio composto de diversos fragmentos. Young (1996) aplica, neste contexto, o conceito de hibridismo, perspetivado como combinacao de elementos diferentes, mas, também, como um processo, onde se cria um espaco de descontinuidades, de diferentes componentes de raca, lingua, religiäo, costumes e memoria. Este processo leva a criar a sua propria cultura e a produzir identidades, sociedades e realidades distintas, uma diversidade cultural que, de acordo com Heaven (2003, p. 153) "[...] dificulta ainda mais a complexidade da identidade, na medida em que abre lacunas e descontinuidades entre a maneira pela qual uma determinada comunidade se percebe a si propria e é percebida pelos outros." Os jovens descendentes, nesta situacäo, constroem as suas identidades mistas num espaco intermédio, denominado por Bhabha (1994 apud Ortiz 2003, p. 171) como o terceiro espaco, situado entre Africa, Portugal e os Estados Unidos. Vivem "[...] entre a afirmacäo e a resisténcia, entre a semelhanca geracional e a diferenca cultural ..." (Ortiz 2003, p. 171), sofrendo, ao mesmo tempo, as influéncias dos meios de comunicacäo, da escola, da cidade, das redes sociais. A sua cultura forma-se, portanto, num contexto diferente do contexto em que viveram os seus pais. Identificando-se com seus homólogos americanos (estadunidenses), que vivem situacöes semelhantes em muitos aspetos (a sua cultura inscreve-se num contexto social e cultural específico, representado pelo contexto urbano das comunidades desfavorecidas dos bairros periféricos das grandes metrópoles americanas, i. e., Nova Iorque e Los Angeles, entre Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 156 outras), recorrem á subcultura urbana Hip-Hop, baseada em quatro pilares: o rap, o DJing, o breakdance e o graffiti. Ä tal procura existe ainda o motivo de origem contribuída á tradicäo africana de oralidade incarnada pelos gritos e sons onomatopeicos. Em Portugal, as primeiras manifestacöes da cultura hip-hop surgem na década de 80, sendo intimamente ligadas á moda de breakdance, sem qualquer conotacäo sociopolítica. Esta cultura estava relacionada com um ritmo sonoro específico, que se alastrou via filmes de Hollywood como "Beat Street". Em Portugal, ainda nos anos 80 formou-se urna série de crews (bandas) de breakdance. Em 1994 o General D edita "Portukkkal E Um Erro", e surge a primeira compilacäo de Rap portugués, chamada "Rapública", que contava com os nomes como Boss AC, Zona Dread, Family, Líderes da Nova Mensagem ou Black Company, este ultimo conhecido pelo seu megaéxito hip-hop tuga Nadar - o hit que narra o quotidiano de diversao dos novos luso-africanos em Portugal que tinha as ruas como ponto de encontro. E digno de nota que a expressäo "näo sabe nadar", que faz parte dos primeiros versos do refräo, até ganliou o cenário politico portugués em mobilizacöes contra a construcäo de urna hidroelétrica que poderia deixar submersas as gravuras rupestres do parque ecológico Foz Côa. Como reacäo, em 1995 jovens estudantes e movimentos da sociedade civil criaram a campanha "As gravuras näo sabem nadar" impelindo o entäo presidente da república a visitar, pessoalmente, o território e a decidir pela sua preservacäo. No entanto, o rap assumiu, mais tarde, um caráter underground. O breakdance portugués associa-se a grupos de jovens luso-africanos no Miratejo (que se toma, assim, o Bronx de Portugal) e os jornais väo divulgando notícias sobre a delinquéncia juvenil, alimentando a ideia de que esta tem "um rosto, irremediavelmente negro, atuando em gangs, e residindo nas zonas limítrofes de Lisboa" (Capucho 2010, p. 264). O rap aparece, para a opiniäo publica, como urna "forma de contestacäo da ordern e dos valores estabelecidos" (ibidem), o que toma ainda pior a situacäo destes adolescentes e jovens. Em 1999, Sam the Kid, lanca o seu primeiro album "Entre(tanto)", aclamado no underground, e o seu single "Lágrimas" representa um marco na história do hip-hop portugués. Provérbios - Urna Linguagem sem Fronteiras 157 Ao mesmo tempo, o rap vai influenciando todos os estilos de música - funk, metal rock, etc. Hoje em dia, é encarado como a música dos jovens, continuando a ser tipicamente associado, justamente, ä vida dos novos luso-africanos, o que se reflete ao mesmo tempo, na sua linguagem. Apesar de os textos de rap, em geral, näo sérem caraterizados por uma alta qualidade da lingua, os seus compositores consideram a lingua lusa sendo uma premissa, uma lingua de barro que fornece inumeras possibilidades de moldar mensagens de apelo universal no estilo Freestyle. Nelas refletem-se, sobretudo, trés fatores: a espontaneidade, a improvisacäo e a influéncia do hip-hop americano (cf. Blažková 2020, Polička 2018), revestidas de expressoes populäres, informais, jogos de palavras, truncamentos, interjeicöes, alcunhas ou anglicismos, mas também, vulgarismos, caläo e gíria, uma vez que este estilo de vida, na altura, se vé associado a camadas sociais mais baixas. Um dos exemplos pode ser, precisamente, a cancäo Nadar, cujo trecho incluimos de seguida e em que destacamos a negrito as expressöes típicas do rap da década de 90: 8 [Verso 1: Gutto] No giato ponto de encontro Cheguei atrasado O Makas está pilhado O Bambino está de lado K.J.B, está zangado Näo há espiga A festa é até ao fim do dia BC de novo na estráda á procura de po usadá Nas férias o pecado é ficar a noite em casa Nós todos prometemos uma festa bem dada O meu melhor fato, sapatos a brilhar As damas que näo sabem o que väo encontrar Quatro gajos muito dreads muito podres Quatro gajos sem concretos sem temores Nós só queremos é diversäo Queremos desbundar e é na Caparica que vai nos encontrar um som radical no meu rádio japaiado Ninguém, ninguém, ninguém, ninguém, ninguém está preocupado É pura ilusäo que Portugal é diferente Os raps de Mira-Tejo tem um granda ambiente Os gajos no estrangeiro apanham no ar Podemos rebentar, mas näo nos pegas para nadar, para nadar yoooo [Refräo: Gutto ] Bantú näo sabe nadar yo! [Verso 2: Bambino & Gutto ] Tu Makas como te sentes Um bocado atrofiado por ali, por ali Tou disposto a desbundar Tou disposto a rasgar Tu que me conheces e sabes Que nao vou parar, Domingo na desbunda Escola na segunda (Nao) As ferias estao ai (Sim) E tempo de curtir Mas nao me faltam postos para partir para desbunda Sexta, Sabado, Domingo e Segunda Se me quiseres encontrar, vai a praia procurar Mas na agua nao vou estar Porque eu nao sei nadar Porque eu nao sei nadar [Verso 3: Makkas] Stonado pilhado, vai cu afogado Sou um rapper, sou um dread, nunca uso risca i lado Na praia o que eu gosto, sao as damas a passar As bundas a mexer, a temperatura a aumentar Eu nao aguento Eu nao aguento Eu nao aguento Se mexes no meu copo de cerveja Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 158 K.J.B. nao sabe nadar yo! Eu arrebento Madnigga nao sabe nadar yo! Tu poděs brincar com o que quiseres, eu näo me Makkx nao sabe nadar ye! emporto Bantú nao sabe nadar yo! Mexes com a minha dama e és um hörnern morto K.J.B. nao sabe nadar yo! E sempře a dar Madnigga nao sabe nadar yo! E sempře a dar Makkx nao sabe nadar ye! É sempře a dar Com o som do raggamuťfin näo consegues mais [Bridge: Gutto] parar E sempře a dar Black Company tem som e está pronto É sempře a dar arrebentar É sempře a dar yo Black Company tem som e está pronto a estoirar A desbundar Depois de meses de espera, B.C. mantém a A desbundar polvura A desbundar yo Estamos preparados para perder control o É a partir ... Se quiseres ouvir o som que entusiasma É a partir yo DJ K.J.B. dá-lhe com a alma Até cair ... Agora quero saber se estäo a gostar Até cair ey Se a resposta é sim quero ver as mäos no ar! É sempře a dar... Mas nós näo sabemos nadar E sempře a dar yo Mas nós sabemos rappar A desbundar... A desbundar yo E a partir ... E a partir yo Até cair Até cair ey Tabela 4: Black Company, Nadar (1994) - legenda Esta heterogeneidade de estilo em que é patente a confluéncia de diferentes componentes linguísticas é típica näo só do dito género musical, como também das conversas entre os membros desta comunidade, da qual a prova direta é o filme Zona J. 3. Zona J r E um filme de longa-metragem de ficcäo, realizado por Leonel Vieira em 1998, que foi premiado, em 1999, com dois Globos de Ouro de Melhor Filme, embora suscitasse reacôes negativas dentro da sociedade portuguesa (cf. Inocéncio 2018, p. 27). Isso porque levava ao grande ecrä problemas como o racismo, a discriminacäo e a pobreza com o objetivo de romper com os preconceitos que a sociedade tinha eriado sobre os novos luso-africanos.9 O filme trata da convivéncia de um grupo pertencente, precisamente, a esta geracao, de que fazem parte filhos de operários e de mulheres luso-africanas que trabalham nos servicos de limpeza. O protagonista é Antonio, um rapaz negro de dezoito anos, filho Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 159 de pais angolanos, que ainda está bem integrado na sociedade portuguesa da mesma forma como os seus pais, que conseguiram ter emprego numa empresa multinacional Mas sempre que trespassa a fronteira que dá a um espaco publico, junto com os outros amigos imigrantes, ve-se confrontado com os preconceitos da sociedade. Ao contrario da maior parte dos luso-africanos, o Tó pretende regressar para Angola, identificando-se com a cultura africana (o que provam, p. ex., os posters de Africa pendurados nas paredes do seu quarto). O seu irmäo mais novo, Pantera, junto com os outros jovens i.e., Broche, Pica-pau, Cadelas, Cienta, Cosmo, Fénix, Ulisses e Joe, já representam o grupo dos novos luso-africanos cuja diversäo quotidiana consiste em ouvir a música rap (Kid Sam), ver skateboarding na TV, fumar porros e fazer pianos para assaltar carros. O Tó evita fazer parte desta comunidade, mas as circunstäncias (por exemplo, muitas vezeš é ofendido pelos próprios Portugueses e até chamado de criminoso pelo guarda oficial) levam-no a agir contra a sua propria vontade. Apaixona-se por Carla, no filme chamada de dama ou duquesa, uma menina branca da classe média-alta. Conhecem-se no clube Capitol, através de uma amiga que os pös em contacto. A Carla trabalha como florista, numa loj a da sua mäe num centro comercial, em que se reencontram por acaso. O centro comercial, na altura, é visto como um sítio de racismo aberto "a place of ouvert racismo" (Ferreira, 2007, p. 55). Alias, a mäe da Carla é, também, uma acérrima racista e discorda, categoricamente, da rela9äo que a sua filha tern com o Tó. O pai do Antonio é despedido porque a fábrica perde competitividade no mercado europeu. Regressa para Angola e, para assegurar o futuro da sua familia, envolve-se num crime, acabando por ser detido. Tó, entretanto, encontra urn novo emprego nas obras de construcäo, mas acaba por ser também despedido pelo seu chefe, xenófobo. Desesperado, envolve-se no assalto a uma ourivesaria juto com os amigos do bairro. Tudo corre mal. Pantera, o seu irmäo mais novo, é baleado e a polícia persegue o grupo. A única saída é o aeroporto. Mas a Carla, entretanto, ficou gravida do Tó, e ambos těm uma longa Jornada pela frente. Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 160 4. Análise linguística da linguagem dos novos luso-africanos É no socioleto desta comunidade que se pode observar como as componentes culturais i linguísticas säo estreitamente vinculadas. Enquanto áreas contíguas que convivem em simbiose, operám numa relacäo sinérgica, em que se interlacam e influenciam mutuamente. Após uma sondagem linguística, verificámos que, na linguagem da dita comunidade se repercutem, autenticamente, todas as propriedades típicas do rap que mencionámos na seccäo anterior: nos diálogos deparamo-nos com palavras de origem inglesa, francesa, italiana, espanhola e africana, com uma série vulgarismos, mas também outros meios informais como säo as alcunhas, abreviacôes ou interjeicôes. O corpus por nós analisado, como j á se antecipou, consta de diálogos que transcrevemos, manualmente, de acordo com as legendas do filme, que tivemos ä disposicäo em DVD, e, nele foram incluidas apenas as classes lexicais denominativas (substantivos, adjetivos, numerais, verbos, advérbios) e interjeicôes. Näo foram consideradas as palavras gramaticais (artigos, conjuncôes, preposicôes e pronomes, com a excecäo de alguns possessivos que servem como forma de interpelacäo). As lexias caraterizadas como especificas do socioleto foram divididas em várias categorias. Para além das palavras consideradas como pertencentes ä norma padräo, estabelecemos a categoria de vulgarismos (palavras com um sentido de depreciacäo), de palavras informais (que säo usadas na linguagem falada näo oficial, mas näo constituem insultos, injuria ou humilhacäo), de interjeicôes e de alcunhas (que também poderiam ser consideradas como palavras informais, mas sendo tipicas dos textos rap, foram consideradas separadamente) e de estrangeirismos. Procedemos, durante a contagem, de dois modos: o absolute e o individual. O método absolute consistiu na comparacäo de todas as categorias encontradas, contando a repeticäo dos seus itens individuais, e na calculacäo do peso relativo de cada uma delas em relacäo a todo o corpus analisado. O procedimento individual consiste na comparacäo de todas as categorias, mas sem levar em consideracäo a repeticäo dos seus itens, e na calculacäo da sua relacäo percentual relativamente aos outros itens. Por exemplo, a categoria de vulgarismos, segundo a calculacäo absoluta contém 140 palavras. Segundo a calculacäo individual, no entanto, esta tem apenas 18 itens, alguns Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 161 dos quais se repetem frequentemente, atingindo o valor absoluto anterior. Como os seguintes graficos (o Grafico 1 e o Grafico 2) mostram, a calculaeao absoluta conta com 34% e, a individual, com 25% das palavras socioletais em relacao ao total dos itens considerados (todos incluidos em anexo). portugues-padrao; 994 66% Grafico 1: Contagem absoluta clas categorias lexicais Proverbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 162 Grafico 2: Contagem individual das categorias lexicais Ao mesmo tempo, prevendo-se uma diferenca entre os dados obtidos dentro de cada classe lexical, comparou-se a frequencia das categorias observadas nas classes verbais e nominais (nomes e adjetivos) segundo a contagem absoluta. Como os Graficos 3 mostram, na primeira classe, o lexico marcado constitui 31 % e, na segunda, 51% do corpus analisado. estrangeirismos; SO; 16% Gráficos 3 a) Classes lexicais NOMINAIS 3 b) Classe lexical: VERBOS (contagem absoluta) Veja-se, de mais perto, cada uma das categorias estabelecidas. Limitar-nos-emos a mencionar, de seguida, apenas aquelas componentes cujo significado semántico adquire, dentro do contexto estudado, um matiz pragmático e estilisticamente marcado. Porém na parte de anexo (Tabela 5) encontram-se todas as palavras que fazem parto do nosso corpus. Ao mesmo tempo, advirta-se que, ao citar exemplos concretos, por motivos de cortesia, evitamos a transcricao literal de palavras sentidas como grosseiras, substituindo sempre uma letra com o asterisco *. Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 163 4.1. Palavras informais Nesta categoria, faremos urna mencäo aos pronomes possessivos e ás palavras derivadas através de sufixos de avalia9äo (aumentativos e diminutivos). Quanto ao uso do possessivo, destaquemos o abundante uso de men, usado coloquialmente como uma forma de interpelacäo. A sua ocorréncia representa 24% do total das palavras informais segundo a contagem absoluta. Como exemplo podemos citar as seguintes frases do filme: 1. O gajo mexia os olhos, meu. 2. Os homens pegam nele e parte-se em dois, meu. 3. Embora lá disto, meu. 4. Mew, queres guiar ou näo queres? Ao mesmo tempo, o possessivo seu é usado também num torn expressivo, reforcando o significado pejorativo do nome que acompanha, como se pode ler na seguinte frase: 5. (Setts pane*eiros de me*da!) Também os diminutivos exercem, obviamente, um papel importante na linguagem desta comunidade, sobretudo na exterioriza9äo de vários tipos de afeto. Na maior parte das vezes, transmite urna emo9äo positiva, alegria e satisfeÍ9äo (é o caso da palavra motorzinho usadá durante o assalto do carro (frase 6) ou da palavra chamadinha que se refere ao telefonema da Carla (frase 7)). Porém, nem é raro o seu uso para exprimir diferentes matizes de irónia ou cinismo como se vé na palavra cuidadinho (frase 8), quando um protagonista brincando, pede para näo serem usados demasiados vulgarismos dentro da comunidade. O diminutivo pode ser usado, igualmente, como um meio eufemístico para atenuar o sentido depreciativo de alguns palavrôes e fonnas de interpela9äo corriqueira (veja-se cabräozinho - frase 9). Por outro lado, para intensificar o seu tom negativo verificamos o uso do sufixo aumentativo (cabraco -frase 10), podendo ser estas ultimas duas expressôes interpretadas, parcialmente, como exemplos de reapropria9äo linguística, á qual ainda nos referiremos mais adiante. 6. Tem cá um motorzinho ... 7. Pssst... a nossa primeira chamadinha. 8. Cuidadinho com a lingua ... 9. Prefiro arriscar o coiro do que ouvir este cabräozinho a noite toda. 10. Chama-me esse cabraco! Provérbios - Urna Linguagem sem Fronteiras 164 4.2. Vulgarismos Como se pode ver nos Gráficos 3, os vulgarismos representam 13% do total da categoria das classes nominais e, 16%, da classe de verbos. O seu uso é, primáriamente, sentido como negativo e socialmente inadequado. Costumam ser usados para exprimir uma atitude negativa acerca da situacäo vi vida, do objeto ou da pessoa descritos, contendo um matiz agressivo, grosseiro e depreciativo, mostrando, ao mesmo tempo, a falta de delicadeza ou de educacäo. No corpus estudado, o seu repertório näo é muito rico, como já se antecipou, mas é a sua frequéncia que chega a atingir uma percentagem elevada. Importa adicionar que o uso habitual de vulgarismos leva a que deixem de ser percebidos pela comunidade como estilisticamente marcados. Muitos deles säo usados automaticamente e adquirem a natureza "parasitaria". Isto quer dizer que preenchem as pausas de conversacäo, mas o seu conteúdo nocional é vazio. Alias, trata-se de um fenómeno que pode ser observado, em geral, na linguagem familiar, em que podem até adquirir um sentido positivo mesmo que sejam caracterizados como caläo (como prova a expressäo obrigado do caralh*, em que a palavra-caläo quer significa um elevado grau, dimensäo ou intensidade.). Os protagonistas do filme usam, frequentemente, este tipo de palavras para se referirem ä raca como se pode ler na seguinte seccäo. 4.2.1. Hierarquizacäo racial A hierarquia racial é um sistema de estratificacäo baseado na crenca de que alguns grupos étnicos säo superiores a outros. Geralmente, aqueles que apoiam hierarquias raciais acreditam que säo de uma raca "superior" e baseiam sua suposta superioridade em argumentos biológicos, culturais ou religiosos. Esta hierarquizacäo repercute-se, igualmente, no vocabulário. No filme, esta superioridade é expressa, pelos luso-africanos, num tom irónico, e isso através do termo inglés - os whites, quando os brancos apresentam elementos de comportamento negativos como mostra a frase 11. 11. Há essas parecencas com os whites. Pensei que fosse só com os pretos. Afinal com os bófias é a mesma coisa. Somos todos uma grande família. Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 165 Ao mesmo tempo, para se referirem a Carla, menina de raca branca, usam as palavras duquesa (frase 12) ou dama (frase 13) que adquirem um significado racial figurativo mas num contexto positivos, porque sendo a namorada de Antonio, e mais bem aceite pela sua comunidade. Porem, ambas as palavras conotam uma certa superioridade Duquesa remete para o significado de senhora que tern o titulo ou propriedade de um ducado, podendo evocar a associacao a posicao social e economica superior da dos africanos. E o termo dama, para alem de ser informalmente usada no sentido de namorada, tambem significa senhora nobre e de distincao, podendo ser associada, tambem, a distincao racial. Ao mesmo tempo, e usado, embora raras vezes, para se referir as habitantes brancas que vivem no mesmo edificio (frase 14). 12. Duquesa entao, como e? 13. A tua dama. A dos olhos lindos. 14. O dama, anda ca ouvir falar o big boss. Por outro lado, num sentido depreciativo, depara-se, na linguagem desta comunidade, com os termos preto e escravo, usados pela propria comunidade num sentido autodestrutivo, para se referir ao valor negativo com que julgam serem perspetivados pela sociedade acolhedora como mostra a frase 15. Ao mesmo tempo, o filme documenta a forma com que os brancos exprimiam a inferioridade da raca como mostra a frase 16. 15. Es um preto, um neto de escravos. 16. Pretos dum caralh*. Macacos da merd*! No filme, algumas denominacoes raciais como sao, por exemplo, black e nigger, aparecem como forma reapropriada de interpelacao, como se explica na seguinte seccao. 4.2.2. Reapropriacäo linguistica A reapropriacäo (reappropriation ou reclaiming) e um termo que pertence ä area de sociolinguistica e designa o processo cultural pelo qua! um grupo recupera palavras que eram usadas anteriormente de forma depreciativa contra aquele grupo. Consiste, portanto, numa variacäo pragmätica das expressöes que serviam, primeiramente, como meios de humilhacäo, injuria ou insulto. A reapropriacäo linguistica pode ser Proverbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 166 observada, por exemplo, nas areas da sexualidade humana e nas comunidades "queer" cujos membros säo denominados, na linguagem corriqueira, de tais nomes como viado, bicha, baitola, sapatäo, sapatona, caminhoneira, gobi, trova ou traveco/a. Estas expressöes, que säo sentidas como atacadoras, ás vezes, passam a ser usadas como forma de interpelacäo familiar pelo mesmo grupo. Um dos exemplos também pode ser a palavra negro em inglés. Foi usada de forma depreciativa e, a partir de meados do século XX, em especial nos Estados Unidos, tomou-se uma fortemente ofensiva. Por ter um forte teor racista, comecou a ser substituida pelo eufemismo "the N-word" ("a palavra com N", em traducäo livre). Em inglés, preferiu-se amplamente usar black {preto, em portugués literal), que igualmente, está a cair em desuso por se referir explicitamente á cor da pele. A expressäo maioritariamente usada, hoje em dia, é o termo African American, sendo o nigger considerado um dos piores palavröes. Porém, a sua derivacäo nigga é utilizada pelos jovens afro-americanos como gíria e forma de interpelacäo familiar, mas só dentro da sua comunidade. Quando usada por uma pessoa branca, continua a ser sentida como ofensiva. Na lingua portuguesa, a mesma dicotomia pode ser observada na palavra nego (derivacäo de negro) 10 que também pode possuir significados pragmaticamente contraditórios. Por um lado, a palavra pode referir-se a um indivíduo de pele muito preta, de escravo de pele escura, aproximando-se até do pronome indefinido alguém (cf. Carvalho, 2016) (ex.: Isso ai ě carro de nego trabalhador) e pode ser sentida também como ofensa direta. Este significado negativo pode ainda ser reforcado pelo sufixo aumentativo -ao - ona (negao, negona) que muitas vezes tern, na lingua portuguesa, conotacoes depreciativas. A expressäo negona caracteriza uma mulher de pele escura, feia. Mas, ao mesmo tempo, entre negros, no uso da palavra, pode haver uma reversäo, no sentido de apontar uma mulher negra decidida, forte em seus argumentos e conviccöes. (ibidem). A propria expressäo nego, nega pode ter, também um significado positivo. No Brasil, usa-se, coloquialmente, como forma familiar e carinhosa de tratamento (ex.: Cade minha nega?) reforcado pelos seus derivados através de sufixos diminutivos Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 167 (neguinha, neguinho). Mas também os diminutivos podem ser usados em contextos ambivalentes. No filme Zona J aparecem, neste sentido reapropriado, muitas vezes as palavras nig' e black como ilustram as frases 17 e 18: 17. O que é que tens, black? 18. Nigger, apresenta lá as tuas amigas. Como meios de interpelacäo servem, igualmente, ainda outras palavras inglesas como dread, brother, man, entre outros. Estas serao tratadas na seccäo seguinte em que abordamos a categoria de estrangeirismos. 4.3. Estrangeirismos Os estrangeirismos representam 7% do corpus total (na contagem absoluta), 16% do total dos nomes e 1% dos verbos. Os estrangeirismos säo adotados, habitualmente, por designarem uma inovacäo que näo encontra a sua designacäo na lingua-alvo. No entanto, no caso da comunidade dos novos luso-africanos, que vive num terceiro espaco baseado nos valores hibridos, num espaco de confluéncia de várias culturas, existe uma predisposicäo ao uso mais frequente das palavras de origem estrangeira em vez das palavras portuguesas mesmo para se referir a realidades bem conhecidas. Como podemos ver, entre eles, destacam-se, sobretudo, os anglicismos, mas também palavras de origem francesa (galicismos), espanhola (hispanismos), italiana (italianismos), e, claro, de origem bantu (propomos o termo de bantuísmos) a sérem comentados de seguida. 4.3.1. Anglicismos A elevada percentagem das palavras de origem inglesa no corpus analisado poderia ser interpretada por vários fatores, entre os quais há trés que julgamos sérem dignos de nota. O primeiro deles é a funcäo de globalizacäo da lingua inglesa, que serve como lingua franca, instrumente de integracäo, cooperacäo e divulgacäo internacional de tendéncias de desenvolvimento em todas as áreas da vida da sociedade, inclusive o cultural, seja céntricas ou periťéricas. Quanto ao contexto de hip-hop, como já se adiantou, em Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 168 Portugal era patente já nos anos oitenta quando no clima cultural do pais penetraram as primeiras componentes do breakdance e do rap que se tornaram a parte indissociável da identidade híbrida da dita comunidade. O inglés também poderia ser considerado como instrumento de diferenciacäo na segregacäo racial. Como o filme mostra, o contacto físico e a convivéncia pessoal dos membros das diferentes racas, vé-se muito limitado (embora dois rapazes da comunidade sejam de pele mais clara), o que implica e contribui para uma maior discriminacäo ou diferenciacäo racial. O uso do inglés, neste sentido, poderia ser compreendido como um mecanismo de defesa (enquanto meio de isolamento ou de identificacäo) que se ativa quando a situacäo vivida coloca em perigo a integridade do ego, com a qual o indivíduo näo consegue lidar ou que considera ameacadora e angustiosa. Ao mesmo tempo, o inglés como uma lingua de prestígio, pelo menos nos anos noventa, simbolizava a riqueza dos países anglo-saxónicos. A ánsia pela riqueza é típica das camadas sociais mais baixas. Do ponto de vista linguística, é interessante observar a sua submissäo aos processos de aportuguesamento morfológico e fonológico. Por um lado, a tendéncia fala a favor de um isolamento, por outro lado, a cultura e a lingua predominante é a portuguesa como se pode ver nos gráficos que mostram a prevaléncia do portugués-padrao. Sendo assim, alguns anglicismos passam a adotar as categorias nominais de género, numero e determinacäo, válidas para o sistema gramatical da lingua portuguesa (o white —> os whites, o nigger —» os niggeres, o black —* os blackes, o brother —* os brotheres, dread —» um dread, nitě —» um nite, big boss —» o big boss) e, também, säo pronunciadas de acordo com o sistema fonético portugués, isto é, com a palatal [f] no fim da palavra como ilustram as seguintes frases: 19. Tó! Achas que a tua dama anda de autocarro como os blacks? [blekj] 20. Como é, cota orienta lá um „nite" 21. O dread está aí? 22. Dreades, a gente só vem aqui á procura de um CD 23. ... anda cá ouvir falar o big boss. Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 169 4.3.2. Galicismos Quanto aos galicismos, isto é, palavras de origem francesa, hoje em dia säo maioritariamente, sentidas como de uso culto, literário ou arcaísmos. Contudo, uma parte apreciável continua a ser utilizada e faz parte da linguagem diária) portuguesa como, por exemplo, a palavra fixe e a, várias vezes referida, dama, que, no contexto estudado, adquire urn valor específico. A alcunha Broche é, igualmente, de origem francesa e neste contexto simboliza a joia: as ourivesarias eram um alvo frequente de assalto. Um caso interessante de hibridismos é a expressäo ma dieau, que é, provavelmente, de origem mista, isto é, francesa (mon dieau), e, ao mesmo tempo, inglesa (my god), conservando-se a primeira vogal da pronuncia. 4.3.3. Hispanismos A palavra chaval, habitualmente usada no rap espanhol (cf. Gomez 2017) é uma palavra proveniente de caló (cavale, que é o vocativo plural de chavó - muchachó)11 e usa-se, no castelhano informal, no sentido de rapaz jovem. No filme Zona J aparece várias vezes como ilustram as seguintes frases: 24. Treinou com fome, enganámo-nos, chaval. 25. Va, chavall Faz pela vida. 4.3.4. Ban tu is in os Quanto as palavras de origem africana, na maior parte bantu, o seu uso esta associado, sem duvida, a influencia do pais de origem. Importa salientar, no entanto, que as culturas destas minorias etnicas foram transmitidas de geracao velha a mais nova apenas parcialmente. Recordemos que em algumas familias, as criancas era proibido falar o crioulo ou as linguas bantu para se integrarem plenamente na sociedade. Apesar de os descendentes nem terem conhecido o pais de origem, nao e raro continuarem a usar algumas palavras que os seus pais os ensinaram. No filme, ocorrem, na maior parte, palavras de origem bantu e uma interjeicao poderia ser definida como de origem africander. Muitas destas palavras sao usadas tambem na lingua coloquial pelos falantes Portugueses como se pode ver na seguinte lista: Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 170 ■ bazar (de origem quimbundo kubaza = romper), em Portugal usa-se no sentido de ir embora, 12 sair. ■ hue lj (de origem bantu, talvez, quimbundo), usa-se na linguagem informal para designar uma grande quantidade ou intensidade ■ cota |6| (de origem quimbundo; kota = superior) e um nome de dois generös, que se usa, na linguagem informal, no sentido de pessoa mais velha '4. ■ quizomba, (de origem quimbundo, kizomba) - e urn nome danca de pares, ou müsica que a acompanha, de origem angolana, de movimentos fluidos, passadas e figuras, de tipi folguedo, diversäo, bailarico. 15 ■ muamba (tambem de origem quimbunda), e urn nome feminino que significa um tipo de cesto para transporter mercadorias. o Em Angola, usa-se na area de culinäria, designando o guisado feito com öleo de palma (ex.: muamba de galinha). o No Brasil adquiriu o significado de furto de mercadorias armazenadas em portos ou armazens ou comercio de produtos roubados ou mesmo o produto contrabandeado (ex.: a muamba entra pela fronteira paraguaia) ou, pode ter urn significado geral de atitude ou comportamento de ma-fe. ■ id 16 (adverbio proveniente da palavra africänder ya, pelo ronga), e urn adverbio informal que pode exprimir afirmacao, confirmacäo, concordäncia, aprovacäo. Ao mesmo tempo, pode ser a imitacäo da interjeicäo inglesa yeah. 26. Baza ate ao Centro Comercial. 27. Estäs hue de esquisito, meu. 28. Certo, cota, mas näo saias daqui, estä bem? 29. Ya (no sentido de sim), na pausa. E o que e que eu faco? Ao mesmo tempo, hä palavras que näo säo de origem africana, mas, adquirem, nos paises luso-africanos, um significado proprio: birra e fezada. ■ birra, de origem italiana. mas segundo os dicionärios online consultados (Priberam, Caldas Aulete, Michaelis) e usada, no sentido de cerveja, apenas em Angola. No Brasil, e usada no sentido de marijuana. 17 ■ fezada: (derivada de fe e o sufixo ada) 18 -palavra usada, tipicamente, em Angola, significa sorte, felicidade. Em portugues usa-se no sentido de grande fe ou conviccäo. No filme, parece a adquirir o significado de bom trabalho e, contextualmente, de roubo (sucessivamente feito). 30. Big „fezada " Joe, 31. Tu e as tuas fezadas 32. Tä a chegar o dia da minha fezada. Proverbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 171 5. Conclusäo Chegando ao fim, regressemos ao titulo do texto, introduzido pelo proverbio japones Ao erguermos a vista, nao vemos as fronteiras. Foi o objetivo da nossa pesquisa mostrar, precisamente, que abrindo os olhos, conhecem-se outras dimensöes, encontram-se Saidas de um espaco hermeticamente fechado e caminhos pelos quais se pode fiigir a momentos dificeis que coloquem em perigo as nossas vidas. Atravessando as fronteiras e procurando meios suficientes para a verdadeira autoexpressäo, podemos construir as nossas pröprias identidades, mais complexas, mais abrangentes. No caso dos novos luso-africanos, por um lado, estas ganharam, nos anos noventa, umas conotacöes negativas, que, na maior parte, näo foram aceites pela sociedade recetora. Por outro lado, revestindo -se de uma linguagem assente em pilares pluriculturais, confirmam, igualmente, a relacäo indissociävel entre as componentes culturais e linguisticas. Entäo, percebendo a sua cultura e identidade, percebemos tambem a sua linguagem. A sua natureza hibrida construida entre värias subculturas, num terceiro mundo de dimensäo multicultural, reflete-se, obviamente, na confluencia de expressöes de diferentes origens (inglesa, francesa, espanhola, italiana e bantu), tipicas da cultura hip-hop e patentes ate em unidades tao curtas como sao as frases simples, como se pode ver nos seguintes exemplos: 33. Baza (AFR.), opeople {ANGL.) estä na zona (PORT.). 34. Näo des shi*(ANG.) ao meu irmao {PORT.) 35. Como e, cota {AFR.) orienta {PORT) lä um nite (ANGL.). 36. Ya. {AFR.) Man (ANGL.), este aqui (PORT) e cool (ANG). 37. Quando o black (ANG.) tem de ir mi*ar (PORT, vulg.), o dread (ANG) tern de acompanhar {PORT.) 38. So mais uma beca (PORT, informal), dama (FR.). 39. Ajanela (PORT.) estava aberta, ma dieu (ANG.-FR.). 40. ... engandmos-nos (PORT.), chaval (HISP.). Do socioleto utilizado por esta comunidade, no entanto, pode ser deduzida, tambem, uma data de fatores sociais que revelam os seus problemas sociais e econömicos. Atraves do uso de vulgarismos exprime-se, por exemplo, a atitude negativa relacionada com os aspetos negativus decorrentes da sua posicäo enfraquecida e marginal na sociedade acolhedora. A escolaridade näo concluida repercute-se no uso frequente de Proverbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 172 palavras informais e coloquiais, sendo a lingua padräo, äs vezes, encarada, por eles, com um certo matiz de irónia e cinismo. Por outro lado, há uma série de componentes que falam a favor da sua unidade e das relacöes de convivéncia familiar, o que prova, por exemplo, o abundante uso de alcunhas que, ao longo do filme, representam simbolos de änsia pela riqueza ou de defesa. Por exemplo, a alcunha Pantera, (irmäo do To, que anseia por ter uma motocicleta), evoca a marca Panther, fabricada pela empresa Phelon & Moore. Broche (alcunha de origem francesa), no sentido de joia, simboliza a ourivesaria, que é alvo de urn assalto planeado. Pica-pau, por outro lado, representa o símbolo de defesa: trata-se de lazarina, isto é, uma espingarda, de pequeno alcance, de carregar pela boca. Também as diferentes denominacöes de raca, linguisticamente reapropriadas pelos membros da mesma comunidade (black, nigger, nego, etc.) podem ser um exemplo de amizade e solidariedade entre os membros da comunidade. Ao erguermos a vista, näo vemos as fronteiras, neste trabalho, näo é usado apenas no sentido endóforo, isto é, para nos referirmos á diluicäo das fronteiras do espaco em que vive a comunidade dos novos luso-africanos, e que representa um movimento de dentro para fora. Com este provérbio pretende-se, ao mesmo tempo, propor um passo oposto, o exóforo (de fora para dentro), deixando um desafio ás sociedades recetoras para eliminarem a barreira, o entrave, que impede de compreender o estilo de vida das comunidades social e economicamente periféricas, entender as suas circunstäncias de vida e contribuir para que elas se tornem a parte equipolente da sociedade. Notas 1. https://observador.pt/2015/06/12/portuaal-scmindo-melhor-pais-a-acolheľ-e-intem-ar-i m i urán t es/. 2. https://iT.sapo.pt/2021/03/2 l/politica/portu^al-e-pais-dc-acolhimenTo-aberto-universal-e-ecunicnico-diz-marcclo/noticia/23 1312/. 3. https://iilp.wordpress.com/2017/1 1/20/aíJľadecimento-aos-cuľsantes-do-viii-cuľSO-de-capacitacao-para-a-elaboracao-de-materíais-ensino-de-poľtiii^ues-como-liľmua-de-acolhimento/. 4. https://www.timeout.pťlisboa/pŤ/noticias/sam-the-kid-e-oiitros-nioľadores-uarantem-q ue-cľielas-e-o-sitio-052421 . 5. https://www.infopedia.pt/dicionaľios/lingua-poľtuauesa/socioleto . Provérbios - Uma Linguagem sem Fronteiras 173 6. hŤtps://vvww.«ec.g,Qv.pt/pt/lista-piiblicacoes/estatisticas-de-inť[ťrantes-em-portiiKal-por-nacionalidade/retíioes-do-mundo/GEE0/o2Q- %201>opiila%C3%A7%C3%A3o%20estraimeira%20residente%20em%20Portugal%20- %20PALQP.pdfy3914-populacao-estranaeira-com-estatuto-leual-de-residente-em-portuggj- palop/file 7. Sobre a legislativa de nacionalidade portuguesa, veja-se, Lei da Nacionalidade Portuguesa (acesso: https://dre.pt/le^islacao-consolid3jja/. /lc/69738105/201708271544/diploma/l ?rpHndice ) 8. https://Kenius.com/Black-company-nadai-lyrics 9. Acesso ao filme: https://www.youtiibe.com/watch?v=Wy EOpEUFml 10. lmps://clicionario. pribeiam.org/negro 11. https://dle.rae.es/chaval?m=form 12. https://dicionano.priberam.org/bazar 13. https://dicionario.priberam.org/bu%C3%A9 14. https://dicionario.piiberam.org/cota 15. hrt ps: liá i c i onar i o. p r i be ra m. or g/q u izom ba 16. https://dicionario.priberam.orK/i%C3%A1 17. https://dicionario.pribeiam.org/birra 18. https://dicionario.pi-ibeiam.org/fezada Bibliografia Beline, R. (2004). A variaeao lingiiística. In: Fiorin, J. L. (org.) Introducäo ä lingiiística I. Objetos teóricos. 3a ed. Säo Paulo: Contexto, 2004, p. 121-40. Bhabha, H. (1994), The Location of Culture. Londres: Routledge. Blažková, T. (2020). Rap jako literární texto. 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